Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1209/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO OBRIGATÓRIO
SEGURO FACULTATIVO
Data do Acordão: 06/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE POMBAL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 29º, Nº 1, DO DECRETO-LEI Nº 522/85, DE 31 DE DEZEMBRO
Sumário: Embora o artº 29º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, exija que a acção seja proposta contra a seguradora e o civilmente responsável quando o pedido ultrapasse os limites fixados para o seguro obrigatório, tem de se entender que ele não tem aplicação quando existe seguro facultativo que cobre a responsabilidade que exceda o montante do seguro obrigatório, uma vez que, nesse caso, não estamos perante um contrato misto ou uma dualidade de contratos, mas perante um único contrato cobrindo mais amplamente os riscos prevenidos por tal seguro, não deixando tal contrato de se qualificar como obrigatório.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:


A..., com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa, com processo sumário, contra B... e C..., pedindo que, julgada procedente a acção, fossem os réus solidariamente condenados no pagamento da quantia de DFL 201.410,00 (florins holandeses), acrescida de DFL 89.724,01 de juros vencidos até 7 de Agosto de 1995 de dos juros que se vencerem desde 8 de Agosto de 1995 até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que no dia 20 de Agosto de 1992, pelas 20:10 horas, na localidade de Vermoil, concelho e comarca de Pombal, ocorreu um acidente de viação, no qual foram intervenientes o veículo automóvel de passageiros, de matrícula 17-23-AJ, e o veículo pesado de passageiros de matrícula QQ-01-51, no qual seguia como passageiro.
Alegou, ainda, que em consequência directa de tal acidente, que ocorreu por culpa exclusiva do condutor da viatura AJ, o réu C..., sofreu danos de natureza patrimonial e não patrimonial, cujo ressarcimento pretende através do pagamento da quantia peticionada.
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A ré B... apresentou contestação, onde, para além de invocar a excepção de prescrição, impugnou a factualidade vertida na petição inicial, alegando que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo QQ.
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Também o réu C... apresentou contestação, na qual invocou a excepção de prescrição do direito do autor e impugnou toda a factualidade por este alegada na petição inicial, pedindo ainda a condenação do autor como litigante de má fé.
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O autor apresentou resposta às contestações, pugnando pela improcedência das invocadas excepções e mantendo, no mais, o alegado na petição inicial.
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A ré B... requereu ainda o chamamento à demanda da D...., alegando que a responsabilidade por acidentes causados pela viatura QQ, única responsável, na sua perspectiva, pelo acidente em causa nos autos, se encontrava à data dos factos transferida para a chamada, tendo o autor, depois de devidamente notificado, pugnado pelo indeferimento de tal chamamento.
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Apreciando o incidente, este Tribunal de Pombal indeferiu o chamamento da D...., decisão que, na sequência de recurso oportunamente interposto pela ré, foi revogada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Março de 1998.
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Foi ordenado o chamamento da D...., a qual, depois de regularmente citada, apresentou contestação, invocando a prescrição do direito do autor e atribuindo a responsabilidade do acidente em causa nos autos ao condutor da viatura AJ.
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Foi proferido despacho saneador onde, conhecendo-se da legitimidade das partes, se julgou o réu C... parte ilegítima e, apreciando-se da prescrição invocada pelos réus B..., e C..., se julgou tal excepção improcedente.
Procedeu-se à elaboração da Especificação e do Questionário, tendo este sido objecto de reclamação por parte do autor, deferida.
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Na sequência da contestação apresentada pela chamada D...., foi julgada procedente a excepção de prescrição por esta invocada e, com esse fundamento, foi a mesma absolvida do pedido.
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O autor interpôs recurso do despacho saneador, na parte em que julgou o réu C... parte ilegítima, recurso esse recebido como agravo, com subida diferida.
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Realizado o julgamento e decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção totalmente improcedente.
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Na 1ª instância foi dado como provado o seguinte:
Especificação.
A)-No dia 20 de Agosto de 1992, pelas 20:10 horas, ocorreu um acidente de viação, na freguesia de Vermoil, concelho de Pombal, no qual foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca OPEL, modelo CORSA 1.5 TD, com a matrícula 17-23-AJ, propriedade de C... e por este conduzido, e o pesado de passageiros de marca PEGASO, com a matrícula QQ-01-51, propriedade da sociedade Manuel Mendes, Lda., e na ocasião conduzido por Vítor Fernandes Tavares.
B)-Aquando do acidente, o autor fazia-se transportar no veículo automóvel de matrícula 17-23-AJ.
C)-Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidos em A), o AJ circulava no sentido Outeiro da Ranha – Vermoil e o pesado em sentido inverso (Vermoil – Outeiro da Ranha).
D)-No local do acidente a estrada descreve uma curva para a direita, atento o sentido de marcha da viatura AJ.
E)-Antes do embate, o condutor do QQ efectuou uma travagem e flectiu a direcção para a direita, atento o sentido de marcha em que seguia.
F)-O proprietário do AJ havia transferido para a ré B... a responsabilidade civil emergente dos acidentes de viação em que aquela viatura interviesse através de contrato de seguro titulado pela apólice número 3140004967.

Questionário.
3º - Por motivos não apurados, ao descrever a curva referida em D), a viatura AJ desviou-se para a esquerda.
4º - Os veículos QQ e AJ embateram.
5º - Em consequência do embate, o OPEL CORSA foi projectado para a berma direita da estrada, atento o sentido de marcha em que seguia.
7º - Em consequência do embate, o pesado foi também projectado para a berma direita da estrada, atento o seu sentido de marcha.
9º - O embate deu-se entre a parte dianteira do AJ e a parte da frente, lado esquerdo, do pesado.
11º - Antes do local onde ocorreu o acidente, atento o sentido de marcha do AJ, existe uma ponte, seguida da curva referida em D).
12º - Após ter efectuado a travessia da ponte a que se refere o quesito anterior, e quando completava a curva a que alude a alínea D), deparou-se ao condutor do AJ o veículo QQ, a uma distância inferior a 50 metros.
15º - Ao aperceber-se do veículo QQ, o condutor do veículo AJ travou tal viatura.
16º - O veículo AJ desviou-se para a esquerda.
20º - O embate deu-se entre a frente esquerda do QQ e a frente esquerda do AJ.
24º - À data do acidente o condutor do pesado Vítor Tavares trabalhava como motorista por conta da sociedade Manuel Mendes, Lda.
25º - Na ocasião o mesmo Vítor Tavares conduzia o QQ sob as ordens, no interesse e sob a direcção da Sociedade Manuel Mendes, Lda..
26º - Em consequência do acidente, o autor sofreu fractura do úmero do braço direito, diversas feridas na testa, lado direito, uma comoção cerebral com perda momentânea de conhecimento e contusão na coluna vertebral.
27º - O autor foi assistido no Centro Hospitalar de Coimbra, onde lhe imobilizaram o braço direito através da aplicação de uma tala de gesso desde o ombro até ao pulso, e ainda lavagem e desinfecção das feridas.
28º - No dia 21 de Agosto de 1992, o autor deslocou-se ao Hospital Saint-Elisabeth, na Holanda, onde lhe foi prestado tratamento policlínico suplementar.
29º - Em 25 de Agosto de 1992, o autor deslocou-se novamente ao Hospital Saint-Elisabeth, onde lhe foi substituída a tala gessada por uma outra com peso, na zona do cotovelo, encontrando-se então o ombro e o braço direito muito inchados.
30º - Em 9 de Outubro de 1992, a tala de gesso foi substituída por um “brace” de matéria sintética que manteve até 30 de Outubro de 1992.
31º - Após o acidente o autor apresentava dores de cabeça, tonturas e perturbação na sua capacidade de concentração e visão.
32º - O autor foi submetido a um EEG em 4 de Novembro de 1992.
33º - O autor efectuou tratamento fisioterapêutico diariamente no mês de Novembro de 1992, trisemanalmente durante o mês de Dezembro de 1992 e bisemanalmente de Janeiro a Maio de 1993, inclusive.
33º-A - O autor foi ainda submetido a diversas sessões de electro-terapia.
34º - As lesões sofridas pelo autor consolidaram-se em Maio de 1993.
35º - Em consequência das lesões o autor sofreu e continua a sofrer dor contínua no braço direito, com irradiação para o ombro direito e cotovelo e parte inferior das costas.
37º - A memória de fixação do autor apresenta-se perturbada.
39º - O autor apresenta uma flexão lateral da nuca de 30% para o lado direito e de 45% para o lado esquerdo.
40º - Em consequência das lesões sofridas no acidente o autor sofre de dor e restrição na zona do ombro.
41º - O perímetro do ombro direito do autor foi afectado no sentido de movimento externo neutro, sendo a flexão para trás de 30º, a abdução de 80º a 90º e a elevação de 90º.
42º - O autor apresenta redução da extensão do cotovelo de 10%.
45º - O autor sofreu dores durante o período de incapacidade temporária, quer em consequência das lesões quer dos tratamentos a que foi sujeito, a que corresponde o grau 4 numa escala de sete graus de gravidade crescente.
46º - O autor sente desgosto face aos referidos quesitos 35o), 37o), 39o), 40o), 41o), e 42o).
47º - O autor é dextro.
48º - À data do acidente o autor explorava por conta própria uma garagem e

oficina de automóveis.
49º - No exercício da actividade a que alude o quesito anterior, o autor adquiria automóveis para revenda após prévia reparação dos mesmos.
50º - Era o autor quem efectuava as reparações dos automóveis.
51º - Em consequência do acidente, o autor sofreu: a) uma incapacidade temporária geral total de 50 dias; b) uma incapacidade temporária geral parcial de 234 dias; c) uma incapacidade temporária profissional total de 284 dias.
52º - Em consequência do acidente, o volume dos lucros do autor baixou.
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Inconformado com a sentença, interpôs o autor recurso de apelação.
São do seguinte teor as conclusões das alegações dos recursos interpostos pelo autor.
Recurso de agravo.
1- O Sr. Juiz a quo absolveu da instância o recorrido C..., com fundamento na sua ilegitimidade por ter transferido a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação até ao limite de 100.000 contos, montante que excede os limites do seguro obrigatório.
2- Dispõe o nº 1 do artº 29º do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, que
“1-As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:
a) Só contra a seguradora, quando o pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório.
b) Contra a seguradora e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar os limites referidos na alínea anterior”.
3- O critério para fixar a legitimidade é o do limite fixado para o seguro obrigatório e não o limite contratado entre a seguradora e o tomador do seguro.
4- O limite do seguro obrigatório à data do acidente dos autos – 20/08/1992 – era o fixado pelo Decreto-Lei nº 394/87, de 31 de Dezembro, ou seja, 6.000.000$00 por lesado e 10.000.000$00 por sinistro.


5- Como logo referido na petição inicial, - cujo valor é de 26.993.945$00 – a acção tinha de ser – como o foi – intentada quer contra a seguradora - a ré Lusitanea –, quer contra o civilmente responsável – o réu C....
6- O pedido formulado na presente acção excede, como já referido, o limite do seguro obrigatório vigente à data do acidente, donde o réu C... ser, pois, parte legítima nos presentes autos.
7- É, pois, manifesta a falta de razão do Sr. Juiz a quo no despacho recorrido, ao absolver da instância o réu José Gaspar, com fundamento na sua pretensa ilegitimidade.
8- O Sr. Juiz a quo violou o disposto no artº 29º, nº 1, al. b), do Dec.-Lei nº 522/85.
Recurso de apelação.
1- A sentença recorrida julgou mal o acidente dos autos ao dar como assente que o condutor do veículo 17-23-AJ não agiu culposamente na produção do acidente.
2- Desde logo, fundamentando-se numa contradição entre as respostas aos quesitos 9º e 20º.
3- Não sendo indiferente, para a apreciação correcta da dinâmica do acidente a utilização duma ou doutra resposta.
4- Ademais, existindo prova documental – Auto de Participação de Acidente de Viação – cuja letra e assinatura não foram impugnadas.
5- Por cautela, e para quando assim se não entende deve o Tribunal da Relação alterar a resposta ao quesito 20º para não provado, nos termos do artº 712º, nº, al. b) do CPC ou ordenar que o processo baixe à 1ª instância para repetição do julgamento quanto a este ponto nos termos do nº 4.
6- Com efeito, na matéria de facto provada e na sentença recorrida não existe qualquer censura à conduta do condutor do veículo QQ.
7- O acidente não pode ter ocorrido porque a Natureza assim o quis!
8- O condutor do veículo AJ até viu antecipadamente o veículo QQ a circular em sentido contrário.
9- Até travou.
10- Mas, flectiu a direcção do AJ para a sua esquerda, para o lado por onde circulava o veículo QQ.
11- Quando o condutor do AJ podia e devia ter agido de outro modo.
12- Foi, pois, o condutor do AJ o único culpado pela produção do acidente, ficando, portanto, a ré responsável pelo pagamento das indemnizações peticionadas.

13- Violou, assim, a sentença recorrida, entre outros, os artºs 376º, 483º, 487º, 496º, 503º e 506º do Código Civil.
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A ré seguradora apresentou contra-alegações em relação ao recurso de apelação, defendendo a improcedência do mesmo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal da Relação conhecer de matérias nele não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Vamos apreciar os recurso pela ordem da sua interposição (artº 710º do Código de Processo Civil), começando, portanto, pelo

Recurso de agravo.
O autor propôs a acção contra a seguradora B... e C..., condutor do veículo 17-23-IJ, seguro na primeira, pedindo a condenação destes no pagamento do montante global de 291.134,01 florins holandeses, correspondentes a 26.993.945$00.
O réu José foi julgado parte ilegítima no saneador, por se considerar que aquele havia transferido para a demandada B... a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação em que aquele veículo interviesse até ao limite de 100.000.000$00, muito superior, portanto, ao valor do pedido.
O presente recurso baseia-se, essencialmente, no disposto no artº 29º, nº 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, e no facto de o limite do seguro obrigatório ser, à data do acidente, no valor de 6.000.000$00, inferior, portanto, ao valor do pedido.
É o seguinte o teor desse artigo, na parte que aqui interessa:
1 - As acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil

decorrente de acidente de viação, quer sejam exercidas em processo civil quer o sejam em processo penal, e em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente:
a) Só contra a seguradora, quando o, pedido formulado se contiver dentro dos limites fixados para o seguro obrigatório;
b) Contra a seguradora e o civilmente responsável, quando o pedido formulado ultrapassar os limites referidos na alínea anterior.
Embora este último preceito exija que a acção seja proposta contra a seguradora e o civilmente responsável quando o pedido formulado ultrapasse os limites fixados para o seguro obrigatório, tem de se entender que ele não tem aplicação quando existe seguro facultativo que cobre a responsabilidade que exceda o montante do seguro obrigatório.
Com efeito, não pode fazer-se uma interpretação literal desse preceito, devendo, antes interpretar-se o mesmo no sentido de que nele se contempla unicamente o caso de a eventual responsabilidade que exceda o montante do seguro obrigatório estar a descoberto da apólice e em que, por isso, ela tem de ser suportada pelo responsável pelo acidente, assim se justificando a demanda deste, afim de que o lesado possa ser completamente ressarcido.
Essa é a razão de ser desse litisconsórcio necessário e, por isso, como bem se entendeu no despacho recorrido, não existe fundamento para a demanda obrigatória do responsável civil quando este haja transferido para a seguradora a sua responsabilidade em termos que ultrapassem o seguro obrigatório e garantam a satisfação do pedido formulado (cfr. Ac. do S.T.J. de 22/10/1998, Proc. nº 98B580, in www.dgsi.pt).
Como também se refere nesse despacho, não colhe o argumento de que o litisconsórcio se justifica porque a seguradora pode opor ao lesado, no âmbito do seguro facultativo, numerosas excepções cuja arguição lhe está vedada quando o pedido se contiver nos limites do seguro obrigatório, já que nesse caso, o lesado pode sempre fazer intervir o responsável civil para assegurar a total reparação dos seus danos.
Convém realçar que, como se entendeu no Ac. do S.T.J. de 22/02/1994 (BMJ 434º-615), a cláusula que estabelece o âmbito de cobertura dos danos por acidente de viação, se elevar o montante correspondente ao seguro obrigatório, não configura um contrato misto nem uma dualidade de contratos, mas um único contrato cobrindo mais

amplamente os riscos prevenidos por tal seguro, não deixando tal contrato de se qualificar como obrigatório..
No presente caso, ainda mais se justifica a decisão de considerar o réu C... parte ilegítima, por carecer de interesse em contradizer, por nenhum prejuízo lhe advir da procedência da acção (cfr. artº 26º), em virtude de a seguradora não ter invocado qualquer excepção ou outro meio de defesa tendente a eximir-se ao dever de indemnizar.
Assim, porque não merece censura o despacho recorrido, há que negar provimento ao agravo.
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Recurso de apelação.
I – Começa o recorrente por afirmar que a sentença recorrida julgou mal o acidente ao dar como assente que o condutor do veículo AJ não agiu culposamente na produção do acidente, desde logo fundamentando-se numa contradição existente entre as respostas aos quesitos 9º e 20º, não sendo indiferente para a apreciação da dinâmica do acidente a utilização de uma ou de outra resposta, ademais, existindo prova documental – auto de participação de acidente de viação – cuja letra e assinatura não foram impugnadas.
Vejamos se existe a invocada contradição, recordando a redacção de tais respostas:
9º - O embate deu-se entre a parte dianteira do AJ e a parte da frente, lado esquerdo, do pesado.
20º - O embate deu-se entre a frente esquerda do QQ e a frente esquerda do AJ.
Não existe contradição (entendido este conceito no sentido preconizado pelo Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV, pág. 553, – a resposta a um quesito ou quesitos colide com a dada a outro ou outros) entre estas respostas, apenas se passando que a resposta dada ao quesito 9º, no que diz respeito à parte do veículo AJ onde se deu o embate, é mais imprecisa do que a dada ao quesito 20º, que é mais pormenorizada, indicando, concretamente, o local exacto onde se deu tal embate.
Com efeito, a parte dianteira de um veículo pode subdividir-se em três partes. esquerda, central e direita.

A parte da frente esquerda, referida na resposta ao quesito 20º, situa-se, portanto, na parte dianteira, referida na resposta ao quesito 9º.

Alega o recorrente que Sr. Juiz não podia tirar a conclusão de que “o autor não logrou provar qualquer circunstancialismo donde seja legítimo retirar uma conduta culposa do condutor da viatura AJ”, face à prova documental – auto de participação de acidente de viação – cuja letra e assinatura não foram impugnadas.
Sem razão, no entanto.
A participação em causa (v. fotocópia de fls. 41/42) não nos fornece elementos que nos levem a concluir que o culpado do acidente foi o condutor do veículo AJ, uma vez que o agente participante não assistiu ao acidente, tendo elaborado a participação posteriormente à ocorrência deste, limitando-se a indicar a situação com que se deparou quando chegou ao local.
A esse propósito importa realçar que não foram indicadas quaisquer testemunhas pelo participante, constando da participação precisamente que “ não foram indicadas”.
Por outro lado, o participante não foi ouvido em tribunal.
Por isso, não há que censurar a conclusão a que chegou o Sr. Juiz no que respeita ao não atendimento da aludida participação na conclusão acerca da culpa na ocorrência do acidente.
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II – Alega o recorrente que deve este Tribunal da Relação alterar a resposta do quesito 20º para não provado, nos termos do artº 712º, nº 1, al. b), do CPC ou ordenar que o processo baixe à 1ª instância para repetição do julgamento quanto a este ponto.
Essa norma permite que a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto possa ser alterada pela Relação se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
No entanto, o recorrente não indica, na sua alegação, quais os elementos fornecidos pelo processo que estão nas condições referidas nessa norma, ou seja, que impõem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.

A não ser que queira referir-se ao auto de participação do acidente de viação, cuja fotocópia se encontra junta a fls. 41/42.
Tal documento, só por si, não é susceptível de permitir a alteração da resposta ao quesito 20º, sendo certo que foram inquiridas duas testemunhas à matéria constante desse quesito, sem que os depoimentos tenham sido gravados, ignorando-se, portanto, o que disseram tais testemunhas sobre essa matéria.
Não pode, assim, esta Relação alterar a resposta àquele quesito, nos termos do nº 1, al. b), do artº 712º, assim como também não há que anular a decisão da 1ª instância, nos termos do nº 4 desse preceito, visto não se verificar a contradição invocada, conforme já atrás se apreciou, em I.
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III – Finalmente, afirma o recorrente que o condutor do AJ foi o único culpado pela produção do acidente, uma vez que na matéria de facto provada e na sentença não existe qualquer censura à conduta do condutor do veículo QQ, que o condutor do AJ até viu antecipadamente o veículo QQ a circular em sentido contrário, até travou, mas flectiu a direcção para a sua esquerda, quando podia e devia ter agido de outro modo.
A esse propósito convém realçar o que disse o autor na petição inicial com interesse para atribuição da culpa ao condutor do veículo AJ:
Nos momentos que antecederam o acidente o condutor do veículo de marca Opel Corsa (17-23-AJ), que circulava a uma velocidade instantânea superior a 90 km/h, iniciou uma manobra de ultrapassagem a um veículo automóvel que seguia à sua frente.
Em consequência directa e necessária da referida manobra de ultrapassagem, o dito veículo Opel Corsa entrou na curva para a direita que a estrada descreve no local do acidente, invadindo a faixa de rodagem em que circulava, em sentido inverso, o veículo automóvel de marca Pégaso (QQ-01-51).
Em consequência directa e necessária da referida invasão pelo veículo AJ da faixa de rodagem em que circulava o veículo QQ, ambos os veículos colidiram.
Antes do embate, o condutor do QQ accionou os órgãos de travagem e desviou-o ligeiramente para a sua direita, não conseguindo, no entanto, evitar o acidente.
A colisão dos referidos veículos verificou-se entre a parte dianteira do

veículo AJ e a parte dianteira do lado direito do veículo QQ.
Vamos agora reproduzir o que se deu como provado no que respeita a esse factualismo:
No local do acidente a estrada descreve uma curva para a direita, atento o sentido de marca da viatura AJ.
Antes do embate, o condutor do QQ efectuou uma travagem e flectiu a direcção para a direita, atento o sentido de marcha em que seguia.
Por motivos não apurados, ao descrever a curva referida em D), a viatura AJ desviou-se para a esquerda.
Os veículos QQ e AJ embateram, dando-se tal embate entre a parte dianteira do AJ e a parte da frente, lado esquerdo, do pesado.
Antes do local onde ocorreu o acidente existe uma ponte, seguida da curva referida em D).
Após ter efectuado a travessia dessa ponte e quando completava a aludida curva, deparou-se ao condutor do AJ o veículo QQ, a uma distância inferior a 50 metros.
Ao aperceber-se do veículo QQ, o condutor do AJ travou e este veículo (AJ) desviou-se para a esquerda.
O embate deu-se entre a frente esquerda do QQ e a frente esquerda do AJ.

Na sentença recorrida, depois de se considerar que, para que de actuação culposa se pudesse falar, necessário se tornava que estivesse demonstrada uma factualidade susceptível de tornar o condutor do veículo AJ merecedor daquele juízo de censura que a culpa encerra, entendeu-se que o autor não logrou provar esse elemento essencial da responsabilidade civil por factos ilícitos que é a culpa, sendo certo que sobre o mesmo recaía o correspondente ónus de prova, nos termos do artº 487º, nº 1, do Código Civil.
E, efectivamente, assim, é.
De acordo com esse preceito, na responsabilidade civil extra-contratual, incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal da mesma, o que, no caso, se não verifica em relação ao condutor do veículo AJ, C....

Ora, da análise da matéria de facto dada como provada, e atrás reproduzida, não é possível concluir pela existência de culpa na ocorrência do acidente, por parte daquele condutor, já que não logrou o autor provar os factos por ele invocados, integradores de tal conceito - nomeadamente a velocidade (excessiva) a que circulava o AJ, ultrapassagem a outro veículo numa curva para a direita e invasão da faixa de rodagem contrária em consequência de tal manobra de ultrapassagem -, sendo certo que, com tais factos (os dados como provados) não é possível saber a forma como se deu o acidente e a quem é ele de imputar.
Por isso, não merece censura a sentença recorrida, improcedendo, consequentemente, o recurso de apelação.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento a ambos os recursos, confirmando o despacho e a sentença recorridos.
Custas pelo recorrente.