Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
363/08.OOGAACB.1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: PRINCÍPIO “IN DUBIO PRO REO”
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE AMEAÇAS
MAL FUTURO
Data do Acordão: 09/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 1º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 22º, 152º DO CP, 410º, Nº 2 C) CPP
Sumário: 1. A violação do princípio “in dubio pro reo”, por se traduzir na violação duma «lex artis» reconduz-se ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal.
2. No crime de ameaças o mal anunciado terá a característica de “mal futuro” desde que não se trate já duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.º 22º do Código Penal a caracteriza.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra
I –
1- No processo comum 363/08 do 1ºJuízo de Alcobaça A... foi condenado pela prática dum crime de ameaças na pessoa de M... na pena de 8 meses de prisão substituídos 240 dias de multa à taxa diária de €9.
2- O arguido recorre concluindo –
1) O arguido foi condenado como autor dum crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153/1 e 155/ 1 alínea a) do Código Penal;
2) O tribunal deu como provado no ponto a) que “o arguido A..., no âmbito duma discussão acerca dum muro abeirou-se do M..., retirou do bolso das calças um objecto de cor prateada em tudo semelhante a uma pistola, tendo-se de seguida dirigido a este último com ela empunhada em direcção ao tronco do mesmo ao mesmo tempo que dizia «dou-te um tiro; mato-te já»”;
3) Deu como provado o ponto a) com base nas declarações de M... que relatou de forma sequencial, coerente e com o realismo de quem viu apontada a si uma suposta arma, todo o comportamento do arguido, incluindo a expressão que acompanhava a manipulação da arma;
4) Contudo, o ofendido recorda-se os que relatou, embora não se recordando a que parte do corpo a arma lhe foi apontada, referindo nas suas declarações “tenho muitas coisas em que pensar”;
5) O ofendido apenas se recorda dos factos que constavam na acusação e nada mais; não acrescentando pormenores, tais como para que zona do corpo o arguido lhe apontou a arma, o que é de questionar – será que o arguido lhe apontou uma arma (?);
6) Só o ofendido é que refere que o arguido lhe disse “dou-te um tiro, mato-te já”;
7) Quando a testemunha D..., que segundo o ofendido assistiu a todos os factos, apenas refere que o arguido terá dito a expressão: “dou-­te seu caralho, dou-te um tiro nos cornos”;
8) Esta testemunha encontrava-se imediatamente atrás do ofendido e ouviu uma expressão bem diferente da que é referida no ponto a) da decisão de facto da sentença;
9) Assim, de toda a prova resulta que não ficou claro que o arguido tenha efectuado os factos dados como provados na sentença;
10) Por outro lado se dirá que a expressão proferida não integra as características do crime de ameaça;
11) O crime de ameaça tem que anunciar um mal, tem que ser futuro e dependendo da vontade do agente;
12) Com a expressão “dou-te um tiro, mato-te já” o arguido anuncia um mal que está iminente, não condicionando as decisões e movimentos dali em diante do ofendido;
13) Nada impedia o arguido de concretizar o mal anunciado, por estarem frente a frente e por o mal anunciado não depender dum acto a realizar pelo ofendido, pois após a expressão o mal anunciado não se concretizou, logo o crime de ameaça esgota-se ali;
14) A tipificação do crime de ameaça estabelece que o mal anunciado seja um mal futuro, pois se o mal anunciado é um mal iminente ao não ser concretizado, deveria entrar em campo a tentativa do mal anunciado, se punível, pois a ameaça esgota-se com a não consumação do mal anunciado;
15) A prova impunha uma decisão oposta à que resulta da sentença considerando que os elementos essenciais do crime de ameaça não se encontram preenchidos, nomeadamente ser iminente o mal anunciado;
16) O tribunal violou o artigo 32/2 da CRP; os artigos 97/5, 340° e 374/ 2 do CPP; e o artigo 153/ 1 do Código Penal.
17) Em suma, não ficou provado que o arguido praticou o crime, pelas divergências dos depoimentos da acusação relativamente à expressão que o arguido proferiu.
18) Admitindo-se por hipótese que o arguido praticou os factos descritos na acusação, a expressão anuncia um mal iminente e não um mal futuro, pelo que a ameaça fica esgotada.
Pelo exposto, a expressão não preenche os requisitos que tipo legal do crime de ameaça exige.
3- Respondeu o Ministério Público no sentido do infundado do recurso, no mesmo sentido indo o parecer do Ex.mo Procurador-Geral Adjunto.
4- Colheram-se os vistos. Cumpre apreciar e decidir!
II –
1- Decisão de facto inserta na sentença –
Factos provados –
a) No dia 3 de Setembro de 2008, pelas 14.30 horas, na Rua …., o arguido A... no âmbito de uma discussão acerca de um muro abeirou-se de M..., retirou do bolso das calças um objecto de cor prateada, em tudo semelhante a uma pistola, tendo-se de seguida dirigido a este último com ela empunhada em direcção ao tronco do mesmo ao mesmo tempo que dizia: “dou-te um tiro, mato-te já”.
b) O arguido agiu com pleno conhecimento de que a expressão que proferiu e dirigiu ao ofendido, nas circunstâncias supra descritas, era meio adequado a produzir-lhe receio, medo, temor e inquietação pela sua vida e integridade corporal, sendo certo que, com a sua conduta, pretendia precisamente incutir-lhe medo e dar-lhe a atender que lhe faria mal.
c) O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente e bem sabia o arguido que a sua descrita conduta não era permitida por lei.
d) O arguido aufere cerca de €750 por mês;
e) Vive com uma companheira em casa cedida por uma irmã.
f) Tem um filho de 8 anos, a quem paga uma pensão de alimentos de €130;
g) Suporta encargo mensal de €300 relativo a renda de leasing;
h) Tem o 5º ano do liceu;
i) Foi condenado em 130 dias de multa, já cumprida, por sentença de 25/6/ 2002 no processo 47/02.2TB ACB do 1º Juízo do tribunal de Alcobaça por crime de ofensa à integridade física cometido a 13/8/2001
j) Foi condenado por sentença proferida em 28/1/2004 nos autos 55/04.9GTLRA do 1º J. do Tribunal Judicial de Alcobaça pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez em 28/1/2004, na pena de 60 dias de multa, que se encontra extinta pelo cumprimento.
Fundamentação –
A convicção do tribunal baseou-se, quanto aos factos de que vinha acusado o arguido, nas declarações das testemunhas.
O arguido não negou ter estado presente no dia, local e hora dadas como provadas no ponto a) onde também se encontrava M..., negando todavia terem ocorrido os demais factos.
Pelo que valeu para prova do restante, as declarações de M... que relatou de forma sequencial, coerente e com o realismo de quem viu apontada a si uma suposta arma, todo o comportamento do arguido, incluindo a expressão que acompanhava a manipulação da arma.
Tal depoimento foi corroborado, sem dúvida, de forma credível por D... que era à data companheira de M... e o acompanhou ao local nesse dia. Neste momento a testemunha já não é companheira do M... e de forma bastante perturbada para quem presenciou o arguido a empunhar uma pistola, secundou o depoimento do queixoso, comprovando o facto a).
Tal testemunha revelou ser a mais isenta de todas as demais ouvidas, já que quer …., companheira do arguido, quer os trabalhadores da empresa do arguido, ….. e ……, negaram os factos, em contradição com as demais. Todavia, tal relação especial com o arguido evidenciou-se nos respectivos depoimentos já que as mesmas estavam limitadas na sua isenção, mostrando constrangimento, pelo que o seu depoimento foi postergado, por pouco credível, pelas testemunhas M... e D…. .
O elemento subjectivo (factos b. e c.) resultou das concretas circunstâncias em que o arguido agiu, não lhe sendo certamente alheio o carácter ilícito da sua conduta, bem sabendo que a sua conduta era apta a causar perturbação e medo no assistente.
As condições pessoais do arguido resultaram das declarações do arguido. Quanto aos antecedentes criminais o tribunal fundou a convicção no teor do CRC junto.
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2- O recorrente manifesta a sua discordância com a decisão de facto negando as expressões ameaçadoras que lhe são atribuídas, pelo que diverge do tribunal na apreciação da prova. Nesta sequência invoca a violação do princípio «in dubio pro reo».
Refere também que a darem-se por provadas as expressões, elas não preenchem o tipo legal do crime de ameaças por se referirem a um mal presente e não futuro.
3- Apreciação –
3.1- Começaremos pela apreciação da invocação da violação do princípio «in dubio pro reo» por se traduzir na invocação dum dos vícios enunciados no art.º 410º/2 do Código de Processo Penal.
Efectivamente, o ordenamento lógico das questões que o recorrente suscita leva-nos a conhecer da presença de qualquer vício antes da reapreciação da decisão de facto na base dos prestados depoimentos.
A nosso ver a violação do indicado princípio, por se traduzir na violação duma «lex artis» reconduz-se ao erro notório na apreciação da prova enunciado na alínea c) do n.º2 do art.º 410º do Código de Processo Penal.
A violação do princípio traduz o postergar de “leges artis” e é resultante de dois postulados –, o de que o juiz terá de decidir sempre e o da inadmissibilidade de condenação penal quando o juiz se não convença da efectiva responsabilidade do arguido.
Decorre do princípio que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
O princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que em caso de falta de prova sobre um facto a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Nas circunstâncias enunciadas a violação do princípio só seria de atender se resultasse do acórdão, mormente da decisão de facto em que se engloba a respectiva fundamentação, que o tribunal num estado de dúvida sobre algum ou alguns dos pontos da matéria de facto sobre eles optasse por um entendimento decisório desfavorável ao arguido.
Ora não é isso que resulta do acórdão recorrido, sendo patente na fundamentação da decisão de facto que o tribunal não manifesta dúvidas sobre a ocorrência dos factos e quem deles foi o autor.
Verdadeiramente o que move o recorrente é uma aparente debilidade ou insuficiência probatória para se ter como provada as expressões ameaçadoras.
3.2- Mas ao ter de reexaminar-se a prova para se saber da correcção da decisão de facto, a situação já não se coloca ao nível do erro notório mas ao nível da mera divergência na valoração dos depoimentos.
3.2.1- No nosso ordenamento vigora o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art.º 127ºdo CPP).
Não se trata de apreciação arbitrária, antes tendo como pressupostos os critérios da experiência comum e da lógica do homem médio. Daqui que à convicção do julgador ande associada a obrigatoriedade da sua fundamentação em elementos objectivos que a tornem credível (cfr. art.º 374º/2 do CPP).
As provas são apreciadas por quem assistiu à sua produção sob a impressão viva colhida no momento e por vezes modelada em imponderáveis que não captáveis por mera gravação sonora.
Quanto à valoração da prova oral existe grande diferença entre a apreciação feita em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso com base em gravações. A sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz tem íntima ligação com a imediação. Por isso já se referiu que “na viva voz falam também o rosto, os olhos, o movimento, o tom, o modo de dizer e tantas outras pequenas circunstâncias que (…) fornecem tantos indícios a favor ou contra o afirmado”.
O julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é susceptível de ser surpreendida pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado, fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Assim, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E o juiz pode formar a sua convicção na base dum só testemunho ou declarações desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido. O juiz pressuposto é o juiz capaz de pôr o melhor da sua inteligência e conhecimento das realidades da vida na apreciação do material probatório com que é confrontado.
E não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados. É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador justificadamente não retirou credibilidade. Atente-se que o art.º 412/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela; mas não quando perante duas versões o juiz optou por uma fundamentando-a racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Tudo isto vem para dizer que ouvida a gravação dos depoimentos prestados, não vemos que deva ser alterada a decisão de facto com base nos depoimentos que o recorrente refere já que o tribunal recorrido sobre os mesmos afirma que não lhe mereceram credibilidade por falta de isenção, mostrando-se constrangidas na prestação do seu depoimento.
Perante divergentes declarações o tribunal optou pelos depoimentos do ofendido e de D... na altura sua companheira.
Estes afirmaram que o arguido proferiu as expressões ameaçadoras constantes da decisão de facto, o que está conforme com as regras da experiência comum atentas as circunstâncias da situação criada, nomeadamente do preexistente mau relacionamento de vizinhança entre o arguido e o ofendido.
Note-se que também a nós o depoimento da dita D... nos pareceu isento, embora começasse por dizer ao tribunal vir prestar o seu depoimento contrariada, contrariedade que nos parece advir da circunstância de nesse momento já não viver com o ofendido. Nem é o facto das expressões referidas pelo ofendido e por esta testemunha divergirem nos epítetos injuriosos que esta lhe aditou [ «seu caralho, dou-te um tiro nos cornos»] que impedia o tribunal de ter por certa a referida pelo ofendido.
Em conclusão, também nós perfilhamos na íntegra a apreciação que o tribunal recorrido fez da prova testemunhal, consequentemente mantendo inalterada a decisão de facto. Ou seja, mesmo sem a imediação da prova não hesitaríamos em proferir decisão de facto nos termos em que o fez o tribunal recorrido.
3.3- Quanto ao preenchimento do tipo na base da expressão ameaçadora usada pelo arguido, temos para nós que muitos equívocos se têm gerado face ao referido por Américo Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense ao Código Penal [§7, pp.343]. Para negar a prática do crime estriba-se o recorrente na argumentação de que não se tratou duma ameaça de mal futuro.
O preceito que consagra o tipo refere que pratica o crime «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida (...), de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar na sua liberdade de determinação».
Comenta Américo Taipa de Carvalho [ob. e local cit.] que “o mal ameaçado tem de ser futuro”, mas logo acrescenta que “isto significa apenas que o mal objecto da ameaça não pode ser eminente, pois neste caso estar-se-á diante duma tentativa de execução do respectivo mal”.
Assim, estar-se-á perante uma ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante execução eminente. Por outras palavras, o mal anunciado terá a característica de “mal futuro” desde que não se trate já duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.º 22º do Código Penal a caracteriza. Ora, perante a factualidade provada, é óbvia a ausência duma tentativa de homicídio. E a ser assim, a ameaça de morte é uma ameaça de mal futuro.
A expressão usada pelo arguido é objectivamente configuradora dum mal futuro já que não seguida de qualquer acção configuradora de execução imediata ou iminente do mal ameaçado. O arguido não praticou qualquer acto de execução no momento do crime anunciado.
Como se referiu em Acórdão da Relação de Guimarães de 7/1/2008 (www.dgsi.pt)] “tudo o que não seja execução em curso é anúncio de mal futuro, sendo indiferente que a expressão usada seja «agora» «hoje», «amanhã» ou «para o ano». Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal não acompanhada de actos correspondentes à sua concretização.
Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal de anúncio de causação de um mal não acompanhando o anúncio de actos de execução correspondentes – permanecendo inactivo em relação à execução do mal anunciado –, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade do mal anunciado se concretizar é o futuro em termos de interpretação da expressão em causa.
III –
Decisão –
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça que se fixa em 3 UCs.
Coimbra,