Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2912/06.9TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: PROVA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO E ORALIDADE
PROVA INDICIÁRIA
Data do Acordão: 04/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 127º E 355º CPP
Sumário: 1- O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
2- Para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
3- O objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
4- Tendo a arguida sido vista a fugir de noite do local onde se encontrava estacionado o veículo da assistente, cuja pintura logo nesse momento surge aos olhos da assistente e duma testemunha como riscada, não vai contra as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, concluir que foi a arguida quem danificou a pintura do veículo da assistente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo 2.º Juízo de competência especializada criminal, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, sob acusação do Ministério Público e acusação da assistente P..., que o Ministério Público acompanhou, foi submetida a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, a arguida
C..., natural da freguesia de Pousos, concelho de Leiria e residente na rua …, Pousos, concelho de Leiria,
imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria praticado, um crime de ameaça, na forma continuada, previsto e punível pelo art.153.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, um crime de dano, p. e p. no art. 212.º, n.º 1 do Código Penal e um crime de injúria, p. e p. pelo art.181.º do Código Penal.

A assistente P... deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida C... requerendo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 2 350,00.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 25 de Fevereiro de 2008, decidiu
- Condenar a arguida C..., pela prática de um crime de ameaça, sob a forma continuada, p. e p. pelo art.153.º do C.P., ocorrido em Maio de 2006, na pena de 50, dias de multa;
- Condenar a arguida C... pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.212.º do C. P., ocorrido em 19-6-2006, na pena de 50 dias de multa;
- Condenar a arguida C... pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181.º do C. P., ocorrido em Maio de 2006, na pena de 75 dias de multa;
- Operar o cúmulo jurídico destas penas e condenar a arguida C... na pena única de 90 dias de multa à taxa diária de 5 Euros; e
- Condenar a demandada C... a entregar a P... a quantia de 1431,55 Euros.

Inconformada com a douta sentença dela interpôs recurso a arguida C..., concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. O Tribunal a quo decidiu condenar a arguida pela prática, e de um crime de ameaça sob a forma continuada p.p. pelo art.153.º do C.P., ocorrido em Maio de 2006, na pena de 50 dias de multa, de um crime de dano p. e p. pelo art.212.º do C.P. ocorrido em 19-06-2006, na pena de 50 dias de multa, de um crime de injúria p. e p. pelo art.181.º do C.P., ocorrido em Maio de 2006, na pena de 75 dias de multa, condenando na pena única de 90 dias de multa à taxa diária de 5 Euros, e condenar a entregar a P... a quantia de 1 431,55 Euros.
2. O fundamento do presente recurso prende-se sobre a matéria de facto que em face da prova testemunhal apresentada, nunca poderia surgir e originar ao juiz a quo a convicção de que a Arguida tenha cometido os crimes a que veio acusada e condenada, nos termos do art.410, n.º 2 al. a) e c) do C.P. P.
3. Denota-se que a prova não foi bem valorada, pois no caso de dúvida o tribunal a quo deveria ter seguido o caminho mais favorável à Arguida em respeito pelo princípio “in dúbio pró reo”.
4. Pelo exposto o Tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.º 2 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa.
5. A Arguida foi condenada por ter cometido um crime de dano, nomeadamente ter riscado a chapa e a pintura das portas e “capot” da viatura pertencente a P..., Assistente.
6. Ninguém assistiu à prática e consumação desse crime
7. A Assistente no seu testemunho, perante o Tribunal afirmou que “ nesse dia à noite estava em casa a ver TV mais o seu namorado. Quando ouviu o cão a ladrar ele veio cá fora. Ele estava aos gritos. Eu vim cá fora ver o que se passava. Quando ele estava a discutir com a irmã dele, que viu saltar o muito para casa dela. Foi assim que me apercebi que o carro estava riscado. À noite quando se deu o sucedido é que vi que estava todo riscado e o meu namorado também”.
8. A testemunha A..., quando lhe foi perguntado quem tinha sido o autor dos danos na Viatura, respondera logo que tinha sida a Arguida “Não assisti ,mas vi-a fugir”, “Eu ia a sair da porta quando ela ia a fugir” e
9. Que via o carro todos os dias e que no dia anterior não estavam esses riscos.
10. A Testemunha N... referira que “não vi a riscar o carro, mas vi o carro riscado no outro dia que a P… me foi mostrar”
11. A Testemunha G... também referira que não vira a Arguida a riscar o carro.
12. Como fundamento da decisão da matéria de facto o Exmo. Juiz a quo baseou-se no depoimento de A... que referira que viu a Arguida a sair do local onde o depoente viu o carro danificado, esclarecendo que a Arguida fugia daquela área, conduta esta que à testemunha deu a ideia que foi a mesma que riscou o veículo.
13. Que de igual modo se serviu tal imagem ao Tribunal para se convencer de tal prática.
14. O testemunho de A... fora um pouco contraditório.
15. Declarara que “eu ia a sair da porta quando ela ia a fugir”. Em momento posterior dissera que ouviu a bater a porta. “Suspeitei logo que ela ia maltratar o carro”, “eu estava em casa”, “Fugiu logo, ouvi a porta a bater”.
16. A Assistente referira no seu testemunho que o cão ladrara e que o namorado tinha saído para ver e que ouvira o namorado a discutir com a Arguida.
17. A testemunha A..., por sua vez declarou que logo que abriu a porta da sua casa até à rua, a sua irmã não lhe dissera nada e que fugiu logo, pois ouviu a porta a bater.
18.Todas as testemunhas apresentadas não são isentas e indiferentes no seus testemunhos, colocando-se em causa a veracidade dos mesmos.
19. São todos familiares e pessoas próximas da assistente, com relações quebradas com a Arguida e com grande interesse na causa.
20. Existiu uma presunção de que a Arguida poderia ter sido quem tivesse riscado o veículo.
21. Qualquer pessoa que por ali passasse poderia dolosamente danificar o veículo.
22. Todas estas provas impõem decisão diversa da que consta da sentença recorrida, justificando a alteração dos pontos de facto que a Arguida considera mal julgados (Ponto 2 da matéria dada como provada em sede de sentença).
23. A persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova tem de conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido
24. Pelo exposto, afigura-se-nos ter o douto tribunal recorrido julgado incorrectamente a matéria de facto respeitante ao ponto 2 dos factos provados da sentença, ao considerar provados os factos dele constante.
25. Tais factos, com base nos depoimentos já constantes dos autos deverão ser considerados por V.Exas. não provados.
26. Pelo exposto, modificando a douta decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, no sentido de julgar não provada a matéria de facto do ponto 2 da matéria considerada provada em sentença final ou, assim se não entendendo por se julgar insuficiente a matéria de facto apurada.
Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, nos termos e com os fundamentos alegados, e em consequência ser a arguida absolvida do crime.

A assistente P... respondeu ao recurso interposto pela arguida pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

O Ministério Público respondeu igualmente ao recurso interposto pela arguida, pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

A Ex.ma Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva convicção constante da sentença recorrida é a seguinte:
2.1 Factos provados
Da culpabilidade
2.1.1. Por diversas vezes, e durante o mês de Maio de 2006, a arguida dirigiu-­se a P... numa altura em que esta namorava A..., irmão da arguida, e era vizinha desta.
2.1.2. Nessas ocasiões, a arguida disse com seriedade a P... “hei­-de partir-te toda”, “eu apanho-te a jeito, não perdes pela demora!”, “quando te apanhar, parto-te a tromba toda!”, e “para a próxima pagas-mas!”.
2.1.3. No dia 19 de Junho de 2006, a arguida riscou a chapa e a pintura das portas e “capot” da viatura pertencente a P... o qual se encontrava junto à residência aludida em 2.1.1, estragos esses orçados em 931,55 Euros.
2.1.4. A arguida agiu consciente, livre e deliberadamente, com o propósito de criar temor em P....
2.1.5. A arguida agiu com o propósito de causar estragos na mencionada viatura que sabia não lhe pertencer.
2.1.6. Em Maio de 2006 a arguida chamou a P... de “puta”, “vaca” e “minha puta”.
2.1.7. A arguida sabia que as suas condutas eram proibidas por lei.
Da determinação da sanção
2.1.8. Os factos ocorreram por motivo de partilhas entre a arguida e seus irmãos.
2.1.9. A arguida não tem antecedentes criminais.
2.1.10. A arguida vive com seu marido, o qual aufere cerca de 600 Euros, encontra-se desempregada, e suportam 370 Euros mensais de prestação para aquisição de habitação, e 168 Euros de infantário.
Factos não provados
Inexistem com relevância para a decisão da causa.
Fundamentação da decisão da matéria de facto
A convicção do Tribunal assentou nas declarações da assistente, as quais tiveram convergência na restante prova testemunhal. Na verdade, explicou o contexto das afirmações, relatou-as com precisão, assim convencendo o Tribunal.
A... foi claro e isento ao referir-se que viu a arguida a sair do local onde o depoente viu o carro danificado, esclarecendo que a arguida fugia daquela área, conduta esta que à testemunha deu a ideia que foi a mesma que riscou o veículo. De igual modo, serve tal imagem ao Tribunal para se convencer de tal prática. N... mostrou outrossim objectividade ao referir as expressões assinaladas que as ouviu bem como G.... Estas testemunhas foram objectivas, claras e mostraram distanciamento relativamente ao ocorrido, suportando a versão convincente da assistente. Atentei ao doc. de fls. 104 quanto à despesa orçada. A arguida negou os factos, não tendo qualquer credibilidade neste âmbito. A testemunha B... prestou declarações contraditórias, após lhe ter sido lido o seu depoimento, conforme da acta consta, mostrando-se sem credibilidade. Quanto à questão da determinação da sanção, atendo às declarações das testemunhas assinaladas. No que diz respeito à situação pessoal e económica da arguida, atentei às suas declarações, as quais mostrando seriedade me convenceram, e por fim atentei ao certificado de registo criminal de fls. 84 e emitido a 07-01-2008.

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O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. ).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos, face às conclusões da motivação da arguida C... as questões a decidir são as seguintes :
- se a sentença recorrida padece dos vícios a que aludem as alíneas a) e c), n.º2, art.410.º do Código de Processo Penal;
- se existe erro de julgamento relativamente ao ponto n.º 2 da matéria de facto dada como provada na sentença, uma vez que ninguém viu a arguida a riscar a chapa, a pintura das portas

e o capot do veículo da assistente P... e as testemunhas A..., N... e G... não depuseram com isenção; e
- se o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo e o disposto no n.º2 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum :

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ;

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ; ou

c) O erro notório na apreciação da prova .

Os vícios do art.410.º, n.º 2 do C.P.P. têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem que seja possível a consulta de outros elementos constantes do processo.

As normas da experiência são, como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto “sub judice”, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ( e da medida desta) ou de absolvição. - Cfr. entre outros , os Acórdãos do STJ de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49).

Admite-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal “a quo” através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas – Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 737 a 739.

No presente caso, o Tribunal recorrido apreciou os factos constantes das acusações do Ministério Público e da assistente P..., e na contestação a recorrente C... limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e alegar em sua defesa todas as circunstâncias atenuantes e/ou dirimentes que resultem da discussão da causa.

A recorrente não indica, em concreto, que factos relevantes para a boa decisão da causa ficaram por apurar e que resultem do texto da sentença, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum.

Na verdade, nas conclusões da motivação e na motivação do recurso, a recorrente C... confunde o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do C.P.P., com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, a qual resulta da convicção do julgador e das regras da experiência ( art.127.º do C.P.P.).

A recorrente ao defender que as provas produzidas em audiência de julgamento são insuficientes para a matéria de facto apurada, mais concretamente para se decidir que foi ela quem causou os danos no veículo da assistente, não está a invocar a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a), n.º2 do art.410.º do C.P.P., mas a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida.

O Tribunal da Relação conclui que do texto da decisão recorrida , por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, não se colhe que ficaram factos por apurar na audiência de julgamento, sendo que os factos dados como provados pelo Tribunal recorrido preenchem todos os elementos constitutivos dos crimes pelos quais a arguida foi condenada.

O erro notório na apreciação da prova a que alude o art.410.º, n.º 2 do C.P.P. , tem lugar “... quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável , quando se dá como provado algo que notoriamente está errado , que não podia ter acontecido , ou quando , usando um processo racional e lógico , se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica , arbitrária e contraditória , ou notoriamente violadora das regras da experiência comum , ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto ( positivo ou negativo ) contido no texto da decisão recorrida”. - Cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , in “Código de Processo Penal anotado”, Rei dos Livros , 2ª ed. ,Vol. II , pág. 740. No mesmo sentido decidiram , entre outros , o acórdão do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º , pág.182 ).

O erro notório na apreciação da prova, nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto proferida e aquela que o recorrente entende ser a correcta face à prova produzida em audiência de julgamento.

Analisando o texto da decisão recorrida, nomeadamente a fundamentação da matéria de facto, não vemos que o Tribunal recorrido, ao dar como provada a matéria de facto que o recorrente impugna, tenha seguido um raciocínio ilógico, arbitrário ou contraditório, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, de onde se possa concluir pela existência de um erro notório na apreciação da prova.

Deste modo, concluímos que a sentença recorrida não padece dos vícios enunciados no art.410.º, n.º 2 , alíneas a) e c) do C.P.P..
Importa agora conhecer da impugnação da matéria de facto, por alegado erro de julgamento do Tribunal a quo.

O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .

No entanto, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :

« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou

c) Se tiver havido renovação de prova .”.

Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:

« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas.»
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impôr que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
Porém, se o recorrente não faz, nem nas conclusões, nem no texto da motivação, as especificações ordenadas pelos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P., não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação.
Esta posição defendida pela generalidade da jurisprudência, designadamente pelo STJ ( acórdão de 9 de Março de 2006, in www.dgsi.pt), não foi julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional ( acórdão n.º 529/2003, in DR, 2.ª Série, de 17 de Dezembro de 2003).
No seguimento deste entendimento o art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, apenas permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
No presente caso, a recorrente C... indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida e que considera incorrectamente julgados e as provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida.
Embora nas conclusões da motivação, quanto à prova produzida oralmente na audiência, não faça o arguido menção aos respectivos suportes técnicos, por referência ao consignado na acta , essa menção é feita minimamente na motivação do recurso.
Deste modo, o Tribunal da Relação considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo.
Antes da abordagem directa da questão ora objecto de recurso, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
Nesta parte importa realçar que o objecto da prova pode incidir sobre os factos probandos ( prova directa ), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem , com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este ( prova indirecta ou indiciária).
A prova indirecta “ … reside fundamentalmente na inferência do facto conhecido – indício ou facto indiciante – para o facto desconhecido a provar, ou tema último da prova” – cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, “ Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág. 289.
Como salienta o acórdão do STJ de 29 de Fevereiro de 1996 , “ a inferência na decisão não é mais do que ilação, conclusão ou dedução, assimilando-se todo o raciocínio que subjaz à prova indirecta e que não pode ser interdito à inteligência do juiz.” – cfr. Revista Portuguesa de Ciência Criminal , ano 6.º , tomo 4.º, pág. 555. No mesmo sentido, o acórdão da Relação de Coimbra, de 9 de Fevereiro de 2000, ano XXV, 1.º, pág. 51.
A recorrente C... defende que o Tribunal a quo errou no julgamento relativamente ao ponto n.º 2 , mais exactamente 2.1 e 2.3 da matéria de facto dada como provada na sentença, uma vez que ninguém viu a arguida a riscar a chapa, a pintura das portas e o capot do veículo da assistente P..., o depoimento da testemunha A... foi um pouco contraditório em si e com as declarações da assistente e as testemunhas A..., N... e G... não depuseram com isenção.
Para o efeito reproduz alguns segmentos das declarações da assistente e dos depoimentos das as testemunhas A..., N... e G....
Os segmentos das declarações da assistente e das testemunhas A..., N... e G..., reproduzidos na motivação pela recorrente C..., correspondem no essencial ao que elas disseram em audiência de julgamento.
Das declarações da assistente P... resulta, designadamente e em síntese, que esta, em 19 de Junho de 2006 estava a residir com o namorado A..., irmão da arguida, numa casa pertencente aos pais destes. A arguida riscou-lhe o carro nessa casa. Não sabe como a arguida lhe riscou o carro. Uma noite estava em casa a ver televisão mais o namorado e como o cão ladrava o A... veio ver o que se passava fora. Ouviu-o então aos gritos, a discutir com a arguida. A assistente saiu também a ver o que se passava e o A... disse que viu a arguida a saltar o pequenino muro que separa a casa dos pais deles da casa da arguida. Logo se apercebeu que o seu carro, que ai estava estacionado se encontrava riscado do lado do condutor. De manhã, quando ia para o trabalho, verificou que estava todo riscado, do lado do pendura e no capot e tinha escrito um “V”. A arguida devia estar a começar a escrever vaca, mas não teve tempo. A arguida chamava-lhe constantemente “vaca” e “minha puta”.
A testemunha A... declarou, designadamente, que na noite em causa ouviu o cão a ladrar, o que habitualmente não fazia. Quando ia ver o que era e abriu a porta da rua, esta fez barulho. Foi então que viu a arguida a fugir, a saltar o muro, que separa a casa onde ele vivia com a assistente, da casa da arguida. A arguida não lhe disse nada na hora, fugindo para dentro da casa dela, tendo ouvido a porta a bater. Foi logo ver o carro da namorada, pois suspeitou que a arguida “ia para maltratar o carro e estranhei foi não ter maltratado o meu.”. O carro da sua namorada ficou todo riscado. O carro da testemunha estava à frente do carro da assistente.
A testemunha N... declarou, quanto ao veículo da assistente, que no “outro dia” a assistente lhe foi mostrar o carro e que viu este riscado. Disseram-lhe que tinham visto a arguida ir lá à noite riscar o carro.
Por sua vez a testemunha G..., mãe da assistente, declarou, no que ao veículo da assistente diz respeito, que não viu riscar o carro, mas que o viu riscado.
Vejamos.
O Tribunal da Relação começa por referir que não vislumbra razão para considerar que o depoimento da testemunha A... é “um pouco contraditório”. A testemunha em lado algum fez uma afirmação e declarou o seu oposto; pelo contrário, o seu depoimento é coerente e racional.
Não existe também propriamente uma contradição entre as declarações da assistente e da testemunha A..., pelo facto daquela declarar que ouviu a testemunha A... aos gritos, a discutir com a arguida, na noite de 19 de Junho de 2006, após abrir a porta da casa, e o facto da mesma testemunha declarar que a arguida não lhe disse nada na hora, fugindo para dentro da casa dela. A testemunha A... não disse que não gritou para a arguida quando a viu a fugir, nem que não lhe tenha dirigido palavras em jeito de discussão.
Os riscos no veículo automóvel que se vêm nas fotografias de folhas 102 e 103, por várias partes do mesmo e com sulcos profundos, denotam um dolo intenso por parte do seu agente. Não é razoável concluir que uma qualquer pessoa causasse os danos nos veículo, que se encontrava na casa dos falecidos pais da arguida e da testemunha – depreende-se que num recinto exterior – mas sim uma pessoa que com ela tivesse forte inimizade.
A arguida tinha manifestas más relações com a assistente, como resulta claro das expressões que lhe dirigia em Maio de 2006 e que constam do ponto n.º 2.1.2 dos factos provados – matéria que a recorrente não impugnou especificadamente.
Os riscos na pintura do veículo da assistente são detectados durante a noite, logo a seguir ao momento em que a testemunha A... abre a porta de casa para saber a razão do seu cão estar a ladrar e ver a arguida a fugir, saltando o muro da casa onde a testemunha vive, para a casa onde a arguida vive.
A arguida não apresenta qualquer justificação para ser vista durante a noite a fugir da parte exterior da casa dos falecidos pais, onde viviam a testemunha A... e a assistente, limitando-se a negar a prática de todos os factos de que é acusada.
O Tribunal a quo, no âmbito da imediação e da oralidade, considerou as declarações da assistente como convincentes e os depoimentos das testemunhas A..., N... e G..., como objectivos e claros; e o Tribunal da Relação não tem elementos que permitam concluir noutro sentido.
Neste circunstancialismo, pese embora não haja prova directa da prática pela arguida dos factos constantes do ponto n.º 2.1.3, tendo a arguida sido vista a fugir de noite do local onde se encontrava estacionado o veículo da assistente, cuja pintura logo nesse momento surge aos olhos da assistente e da testemunha A... como riscada, não vai contra as regras da experiência comum e a livre apreciação da prova produzida em audiência de julgamento, concluir que foi a arguida quem danificou a pintura do veículo da assistente.
Não se detectando qualquer erro de julgamento por parte do Tribunal a quo, mais não resta que manter os factos em causa entre os factos provados e, consequentemente, julgar improcedente esta questão.
Importa, por fim, decidir se em face da prova produzida em audiência de julgamento o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reo.
O principio “in dubio pro reo” estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido.
O mesmo identifica-se com a presunção de inocência do arguido a que alude o art.32.º, n.º 2 , da Constituição da República Portuguesa e o art.11.º, n.º1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem , e impõe que o julgador valore sempre em favor daquele um non liquet.
O Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse principio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que , face a ele , escolheu a tese desfavorável ao arguido .- Cfr. entre outros , o acórdão do S.T.J. de 2 e Maio de 1996 ( C.J. , ASTJ , ano IV , 1º, pág. 177 ).
Da fundamentação da matéria de facto da douta sentença não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática pela arguida C... dos factos dados como provados, quer a nível das afirmações dirigidas por esta à assistente P... - cuja convicção o Tribunal a quo fez assentar nas declarações da assistente , convergentes com os depoimentos das testemunhas N... e G...- , quer quanto aos danos no veículo da assistente - em que teve em consideração as declarações da assistente, o depoimento da testemunha A... e documento de folhas 104.
Os depoimentos destas testemunhas foram tidas pelo Tribunal a quo como objectivos, isentos e convincentes, como convincente considerou a versão dos factos apresentada pela assistente.
O que resulta da fundamentação de facto e de direito, bem como do dispositivo da sentença, é um estado de certeza do Tribunal recorrido relativamente à prática pela arguida/recorrente dos factos dados como provados.
Está deste modo afastada a violação pelo Tribunal recorrido do principio “in dubio pro reo”.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela arguida C... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 6 Ucs a taxa de justiça.
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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,

























Proc. n.º 2912/06.9TALRA.C1