Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1449/07.3TBACB-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: ACTO JURÍDICO
INTERPRETAÇÃO
ARTICULADOS
Data do Acordão: 12/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 295º; 236.º; 238.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Os articulados/requerimentos das partes, enquanto actos jurídicos, devem ser objecto de interpretação (art.295º do Cód. Civil), o que significa, por um lado, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº1 do Cód. Civil) e, por outro, que essa declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº1 do mesmo diploma).
2. Em processo de insolvência, apresentado um requerimento em que, singelamente, se termina indicando “pelo exposto se requer seja a aqui proprietária das máquinas autorizada a manter as mesmas no local onde se encontram enquanto tal se mostrar processualmente possível” não pode interpretar-se (convolar-se) o mesmo como traduzindo ou consubstanciando um pedido de restituição/separação de bens, porquanto essa é uma conclusão que o texto do documento não suporta.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I. RELATÓRIO

A......e B......requereram a declaração de insolvência da C.......

Em 20/12/2007, foi proferida decisão que declarou a insolvência da requerida, fixando-se o prazo de 20 dias para reclamação de créditos (fls. 35-39 deste apenso).

Na sequência de requerimento apresentado pela sociedade D......(doravante designada por D……), o tribunal proferiu o despacho de fls. 76-79 deste apenso, em 12/05/2008, com o seguinte teor:

“Requerimento de fls. 26 a 43:

A credora D…., na sua qualidade de “reclamante”, pede que:

- Seja de imediato e com carácter de urgência, sustada a venda dos “bens de sua propriedade”, que se encontra agendada para o próximo dia 13, do corrente mês de Maio. 

- Seja de imediato e com carácter urgente, ordenado ao Senhor Administrador da Insolvência para entregar aos seus legais representantes os bens que identifica. 

- Seja notificado o Senhor Administrador da Insolvência para escolher e justificar a escolha da modalidade da venda e publicitação da mesma, antes de ter concedido à ora requerente prazo para se pronunciar. para entregar

- Seja notificado o Senhor Administrador da Insolvência para vir esclarecer porque razões, numa primeira fase, os bens postos em venda na sua globalidade pelo valor de um milhão de euros, sendo que, numa segunda fase, foi a requerente notificada de que os bens seriam postos em venda pelos valores que constam do respectivo anúncio, de que resulta um diferencial de €68.260,00.

(…)

Cumpre decidir (postergando-se, por ora, e em termos imediatos, o princípio do contraditório, dado ser impraticável oi exercício do mesmo, atenta a data da diligência cuja “sustação” se requer”. (…)

Ou seja e concluindo, porque permanece controvertida a questão da titularidade dos bens que a ora requerente reclama para si, a venda dos mesmos apenas pode ocorrer na circunstância elencada na alínea c) do art. 160º do CIRE.

Mas como resulta igualmente da lei, a comunicação aí prevista, sendo impositiva para o senhor administrador, pode ter lugar no acto da venda.

Neste conspecto e verificando-se essa possibilidade (de comunicação regular e atempada sobre a existente controvérsia sobre a titularidade do equipamento em causa) e mostrando-se já anunciada a venda, creio não existir fundamento legal para determinar a sua “sustação, como pretendido. (…)

Por fim e quanto à “pretendida entrega imediata dos bens/equipamento identificado:

Como já referia acima, sendo que uma tal pretensão se queda controversa, é óbvio que essa eventual tutela (entrega) apenas poderá ser deferida, caso a decisão final em processado próprio, seja nesse sentido.

III. Pelo exposto e pelas razões expendidas, indefere-se o requerido.

Notifique (via fax, incluindo o Exmo Sr. Administrador)”.   

Em 04/07/2008 o tribunal proferiu o despacho de fls. 119 a 128, com o seguinte teor:

“Requerimento de fls. 87 a 98:

I.A credora “D……", requer que:

- seja de imediato suspensa a entrega de quaisquer bens aos adquirentes;

- que seja de imediato proferido despacho no sentido de impedir, no tocante aos bens sobre os quais foi apenas registada a oferta de compra, que os mesmos sejam adjudicados pelos valores ofertados ou por quaisquer outros valores;

- que o Sr. Administrador seja notificado para vir juntar, com carácter de urgência, a acta de venda;

- que os senhores membros da comissão de credores venham informar, se tal não constar da acta, quem votou, se votou e porque votou, pela venda dos bens objecto do pedido de restituição/separação, tendo como argumento o disposto na alínea b) do art° 160, do CIRE, mais informando se a assunção da responsabilidade da realização da venda, com base naquele comando legal, foi efectivamente assumida a título pessoal por cada um dos membros daquela comissão ou pela referida comissão e pelo Senhor Administrador da Insolvência como um todo;

- que, caso venha a apurar-se responsabilidade do senhor administrador da Insolvência, seja tal facto comunicado à Comissão Nacional de Apreciação e Controlo da Actividade dos Administradores de Insolvência;

- que do teor do "presente requerimento" seja dado conhecimento ao ilustre Procurador Adjunto neste Tribunal, para os fins havidos por convenientes.

Muito em síntese e para fundamentar todos estes pedidos/pretensões, a ora requerente alega que e pese embora o teor do despacho proferido em 12 de Maio último, teve lugar a venda em leilão dos bens apreendidos para a massa insolvente (à excepção de um verba), sendo que a venda de todos esses bens teve lugar sem que tivesse sido feita a menção de que sobre alguns dos bens existia controvérsia sobre a titularidade e tendo o Exmo., Sr. Administrador e os membros da comissão de credores, presentes no acto, informado o mandatário da ora requerente, igualmente presente no acto, de que a venda era feita nos termos e a ao abrigo do disposto no art° 160, n°1, al. b), do CIRE, sem que e no entanto se esteja perante bens/equipamento perecível, sendo certo que, tendo aquela verba 91 as mesmas características das restantes postas a venda, não se compreende o porquê da exclusão desta da venda.

Assim e porque (alegadamente), os bens em causa e que foram objecto do pedido de restituição/separação ainda não foram entregues aos seus compradores e sendo que a entrega dos mesmos poderá causar elevados prejuízos à ora requerente, a requerente termina, pedindo, pois, que seja de imediato suspensa a entrega.

                                             *         

Em exercício adjectivo do contraditório, ouviu-se o Exmo. Sr. Administrador, bem como os membros da comissão de credores, sobre o peticionado. (…)

II. Cumpre decidir: (…)

III. Pelo exposto e ao abrigo das disposições legais citadas, com base na irregularidade cometida (falta de comunicação prevista na norma do art° 160° n°1, al. c), do CIRE) e considerando que tal irregularidade consubstancia uma nulidade, anula-se a venda efectuada, na parte referente à venda das verbas cujo pedido de reconhecimento de propriedade foi formulado e que constam a fls. 44 e 45, destes autos.

No mais, indefere-se o demais peticionado.

Notifique-se e comunique-se”.

Não se conformando, a massa insolvente da sociedade requerida, representada pelo Sr. administrador de insolvência, recorreu deste despacho, formulando as seguintes conclusões:

“1. O requerimento de D….. de folhas 796/797, Ap-B foi elaborado e remetido aos autos em (4?) 6 de Fevereiro de 2.008, data que consta do carimbo nele aposto;

2. Não contém os requisitos técnicos exigidos pelos artigos 141° e/ou 144° do CIRE e não consubstancia pedido de separação / restituição de bens;

3. A apreensão dos bens móveis para a massa falida só foi efectuada, posteriormente à remessa do aludido requerimento aos autos, em 8 de Fevereiro de 2008 elaborando-se o respectivo auto, que foi remetido ao Juiz do processo no dia 14 seguinte;

4. Também em 14 de Fevereiro de 2008, remeteu o Administrador a D...... comunicação a que antes se alude, com expressa menção de que procedeu à “apreensão da totalidade do equipamento existente nas instalações do insolvente” (cfr Doc de fls. 798 e 799 junto com o Requerimento de 16 de Abril junto aos autos pelo Administrador);

5. A partir de tal notificação e ciente da apreensão de todos os equipamentos (pese embora a existência de requerimentos esparsos e fora de qualquer contexto processual), D...... não reagiu contra a apreensão por recurso a qualquer dos mecanismos que, para tanto, dispõe o CIRE;

6. À data da venda (13 de Maio de 2008) não estava tecnicamente suscitada no processo controvérsia quanto à titularidade de bens, pelo que se não configura a previsão do artigo 160° do CIRE nem, por consequência, se suscitam as ressalvas nele previstas;

7. O processo da venda dos bens apreendidos para a massa decorreu regularmente e sem condicionalismos na sequência de deliberação da Comissão de Credores e 4 de Abril de 2008.

8. Não padece a venda, no que respeita aos bens identificados por D......, de qualquer vício que (na parte) a inquine de irregularidade ou nulidade,

9. Por forma a determinar-se, como fez o despacho recorrido, a sua anulação na “parte afectada”.

10. Não se ajusta à letra da lei e ao espírito do legislador o entendimento perfilhado no despacho recorrido de que o Requerimento de folhas 796/797, Ap-B é um pedido de separação/restituição próprio e tempestivo e consubstancia procedimento de restituição ao abrigo do disposto nos artigos 141 ° e 144° do CIRE.

11. Face ao que antes se concluiu em a) a t) e j), não se encontrando pendente de decisão na data da venda nenhum dos procedimentos reivindicativos exigidos no corpo do artigo 160°, que obstassem à liquidação, não haveria lugar à aplicação de nenhuma das ressalvas que o legislador colocou nas várias alíneas do número UM do preceito, designadamente, a contida na alínea c) (advertência ao comprador).

12. Não existe, por consequência, qualquer vício que inquine de nulidade (por omissão de acto de advertência ao comprador nos termos da alínea c) do artigo 160°, n° 1 do CIRE) a venda operada por forma a justificar-se a sua anulação na parte alegadamente afectada.

13. O despacho recorrido padece de ilegalidade, infringe e inobserva, entre outras as seguintes normas de direito vertidas nos artigos 17°, 25, n° 2, 141 °, n°s 1 e 2, 144, n° 1, 146° n° s 1, 2 a), 3 e 4, 147°, 160, n° 1, 132°, 134° n°s 1 e 5, todas do CIRE.

Por mera cautela e sem conceder ao que antes se concluiu,

14. Verifica-se unanimidade da Comissão de Credores, em 4 de Abril de 2008, em consonância com o “pretenso” dono, quanto à deterioração irremediável das máquinas apreendidas e quanto à sua perecibilidade, pelo que foi determinada a marcação, a curto prazo, da venda ordinária que ocorreu em 13 de Maio seguinte;

15. Verificando-se nesta a mesma razão e fundamentos que aconselham a venda antecipada, devem aplicar-se-lhe, por analogia no caso concreto, as disposições conjugadas dos artigos 160°, n° 1 b) (não cumulável com as disposições das restantes alíneas do preceito) e o que for aplicável do artigo 158°, n° 2, do CIRE,

16. Não havendo lugar a admoestação dos eventuais compradores (al. c) 160°, n° 1, CIRE.

17. De entendimento contrário padece o despacho recorrido, o que também implicaria a sua revogação.

Termos em que revogando-se, sem mais, o despacho recorrido que perfilha a existência de nulidade da venda de um conjunto de verbas identificadas por D...... e determina a anulação do acto na parte que a estas respeita e considerando-se, a contrario, que a venda não padece quaisquer vícios e deve manter-se nos seus precisos termos, fará esse Venerando Tribunal a costumada JUSTIÇA!”

A reclamante D...... Lda não apresentou contra alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar:

II. FUNDAMENTOS DE FACTO

Releva o seguinte circunstancialismo, que se dá por assente considerando os elementos constantes dos autos:

1. A sociedade D...... Lda, veio reclamar créditos no montante de 2.181.007,25€, invocando que é “titular de um crédito no montante de €1.941.060,29, resultante de um contrato de cessão de créditos outorgado com o Banco Comercial Português SA”, dívida titulada por uma garantia real, hipoteca sobre as instalações da insolvente, crédito que venceu juros no montante de €239.946,96, requerimento este que foi “recebido em 10 Jan. 2008”.

2. A requerida está matriculada na C.R.Comercial de Alcobaça, com o nº 252, desde 17/05/1965, mostrando-se inscritos, nomeadamente, os seguintes factos, conforme documento junto a fls. 10 a 21:

- pela apresentação 14 de 3 de Agosto de 2005, uma transmissão de quota, por cessão onerosa, sendo cedente E......Lda e cessionário a D...... Lda;   

- pela apresentação 16 de 3 de Agosto de 2005, uma alteração parcial do contrato: são sócios a D...... Lda e F.......;

3. A sociedade D...... Lda dirigiu ao Sr. Administrador de insolvência o requerimento junto a fls. 85 a 87 deste apenso, subscrito pela respectiva “gerência”, por carta registada, enviada com A/R, expedida em 4 de Fevereiro de 2008 (fls. 88) e recebida no dia 8 de Fevereiro de 2008 (160), com o seguinte teor:

“1º A 9 de Janeiro de 2008, veio a D......-......Lda, reclamar créditos, em requerimento que se dá por integralmente reproduzido.

2º De acordo com o Contrato de Cessão de Créditos e Venda de Equipamento com Reserva de Propriedade junto, a propriedade das máquinas objecto do identificado contrato foi transmitida à aqui Reclamante.

3º Em consequência a Reclamante é proprietária de pleno direito das seguintes máquinas:

1. Fresadora vertical Rammatic 801 (…)

13. Máquina Rectificadora plana “Rosa Hermano” Línea Q R -12 e respectivos acessórios – anexo I do Contrato de Locação Financeira nº 35896.

que se encontram nas instalações da empresa C...... desde 23 de Abril de 2004. 

4º O facto de ter vindo reclamar créditos, que podem ou não vir a ser reconhecidos, em nada afecta o direito de propriedade que a Reclamante detém sobre as máquinas.

5º Que apesar de se encontrem nas instalações da C...... as máquinas identificadas nos pontos 1 a 10 não integram nem nunca integraram o seu património.

6º As máquinas identificados nos pontos 11 a 13 foram da posse da C...... até serem vendidas pelo contrato Nº 35896., à locadora BPI Leasing outorgado em 22 de Novembro de 1993, também não integrando assim desde esta data o património da C.......

Pelo exposto se requer seja a aqui proprietária das máquinas autorizada a manter as mesmas no local onde se encontram enquanto tal se mostrar processualmente possível”.

4. Em 8 de Fevereiro de 2008 o Sr. Administrador de insolvência procedeu à apreensão de “bens da insolvente”, nos termos consignados no “Auto de Apreensão de Bens Móveis” junto a fls. 65 a 83 deste apenso.

5. O Sr. Administrador de Insolvência dirigiu à D...... Lda a comunicação datada de 14 de Fevereiro de 2008 junta a fls. 89 e 90, e recebida pela D...... em 20 de Fevereiro de 2008, com o seguinte teor:

“No âmbito do processo supra referido e na sequência da vossa comunicação recebida no dia 06/02/08 e cujo conteúdo mereceu a minha especial atenção, venho pela presente expor o seguinte:

- Consta da reclamação da D......- ......Lda a reclamação de créditos resultantes da cessação de créditos de Instituições Financeiras pela totalidade dos mesmos acrescidos de juros.    

- Aquando as reuniões com a Gerência da C...... que é segundo julgo a mesma/parte da Tectiensaio e em especial a realizada no dia 17 de Janeiro de 2008 nas instalações da Insolvente, que contou com a presença do Gerente da C...... Sr. … e do TOC da C...... que é simultaneamente Gerente da D...... Sr. G......em que foram discutidos entre outros assuntos os seguintes:

- A Falta de elementos contabilísticos e a urgência dos mesmos para a elaboração do relatório, tendo os presentes se comprometendo a me fazer chegar o mais rápido possível, facto que só sucedeu em 8 de Fevereiro de 2008, tendo já sido entregue junto dos autos o relatório elaborado nos termos do art. 155º do CIRE 

- No decorrer da referida reunião foi mencionado pelo Sr. H......–Gernete Insolvente, a posse de algum equipamento que está nas instalações da Insolvente como pertença da D......- ......Lda,

- Tendo, como referência as reclamações de créditos enviadas pela D......-......Lda, informado os presentes, que a ser verdade a posse de alguns equipamentos por parte da D......, as reclamações de créditos deveriam ser alteradas.

- Como até à data do fim do prazo das reclamações V. Exas não procederam a qualquer alteração das referidas reclamações considerei o crédito pela totalidade e procedi ao auto de apreensão já junto aos autos da totalidade do equipamento existente nas instalações da Insolvente.

Pelo exposto considero improcedente a vossa pretensão pois que considero não fazer sentido se reclamar a totalidade do crédito e simultaneamente os bens que lhe deram origem.

Sem outro assunto e ficando ao vosso dispor, subscrevo-me com consideração.” (sic)

6. Em 4 de Abril de 2008 reuniu-se a comissão de credores da requerida, com a presença do Sr. Administrador, tendo deliberado, nomeadamente, que:

“Analisadas as propostas de aquisição dos bens da insolvente foi deliberado por unanimidade que a venda deveria ser precedida de divulgação pública.

Foi ainda deliberado por unanimidade que a modalidade de venda seria o leilão, devendo ser promovida a venda de todo o activo da insolvente (imóvel e bens móveis, tendo como referência o valor base de licitação para o imóvel de €700.000,00 e para os bens móveis os valores que constam do Auto de Apreensão, sendo promovida a venda lote a lote.

Após concluídos os pontos um, dois e três da ordem de trabalhos fez-se uma visita às instalações da insolvente a fim de serem observados os danos decorrentes de actos vândalos, bem como o estado actual das instalações e dos bens apreendidos da insolvente.

Da observação feita, verificámos que as instalações são susceptíveis de infiltrações de águas (…).

Constatado este facto as máquinas apreendidas, fundadas em água, ficarão deterioradas, sofrendo consequentemente desvalorizações irremediáveis, pelo que a Comissão de credores vê a necessidade de ser marcado a curto prazo a venda das instalações, bem como de todos os bens apreendidos”.

7. O mandatário judicial da D...... Lda. e o Sr. Administrador de Insolvência trocaram os mails juntos a fls. 95, 96, 100ª 106.

III. FUNDAMENTOS DE DIREITO

1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C. – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito –  art.º 664 do mesmo diploma.

Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente, se a recorrida/ agravada instaurou acção de reivindicação ou, de alguma forma, deduziu no processo de insolvência “pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos para a massa insolvente”, para os efeitos que decorrem do disposto no art. 160º do Código da Insolvência e de Recuperação de Empresa, aprovado pelo Dec. Lei 53/2004 de 18/03, com as alterações subsequentes (CIRE) – diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem.

2. Declarada a insolvência da requerida, ordenada a imediata apreensão de bens e entrega ao administrador nomeado (art.36º, alínea g) e fixado o prazo para as reclamações de créditos (art. 36º, alínea j), quem se sinta ofendido na sua posse e/ou direito de propriedade, em consequência da apreensão tem ao seu dispor mecanismos próprios para fazer valer o seu direito à restituição e separação dos bens indevidamente apreendidos para a massa insolvente, a saber:

a) através de reclamação, a apresentar no prazo de reclamação de créditos, se o acto de apreensão ocorrer nesse período, aplicando-se o processado relativo à reclamação e verificação de créditos, com as “adaptações” que se “mostrem necessárias”, nos termos do art. 141.º; Neste caso e para os efeitos aludidos, deve o interessado apresentar requerimento, dirigido ao administrador  da insolvência e apresentado no seu domicílio profissional ou para aí remetido por via postal registada (art. 128º, nº2), organizando-se, posteriormente, apenso respectivo (de verificação dos créditos e de restituição e separação de bens), nos termos do art. 132º.

b) por requerimento, apensado ao processo principal, no caso da apreensão de bens para a massa ocorrer depois de findo o prazo fixado para as reclamações, requerimento a apresentar no prazo de cinco dias posteriores à apreensão, nos termos do art. 144º, devendo o requerimento ser apensado ao processo principal e seguindo-se o processado previsto no referido preceito; 

b) através de acção proposta contra a massa insolvente, em verificação ulterior, lavrando-se termo de protesto no processo principal de insolvência, nos termos do art. 146º.

Em qualquer dos casos, seja por requerimento, [ [i] ] seja pela instauração de uma acção, temos por seguro que a parte tem de formular o seu pedido – o efeito jurídico que se pretende obter (art. 498º, nº3 do C.P.C.) –, de forma clara e precisa, não deixando margens para dúvidas quanto à concreta providência que é requerida ao tribunal (ou ao administrador). [ [ii] ]     

Por outro lado, e como é unanimemente entendido, os articulados/requerimentos das partes, enquanto actos jurídicos,  [ [iii] ] devem ser objecto de interpretação, nos termos do art.295º do Cód. Civil, sendo aplicáveis as regras estabelecidas nos arts. 236º e seguintes.

O que significa, por um lado, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele – art. 236º, nº1 do Cód. Civil– [ [iv] ] e, por outro, que essa declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238º, nº1 do mesmo diploma.

Quid juris no caso em apreço?

Nos termos do art. 160, n°l, al. c), “se estiver pendente acção de reivindicação, pedido de restituição ou de separação relativamente a bens apreendidos, para a massa insolvente, não se procede à liquidação destes bens, enquanto não houver decisão transitada em julgado, salvo (…) se o adquirente for advertido da controvérsia acerca da titularidade e aceitar ser inteiramente da sua conta a álea respectiva".

O Tribunal de 1ª instância, considerando que o requerimento aludido no nº 3 da factualidade assente consubstancia um requerimento de restituição/separação de bens, considerou que a venda foi feita sem observância do formalismo aludido no citado preceito, praticando-se, pois, uma nulidade que influi no exame da causa.

Pode ler-se no despacho recorrido:

“ Assim e desde logo, pressuposto para a injunção do acto de comunicação, é que esteja pendente acção de reivindicação ou pedido de restituição de bens que tenham sido apreendidos para a massa.

No caso em presença e como ressalta dos autos, a requerente entende que oportunamente formulou adequadamente pedido de restituição de concretos bens (agora vendidos) . O Exmo. Sr. Administrador entende que tal pedido nunca foi formulado.

Dos autos não consta, em termos de tramitação/processado um tal pedido de restituição de bens: ou seja, não consta o apenso de "restituição/separação de bens", tal como mesmo vem previsto no art° 132° do CIRE ( ex vi art° 1419, que manda aplicar as disposições relativas á reclamação e verificação de créditos).

Consta, no entanto (e o Exmo. Sr. Administrador não impugna ter recebido tal requerimento), a fls. 44 a 46, dos autos, um requerimento dirigido pela credora ora requerente ao Exmo. Sr. Administrador Judicial, sendo que, nos termos de tal requerimento, aquela credora identificou-se como proprietária dos bens que identificou/discriminou no aludido requerimento.

O requerimento em causa foi deduzido em 4.02.08 (dentro, pois, do prazo legal para tal)

Assim, em termos de tutela/pretensão, o aludido requerimento há-de ter-se como consubstanciando um pedido de restituição/separação de bens, não lhe retirando essa valia/qualidade substantiva o facto de não ter sido subsequentemente tramitado em termos adequados (ou seja, o Sr. Administrador deveria terá dado cumprimento ao já citado art° 129°, do CIRE ( ex vi art° 146°), apresentando, por apenso, tal pedido de reclamação/restituição).

Do que decorre, pois, que a questão agora em apreciação prefigura-se com os seguintes contornos: tendo sido oportunamente deduzido pedido de restituição de concretos bens apreendidos para a massa insolvente, qual a consequência de, em leilão, se terem vendido esses bens, sem que .tenha sido feita a comunicação/advertência, a que alude o art° 160°, n°1, al. c), do CIRE ?”

Ora, o ponto é que discordamos absolutamente do pressuposto de partida do tribunal ad quo, não se vislumbrando como assacar ao requerimento em apreço – cujo teor se reproduziu na íntegra sob o nº 3 da factualidade assente, para que dúvidas não subsistam sobre os precisos termos desse requerimento –, a virtualidade apontada, ou seja, valer como pedido de restituição ou separação de bens.

À luz das considerações supra expostas, um requerimento em que se termina indicando “pelo exposto se requer seja a aqui proprietária das máquinas autorizada a manter as mesmas no local onde se encontram enquanto tal se mostrar processualmente possível” não pode interpretar-se – quase diríamos convolar-se – como traduzindo ou consubstanciando um pedido de restituição/separação de bens. Essa é uma conclusão que o texto do documento não comporta nem admite, sendo que a circunstância da requerida/agravada se arrogar a titularidade do direito de propriedade sobre os bens em causa, não impressiona porquanto mais não é senão o fundamento (causa de pedir) do pedido formulado.  

Para já não falar na singularidade de se considerar que foi formulado um pedido de restituição/separação de bens que, à data em que o requerimento foi formulado, nem sequer tinham ainda sido objecto de apreensão …

Concluindo, nem substancialmente nem formalmente, se pode entender o requerimento em causa nos moldes enunciados pela Mma. Juiz.

Aliás, se dúvidas houvesse, competia à requerida agravada esclarecê-las junto do administrador da insolvência, o que não fez, sendo que ao requerimento em apreço respondeu prontamente o administrador, comunicando à sociedade que considerava “improcedente” a “pretensão”.

Saliente-se, por último, que é líquido que, até agora e ao que resulta deste apenso de agravo, nunca a requerida agravada peticionou a restituição dos bens em causa, na forma processualmente correcta e a que supra se aludiu, limitando-se à (cómoda) posição de considerar que, com o requerimento ora em apreço, pediu a restituição/ separação dos bens, tese que a 1ª instância, (mal) acolheu.

Assim sendo, pressupondo o pedido formulado, nos termos em que o despacho recorrido o considerou, a existência de um pedido de restituição/separação de bens, o que não ocorre, conclui-se que não tem qualquer fundamento a pretensão formulada pela requerida/agravada, a saber, que “seja de imediato suspensa a entrega de quaisquer bens aos adquirentes” e que “seja de imediato proferido despacho no sentido de impedir, no tocante aos bens sobre os quais foi apenas registada a oferta de compra, que os mesmos sejam adjudicados pelos valores ofertados ou por quaisquer outros valores”

                                             *

Escreveu-se ainda na decisão recorrida:

“Este carácter essencial, aliás, e diga-se mais uma vez, foi já feito notar no meu anterior despacho que, autorizando a venda, fazia-a depender, no entanto, da comunicação em causa (e por isso é para mim pouco compreensível que, tendo tido conhecimento do teor do despacho, o Sr. Administrador e os membros da comissão de credores tenham optado por não cumprir aquela comunicação).

Do que e concluindo, a postergação da comunicação em causa, constituindo a omissão de acto que influi no exame ou decisão da causa, consubstancia uma nulidade (de processo ou procedimento), que enfermando o acto de venda, impede os regulares efeitos desta”.

Ora, não se encontra no despacho a que a Sra. juiz se refere e a que supra também se aludiu, (no relatório), qualquer determinação ou ordem ao administrador da insolvência. Tratava-se de um despacho que incidiu sobre pedido da requerida/agravada, no sentido de ser sustada a venda dos “bens de sua propriedade” – a venda estava marcada para o dia 13 de Maio – pedido sobre o qual o tribunal proferiu decisão, concluindo da seguinte forma:

“Pelo exposto e pelas razões expendidas, indefere-se o requerido”, ordenando a notificação dessa decisão, também, ao administrador da insolvência.

Se o tribunal pretendia dirigir ao administrador uma concreta determinação sobre os termos em que este devia proceder à venda tinha que o dizer, expressamente, mormente na parte conclusiva da decisão e socorrendo-se das fórmulas usuais – singelamente, “mais se decide que o Sr. administrador da insolvência realize a venda com expressa advertência ao comprador, em conformidade com o disposto no art. 160º, nº1, alínea c) do CIRE” – o que não fez. O que a esse propósito se escreveu no despacho em causa mais não é senão o raciocínio jurídico, a argumentação de direito utilizada pelo tribunal para considerar que não tinha fundamento a peticionada sustação da venda, sendo que a eficácia do caso julgado incide sobre a decisão e não sobre os seus fundamentos – saliente-se que o tribunal, previamente à prolação desse despacho, não ouviu nem o administrador de insolvência, nem a comissão de credores.

Há que não olvidar – e, cremos, nenhum dos sujeitos processuais o fará – que é ao juiz que compete a nomeação do administrador da insolvência (art. 52º, nº1), é ao juiz que compete fiscalizar a sua actividade (art. 58º) e, em última instância, é o juiz que pode, a todo o tempo, proceder à destituição do administrador de insolvência.

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Conclusões

1. Os articulados/requerimentos das partes, enquanto actos jurídicos, devem ser objecto de interpretação (art.295º do Cód. Civil), o que significa, por um lado, que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (art. 236º, nº1 do Cód. Civil) e, por outro, que essa declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº1 do mesmo diploma).

2. Em processo de insolvência, apresentado um requerimento em que, singelamente, se termina indicando “pelo exposto se requer seja a aqui proprietária das máquinas autorizada a manter as mesmas no local onde se encontram enquanto tal se mostrar processualmente possível” não pode interpretar-se (convolar-se) o mesmo como traduzindo ou consubstanciando um pedido de restituição/separação de bens, porquanto essa é uma conclusão que o texto do documento não suporta.

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o agravo e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, indeferindo-se assim a pretensão formulada pela D...... -......Lda.

Custas pela agravada D...... -......Lda.

[i] Sobre o conceito de requerimento cfr. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código do Processo Civil, Coimbra Editora, 1945, vol. 2º, p. 91.

[ii] Como refere Alberto dos Reis, obr. cit. p. 361º, “em boa técnica jurídica uma coisa é a pretensão do autor, outra o pedido. A pretensão dirige-se ao réu; o pedido dirige-se ao tribunal. Aquela é um elemento da relação jurídica substancial, este um elemento da relação jurídica processual. A pretensão exprime o direito que o autor se arroga contra o réu; o pedido traduz-se na providência que o autor solicita ao tribunal. É claro que a pretensão repercute-se naturalmente no pedido; a espécie de providência que o autor vai pedir ao tribunal deve ser, logicamente, o reflexo da pretensão que se arroga contra o réu”. A propósito da pretensão material e pretensão processual cfr. Teixeira de Sousa, in Sobre a Teoria do Processo Declarativo, Coimbra Editora, 1980, p. 147-156.          

[iii] Alberto dos Reis, in  Código do Processo Civi Anotado, 3ª edição, Coimbra Editora, 1981, vol. II, p. 341.

[iv]  “A regra estabelecida no nº 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2). (...) O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.

Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista.”, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. I, pág. 222.