Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4/05.7TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
IMPUGNAÇÃO ALARGADA
REVISTA ALARGADA
FUNDAMENTAÇÃO
EXAME CRITICO DAS PROVAS
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 03/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 410.º, N.º 2; 412.º, N.ºS 3,4 E 6; 379.º, ALÍNEA A), EX VI DO N.º 2 DO ART 374.º; E 163.º DO CÓDIGO PROCESSO CIVIL.
Sumário: I. – A impugnação da matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
II. - No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
III. - «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto – mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, processo:05P662, www.dgsi.pt).
IV. - A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, importa aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais e examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não é posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.
Decisão Texto Integral: 15

I – RELATÓRIO
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular registado sob o n.º4/05.7TAACN, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de ....., o arguido …, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento pelos factos constantes da acusação deduzida nestes autos, pela imputada prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º a) e 256.º, n.º1, alínea c), do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferido sentença que, pela procedência da acusação pública, condenou o arguido, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.º a) e 256.º, n.º1, alínea c), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
2. Inconformado, o arguido interpôs recurso, formulando, na motivação, as seguintes conclusões – após despacho de convite ao aperfeiçoamento proferido pelo relator, em sede de exame preliminar do recurso (transcrição):
1 - A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo considerou como provados os factos enunciados na, aliás douta, sentença, sob os números 1 a 13.
2 - Apenas deviam ter sido dados como provados, nos precisos termos, os indicados sob os números 1, 3 e 11.
3 - Os factos indicados sob os números 4, 6, 7, 8, 9 e 10, devem ser considerados não provados.
4 - Os factos indicados sob os números 2, 5, 12 e 13 passariam a ter a seguinte redacção:
2 - A L... não esteve presente na sobredita assembleia-geral porque não quis.
5 - A L... sabia o que no seu âmbito havia sido tratado.
12 - Em 06/01/01, e por deliberação dos sócios da "…”, … deixou a gerência da mesma, permanecendo apenas a ….
13- Pelo menos, a partir de 2002, … sabia que era gerente da sociedade.
5 - Os factos indicados sob os números 6, 7, 8, 9 e 10, estão relacionados com o indicado sob o número 4, pelo que, não se provando este último, todos devem ser considerados como não provados.
6 - Ora, para fundamentar a sua convicção quanto à sua decisão sobre este número 4, e como acima se referiu exaustivamente, a Meritíssima Juíza cometeu vários lapsos, a saber:
7 - Não aceitou (na fundamentação) que o arguido não quisesse prestar declarações no início da audiência, valorando negativamente essa circunstância para cimentar a sua convicção;
8 - Valorou negativamente, para o mesmo fim, que o arguido não tivesse apresentado contestação escrita e apenas fosse junta em audiência a procuração ao seu mandatário;
9 - Refere expressamente que o arguido devia ter negado, de início, os factos, ignorando, ou adulterando, o que o mesmo arguido disse logo no primeiro interrogatório: «... eu, por agora, remeto-me ao silêncio, mas eu desde já digo que esta acusação não corresponde minimamente à verdade».
10 - Transcreve na sua fundamentação que a testemunha … admitiu que pudesse ter sido o arguido a apor no requerimento de registo o nome da …., sendo certo que
11 - Em parte alguma do seu depoimento a … admite tal facto.
12 - A testemunha … é taxativa: o registo foi feito por ele próprio, só, ou com o solicitador ….
13 - Se a Meritíssima Juíza, na sua fundamentação, censura o arguido por não ter alertado o Tribunal para a diferenciação entre o provável e o certo ( fê-lo, a final, no uso de um direito, e não de início como, vá lá saber-se porquê, a senhora juíza pretendia ), porque se estriba na peritagem, confundindo o provável com o certo?
14 - O certo é, seguramente, que para além da peritagem, nada no decurso da audiência aponta na direcção do arguido, e ninguém, mesmo ninguém, admite que tivesse sido o arguido a subscrever o requerimento de registo, bem antes pelo contrário.
Donde:
15 - Impõem decisão diversa da tomada na, aliás douta, sentença, as seguintes provas, produzidas em audiência de julgamento, as quais devem ser reapreciadas, tendo em atenção o atrás expendido acerca das mesmas, nomeadamente a transcrição da audiência apresentada pelo arguido-recorrente, a qual pode ser renovada.
a)- Declarações do arguido ( fls. 38 e 39 );
b)- Depoimento da testemunha … (fls 3, 4, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 18, 19, 20 e 21 - Pontos 2 e 2.1 da contestação à fundamentação da matéria de facto, do presente articulado );
c)- Depoimento da testemunha … (fls 32, 33, 34, 35, 36, 37 e 38 - Ponto 2.3 da contestação à fundamentação da matéria de facto, do presente articulado );
d) - Depoimento da testemunha … (fls 23 a 26 - Ponto 2.2 da contestação à fundamentação da matéria de facto, do presente articulado).
16 - Acresce que falta o elemento prejuízo para a tipificação do crime de falsificação imputado ao arguido,
17 - Foram, pela meritíssima juíza que proferiu a decisão condenatória violados os artigos 256°-n.º1 do Cód. Penal, 12°, 138°-n.º2, 163°, 343°n.º1, 361º, n.º1 e 374°-n.º1, todos do Cód. Proc. Penal.
Nestes termos, e demais de Direito, deve ser alterada a matéria de facto dada como provada e, consequentemente, o arguido, ora recorrente, absolvido.
3. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, sustentando a confirmação da sentença
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º, do Código de Processo Penal, pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Segundo jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como o são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2 (entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.99, CJ/STJ, Ano VI, Tomo II, p. 196).
Atento o teor das conclusões, identificam-se como questões que o recorrente pretende sejam apreciadas: o invocado erro no julgamento da matéria de facto; a falta do elemento “prejuízo” para a tipificação do crime de falsificação de documento.
2. A sentença recorrida
2.1. Na sentença proferida na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1.Em 06/08/01, a hora não concretamente apurada, na sede da empresa denominada “…”, sita em ....., ....., reuniram-se, em assembleia geral, os seus sócios, …, … e …, nesse âmbito tendo decidido por unanimidade aceitar a renúncia à gerência da mesma ….
2. Por motivos não concretamente apurados, a igualmente sócia, …, não esteve presente na sobredita assembleia geral.
3. Em 07/06/02, foi apresentado, na Conservatória do Registo Comercial de Ourém, o pedido de registo comercial da cessação de funções da gerente …, aí figurando, como apresentante, …, titular do BI com o n.º …, residente em ....., ....., e evidenciando-se o mesmo assinado com o nome “…”.
4. Tal assinatura não foi feita por …, tendo sido o arguido, que assumia funções de mandatário da referida sociedade, quem, em data não concretamente apurada, pelo seu próprio punho e na parte final daquele pedido de registo, escreveu o nome “…”, imitando a assinatura desta.
5. …, porque não interveio na aludida assembleia geral, apesar de assumir a qualidade de sócia da “…”, desconhecia o que no seu âmbito se havia decidido.
6.O arguido sabia que, ao imitar a assinatura de … no pedido apresentado na Conservatória do Registo Comercial de Ourém, tendo em vista registar a renúncia à gerência da “…” por parte de …, aprovado por unanimidade em assembleia geral, fazia crer ter sido aquela quem subscreveu tal pedido e, assim, ter conhecimento de tal deliberação, o que não correspondia à verdade.
7. Tinha conhecimento que, com a sua conduta, lesava os direitos e interesses da sócia …, ao fomentar a convicção de que esta havia anuído à renúncia das funções de gerente de …, com as consequências e implicações de lei dessa circunstância decorrentes, o que não correspondia à verdade.
8. Não ignorava tratar-se de documento destinado ao registo de acto comercial, com o que determinava a produção dos efeitos legais ao mesmo associados, pondo em causa a confiança e a credibilidade que o registo comercial das sociedades merecem no tráfico jurídico, enquanto reflexo da verdade das vicissitudes societárias.
9. Não desconhecia que tal conduta era proibida e punida por lei.
10. Apesar do que não deixou de actuar como actuou, agindo livre e conscientemente.
11. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
Lograram ainda provados os seguintes factos:
12. Em 06/01/01, e por deliberação de sócios da “…” a respectiva gerência foi deferida, entre outro (a), a ….
13. … desconhecia alguma vez ter sido gerente da mesma sociedade.
2.2. Quanto a factos não provados consignou-se (transcrição):
«Não resultaram provados ou não provados quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa.»
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida, a qual, cotejada com as regras da experiência, se revelou suficiente em ordem à demonstração, para além de qualquer dúvida razoável, da factualidade narrada na acusação, susceptível de configurar a prática, por parte do arguido, de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelos arts. 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
O arguido, usando de direito que legalmente lhe assiste, optou por inicialmente se remeter ao silêncio, apenas tendo pretendido prestar declarações a final, então tendo explicado que a adopção de um tal comportamento em Juízo se deveu ao facto de não ter querido “provocar uma situação menos clara” (expressão sua) no decurso da audiência – motivação esta que, pese embora a sua irrelevância, na precisa medida em que sobre o arguido não impende o dever de justificar o porquê do seu silêncio, nem ao Tribunal sindicar essa justificação, não logramos compreender, uma vez que, a tratar-se de uma questão de susceptibilidades com relação aos demais intervenientes no sucedido, os mesmos, arrolados que foram como testemunhas, não lograriam ouvir a sua versão dos factos se relatados num momento inicial, sendo certo que, a final, já teriam essa mesma possibilidade –, e, em suma, negado a autoria da falsificação em crise, alertando para a diferenciação entre “provável” e “certo” no que concerne ao resultado do exame pericial efectuado no âmbito dos autos, e dando a entender ter existido uma maquinação contra a sua pessoa por parte de terceiros, com o intuito de a audiência de julgamento se realizar na sua ausência e, assim, não lhe ser facultado o direito de defesa – asserção esta que, igualmente, não almejamos entender, não sendo despiciendo, a propósito, salientar que o arguido sequer apresentou contestação escrita e se limitou a constituir mandatário no início da audiência.
Pela acusação foram arroladas três testemunhas, a saber, a ofendida …, a prima desta … e o seu tio …. Todos os depoimentos se nos evidenciaram objectivos, isentos e imparciais, motivo pelo qual mereceram a credibilidade deste Tribunal.
Atestemos, pois, do seu teor.
A ofendida …. explicou ser sócia da “…”, sem prejuízo do que desconhecia o desenrolar da actividade societária, tendo, por diversas vezes, solicitado ao arguido, enquanto advogado da sociedade, que lhe facultasse o livro de actas, sem sucesso. Por esse motivo, deslocou-se em determinado dia à Conservatória do Registo Comercial de Ourém, em ordem a requerer uma certidão integral do registo comercial da sociedade, a fim de se inteirar do seu estado, então tendo detectado a existência de um pedido de registo alegadamente feito por si, sendo que a assinatura deste constante não havia sido manuscrita pelo seu punho. Relatou, no que contende com a assembleia geral em que foi deliberada por unanimidade a renúncia à gerência da Prima …, jamais ter recebido qualquer notificação para estar presente, pelo que a mesma acabou por ter lugar sem a sua presença, desconhecendo, até se ter deslocado à Conservatória, o quanto fora decidido em tal sede. Instada a identificar quem assumia a gerência da sociedade, referiu ser essa sua prima e – de forma absolutamente credível – jamais ter assumido semelhante cargo. Identificou o documento onde a sua assinatura foi forjada, quando confrontada com o mesmo. Reconheceu que, na sua qualidade de sócia, havia de ter tido uma palavra a dizer no tocante à sobredita deliberação, que não teve, não obstante ter referido ser-lhe indiferente que a gerência fosse exercida por … ou por outra pessoa. Esclareceu não ter qualquer formação a nível jurídico.
A testemunha … afirmou ser o arguido advogado da “…”, assim como de outras sociedades em que o seu pai, …, era sócio. Disse ter sido sócia daquela, julgando não mais o ser no presente, assim como gerente, simultaneamente com a sua prima …. Declarou que quem, de facto, comandava a sociedade eram o seu pai e o seu tio, pai da ofendida, …, e recordar-se da assembleia-geral em que foi deliberada a sua renúncia, na qual … não esteve presente. Admitiu que o pedido de registo na Conservatória tenha sido apresentado, ou pelo pai, ou pelo arguido, uma vez que o conhecia como sendo quem cuidava da vertente jurídica da sociedade. Esclareceu não ter qualquer formação a nível jurídico.
A testemunha … sustentou que o arguido era advogado de diversas sociedades em que tinha sido parte, incluindo a “…”, da qual deixou de ser sócio em meados da década de noventa. Assumia a sua gestão no terreno, em representação dos seus filhos menores que ocupavam a qualidade de sócios, a …, a … e o …, tendo sido gerente de direito quando o seu irmão … o foi. Argumentou que, em 2001, eram gerentes da sociedade a sua filha … e a sua sobrinha …, esta última, pelo menos, desde 2000. Expendeu sobre a assembleia geral em discussão, adiantando que a sua realização se prendia com a saída de … da gerência – no que era suposto ser acompanhada por …, que inviabilizou um tal projecto conjunto ao não ter comparecido – e com a resolução de problemas existentes à altura com a Segurança Social. Mencionou ter o arguido reduzido a escrito no livro de actas o sucedido na aludida assembleia geral, tendo esse livro vindo a desaparecer, e que a apresentação a registo da renúncia à gerência teria sido feita por si próprio, ou pelo solicitador, …. Instado, anuiu que, com a renúncia por parte da filha, apenas a sobrinha ficou incumbida da gerência, e, deste modo, responsável pelos actos praticados pela sociedade.
Debrucemo-nos, agora, sobre a prova documental junta aos autos. Neste particular, e para além do CRC do arguido, a fls. 167, da requisição de certidão e acta, a fls. 9 e seguintes, e da certidão emanada pela Conservatória do Registo Comercial de Ourém relativa ao teor da matrícula e todas as inscrições em vigor da sociedade “…”, a fls. 197 e seguintes, assumiu primacial importância o exame pericial efectuado pelo LPC às caligrafias do arguido, dos demais presentes na assembleia geral de 06/08/01, …, … e …, e, ainda, da ofendida …, relativamente ao documento de fls. 13, ou seja, ao pedido de inscrição registral da renúncia à gerência por parte de …. Concluiu o LPC, nos termos do relatório de fls. 154 e seguintes, e, em concreto, a fls. 159, nos moldes que nos permitimos transcrever: “admite-se como muito provável que a escrita suspeita (…) não seja da autoria de …”; “admite-se como provável que a escrita suspeita (…) seja da autoria de …; “admite-se como provável que a escrita suspeita (…) não seja da autoria de …, nem de …, nem de …”. »
2.4. Em sede de enquadramento jurídico-penal da conduta, acrescentou o tribunal a quo ainda quanto à fundamentação da decisão de facto:
«Logrou a adesão da prova ter sido o arguido quem, pelo seu punho, apôs, no pedido apresentado à Conservatória do Registo Comercial de Ourém, a assinatura da ofendida …, tendo em vista registar a renúncia à gerência da “…” por parte da prima desta, …. A este propósito, permitimo-nos chamar à colação o disposto no art. 163.º do Código de Processo Penal, preceituando o seu n.º 1 que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e o seu n.º 2 que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. Significa isto, como aliás é consabido, que o princípio da livre apreciação da prova, que caracteriza essencialmente o nosso direito processual penal, encontra quiçá a sua mais importante excepção no que tange à prova obtida por meio de perícia, o que se nos apresenta, assim como aos demais operadores do sistema jurídico e judiciário, como absolutamente compreensível. Com efeito, escusado será notar que domínios há cuja tecnicidade escapa, por definição, aos conhecimentos de quem julga, que, precisamente por assim ser, se socorre de especialistas de créditos firmados em tais áreas, aptos a uma melhor avaliação do objecto de prova, caso paradigmático da caligrafia. Do mesmo modo, se tem por plenamente justificado que o julgador apenas se possa afastar do entendimento pericial, e preconizar um outro, quando, na realidade, seja, ainda assim, possuidor de conhecimentos técnicos que lhe permitam, e legitimem, uma asserção diversa. In casu, assim como na esmagadora maioria dos casos, não tem este Tribunal qualquer formação técnica no que respeita à análise da escrita, pelo que adere, e tem como boas, as conclusões perfilhadas pelo LPC.
Ora, concluiu o LPC nos exactos termos que acima se deixaram reproduzidos e, com acrescida relevância nesta sede, ser provável que a assinatura forjada o tenha sido pelo arguido. Temos para nós – e decorre da nossa experiência profissional – que almejar um maior grau de certeza do que o supra roça os limites da impraticabilidade, pela dificuldade ínsita a este tipo de perícia, ao que acresce a consciência, por parte do perpetrante, de que a sua escrita, aquando da diligência de recolha de autógrafos, irá ser objecto de análise e comparação, pelo que, ensina-nos mais uma vez a experiência, chamado a autografar, tentará adulterar a sua caligrafia, por forma a obstar à sua identificação com a escrita considerada suspeita. Saliente-se que estes considerandos se impõem no caso vertente, uma vez que a prova pericial foi realizada com recurso a recolha de autógrafos, e não, como por vezes sucede, a uma comparação entre outros escritos que o perpetrante haja feito, sem a percepção de que iriam ser analisados. Nestes termos, e sabendo dos critérios que enformam a actividade do LPC, assim como do rigor das suas perícias, julgamos que a conclusão obtida permite, sem sombra de dúvida, assacar a responsabilidade pela falsificação da assinatura da ofendida … ao arguido, e afirmar, com peremptoriedade, ter sido o mesmo quem a forjou. Acrescente-se não se nos suscitarem dúvidas – embora semelhante questão não tenha sido posta em causa – quanto à circunstância de o pedido de inscrição registral de um acto societário configurar um documento na acepção penal, para tanto bastando, salvo melhor opinião, confrontar a definição legal inserta no art. 255.º, al. a) do Código Penal.
Verificado que se evidencia o tipo objectivo de ilícito, cumpre aferir da sua componente subjectiva, o mesmo é dizer, da existência de dolo, concretizado na intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo. Compulsada a factualidade que logrou a adesão da prova e os seus alicerces ao nível da fundamentação, afigura-se-nos evidente o propósito que presidiu à actuação do arguido e, de igual forma, a lesão que do seu comportamento adveio para a ofendida.»
3. Apreciando
3.1.Como dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (diploma doravante designado de C.P.P.), os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Resulta da análise da motivação e das conclusões (objecto de aperfeiçoamento) que o recorrente discorda da matéria de facto dada como provada e não provada.
3.2. É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P.Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º4.
3.3. Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
3.4. Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, afigura-se-nos que o recorrente visou impugnar (impugnação ampla) a matéria de facto provada e que o fez de forma a cumprir, num patamar mínimo, as exigências legais.
3.5. Dispõe o artigo 205.º, n.º1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º5, do C.P.P., prescreve que os actos decisórios «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
A exigência de fundamentação das sentenças constitui um elemento essencial do Estado de Direito Democrático. Como refere Germano Marques da Silva, a fundamentação é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. «Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decisora a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina» (Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, p. 294).
A fundamentação constitui, por conseguinte, um factor de transparência da justiça, explicitando, de forma que se pretende clara, os processos intelectuais que conduziram à decisão e permitindo, consequentemente, uma maior fiscalização das decisões judiciais por parte da comunidade.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º2, do C.P.P., a fundamentação consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Os factos provados e não provados são todos os constantes da acusação e da contestação, quer sejam substanciais quer instrumentais, e ainda os que resultarem da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão. Saliente-se que a imposição da enumeração dos factos provados e não provados só se satisfaz com a relacionação ou narração minuciosa, isto é, um a um, dos factos provados e não provados.
No caso vertente, da sentença recorrida consta a indicação dos factos provados e não provados.
As razões de direito que servem para fundamentar a decisão devem também ser especificadas na fundamentação, o que, no caso, acontece.
No que toca à fundamentação da decisão de facto, exige-se a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto – mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, processo:05P662, www.dgsi.pt).
No caso em análise, a sentença recorrida coloca claramente o acento decisivo quanto à questão da autoria do crime no exame pericial que foi realizado.
Realmente, muito embora deslocado da parte da motivação da decisão de facto para a parte da fundamentação jurídica, a sentença recorrida é muito clara no excerto em que diz: «e sabendo dos critérios que enformam a actividade do LPC, assim como do rigor das suas perícias, julgamos que a conclusão obtida permite, sem sombra de dúvida, assacar a responsabilidade pela falsificação da assinatura da ofendida L... Puga ao arguido, e afirmar, com peremptoriedade, ter sido o mesmo quem a forjou.»
O exame à letra e assinatura realizado no L.P.C. foi, por conseguinte, o elemento fundamental e decisivo para o tribunal recorrido.
Da análise da prova gravada, constata-se:
O arguido começou por dizer que a acusação não correspondia à verdade, mas que «não pretendo falar, por agora».
A menção na fundamentação da decisão de facto à opção do arguido de, inicialmente, ter preferido não prestar declarações (para além da afirmação de que a acusação não correspondia à verdade), bem como à circunstância de não ter apresentado contestação, não se reveste de particular interesse, sendo certo que da falta de contestação ou do exercício do direito ao silêncio não é legítimo extrair qualquer consequência, seja para determinar a culpa, seja para determinar a medida concreta da pena, ou seja, do silêncio não se pode extrair qualquer consequência jurídica desfavorável para o arguido, que se presume inocente antes de haver sentença condenatória com trânsito em julgado.
Pela acusação foram arroladas três testemunhas, a saber, a ofendida …, a prima desta … e o seu tio ….
A sentença recorrida assinala, referindo-se a essas testemunhas: «Todos os depoimentos se nos evidenciaram objectivos, isentos e imparciais, motivo pelo qual mereceram a credibilidade deste Tribunal.»
E que disseram estas testemunhas?
A testemunha …, cuja assinatura terá sido falsificada, disse, em síntese:
-Ser sócia da “…”;
- Não era gerente da “…”;
- Não ter tido conhecimento da assembleia de Agosto de 2001, para a qual não foi convocada;
- Foi em determinada altura com o seu pai à Conservatória do Registo Comercial de Ourém e aí verificou a existência de um pedido de registo da renúncia à gerência por parte da sua prima …, alegadamente feito por si, sendo que a assinatura deste constante não havia sido manuscrita pelo seu punho – «assinatura que tinha sido falsificada de um BI provavelmente há mais de 10 anos porque aquela assinatura era de uma caligrafia que eu estando na escola primária».
A testemunha … disse, em síntese.
- O arguido é advogado das firmas onde o seu pai era sócio;
- Foi sócia da “…” e os restantes sócios eram os seus irmãos e as suas primas;
- Em 2001 a testemunha a sua prima … eram as gerentes;
- Na assembleia de Agosto de 2001 foi deliberada a sua saída da gerência;
- Não sabe quem fez a apresentação na Conservatória do pedido de registo em causa, mas pensa que foi o seu pai que tratou das coisas todas;
- Na altura, o arguido era o advogado da empresa.
Atente-se que, diversamente do que consta na fundamentação, em parte alguma do seu depoimento a testemunha … disse que pudesse ter sido o arguido a apresentar o pedido de registo na Conservatória.
A testemunha …, por sua vez, disse:
- O arguido era advogado de diversas sociedades, incluindo a “…”, da qual a testemunha deixou de ser sócio na década de noventa, ficando como sócios os seus seus filhos que, na altura, eram menores;
- Em 2001, as gerentes de direito eram a sua filha … e a sua sobrinha ….;
- A gerência de facto era dele e do seu irmão;
- Na assembleia de Agosto de 2001 estiveram presentes a testemunha e a sua mulher, em representação dos menores, e a sua filha …que renunciou à gerência;
- A … não compareceu na assembleia, apesar de convocada;
- A sua sobrinha … trabalhava na empresa;
- Quanto ao pedido de registo na Conservatória do Registo Comercial, foi a testemunha quem ficou com o encargo de o fazer;
- Não tem a certeza sobre se foi ele mesmo (o depoente, entenda-se) a fazer o registo ou se foi o solicitador que conhece pelo nome de …;
- Muita da documentação da firma entretanto desapareceu;
- O pedido de registo não terá sido efectuado pelo depoente sozinho, «mas podia muito bem ser eu com o senhor ….
Confrontado com a circunstância de o pedido ter sido apresentado na Conservatória como tendo sido feito pela sobrinha …, respondeu: «então não sei»; «não sei se foi ela que fez ou não»; «a certeza não sei quem foi».
3.6. Como se alcança do supra exposto, nenhuma das testemunhas imputa ao arguido a autoria da assinatura aposta no documento em causa, nem adiantam qualquer razão justificativa ou finalidade visada para que este procedesse dessa forma.
Além do mais, como se viu, a testemunha … admite ter sido ele ou o solicitador que identifica como “…” a apresentarem o pedido de registo no qual se continha a assinatura em causa.
Perante este quadro, a sentença recorrida socorre-se do exame comparativo à letra e assinatura, que visou as caligrafias do arguido, …, …, …, e, ainda, de ….
Concluiu o LPC, nos termos do relatório de fls. 154 e seguintes, e, em concreto, a fls. 159, referindo-se à assinatura do pedido de inscrição registral da renúncia à gerência por parte de …: «admite-se como muito provável que a escrita suspeita (…) não seja da autoria de …”; “admite-se como provável que a escrita suspeita (…) seja da autoria de …; “admite-se como provável que a escrita suspeita (…) não seja da autoria de …, nem de …, nem de …».
Com base neste relatório, invocando o disposto no art. 163.º do Código de Processo Penal, que preceitua, no seu n.º 1, que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, e no seu n.º 2 que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência, o julgador do tribunal de 1.ª instância assinalou: «In casu, assim como na esmagadora maioria dos casos, não tem este Tribunal qualquer formação técnica no que respeita à análise da escrita, pelo que adere, e tem como boas, as conclusões perfilhadas pelo LPC.»
Acrescentou, além do mais, que «almejar um maior grau de certeza do que o supra roça os limites da impraticabilidade, pela dificuldade ínsita a este tipo de perícia, ao que acresce a consciência, por parte do perpetrante, de que a sua escrita, aquando da diligência de recolha de autógrafos, irá ser objecto de análise e comparação, pelo que, ensina-nos mais uma vez a experiência, chamado a autografar, tentará adulterar a sua caligrafia, por forma a obstar à sua identificação com a escrita considerada suspeita.» e que «sabendo dos critérios que enformam a actividade do LPC, assim como do rigor das suas perícias, julgamos que a conclusão obtida permite, sem sombra de dúvida, assacar a responsabilidade pela falsificação da assinatura da ofendida … ao arguido, e afirmar, com peremptoriedade, ter sido o mesmo quem a forjou.»
Discordamos do entendimento propugnado pelo tribunal recorrido, pelas razões que passamos a explanar.
3.7. O artigo 163.º do C.P. Penal dispõe:
«1 – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 – Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.»
Reconhecendo-se que o juiz não comporta um saber enciclopédico, este artigo fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção “juris tantum” de validade do parecer técnico, científico ou artístico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. O que determina que a conclusão a que chegou o perito só pode ser afastada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do artigo 163.º).
O regime constante do Código de Processo Penal tem por base a posição defendida pelo Prof. FIGUEIREDO DIAS, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – “que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer” – enquanto que o juízo científico expendido só é passível de crítica “igualmente material e científica”. Excepções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência (Direito Processual Penal, I, Reimpressão de 1984, p. 209; Cfr , também, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ , 2.º semestre de 2005 , n.º 3, p. 219 .
A prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, importa aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais e examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não é posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.
É esta a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163.º, do Código de Processo Penal, atenta a sua função de auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida (cfr. Acórdão do S.T.J., de 11 de Julho de 2007, processo 07P1416, www.dgsi.pt).
No que concerne aos exames periciais à letra e assinatura, por vezes são inconclusivos.
A inconclusividade não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida – pode ser; pode não o ser –, um juízo dubitativo que não vincula o tribunal.
Nessas situações, incumbe ao tribunal esclarecer a matéria de facto, no âmbito da sua função de julgar e do princípio da livre apreciação do julgador, de modo a superar, se possível, aquela dúvida.
Noutros casos, o relatório pericial, ainda que não atingindo o patamar de afirmação da certeza absoluta – “Ser” –, logra alcançar um resultado pericial (sobre a prática do facto/autoria da escrita em causa) de “Muito Provável”, isto é, de acordo com a tabela de resultados comummente utilizada, o grau de probabilidade máximo, depois da certeza.
Sabendo-se que o grau de “certeza absoluta”nunca é atingido neste tipo de exames periciais (e nos que têm tradução percentual, os resultados nunca atingem os 100%), afigura-se-nos que o tribunal deverá acolher na decisão o juízo de “Muito Provável”, nos termos do disposto no artigo 163.º, n.º1, a não ser que fundamentação especialmente desenvolvida sustente a divergência.
Porém, se o juízo for apenas de “Provável” ou “Pode ter sido”, entendemos que o relatório pericial não estabelece o grau de vinculação previsto no referido artigo 163.º
Realmente, o resultado de “Muito Provável” (que, ao contrário do que a sentença recorrida parece pressupor, não é tão raro quanto isso) equivale à certeza científica possível e não poderá, sem fundamentação adequada, ser desprezado; mas os resultados de “Provável” ou de “Pode ter sido” estão aquém desse patamar e são compatíveis com margens de dúvida que a condenação penal não consente.
Por outras palavras: enquanto um juízo de “Muito Provável”, em princípio, se impõe ao julgador, por traduzir a certeza possível, já o juízo de “Provável”, por si só, não será suficiente, devendo ser corroborado ou apoiado por outros elementos de prova, precisamente porque consente uma margem maior de dúvida, sendo certo que, em matéria penal, o tribunal, para considerar os factos provados, deve adoptar o padrão, de origem anglo-saxónica, da «prova para além de qualquer dúvida razoável».
Entendemos, pois, que sem qualquer violação do disposto no artigo 163.º, n.º1 e 2, do C.P.P., o tribunal a quo não podia condenar o arguido com base exclusivamente no relatório do exame à letra e assinatura.
E foi isso o que aconteceu: o tribunal firmou-se exclusivamente numa força probatória de que o relatório em causa, a nosso ver, não dispõe, para chegar à fixação dos factos e, consequentemente, concluir no sentido da condenação do arguido, com base exclusivamente no relatório pericial.
Tal não significa que o relatório não devesse ser valorado, em conjugação com outros elementos, tendo em vista a restante prova produzida, pessoal e documental, e mesmo a prova indirecta, através de inferências, sempre alicerçadas na lógica e nas máximas da experiência, sem o que os factos ilícitos não confessados, praticados de forma oculta, sem testemunhas oculares, ficariam impunes.
Ocorre que da prova pessoal produzida nada permite concluir que o arguido tenha forjado a assinatura em causa, pelo que o único elemento de convicção é o relatório com o juízo de “Provável”.
Ninguém o acusou de o ter feito.
Ninguém adiantou qualquer razão para que o arguido o fizesse.
Não se diz que vantagem retiraria o arguido de tal conduta.
E a testemunha … admitiu que possa ter sido ele ou um terceiro – o solicitador que concretamente identificou e de que não foram colhidos autógrafos para efeito de exame comparativo à letra e assinatura – a apresentar na Conservatória do Registo Comercial o pedido de registo contendo a assinatura suspeita.
Se assim foi, certo é que não se esclareceu se o pedido de registo já estava, então, preenchido e assinado. Pelo menos, a testemunha não disse nem foi questionada sobre se o pedido de inscrição registral foi por si preenchido ou pelo mencionado solicitador, ou se foi o arguido a preenchê-lo, independentemente de não ter sido ele a apresentá-lo na Conservatória.
Do ponto de vista da prova indirecta, a sentença recorrida também nada adianta.
Face ao exposto, e assim interpretado o valor do relatório pericial, ainda que relevante para o juízo probatório, afigura-se-nos que a prova produzida não permite alcançar um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável quanto à autoria dos factos.
Termos em que entendemos que, dos factos provados, o ponto n.º4 deve ser expurgado de tudo o que vai além da afirmação de que «Tal assinatura não foi feita por …» e os pontos n.º6 a 10 devem ser dados como não provados.
O que determina a absolvição do arguido.
III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e absolver o arguido/recorrente do crime que lhe foi imputado.