Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5101/22.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
ARRESTO
REQUISITOS
Data do Acordão: 05/16/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 2., 1, N); 5.º; 6.º E 92.º, 2, N), DO C REGISTO PREDIAL
ARTIGO 822.º, 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 2.º, 2; 6.º; 391.º, 1; 392.º, 1; 590.º; 622.º; 762.º E 819.º, DO CPC
Sumário: I - O indeferimento liminar  da petição apenas pode ocorrer quando for manifesto que o pedido não pode proceder, ou seja, quando for evidente e ostensivo que os factos alegados e a subsunção jurídica dos mesmos efetivada, não possam, de todo em todo, sustentar a pretensão deduzida.

II - No arresto, providência meramente conservatória e garantística, e não já antecipatória dos efeitos da ação principal, a conclusão pela verificação dos seus requisitos pode ser, por referência à presença dos requisitos das providências antecipatórias, posto que sempre  sensata e cautelosamente, aliviada.

III - Alegado, pela requerente de arresto,  nuclearmente,  que a requerida se aproveitou de erro de máquina de jogo on line para obter, indevidamente, ganhos de mais de meio milhão de euros, que lhe foi dado conhecimento do erro e proposta solução consensual, o que rejeitou,  e que a colocação na sua disponibilidade de tal quantia pode acarretar o seu gasto,  foram alegados factos bastantes que, a provarem-se, podem clamar a conclusão sobre a verificação dos pressupostos do arresto, pelo que o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na improcedência do pedido por inverificação de tais pressupostos, apresenta-se precoce.

Decisão Texto Integral:
Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Rui Moura
2ª Adjunto: Fonte Ramos

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

 A... LIMITED instaurou contra  AA, ambas com os sinais dos autos, procedimento cautelar de arresto.

 Pediu:

O decretamento do ARRESTO sobre:

a) o valor de Eur. 580.019,84 (quinhentos e oitenta mil e dezanove euros e oitenta e quatro cêntimos) presentes na conta de jogadora da Requerida junto da Requerente A... Limited, detidos através do seu sítio eletrónico e sistema de jogo licenciados disponíveis em www.b...play.pt;

b) o saldo bancário até ao montante de Eur. 11.029,71 (onze mil e vinte e nove euros e setenta e um cêntimos) na conta titulada pela Requerida junto da Banco 1... com o IBAN  ...73.

Alegou, em apertada síntese:

Que a requerida jogou on line em site detido por si, aproveitando-se de um erro no software da máquina de jogos que lhe proporcionou ganhos de mais de quinhentos mil de euros.

Que, se e quando for obrigada a transferir o saldo  de tais ganhos abusivos, que está depositado em conta por si titulada,  como manda a lei, para a disponibilidade da requerida, com toda a probabilidade esta gastará/dissipará tal montante ou parte do mesmo.

2.

Foi proferido despacho que indeferiu liminarmente a providência, a saber:

«Nos termos e fundamentos expostos,

- Indefere-se liminarmente o procedimento cautelar de arresto por ser manifestamente improcedente.

- As custas são a cargo da Requerente.»

3.

Inconformada recorreu a requerente.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1 – O indeferimento liminar de uma providência cautelar deve ser uma prorrogativa reservada a casos gritantes e incontornáveis em que seja completamente inverosímil a mínima hipótese de sucesso na acção principal intentada ou a intentar;

2- O Tribunal como forma de atingir a sua convicção não deve privar o Requerente da oportunidade de produzir a prova que ateste as suas alegações bem como adensar o que possa não ter ficado claro em sede de articulados

3 – A prova necessária para o decretamento da providência cautelar é manifestamente inferior quer em quantidade, quer em qualidade, quer em natureza àquela que deve ser exigida em sede de acção principal.

4 – Não deve o julgador da Providência Cautelar substituir-se ao julgador da ação principal, abstendo-se de um indeferimento liminar caso não tenha efetivamente todos os elementos que permitam formular um juízo que inegavelmente conduza a um juízo de total incapacidade de subsistência da pretensão do Requerente.

5 – A tecnologia não se conduz a binómios sim/não, “0”s e 1s e bits and bytes, que sustentem decisões sem que se procure entender que efetivamente o erro é uma constante, ainda mais quando os procedimentos requerem intervenção humana, quando não se encontram totalmente automatizados e é por essa razão que o comércio eletrónico tem regras especificas como as previstas no DL 7/2004 de 7 de janeiro;

6 – As regras da experiência dizem que se alguém recebe uma importância avultada de dinheiro, como seja mais de meio milhão de euros não é verosímel que não use – pelo menos parcialmente – esse dinheiro, tanto mais sabendo que a quantia se encontra a ser disputada.

7 – A Requerente face ao indeferimento liminar ficou desprovida de poder demonstrar as suas alegações o que poderia ter não só em abstrato mas também em concreto permitido uma formulação de juízo diferente.

8 – Não é a autoria do erro que por si só afasta a ilegitimidade de quem beneficie desse erro, tanto mais quanto podem existir indícios de um comportamento que parece poder ser interpretado como tendo procurado tirar partido desse erro

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685-A º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda  é a seguinte:

Ilegalidade da decisão de indeferimento liminar e continuação do processo.

5.

Tal como o julgador expendeu, o teor das alegações do requerimento que importa considerar é o seguinte:

1. A Requerente exerce legalmente a atividade de exploração de jogo online, estando devidamente licenciada para tal através da licença de jogo online n.º 25, emitida em 23 de outubro de 2020 pelo Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, a funcionar junto do Turismo de Portugal, IP, e disponível em https://www.srij.turismodeportugal.pt/pt/jogo-online/entidades-licenciadas/ , sendo que opera com a marca ... e no sítio eletrónico www.b...play.pt..

2. No âmbito da sua atividade de exploração de jogos de casino online, a Requerente sujeita-se a todas as obrigações legais e regulatórias, mormente o pagamento de impostos, como seja o Imposto Especial sobre o Jogo Online, tal como referido nos artigos 88.º e seguintes do DL 66/2015 de 29 de abril, e todas as demais regras e mecanismos que conferem direitos aos jogadores e combatem quer as fraudes quer o jogo irresponsável, tudo num sistema amplamente regulado e fiscalizado.

3. A Requerida registou-se no mencionado site da Requerente – www.b...play.pt – indicando todos os dados a que a lei obriga (os contantes no artigo 37.º do DL66/2015) pelas 21h34 do dia 22 de agosto de 2021, fornecendo os dados pessoais pelos quais aqui é identificada a Requerida, ainda que se verifique agora a omissão do número de polícia.

4. No seguimento desse registo, procedeu a um depósito de Eur. 50,00 nessa mesma data e outro de Eur. 30,00 cerca de duas semanas depois, não tendo voltado a jogar até finais de julho de 2022 – ou seja, volvido um ano.

5. Desde esse momento e até ao dia 30 de setembro de 2022 procedeu a 20 depósitos num montante total próximo de Eur. 800,00.

6. Em meados de 15 de setembro, a Requerente havia disponibilizado um novo jogo das designadas slot machines, com o título de “3 Mermaids”, criado pelo fornecedor de software “BB”.

7. Conforme resulta do enquadramento legal da atividade de exploração do jogo online – mormente o Decreto-Lei n.º 66/2015, de 29 de abril, o Regulamento n.º 903-B/2015 de 23 de dezembro, relativo aos requisitos técnicos do sistema técnico de jogo online, e o Regulamento n.º 828/2015 de 2 de dezembro, relativo às regras de jogo - máquinas de jogo – , a disponibilização de tal jogo foi precedida da sua certificação, levada a cabo pelo laboratório internacional Quinel – uma entidade certificadora reconhecida para o efeito, conforme poderá ser verificado em https://srij.turismodeportugal.pt/pt/jogo-online/entidades-certificadoras/.

8. Durante tal processo, foi encontrado um erro que levava a que a máquina pagasse prémios em situações onde a matemática do jogo não deveria implicar qualquer pagamento e onde inclusivamente funcionaria fora daquilo que era comunicado aos jogadores.

9. Tal erro foi corrigido, tendo sido criada uma nova versão do jogo já com essa correção corretamente codificada.

10. Por erro humano, a versão que foi colocada disponível online (operação que se designa por deployment) foi a versão anterior e não a corrigida, tendo, portanto, ficado disponível a máquina que tinha especificações para uma taxa de retorno ao jogador de 155% e não a de 95,07%, conforme deveria ter acontecido.

11. A Requerida, no dia 27 de setembro, começou a jogar precisamente nessa máquina – e fê-lo continuamente, ao contrário do seu perfil bastante ausente até então, até que a Requerente se apercebeu do erro e retirou a máquina de funcionamento no dia 2 de outubro – , e iniciou um total de 49 sessões de jogo.

12. E das 22 horas do dia 30 de setembro em diante, sem ter realizado qualquer depósito adicional, usando o saldo do jogo, intensificou a sua atividade de uma maneira exponencial, ao ponto de que nesse período jogou dia e noite, praticamente durante 56 horas seguidas – com curtos intervalos.

13. Durante este período, em praticamente todas as sessões, obteve ganhos, sendo que em maior parte das mesmas – e às vezes numa questão de minutos – tais ganhos se cifravam em valores de 5 dígitos.

14. Diga-se que esta atividade de jogo é alvo de reporte rigoroso através de ficheiros XML, alguns depositados de hora a hora e outros diariamente no servidor “safe” do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos – sendo um processo meticuloso nos termos legais, e a verificação desta mesma atividade encontra-se consolidada.

15. Se é inegável que os ganhos (indevidos) começaram a ser exponenciais também fruto de os montantes apostados serem eles mais elevados, não pode deixar de ser notado que é no mínimo indiciador de que a Requerida se possa ter apercebido da falha,

16. Para além do aumento das apostas, o montante de tempo despendido no jogo, com perda de horas de sono, e o facto de jogar sempre na mesma máquina – com o nome “3 Mermaids” – com exceção de um curto período dedicado a uma outra máquina, após o qual “regressou” à “3 Mermaids” – denunciam claramente estar fora quer de um padrão normal e comum da generalidade quer até da atividade habitual da própria Requerida, que até esse momento tinha tido uma prática de jogo muito comedida e com um interregno de quase um ano.

17. Durante este período – entre dia 27 de setembro e dia 2 de outubro – a Requerida colocou apostas no valor de mais de um milhão de Euros – concretamente Eur. 1.036.270,00 – dos quais Eur. 1.033.035,00 foram apostados entre as 22 horas de 30 setembro e as 6 da manhã do dia 3 de outubro, período em que, repita-se, a Requerida praticamente não parou de jogar na mesma slot machine.

18. Apostas feitas com base no saldo na plataforma, e não tem por base dinheiro transferido de conta bancária pessoal para a mesma, sendo que saldo esse resultante de ganhos indevidos.

19. Durante esse período, a Requerida obteve prémios no valor de Eur. 1.627.319,55 (um milhão e seiscentos e vinte e sete mil euros e cinquenta e cinco cêntimos), dos quais Eur. 1.623.747,00 (um milhão e seiscentos e vinte e três mil) foram durante o período de intensificação já referido.

20. Como resultado desta atividade, a Requerida obteve assim um “enriquecimento” indevido no total de Eur. 591.049,55.

21. A Requerente, apesar de ser fim-de-semana, notou o impacto que estes números implicavam e apurou que o pico de atividade se deu naquela máquina e praticamente por apenas dois jogadores: a Requerida e outra pessoa que obteve ganhos de Eur. 15.000,00 – apesar de durante os 15 dias em que a máquina esteve disponível e com o mesmo erro outros 69 jogadores a usaram, e nenhum deles adotou comportamento sequer próximo disto, tendo obtido ganhos de dezenas ou poucas centenas de euros.

22. Nesses casos, atendo os valores em causa a Requerida absorveu o prejuízo – com exceção dos dois casos, dos quais de longe este é o de maior impacto.

23. A máquina deixou de ser disponibilizada e foi o fornecedor inquirido sobre o que se estaria a passar, tendo este investigado as razões por trás deste mau funcionamento e lavrado o relatório de incidente, cujo original foi lavrado em língua inglesa e que se junta acompanhado da devida tradução certificada como Doc. 3.

24. A Requerida requereu um levantamento de Eur. 1.700,00, e o mesmo acabou por ser processado antes mesmo de a Requerente o ter podido suspender.

25. A Requerente comunicou à Requerida que se tinha apercebido de um mau funcionamento e que o mesmo estaria a ser investigado, e a Requerida inicialmente mostrou-se disponível para colaborar.

26. Requereu e insistiu para que os levantamentos que iniciou fossem concretizados sobre o seu saldo de conta de jogadora, que se situa presentemente em Eur. 580.019,84 (quinhentos e oitenta mil e dezanove euros e oitenta e quatro cêntimos).

27. E, ao contrário do caso de ganhos à ordem de Eur. 15.000,00, em que o jogador rapidamente compreendeu a posição da Requerente e com esta chegou a acordo, no sentido de a Requerente não suportar os prejuízos, com a Requerida, até à presente data, não se chegou aos mesmos bons termos.

28. Obrigando a Requerente a recorrer à via judicial.

29. O fumus bonni iuris e a (pelo menos) aparência do direito da Requerente de não lhe ser exigível suportar os avultados encargos decorrentes de um erro técnico resultam, portanto, s.m.o., suficientemente demonstrados e desde logo serão perfeitamente enquadráveis quer no instituto do abuso de direito quer no do enriquecimento sem causa – visto estarem preenchidos os pressupostos de que este depende, designadamente i) o enriquecimento de alguém, ii) o empobrecimento de alguém na mesma proporção e iii) a relação direta entre os anteriores e respeitos montantes, acompanhada da ausência de um motivo juridicamente atendível para esse efeito de sentido contrário na esfera patrimonial de cada uma das partes.

30. No caso do procedimento cautelar especificado ora requerido, por sua vez, a verificação do periculum in mora é algo mais imediata e que desde logo justifica o contraditório deferido imposto pelo regime legal e que se prende com a necessária obstaculização de que o Requerido possa dissipar património e valores perante uma iminência de ser verificada a circunstância que obrigaria a que esses meios existissem para satisfazer um credor.

31. No presente caso estamos perante a particularidade de que os valores – não a totalidade, mas perto disso, já que estamos a falar de ganhos indevidos no valor de Eur. 591.049,55, quando o saldo presente é ainda de Eur. 580.019,84 – encontram-se ainda na posse da Requerente, que não chegou ainda a transferi-los para a conta bancária da Requerida, tendo sim procurado esclarecê-la e  chamá-la à razão – aparentemente – e até agora – sem sucesso.

32. Mas a questão é que existe a obrigatoriedade legal de os operadores de jogo licenciados procederem ao processamento dos levantamentos requeridos, desde logo sob pena da prática de contraordenação punível com coima até Eur. 50.000,00, pelo que, para acautelar o não processamento desses levantamentos exigidos pela Requerida sem que a questão seja discutida em Tribunal, como a Requerente pretende e vê-se forçada a pretender, torna-se necessário obter proteção judicial adequada – ainda que a título cautelar –, como forma de obviar a tal obrigatoriedade.

33. A Requerida está já na posse da informação de que tais valores não lhe são devidos, pelo menos no entendimento da Requerente, e que esta os irá disputar judicialmente através da competente ação principal, da qual o presente procedimento é meramente instrumental e cautelar.

34. Se os montantes em causa fossem transferidos para a conta da Requerida, dificilmente aí se manteriam, em virtude quer do que acabou de ser dito quer da sua própria grandeza: não é sensato, de acordo com as regras da experiência, esperar que alguém que receba uma transferência de perto de Eur. 600.000,00 seja espartano e responsável ao ponto de nada gastar durante a pendência da ação judicial.

35. Tal convicção sai ainda mais reforçada porquanto durante o hiato de tempo que passou as tentativas de fazer a Requerida compreender se revelaram infrutíferas, pois a mesma começou a escrever queixas em diversos locais online – como foi o caso do Portal da Queixa.

36. Nestas circunstâncias, cada dia que o dinheiro passasse nas mãos da Requerida mais sujeito estaria a desaparecer.

37. Sem que se possa antever a existência de meios alternativos que pudessem substituir estes valores – ainda mais estando em causa valores tão elevados.

38. Acresce ainda que, do ponto de vista legal, a Requerente está obrigada a permanentemente manter liquidez na conta bancária de onde paga os prémios (os levantamentos requeridos pelos jogadores) num montante no mínimo igual ao somatório do saldo de todos os apostadores (conforme o n.º2 do artigo 44.º do DL 66/2015), e esta conformidade é alvo de um controlo de periodicidade mensal, mas que abrange todos os dias do período em causa, sendo que o seu desrespeito também ocasiona uma coima de até Eur. 50.000,00, visto também se tratar de uma contraordenação muito grave – conforme a al. t) do artigo 57.º do DL 66/2015.

39. Como o saldo da conta de jogador não pode ser movido sem ser no seguimento de instruções do próprio jogador (segundo o Regulador Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, pois, por exemplo, o Regulador da atividade bancária tem desde logo outro entendimento quanto à possibilidade de os Bancos poderem estornar valores incorretamente movimentados junto das contas dos seus clientes!!!) ou ordem judicial, nesse sentido quer isto dizer que o valor está garantido enquanto durar a ação principal sob o controlo caso permaneça sob o controlo da Requerente.

40. Não se concedendo nem se concebendo tal, e apenas se formulando aqui como hipótese académica, se a Requerente não tiver razão na ação principal, é certo e seguro que o valor será entregue à Requerida.

41. Ademais, a Requerente tem adicionalmente uma caução prestada a favor do seu Regulador SRIJ, destinada precisamente ao cumprimento da sua obrigação de pagar prémios aos jogadores – conforme é requisito legal de emissão da licença previsto no artigo 18º do referido Decreto-Lei 66/2015.

42. A Requerente não deixará de recorrer à tutela que lhe permite fazer salvaguardar os seus direitos, desde logo instaurando a competente ação cível, uma vez que, apesar de estarem reunidos todos os elementos que permitissem a justa composição do litígio, in casu o instituto jurídico da inversão do contencioso previsto no artigo 369.º do Código de Processo Civil não é suscetível de aplicação, no caso do procedimento nominado de arresto, por força da leitura ad contrario do n.º 4.º do artigo 376º.

43. Mas, por ora, só o congelamento da situação jurídica dos montantes na conta de jogador da Requerida junto do site www.b...play.pt pode ser suficiente para pelo menos acautelar o direito que assiste à Requerente – sendo que até já nem serão totalmente suficientes, como visto supra.

44. Uma vez que o remanescente do saldo não é suficiente para acautelar o total de prémios atribuídos à Requerida no valor de Eur. 591.049,55, pois fica-lhe aquém no montante de Eur.11.029,71 (correspondentes a valores que a Requerida gastou ou conseguiu levantar), o Arresto em causa deverá também incidir num montante até Eur. 11.029,71 de saldo da conta bancária titulada pela Requerida junto da Banco 1... e a que corresponde o IBAN  ...73 – conta para onde a Requerida requereu levantamentos e cujo comprovativo forneceu à Requerente de acordo com a obrigação legal de comprovar tal titularidade.

6.

Apreciando.

6.1.

O Julgador decidiu aduzindo o seguinte, sinótico e essencial, discurso argumentativo:

«…o decretamento da providência cautelar de arresto depende da verificação cumulativa de dois requisitos:

- A probabilidade da existência do crédito e

- O justificado receio de perda da garantia.

No que tange ao primeiro requisito, “A aparência do direito supõe a existência de um certo juízo positivo por parte do juiz de que o resultado do processo principal provavelmente favorável ao autor, o que, porém, não deve conduzir ao resultado indesejável de só ser adoptada uma medida cautelar quando o juiz adquira a convicção absoluta de que a pretensão do autor irá proceder” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Vol., p. 209).

No que respeita ao segundo requisito, este traduz-se numa fórmula ampla e genérica que procura abarcar todas as situações casuísticas mais apontadas, as suspeitas de fuga do devedor, o receio de subtração de bens ou risco de perda das garantias de crédito. Assim, o justo receio terá que se configurar em razões objectivas, convincentes e capazes de justificar a pretensão do requerente, que vai subtrair, se procedente, a providência cautelar, os bens à livre disposição do seu titular (cfr. Antunes Varela, ob.cit.)

Porém, não basta o receio subjectivo do credor, mas exige-se um receio objectivo fundado em factos concretos de onde possa resultar esse receio, apreciado à luz de uma prudente apreciação de acordo com as regras de experiência comum (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/06/2017, relatado pelo Senhor Desembargador Luís Cravo, processo n.º 9070/16.9T8CBR.C1, www.dgsi.pt).

A este propósito pode ainda ser consultado o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10/02/2009 (relatado pelo Senhor Desembargador Isaías Pádua, processo n.º 390/08.7TBSRT.C1, www.dgsi.pt), onde se sumariou o seguinte: «Em súmula, poder-se-á dizer que a fim de indagar sobre o preenchimento, ou não, do requisito geral do “justificado receio de perda de garantia patrimonial”, haverá que atender, designadamente, à forma da actividade do devedor, à sua situação económica e financeira, à sua maior ou menor solvabilidade, à natureza do seu património, à dissipação ou extravio que faça dos seus bens, à ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir a obrigação, ao montante do crédito que está em causa e, por fim, à própria relação negocial estabelecida entre as partes.».

E ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019 (relatado pelo Senhor Desembargador Jorge Gonçalves, processo n.º 8904/18.8T9LSB-B.L1-5, www.dgsi.pt) se considerou que «Para a verificação da existência de justo receio de perda da garantia patrimonial, importa ter em atenção que não é necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efectiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer, pelo que a alegação e prova de que o devedor já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património, desde que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os bens à acção dos credores, integra tal requisito.».

3. Analisando o primeiro requisito – a probabilidade da existência do crédito:

…considerando os factos alegados pela Requerente constata-se que a Requerida não violou qualquer disposição legal ou regulamentar na realização do jogo on-line em causa, nem foi alegado que a mesma tivesse tido algum comportamento causador de erro no jogo, nem qualquer comportamento fraudulento ou qualquer outro facto ilícito.

Com efeito, a Requerente alega/admite apenas que ocorreu um erro (técnico e humano) da responsabilidade da própria Requerente e alega ainda que a Requerida se terá apercebido desse erro e por isso jogou intensivamente obtendo os elevados montantes mencionados.

Então, a Requerente entende verificar-se um enriquecimento sem causa da Requerida.

Ausência de causa justificativa – isto é, sem existir uma relação ou um facto que, à luz do direito, da ordenação jurídica dos bens ou dos princípios aceites pelo ordenamento jurídico, legitime tal enriquecimento.

No caso concreto em apreciação, falece desde logo o pressuposto da ausência de causa justificativa.

O enriquecimento da Requerida tem uma causa …é precisamente o exercício normal do jogo e ainda porque a existir algum erro técnico ou humano é alheio à Requerida.

Finalmente, importa referir que a Requerente é responsável pelo modo como disponibiliza online os jogos e de acordo com o princípio da boa-fé objectiva deve o jogador, como o caso da Requerida, confiar que o sistema de jogo on-line funciona correctamente, não sendo exigível aos jugadores, como a Requerida, aperceberem-se que ocorreu um erro apenas porque começaram a obter ganhos, pois isso mesmo é inerente aos jugos de fortuna ou azar.

Assim, através de uma análise sumária, a Requerente não beneficia de um crédito sobre a Requerida, não se verificando desde logo o primeiro pressuposto do arresto pretendido, sendo desnecessário analisar o segundo pressuposto.

Nesta sequência, de todo o exposto, resulta que a providência pretendida é manifestamente improcedente.

A Requerente ainda alega o mecanismo do abuso do direito.

..a Requerida tem direito a receber os prémios, pois não lhe é imputável o erro técnico e humano alegado pela Requerente nem de igual modo pode ser exigível à Requerida saber do erro, ainda para mais no âmbito de apostas on-line, competindo isso sim à Requerente assegurarse da fiabilidade e integridade do sistema de apostas on-line a exercer o controlo sobre a mesma (cfr. art. 7.º, n.º 1 e 32.º, do acima citado diploma), sendo a Requerente responsável pela violação dessa obrigação em caso de falha técnica e não os jogadores, como a Requerida.

Assim, não existe qualquer abuso do direito da Requerida.»

6.2.

O arresto apresenta-se como uma providência cautelar especificada.

Uma das funções e finalidade, quiçá primordial, de todos os procedimentos cautelares é a obtenção de decisão provisória do litígio, quando ela se mostre necessária para assegurar a utilidade da decisão, o efeito útil da ação definitiva a que se refere o artigo 2.° n° 2, do CPC, ou seja, a prevenir as eventuais alterações da situação de facto que tornem ineficaz a sentença a proferir na ação principal, que essa sentença (sendo favorável) não se torne numa decisão meramente platónica - A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 23 e Ac. do STJ de 08.06.2006, p. 06A1532. In dgsi.pt.

Efetivamente: «Os procedimentos cautelares constituem instrumentos processuais destinados a prevenir a violação grave ou de difícil reparação de direitos, derivada da demora natural de uma decisão judicial, donde que seja necessário, em primeiro lugar, que o requerente do procedimento cautelar justifique, mesmo de forma sumária, o seu direito»  - Ac. da RC  18-10-2005, p. 2692/05  in dgsi.pt.

E de entre todos os procedimentos cautelares o arresto assume-se como aquele cuja natureza simplesmente conservatória mais sobressai.

Na verdade com o arresto visa-se apenas a conservação da garantia patrimonial do credor.

Ou seja, assume apenas uma função meramente garantística ou instrumental – porque não antecipatória dos efeitos a obter na ação principal, como acontece noutras providências, vg. restituição provisória da posse e alimentos provisórios - relativamente à ação definitiva.

Na verdade, o arresto de bens do devedor constitui a “garantia da garantia patrimonial”, assegurando que os bens apreendidos se irão manter na  sua esfera jurídica até que no processo executivo seja realizada a penhora e satisfeito o crédito.

Garantia esta que se revela mais eficaz do que outras – vg. impugnação pauliana ou ação sub-rogatória -  pois que, decretado o arresto, os atos posteriores de disposição são ineficazes em relação ao credor, repercutindo-se na esfera jurídica de terceiros - embora condicionado ao registo, quando incida sobre bens a ele sujeitos – artºs 622º e 819º do CC e artºs 2º nº1 al. n), 5º, 6º e 92º nº2 al.n) do CRP.

Derivando ainda a utilidade do arresto do facto de os efeitos da penhora retroagirem à data da efetivação daquele – artº 822º nº2 do CC e 762º do CPC.

Nesta conformidade estatui o artº 391º nº1 do CPC:

«O credor que tenha fundado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito, pode requerer o arresto de bens do devedor.»

Prescrevendo, por seu turno, o artº 392º nº1:

«O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos…».

Perante estes normativos  verifica-se que são dois os requisitos do arresto, a saber:

- A probabilidade da existência do crédito;

- O fundado receio da perda da garantia patrimonial.

Quanto ao primeiro e conforme resulta da literalidade da lei, não é exigível a prova da certeza  e indiscutibilidade da dívida, designadamente que esta esteja assegurada por decisão judicial.

Bastando que o requerente prove que ocorrem grandes possibilidades ou probabilidades de ela existircfr. Ac da Relação de Coimbra de 25.03.1993, BMJ, 425º, 641.

Pois que no arresto – maxime porque de cariz meramente preventivo que não antecipatório – funciona o padrão de verosimilhança do direito invocado que é típico dos procedimentos cautelares.

Aliás, atenta a natureza e os objetivos do arresto, nem sequer  o crédito tem de ser exigível à data em que é requerida a providencia, «tanto se justificando o seu decretamento quando já exista incumprimento ou mora do devedor, como naquelas situações em que o devedor adopta comportamentos que colocam em perigo a garantia patrimonial, de tal modo que, com antecedência, se revele uma situação de impossibilidade ou de grave dificuldade na sua futura cobrança» - A. Geraldes, Temas, 2ª ed., 4º, 184.

No concernente ao segundo, a lei  - e contrariamente ao regime inicial do CPC de 1961 em que se exigia o justo receio da insolvência do devedor – contenta-se com o fundado receio da perda da garantia patrimonial.

Assim, para que tal requisito se verifique, basta que o requerente prove indiciariamente o temor de uma próxima perda da sua garantia patrimonial, em função dos atos já praticados, ou que provavelmente o virão a ser, do devedor sobre o seu (dele) património.

Certo é que tal temor não pode ser apreciado em função do seu subjetivismo pessoal, ie., com base nas suas convicções, desconfianças ou suspeições.

Antes ele tem de emergir de uma análise objetiva e crítica e prudente, operada sobre factos concretos que nesse sentido têm de ser alegados e provados pelo requerente.

Apenas se concluindo pela sua verificação se tal requisito for de aceitar relativamente ao homem comum, a qualquer pessoa de são critério, colocada no lugar do credor e perante o circunstancialismo envolvente, o qual, face ao modo de agir do devedor, e não se impedindo imediatamente este de continuar a dispor  livremente do seu património, também temeria vir a perder o seu crédito.

Sendo que o factualismo apto a preencher a previsão legal do conceito de “justo receio”, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial do devedor, a qual, designadamente dado o seu cariz deficitário, faça temer por uma insolvência ou perigo de insolvência, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito - cfr. Almeida Costa, Obrigações, 3ª ed. p.613, Acs. da RC de 13.11.1979 e de 02.03.1999,  BMJ, 293º, 441 e 485º, 491; Acs. do STJ de 20.01.2000 e de 01.06.2000, Sumários, 37º, 40 e 42º, 28.

Efetivamente, ainda que a atual ou iminente superioridade do passivo sobre o ativo constitua certamente um nítido elemento através do qual se pode reconhecer uma situação de perigo para a satisfação do crédito justificativa do arresto, esta conclusão não exige necessariamente tal situação formalmente deficitária, antes se podendo sustentar na análise de outros fatores de que a mesma possa objetivamente retirar-se, fatores esses semelhantes, vg., aos factos índices constantes no artº 20º do CIRE, vg. a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – cfr. A. Geraldes, Temas, 2ª ed. p.188.

6.3.

Por outro lado urge atentar que, pelo menos desde a reforma processual de 1995,  alcandorou-se a  fito primordial  do processo a obtenção de uma decisão de fundo, que aprecie o mérito da pretensão deduzida, em detrimento de procedimentos que condicionam o normal prosseguimento da instância.

 Para o que, e conforme se alcança do relatório do DL 329-A/95 de 12/12, se consagrou, como regra, que «a falta de pressupostos processuais é sanável», tudo de sorte a «obviar-se a que regras rígidas, de natureza estritamente procedimental, possam impedir a efectivação em juízo dos direitos e a plena discussão acerca da matéria relevante para propiciar a justa composição do litígio».

Sendo que o processo civil - rectius as respetivas normas - não pode ser perspetivado, interpretado e aplicado como um fim em si mesmo, mas antes como: «um instrumento ou …mesmo uma alavanca no sentido de forçar a análise, discussão e decisão dos factos…»

A reforma de 2013 acentuou e, impressivamente, atribuiu maior cariz e acuidade  a este fito.

Assim ressuma do dever de gestão processual consagrado no artº 6º do CPC.

Perante este:

«1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.»

Importando ainda atentar no disposto no artº 590º:

«1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º»

Ora:

«- A improcedência é manifesta quando, à vista da petição e dos factos alegados, for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais, seja por carecer de suficiente apoio legal ou por não ter quem a defenda na jurisprudência ou na doutrina.

- O pedido será manifestamente improcedente quando for evidente que, pelos fundamentos apresentados (causa de pedir) o demandante não tem o direito a que se arroga.

- Tem, por isso, de ser ostensiva, de uma evidência irrecusável, a falta de fundamento jurídico da pretensão apresentada pelo demandante.» - Ac. da RP de 01,.06.2010, p. 5735/09.0TBMTS.P1, in dgsi.pt.

(sublinhado nosso)

O que interessa, do ponto de vista da apreciação da causa de pedir, é que o ato ou o facto de que o autor quer fazer derivar o direito em litígio esteja suficientemente individualizado na petição.

Na verdade, e na lição sempre atual do Mestre Alberto dos Reis, há que ter presente que:

 «Se o autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter, a petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta.

Importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente…quando…sendo clara quanto ao pedido e à causa de pedir, omite facto ou circunstancias necessárias para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta: o que então sucede é que a acção naufraga - Comentário, 2º, 364 e 371.

No seguimento destes ensinamentos, a jurisprudência tem, desde sempre, vindo a defender, em uníssono, que a insuficiência ou incompletude do concreto factualismo consubstanciador da causa petendi, não fulmina, em termos apriorísticos e desde logo formais, a petição de inepta, apenas podendo contender, em termos substanciais, com a atendibilidade, a final, do pedido.

Efetivamente, causa de pedir obscura, imprecisa ou inadequada não é o mesmo que causa de pedir inexistente ou ininteligível.

No fundo só existe falta de causa de pedir quando o autor não indica o facto genético ou matricial, a causa geradora do núcleo essencial do direito ou da pretensão que aspira a fazer valer. – cfr. entre outros Acs. do STJ de 12.03.1974, BMJ, 235º, 310, de 26.02.1992, p.082001 in  dgsi.pt, e Acs. da RC de 25.06.1985 e de 01.10.1991, BMJ, 348º, 479 e 410º, 893.

Por conseguinte, verdadeiramente só haverá falta de indicação da causa de pedir determinante da ineptidão da petição ou do indeferimento liminar do pedido, quando, de todo em todo, falte a indicação dos factos invocados para sustentar a pretensão submetida a juízo, ou tais factos sejam expostos de modo tal que, seja impossível, ou, pelo menos, razoavelmente inexigível, determinar, qual o pedido e a causa de pedircfr. Acs. do STJ de 30.04.2003, 31.01.2007 e 26.03.2015, p.03B560, 06A4150 e  6500/07.4TBBRG.G2,S2, in dgsi.pt,.

6.4.

In casu.

Do acervo factual invocado, dimana, essencialmente, que ela considera que a requerida se apercebeu de erro na máquina de jogos, a qual estava a permitir ganhos para além do normal, e, em função deste conhecimento ou perceção, jogou compulsiva e ininterruptamente durante longas horas e até dias, para, oportunística e abusivamente, auferir proventos.

A alegação  da requerente tem de ser interpretada neste último sentido  teleológico e não apenas, como faz o julgador, no seu sentido  meramente literal.

É obvio que a requerida se limitou a jogar numa máquina da requerente.

Mas esta diz que não foi uma atitude/atuação normal, mas, repete-se, oportunística e abusiva, obtendo  a requerida um enriquecimento «indevido»

Se os factos que neste sentido invocou se provarem, a exegese deles operada pode conduzir a esta conclusão.

Por conseguinte, nesta fase liminar, não apenas a petição não é inepta por falta de causa petendi, como, inclusive, há que conceder, numa análise perfuntória, que é a bastante nesta sede, que se verifica – ou ao menos,  que não está, de todo em todo, arredada -  a probabilidade da existência de um crédito na esfera jurídico patrimonial da requerente.

Destarte, tem de concluir-se que, desde logo em tese mais geral, o requerimento inicial não devia ter sido indeferido liminarmente, como, em sede da presente providência, que se  pode encontrar presente, após produção de prova, o  seu primeiro requisito supra aludido.

Resta apurar se o segundo requisito, qual seja,  o fundado receio da perda da garantia patrimonial, também, após produção de prova, poderá, ou não, provavelmente ser dado como assente.

Como se disse o arresto assume um cariz meramente garantístico ou instrumental  e já não antecipatório dos efeitos a obter na ação principal.

Assim, e obviamente sensatamente e com as devidas cautelas, a presença dos seus requisitos não deve obedecer, em termos probatórios, qualitativa e quantitativamente,  às exigências de maior certeza e segurança que serão devidas para as providências que assumem cariz antecipatório, ou seja, regulam, antecipadamente – ainda que provisoriamente, já com efetivos efeitos na esfera jurídica das partes -  a questão que vai ser submetida à ação principal.

Assim, também por isto:

«- No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.» - Ac. da RC de 06.03.2018, p. 1833/17.4T8FIG.C1, in dgsi.pt, de que o presente relator também o foi.

No caso vertente releva a  alegação da requerente de que está obrigada por lei   a transferir o saldo  de tais ganhos abusivos para a disponibilidade da requerida, a qual, poderá gastar/dissipar tal montante ou parte do mesmo.

Para aceder a esta conclusão diz  que a requerida já está alertada por si de que tais valores não lhe são devidos e que os irá exigir judicialmente, e que, mesmo assim, não quer chegar a acordo consigo.

Mais uma vez se entende que estes factos, a provarem-se, podem clamar a conclusão de que a disponibilidade do dinheiro pela requerida e o largo lapso de tempo – bastos meses ou até anos – que a ação principal demorará na composição dos direitos em confronto, pode implicar que a requerida  possa gastar, dissipar ou escamotear o valor, ou parte dele, que reclama ou pode reclamar da requerente.

Não sendo, outrossim, despiciendo, como invoca a recorrente, que nos encontramos perante verba total de elevada magnitude – mais de meio milhão de euros – cuja reposição, se for gasta pela requerida, com muita probabilidade será de difícil consecução.

Nesta conformidade, considerando ainda o alívio que a lei operou quanto à conclusão sobre a presença deste requisito – prescindindo da insolvência e contentando-se com o mais singelo receio da perda da garantia do crédito – conclui-se que se afigura demasiado precoce estar a tolher à requerente a possibilidade de poder convencer neste sentido.

Procede o recurso.

(…)

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso procedente, revogar a decisão,  e ordenar a legal tramitação dos autos.

Custas pela requerente a atender em função da sucumbência final.

Coimbra, 2023.05.16.