Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
74/96.7JATMR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: EXTINÇÃO DA PENA
RECURSO
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 09/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REJEITADO
Legislação Nacional: ARTIGO 57º, Nº. 1, DO CÓDIGO PENAL, ARTIGO 401º, Nº. 2, DO C. PROCESSO PENAL
Sumário: O assistente não tem interesse em agir para obter, em recurso, a revogação da decisão que declarou extinta uma pena cuja execução havia sido suspensa sob várias condições, entre as quais o pagamento de metade da indemnização arbitrada, condição cumprida.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Através do Acórdão deste Tribunal integrando fls. 587 e segs. dos autos que, por seu turno, apenas parcialmente alterou a anterior decisão singular proferida no Tribunal a quo, como sobressai de fls. 498 e segs., acabou o arguido A... condenado pela autoria de diversos ilícitos na pena única de três anos de prisão, suspensa, contudo, na respectiva execução, pelo período de quatro anos, com a condição (além da observância de determinadas regras de conduta mais especificadas) de, em igual prazo, solver aos demandantes civis (entre eles se considerando o assistente B...) metade da indemnização civil aí discriminada.
Posteriormente, mostra-se proferido a fls. 736 despacho com o teor seguinte:
“Decorrido que está o período de 4 anos respeitante à suspensão da execução da pena de três anos de prisão a que o arguido A... foi condenado por sentença proferida nestes autos, e tendo o mesmo cumprido com as condições que lhe foram impostas (cfr. fls. 714 e 729), sem que tenha havido outros motivos que pudessem conduzir à sua revogação (cfr. Certificado do Registo Criminal de fls. 731), declaro extinta a pena a que o mesmo foi condenado, em conformidade com o promovido pela Digna Magistrada do Ministério Público – artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal.
(…)”.
1.2. Discordando do assim decidido, o dito assistente impugnou-o judicialmente clamando a revogação do invocado despacho.
Admitido o recurso através do despacho que é fls. 759, notificados para o efeito, responderam quer o arguido, contrapondo a manutenção do exarado, quer o Ministério Público, sufragando igual subsistência mas, em todo o caso, suscitando da questão prévia de falta de legitimidade e interesse em agir do recorrente.
Com implícito despacho de manutenção da decisão recorrida, subiram os autos a este Tribunal.
Aqui, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer conducente à verificação, in casu, da aludida falta de legitimidade para recorrer do assistente, além de, sempre, falta de interesse em agir demonstrado que se mostra o pagamento da indemnização fixada como condição de suspensão de execução da pena ao recorrido.
Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal [CPP], mostra-se junta réplica do arguido.
No exame preliminar consignou-se ser caso de verificação da suscitada questão prévia.
Colhidos os vistos legais, há que decidir.
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II – Fundamentação.
2.1. Desde já, preliminar (e definitivamente, adiantamos), ocupar-nos-emos da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, pois que, na verdade, a proceder, fica prejudicada a questão substantiva conexionada com o objecto do recurso interposto.
Aquela contende, primacialmente, com os conteúdos que hodiernamente e perante a lei processual penal actual se devem atribuir aos conceitos de “legitimidade” e “interesse em agir” do assistente (sujeito processual cujo estatuto vem delineado nos artigos 68.º a 70.º do CPP) na fase de recurso.
Como Acórdãos que, com profundidade ponderaram tais conceitos, citaremos os exarados pelo STJ, em 22 de Novembro de 2001, entretanto publicado na Colectânea de Jurisprudência [CJ] (STJ), Ano IX, Tomo III, págs. 220/225 (com um voto de vencido), bem como um outro do mesmo Tribunal, proferido em 2 de Março de 2000, e publicado também na CJ (STJ), Ano VII, Tomo I, págs. 222/223.
Ponderação centrada, entretanto, na correcta interpretação do artigo 401.º do CPP (com a epígrafe: “legitimidade e interesse em agir”).
Diz tal normativo:
“1. Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra ele proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um direito afectado pela decisão.
2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.”
A legitimidade processual consiste em “Serem as partes os sujeitos da relação material controvertida” (Manuel de Andrade, “Noções”, pág. 83; não sendo uma qualidade das partes, traduz-se e configura-se numa “certa posição delas em face da relação material litigada” (ib., pág. 84) permitindo-lhes ocuparem-se em juízo do objecto do processo; é “uma posição de um sujeito processual relativamente a determinada decisão proferida em processo penal que justifica que ele possa impugnar tal decisão por meio de recurso” (Gonçalves da Costa, “Jornadas de Processo Penal”, 412).
Mas, a par da legitimidade assim definida (e expressa no n.º 1 do art.º 401.º), o novo CPP, e com o n.º 2 do preceito citado, introduziu um novo requisito – “o interesse em agir”. Isto é, além dos requisitos da legitimidade, o recorrente deve ainda, no caso concreto, ter necessidade de, para realizar o seu direito, usar do meio processual que é o recurso.
Não havia disposição semelhante no Código de 1929; mas continha afloramentos dessa exigência, nomeadamente, no n.º 2 e §s 3.º e 5.º do art.º 647.º (“podem recorrer o réu e a parte acusadora das decisões contra eles proferidas”; “o réu não poderá recorrer das decisões que lhe sejam favoráveis”; “a parte acusadora não poderá recorrer das decisões que tenham condenado o réu em pena igual ou superior que tiver pedido na sua querela, queixa ou requeri-mento, ou em perdas e danos em quantitativo não inferior ao que houver pedido”).
Como diz Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 79, o inte-resse processual “consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo”; é o interesse do demandante, não já no objecto do processo (legitimidade), mas no próprio processo em si, por dele necessitar para tutela do seu direito (C. Mendes, “Manual”, 257).
Pode afirmar-se que tem “interesse em agir” para efei-tos de recurso, quem tiver necessidade deste meio de impugnação para defender um seu direito (Gonçalves da Costa, Ibid.)
Do que decorre, então, e com o novo Código, ao lado dos casos da legitimidade subjectiva, valorada a priori, a existência de um novo conceito de, legitimidade objectiva: o “interesse em agir”, que terá de se verificar em concreto, isto é, cabe ao intérpre-te verificar a medida em que o acto é impugnado em sentido favorável à função que o recorrente desempenha no pro-cesso; “a utilidade prática com que se identifica o interesse em agir não é apreciada de acordo com a opinião pessoal do recorrente, mas sim em termos objectivos” (Cunha Rodrigues, “Jornadas de Processo Penal”, pág. 389).
2.2. Ora, no caso concreto, embora tendo “legitimidade” para tanto, consideramos, porém, que carece o assis-tente/recorrente do dito “interesse em agir”, atento o enten-dimento atrás enunciado.
Na verdade, estamos perante uma decisão que não afecta os seus direitos e interesses. Para sua tutela continua ele a dispor de uma decisão também civil transitada, dela podendo lançar mão em sede executiva para fazer valer o seu direito indemnizatório fixado e que ele reclama não se mostrar parcialmente cumprido.
O despacho recorrido nada tem a ver com os interesses e direitos do assistente; trata-se de uma decisão estritamente penal, no sentido de apenas contender com o arguido; viu ele consideradas cumpridas as condições fixadas para o decretar da suspensão de execução da pena, entre elas sobressaindo o aludido ressarcimento parcelar da indemnização arbitrada ao assistente e, com os demais pressupostos, extinta a pena cominada.
Nesta situação, a decisão recorrida em nada afecta o interesse do recorrente uma vez que pode ele executar a decisão na parte que considera ainda não cumprida.
Não será (deverá ser) por meio do presente recurso que o assistente logrará conseguir a tutela jurídica que pretende, dispondo, reafirma-se, de outros meios para tanto.
Em igual sentido podem ainda ver-se os Acórdãos da Relação de Évora e deste próprio Tribunal, respectivamente, de 1 de Junho de 1996 e de 3 de Maio de 1995, in CJ, Anos XXI, Tomo III, págs. 293/4 e XX, Tomo III, págs. 62/3.
Do que decorre, a nosso ver, que o recorrente não tem interesse em agir, pelo que não pode recorrer (art.º 401.º, n.º 2).
2.3. A circunstância de o recurso haver sido admitido na 1.ª instância não vincula, como se sabe este Tribunal, ex vi dos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3 e 417.º, n.º 3, alínea a), ambos do CPP.
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III – Decisão.
São termos em que se decide rejeitar o recurso interposto, atenta a mencionada falta de interesse em agir do assistente/recorrente.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UCs a taxa de justiça devida, aqui já englobada a quantia a que se reporta o art.º 420.º, n.º 4 do CPP.
Notifique.