Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
15/11.3YRCBR
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
INTERESSE EM AGIR
DIREITO APLICÁVEL
Data do Acordão: 09/06/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: RELAÇÃO DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: REVISTA / CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 1100.º N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARIGOS 1871.º N.º 1 A) E 350.º N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL;
Legislação Estrangeira: ARTIGO 245.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE ANGOLA
Sumário: I – Tem interesse em agir o cidadão estrangeiro que, tendo assento de nascimento no registo civil português, onde está omissa a sua paternidade, pretende que seja revista uma decisão de um tribunal do seu país que o declarou filho de um português.

II – Para os efeitos do n.º 2 do artigo 1100.º do Código de Processo Civil, ao averiguar-se se o resultado da acção "teria sido mais favorável, se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português", é aos factos dados como provados na sentença revidenda, e não a quaisquer outros, q ue se aplica o "direito material português".

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

A... e B... instauraram a presente acção de revisão de sentença estrangeira contra C..., pedindo que seja revista e confirmada a sentença proferida, a 29 de Agosto de 1996, pela Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, Angola, que declarou que o requerido é pai dos requerentes.

O requerido contestou alegando, em síntese, que, no processo em que foi proferida a sentença revidenda, não foi regularmente citado, nem aí foram observados os princípios do contraditório e da igualdade. Mais alegou que, tendo presente o disposto no artigo 1100.º n.º 2 do Código de Processo Civil, de acordo com os artigos 1873.º e 1817.º do Código Civil, então vigentes, havia que considerar caduco o direito dos requerentes. Afirma ainda que não se verifica o requisito estabelecido no artigo 1798.º do Código Civil e que os requerentes actuam com abuso de direito.

Os requerentes responderam reafirmando, no essencial, a posição inicialmente assumida.

Os requerentes apresentaram alegações defendendo a procedência do pedido formulado nos autos.

O requerido não apresentou alegações.

O Ministério Público apresentou alegações, nas quais conclui que estão reunidas as condições para a sentença ser revista e confirmada.

Não há excepções dilatórias ou nulidades que obstem ao conhecimento do mérito da causa.

A questão que importa decidir é a de saber se estão verificados os requisitos para a confirmação da sentença de 29 de Agosto de 1996 da Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda.


II

1.º


Estão provados os seguintes factos:

a) Os requerentes têm a nacionalidade angolana.

b) A requerente nasceu a 10 de Dezembro de 1954.

c) O requerente nasceu a 25 de Junho de 1960.

d) Os requerentes são filhos de D....

e) A 25 de Setembro de 1992 os requerentes propuseram contra o requerido, residente em Portugal, uma acção especial de estabelecimento da filiação, apresentando a petição inicial que se encontra nas folhas 13 a 15, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, onde invocaram a posse de estado e alegaram que em Angola, antes de regressar a Portugal em 1961, este viveu em união de facto (com comunhão de mesa, casa e habitação) com D..., e pedem que o requerido seja citado por carta registada com aviso de recepção.

f) Os requerentes indicaram como residência do requerido, Santa Comba Dão, Rojão Grande, CX Postal 3440, Portugal.

g) Foi enviada carta registada com aviso de recepção para essa morada, visando a citação do requerido, a qual foi devolvida com a menção de "recusada pelo destinatário 19-1-93".

h) Por tal motivo o requerido foi citado editalmente, com afixação no tribunal dos editais e publicação de anúncios em dois jornais, e depois citou-se o Ministério Público.

i) Após ter sido produzida a prova testemunhal, incluindo a prestada por carta rogatória no Tribunal de Santa Comba Dão, a 29 de Agosto de 1996, a Sala de Família do Tribunal Provincial de Lunada, proferiu a sentença das folhas 44 e 45, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, que declarou os requerentes filhos do requerido.

j) Nessa sentença encontram-se provados os seguintes factos:

"1.º- O R. e a mãe dos Autores, durante cerca de oito anos, viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, como se marido e mulher fossem; 

2.º- Os Autores nasceram do relacionamento mantido pelo R. e D..., tendo esta guardado completa fidelidade àquele;

3.º- O R. sempre se comportou e considerou como pai dos Autores e estes sempre foram considerados e tratados como filhos do R. pelos familiares, amigos e público em geral".

l) Essa sentença transitou em julgado.

m) Os requerentes estão registados na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa, com os assentos de nascimento que se encontram nas folhas 56 e 58, cujos conteúdos se dão aqui por reproduzidos, e em ambos os registos nada consta quanto à paternidade.

n) O requerido é cidadão português.

o) Aquando da propositura da acção referida em e) e do envio da carta mencionada em g) o requerido tinha residência na morada que consta em f).

p) Antes da presente acção, os requerentes instauraram contra o requerido o processo de revisão de sentença estrangeira 3834/05.6YRCBR, que tinha por objecto a sentença referida em i), que findou com o acórdão do STJ, de 12-2-2008, que se encontra nas folhas 196 a 203, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no qual se proferiu decisão de "absolvição da instância do requerido" em virtude de se ter como "verificada a falta do pressuposto processual «falta de interesse em agir»".


2.º

Os factos que figuram sob a) a n) e p) foram considerados provados com base nos documentos das folhas 11 a 59, 188 e 196 a 203. O facto que se encontra em o) foi dado como provado por acordo das partes quanto a ele.

3.º

Conforme resulta dos factos provados, este é o segundo processo que os requerentes instauram, tendo em vista a revisão da sentença da Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, proferida em Agosto de 1996.

Na primeira acção, por acórdão do STJ, o requerido foi absolvido da instância, tendo-se dito nesse aresto que:

"Não sendo os requerentes cidadãos portugueses, não estão os respectivos nascimentos registados na Ordem Jurídica portuguesa (muito embora, como se salienta no aresto impugnado, à data do nascimento os requerentes fossem portugueses, porque nascidos em território então português e, como assim, registados; com a independência de Angola, tornaram-se cidadãos angolanos e o registo deixou de vingar na Ordem Jurídica portuguesa), não podendo os mesmos ver inscritos no registo português os seus nomes.

Por outra via, por virtude da forma como o registo civil está organizado na Ordem Jurídica portuguesa, nunca os seus nomes poderão figurar no registo do ora recorrente (o averbamento faz-se pela ordem indicada e não por outra, nomeadamente pelo junção de nota ao assento de nascimento dos diversos filhos reconhecidos ou impostos por decisão judicial).

Atenta esta impossibilidade de registo dos requerentes no registo português, nunca eles poderiam fazer valer a decisão dos tribunais angolanos na medida em que os factos sujeitos a registo só podem ser invocados depois de registados.

Parece, pois, que estaríamos caídos num círculo vicioso.

A verdade, porém, é que os requerentes foram reconhecidos como filhos do ora recorrente pela Ordem Jurídica angolana.

Era, pois, perante esta Ordem Jurídica que o ora recorrente deveria fazer valer os seus direitos, impugnado até à última instância a pretensão daqueles.

Não o tendo feito, como não fez, inexoravelmente é tido como seu pai não só na Ordem Jurídica angolana como em todas as outras.

Explicada está, desta forma, a falta de interesse em agir dos recorridos.

Mas não só: também a impossibilidade de eles registarem a paternidade alcançada por via judicial na Ordem Jurídica angolana; e a sua inutilidade na medida em que o são em todas as demais Ordens Jurídicas.

É bem certo que o n.º 1 do artigo 1094.º do CPC estabelece que nenhuma decisão proferida por um tribunal estrangeiro sobre direitos privados tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.

Nesta conformidade, para que um facto de natureza pessoal reconhecido por uma Ordem Jurídica estrangeira seja reconhecido na Ordem Jurídica nacional, é necessária a revisão e confirmação do mesmo.

Exemplo evidente do que acaba de ser dito, encontramo-lo no caso de divórcio de um nacional decretado por um qualquer tribunal estrangeiro: só com a revisão e confirmação é que o mesmo tem eficácia na Ordem Jurídica interna, com a consequência natural de averbamento ao assento de nascimento.

Mas o mesmo não pode ser dito em relação a uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro e relativa a um divórcio de dois estrangeiros: aqui há uma impossibilidade de o registo acolher tal facto.

Dito isto por outras palavras: para a Ordem Jurídica portuguesa, é necessário que o facto de natureza pessoal revista de relevância do ponto de vista registral, sendo irrelevante necessariamente no caso de a sentença se referir a estrangeiros, atento o modo como o registo está organizado, ideia esta já feita notar supra.

Assim se compreende o que Alberto dos Reis deixou dito: "a revisão é sempre necessária para o efeito de a sentença estrangeira servir de base a um registo em qualquer conservatória" (in Processos Especiais, Volume II, pág. 150).

Não faz sentido rever uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro, sabendo de antemão que a mesma não produz qualquer efeito em termos registrais, o que se traduz, ao cabo e ao resto, na falta de interesse em agir para a produção do efeito pretendido pelos recorridos.

O interesse em agir e, como se disse já, um pressuposto processual.

A sua não verificação acarreta a absolvição da instância e é de conhecimento oficioso, sendo certo que o mesmo não foi apreciado concretamente na Relação, facto que não impede que o Supremo conheça a sua falta e retire daí todas as consequências.

Verificada a falta do pressuposto processual "falta de interesse em agir", o Tribunal não pode deixar de absolver o requerido, ora recorrente, da instância, julgando, desta forma, prejudicado tudo o que foi por este avançado nas suas alegações".

Nesta matéria importa, antes de mais, ter presente que o n.º 1 do artigo 7.º do Código do Registo Civil dispõe que "as decisões dos tribunais estrangeiros relativas ao estado ou à capacidade civil dos Portugueses, depois de revistas e confirmadas, são directamente registadas por meio de averbamento aos assentos a que respeitam", acrescentando o seu n.º 2 que "as decisões dos tribunais estrangeiros, referentes ao estado ou à capacidade civil dos estrangeiros, estão nos mesmos termos sujeitas a registo, lavrado por averbamento ou por assento, consoante constem ou não do registo civil português os assentos a que devam ser averbadas".

Assim, "estãosujeitas a registo as decisões de tribunais estrangeiros referentes ao estado ou capacidade civil de estrangeiros sempre que constem do registo civil português os assentos afectados pela decisão"[1]. O Prof. Ferrer Correia defende, até, que não há "qualquer motivo para considerar isentas de necessidade de revisão as decisões relativas ao estado e capacidade de estrangeiros, desde que reconhecidas no respectivo Estado nacional"[2].

Ora, no caso dos autos, verifica-se que actualmente os requerentes, que são cidadãos estrangeiros, estão registados na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa, com os assentos de nascimento que se encontram nas folhas 56 e 58[3].

A sentença revidenda estabelece a paternidade dos requerentes e nos assentos de nascimentos destes, que se encontram no registo civil português, a paternidade está omissa. Face a esta realidade, é por demais evidente o interesse em proceder à revisão daquela decisão, sendo certo que, uma vez revista, nos termos do n.º 2 do artigo 7.º do Código do Registo Civil, a paternidade dos requerentes será averbada nos seus assentos de nascimento que figuram no registo civil português.

Neste contexto, contrariamente ao sustentado pelo requerido[4], presentemente não há falta de interesse em agir[5].


4.º

Segundo o artigo 1096.º do Código de Processo Civil, "para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, excepto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes.

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português".

Como é sabido, na acção de revisão de sentença estrangeira apenas cumpre averiguar se esta está ou não em condições de produzir efeitos como acto jurisdicional na nossa ordem jurídica[6], pois o sistema de revisão assenta no princípio da reapreciação meramente formal; não visa um reexame do mérito da causa.

Para que uma sentença proferida por um tribunal estrangeiro seja confirmada e tenha eficácia em Portugal é necessário que se verifiquem os requisitos previstos nas alíneas a) a f), do artigo 1096.º do Código de Processo Civil. Mas, deverá ter-se presente que os que figuram nas alíneas a) e f) são condições do reconhecimento e os que se encontram nas alíneas b), c), d) e e) constituem fundamentos de impugnação do pedido de reconhecimento, assistindo, no entanto, ao tribunal o poder de negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apurar que falta algum deles[7].

No caso dos autos, a autenticidade do documento de que consta a sentença a rever não oferece dúvidas e a inteligibilidade da decisão é manifesta.

Porém, o requerido defende que não se verificam os pressupostos das alíneas e) e f)[8].

No que se refere à sua citação no processo que correu termos em Luanda, o requerente considera, em síntese, que face à devolução da carta registada com aviso de recepção que foi enviada para o citar, o tribunal angolano, nos termos do artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola, "devia ter ordenado, de novo, a citação por carta registada com aviso de recepção ou, dada a sua primeira frustração, a citação por carta rogatória, assim assegurando, como impõe a lei, que não seria citado por éditos quem podia ser citado pessoalmente"[9].

Provou-se que no processo em que veio a ser proferida a sentença revidenda os requerentes, aí autores, indicaram o requerido, aí réu, como residente na morada onde ele na altura residia (Rojão Grande, Santa Comba Dão, Portugal).

Foi então enviada uma carta registada com aviso de recepção para essa morada, visando a citação do requerido, a qual foi devolvida com a menção de "recusada pelo destinatário 19-1-93". Em face disso, o requerido foi citado editalmente.

O artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola estabelece que:

"1. Se a carta vier devolvida sem indicação alguma ou com a indicação de que não se sabe o paradeiro do destinatário, este é desconhecido ou se recusa a recebê-la ou se o aviso não vier assinado, a secretaria dá-se logo conhecimento do facto ao autor, independentemente de despacho.

2. Sendo o réu português, pode o autor requerer a citação por intermédio de consulado português mais próximo; sendo estrangeiro ou não havendo consulado português a distância não superior a cinquenta quilómetros ou mostrando-se que a citação por intermédio de consulado é inviável, pode requerer a citação por carta rogatória

3. Em lugar da citação pelo consulado ou por carta rogatória, pode o autor requerer a citação edital, devendo então declarar, salva a hipótese do citando se haver recusado a receber a carta, se ele já teve residência em território português e no caso afirmativo, indicar a última, incorrendo na sanção da parte final do n.º 3 do artigo 237.º se fizer falsas declarações. Quando o autor indique a última residência do citando em território português, a citação edital é precedida das diligências a que se refere o n.º 3 do artigo 239.º.

4. …"

Como facilmente se constata, este preceito tem origem no artigo com o mesmo número do Código de Processo Civil português, cuja redacção era, aliás, a que vigorava em Portugal enquanto esteve pendente em Angola o processo onde foi proferida a sentença agora em apreciação[10]. Assim, na leitura da norma, onde figura "português" devemos ler "angolano", sendo que, para os efeitos da mesma, um cidadão português é, evidentemente, estrangeiro.

Então, perante a devolução da carta registada com aviso de recepção, com a menção de "recusada pelo destinatário", tratando-se de um réu estrangeiro, face ao disposto nos n.os 2 e 3 desse artigo 245.º, não era obrigatório o envio de carta rogatória; podia-se, em alternativa, tal como sucedeu, avançar logo para a citação edital. E não há no texto destas normas o menor apoio para, como defende o requerido, perante a devolução da carta com a referida menção se ordenar "de novo, a citação por carta registada com aviso de recepção"[11].

Mas, o requerido entende ainda que não se podia ter ido para a citação edital sem antes se realizarem as diligências referidas no n.º 3 do artigo 239.º do Código de Processo Civil[12].

O n.º 3 deste artigo do Código de Processo Civil de Angola dispunha que "antes de ordenar a citação edital, o juiz assegurar-se-á de que não é conhecida a residência do citando, podendo colher informações das autoridades policiais ou administrativas".

Esta norma, como se estabelece na parte final do n.º 3 do artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola, só tinha que ser observada se o autor tivesse indicado a última residência do citando em território angolano, o que não aconteceu, pois como já se disse os aí autores indicaram como morada do réu uma que se situa em Portugal. Na verdade, as "autoridades policiais ou administrativas" a que refere aquele n.º 3 são, obviamente, autoridades angolanas.

Por outro lado, havendo formalidades a cumprir relativas à publicidade da citação edital, elas têm que se limitar ao território angolano. O juiz de Lunada não tem poderes para mandar praticar tais actos em território português; não tem jurisdição para, por exemplo, ordenar a afixação de editais no tribunal de Santa Comba Dão.

Nestes termos, não se encontra aqui qualquer irregularidade.

No que se refere às alegadas dificuldades de visão do requerido, existentes já em 1993[13], verifica-se que o quadro alegado não corresponde a uma situação de incapacidade de facto. Se, como este diz, só tinha visão num dos olhos e já não conseguia ler e escrever, mesmo assim estava em condições de receber a citação, pois encontrava-se capaz de compreender o acto e de, posteriormente, poder solicitar a colaboração de uma terceira pessoa da sua confiança, nomeadamente um advogado, para, num primeiro momento lhe prestar todos os esclarecimentos que se mostrassem necessários por causa das limitações da sua visão, e numa segunda etapa reagir a essa citação. Se dúvidas houvesse quanto à sua capacidade para esse efeito, é o próprio requerido quem as afastava, pois, como afirma, o seu estado é hoje pior do que o que se registava em 1993, pelo que se na presente acção não suscitou qualquer questão quanto à sua condição para receber a citação, só se pode concluir que naquela primeira data nenhum obstáculo existia a esse nível; se, nesta matéria, em 2011 não houve qualquer impedimento, por maioria de razão, em 1993 também não havia.

Acresce que a citação postal, em relação à qual o requerido invoca dificuldades de visão, não se concretizou.

E ela não se efectuou por ter sido "recusada pelo destinatário", sendo certo que quanto a esse facto, como aliás relativamente a qualquer outro, não há notícia de o requerido, no processo que correu termos em Luanda, ter aí arguido alguma nulidade ou irregularidade processual, pelo que se tem que ter essa recusa como assente.

Por último convém lembrar que, aquando da realização das diligências tendentes a citar o (aí) réu, ainda não estava em vigor o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola[14].

Aqui chegados, conclui-se que o requerido foi "regularmente citado" no processo que correu termos em Luanda, o que significa que, quanto ao disposto na alínea e) do artigo 1096.º do Código de Processo Civil, nada impede a pretendida revisão da sentença.


5.º

O requerido opõe-se, também, à revisão da sentença por entender que isso violaria os princípios da ordem pública internacional do Estado Português, na medida em que os n.os 2 e 3 do artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola estabelece um tratamento desfavorável do cidadão estrangeiro em relação ao angolano, isto por que, havendo consulado a menos de 50 k/m, a citação só se fará através dele se se tratar de um nacional de Angola[15].

São de "ordem pública (ordem pública interna) aquelas normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos"[16]. Pretende-se, por esta via, "evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem socio-jurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la"[17].

"Para determinar se a lex fori deve ou não ser considerada de ordem pública internacional, pode dizer-se que são de ordem pública internacional as leis relativas à existência do Estado e essencialmente divergentes (divergência profunda) da lei estrangeira normalmente competente para regular a respectiva relação jurídica, as quais devem ser leis rigorosamente imperativas e que consagram interesses superiores do Estado. E os interesses que estão aqui em causa são os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa"[18].

Ora, no caso em apreço importa, desde já, salientar que, nos termos do n.º 2 do artigo 245.º do Código de Processo Civil angolano, a alternativa prevista para a citação através de consulado é a realizada por carta rogatória. Este modo de citação, comparado com a efectuado através de consulado, não diminui em nada as garantias do citando. Não se vê o que é que, no que toca a garantias, há a menos na citação por carta rogatória em relação à que se realiza por via consular, pelo que não se encontra aqui um tratamento desfavorável.

Não obstante não haver neste aspecto qualquer prejuízo para o citando, regista-se que o nosso legislador adoptou idêntica solução[19], pois, sem prejuízo do que possa ser convencionado em sede de tratados internacionais, em regra os consulados portugueses só citam os nossos cidadãos[20]. Um consulado português em França não cita um cidadão francês. Pelas mesmas razões, os consulados de Angola em Portugal não tem podres para aqui citar um português[21].

Tendo nesta matéria ambos os ordenamentos jurídicos soluções iguais, é manifesto que, neste capítulo, não há ofensa aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

De qualquer maneira, parece oportuno salientar que a circunstância de os consulados só citarem os seus nacionais justifica-se por só com eles é que mantêm uma relação – de nacionalidade – que legitima a prática desse acto no estrangeiro. Aliás, nestes casos a citação é feita no próprio consulado, com prévia convocação do citando. Portanto, a pequena diferença que aqui se encontra está plenamente justificada pela diferença que existe em razão da nacionalidade, sendo certo que, como se disse, a alternativa da citação por carta rogatória não diminui os direitos do citando.

De referir igualmente que da expressão "em lugar da citação pelo consulado ou por carta rogatória" do n.º 3 do artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola, resulta que a alternativa que aí se estabelece tanto se aplica ao cidadão angolano que reside no estrangeiro como ao não angolano. Pois a citação pelo consulado prevista na primeira parte do n.º 2, e a que o n.º 3 (também) se reporta, refere-se aos angolanos residentes no estrangeiro. Não há, portanto, aqui um tratamento diferenciado. A alternativa da citação edital ali estabelecida aplica-se, quer ao cidadão angolano (que está, evidentemente, fora de Angola), quer aos de outras nacionalidades; o estrangeiro não tem aqui um tratamento diferenciado[22].

Deve ainda destacar-se que a citação do aqui requerido não se processou nos termos do n.º 2 do artigo 245.º do Código de Processo Civil de Angola, o que implica que o aí disposto, mesmo que estabelecesse um injustificado tratamento desigual do angolano em relação ao não angolano, em benefício daquele, nesse cenário, tal desigualdade não teria atingido o requerido.

Por outro lado, a citação edital, por si só, não impede o exercício do contraditório. Como resulta do edital da folha 24, o réu foi citado para contestar. E nada se alega no sentido de que o réu pretendeu praticar no processo um ou mais actos e que, em virtude de ter sido citado editalmente, foi impedido de o fazer.

Não se encontra, assim, qualquer violação aos princípios da ordem pública internacional do Estado Português, o mesmo é dizer que à luz do disposto na alínea f) do artigo 1096.º do Código de Processo Civil, nada obsta a que se proceda à revisão da sentença.


6.º

O requerido opõe-se ainda à pretendida revisão da sentença do tribunal de Luanda com base no disposto no artigo 1100.º n.º 2 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que "se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação pode ainda fundar-se em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa".

Para o efeito afirma que a norma de conflito da lei portuguesa impõe a aplicação do direito português e, por força do disposto nos artigos 1873.º e 1817.º do Código Civil, à data da propositura da acção já se tinha operado a caducidade do direito dos aí autores, pois há muito que estes já não eram menores[23]. E também considera que, não se encontrando provado qualquer facto que possibilite determinar o momento da concepção a que se refere o artigo 1797.º do Código Civil, não se podia concluir que é pai dos requerentes[24]. Finalmente sustenta que estes actuaram com abuso de direito[25], visto que com o seu "comportamento, ao longo dos anos, comportaram-se como se não tivessem os direitos que invocaram na acção de investigação"[26].

O n.º 2 do citado artigo 1100.º tem, entre outros, por pressuposto que a aplicação da lei portuguesa conduziria a um resultado mais favorável do que aquele que se obteve aplicando normas não portuguesas.

Examinada a sentença do tribunal de Luanda constatamos que nela se aplicou o Código da Família angolano e não o Código Civil português.

Importa, então, averiguar se, segundo as regras do nosso ordenamento jurídico, se alcançava um resultado mais favorável para o requerido, sendo que, neste caso, esse resultado mais favorável é o não reconhecimento da paternidade.

Ao realizar essa averiguação há que ter presente que "este fundamento de impugnação do pedido (o do n.º 2 do artigo 1100.º CPC) implica um controlo de mérito em sentido forte. Para verificar este fundamento de impugnação o tribunal tem de examinar os factos e o Direito aplicável. Mas não procede a novo julgamento. Por outro lado, o tribunal não pode admitir novos meios de prova sobre a matéria de facto nem sequer rectificar as conclusões que o tribunal retirou das provas produzidas. O controlo de mérito cinge-se à matéria de Direito"[27]. Isso significa que, para se indagar se o resultado da acção "teria sido mais favorável, se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português", é aos factos dados como provados na sentença revidenda, e não a quaisquer outros, que se aplica o "direito material português". Se o resultado que se quer conhecer é o que se teria obtido "se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português", então é claro que nessa indagação só se podem considerar os factos que o "tribunal estrangeiro" podia ter tido em conta, ou seja os que ele próprio deu como provados; foi apenas a esses factos que o "tribunal estrangeiro" não aplicou o "direito material português".

Ora, na sentença revidenda o que se encontra provado é que:

"1.º- O R. e a mãe dos Autores, durante cerca de oito anos, viveram em comunhão de cama, mesa e habitação, como se marido e mulher fossem; 

2.º- Os Autores nasceram do relacionamento mantido pelo R. e D..., tendo esta guardado completa fidelidade àquele;

3.º- O R. sempre se comportou e considerou como pai dos Autores e estes sempre foram considerados e tratados como filhos do R. pelos familiares, amigos e público em geral".

Se, como figura no facto 3.º, o aqui requerido "sempre[28] se comportou e considerou como pai dos" aqui requerentes (sublinhado nosso) isso quer dizer que, até essa altura, tal tratamento nunca cessou, o que, face ao disposto no artigo 1817.º n.º 4, na sua redacção vigente à data da propositura da acção e da prolação da sentença[29], implica que em qualquer momento pode ser instaurada a acção. A questão da caducidade, independentemente da problemática da constitucionalidade de alguns dos prazos estabelecidos no Código Civil[30], só se coloca a partir do momento em que cessar esse tratamento, o que, no caso dos autos, não aconteceu.

Portanto, à luz da nossa lei, o direito dos aqui requerentes não se encontrava caduco quando instauraram a acção em causa.

Por outro lado, em virtude do que se encontra nesse facto 3.º, é pacífico que há posse de estado, uma vez que a "posse de estado de filho existe quando a pessoa sempre foi reputada e tratada como filho pelos pais e como tal é reconhecida socialmente, especialmente pelas respectivas famílias"[31]. E o artigo 1871.º n.º 1 a) do Código Civil[32], perante este circunstancialismo, independentemente do que também resulta dos factos 1.º e 2.º, confere aos aqui requerentes a presunção de que são filhos do aqui requerido. Beneficiando aqueles de tal presunção, diz-nos o artigo 350.º n.º 1 do Código Civil que escusam "de provar o facto que a ela conduz"; era, então, ao requerido que cabia o ónus de ilidir a presunção, provando que, não obstante a realidade descrita nesse facto n.º 3, ele não é o pai dos requerentes. Ora, essa prova não foi feita.

Nestes termos, apesar de não se encontrar provado qualquer facto que possibilite determinar o momento da concepção (cfr. artigo 1797.º do Código Civil), é certo que, aplicando-se o disposto nos artigos 1871.º n.º 1 a) e 350.º n.º 1 do Código Civil, não podia deixar de se concluir que o requerido é pai dos requerentes.

E, perante a realidade descrita nos factos provados, de que se salienta o já mencionado facto 3.º, os requerentes não agiram com abuso de direito quando, em 1992, instauraram em Luanda a acção que visava o reconhecimento da sua paternidade, pois o abuso de direito verifica-se "quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça"[33] e é por isso que o abuso de direito "deve funcionar como limite ao exercício de direitos"[34]. Considerando que o aqui requerido "sempre se comportou e considerou como pai dos Autores e estes sempre foram considerados e tratados como filhos" dele, nada há a censurar quando estes instauram uma acção, justamente, com a finalidade de se reconhecer juridicamente aquilo que em termos de facto já era reconhecido.

À luz do que se deixa dito, conclui-se que se na sentença revidenda se tivesse "aplicado o direito material português", o resultado da acção não "teria sido mais favorável" para o requerido, o mesmo é dizer que o disposto no n.º 2 do artigo 1100.º do Código de Processo Civil não inviabiliza a revisão da decisão do tribunal de Luanda.


III

Com fundamento no atrás exposto, declara-se revista e confirmada a sentença de 29 de Agosto de 1996 da Sala de Família do Tribunal Provincial de Luanda, Angola, que declarou os requerentes A... e B... filhos do requerido C....

Custas pelo requerido.

Valor da acção: 30.000,01 € (artigos 312.º e 315.º do Código de Processo Civil).

Notifique.

Registe.

Oportunamente comunique ao Registo Civil.

( 06-09-2011)

                                                           (António Beça Pereira)

                                                                (Nunes Ribeiro)

                                                               (Hélder Almeida)


[1] Seabra Lopes, Direito dos Registos e do Notariado, 5.ª Edição, pág. 35 e 36.
[2] Lições de Direito Internacional Privado, Aditamentos, 1975, pág. 95.
[3] Estando estes assentos datados de 4 de Novembro de 2009, logo se conclui que eles ainda não existiam quando correu a primeira acção, visto que o Ac. do STJ é de 12-2-2008.
[4] Cfr. artigos 1.º a 11.º da contestação.
[5] Segundo Manuel de Andrade o interesse em agir, ou "interesse processual" como este Mestre prefere chamar-lhe, "consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo". Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 79.
[6] Cfr. artigos 1094.º n.º 1, 1096.º, 1100.º n.º 1 e 1101.º do Código de Processo Civil.
[7] Cfr. artigo 1101.º do Código de Processo Civil.
[8] Cfr., nomeadamente, os artigos 12.º, 34.º, 41.º, 42.º, 54.º a 56.º, 65.º e 70.º da contestação.
[9] Cfr. artigo 50.º da contestação.
[10] Esta redacção do artigo 245.º do Código de Processo Civil só veio a ser alterada pela reforma introduzida pelos Decretos-Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro e 180/96 de 25 de Setembro, a qual entrou em vigor a 1 de Janeiro de 1997.
[11] Cfr. artigo 50.º da contestação.
[12] Cfr. artigos 43.º a 47.º da contestação.
[13] Cfr. artigo 23.º da contestação.
[14] Este acordo (resolução da AR 11/97 de 4 de Março) só entrou em vigor a 5 de Maio de 2006 (Aviso 582/2006 de 11 de Maio de 2006).
[15] Cfr. artigo 29.º da contestação.
[16] Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 2.ª Edição, pág. 254.
[17] Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado, Vol. I, pág. 405.
[18] Ac. STJ de 26-5-09, Proc. 43/09.9YFLSB www.gde.mj.pt.
[19] O mais correcto é dizer que o legislador angolano é que adoptou uma solução idêntica à do português.
[20] Cfr. o actual n.º 3 do artigo 247.º do nosso Código de Processo Civil e o n.º 2 do artigo 245.º do mesmo diploma que vigorava em Portugal à época da realização, pelo tribunal de Luanda, das diligências tendentes à citação do aqui requerido.
[21] Nem mesmo depois de ter entrado em vigor o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Angola. Cfr. os seus artigos 4.º e 9.º.
[22] Cfr. artigos 33.º e 35.º da contestação.
[23] Cfr. artigos 72.º a 81.º  e 95.º a 99.º da contestação.
[24] Cfr. artigos 104.º a 106.º da contestação.
[25] Cfr. artigos 83.º a 89.º da contestação.
[26] Cfr. artigo 87.º da contestação.
[27] Lima Pinheiro Direito Internacional Privado, Vol. III, pág. 373.
[28] "Sempre" significa "em todo o tempo, em todo o momento, constantemente", Cândido Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Vol. II, 15.ª Edição, pág. 1010.
[29] Trata-se da redacção introduzida pelo Decreto-Lei 496/77 de 25 de Novembro.
[30] Cfr. acórdãos do Trib. Constitucional 23/2006, 626/2009 e 65/2010.
[31] Ana Prata, Dicionário Jurídico, Vol. I, 5.ª Edição, pág. 1075.
[32] Na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 496/77 de 25 de Novembro.
[33] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª Edição, pág. 63.
[34] Ac. STJ de 18-6-02, Jurisprudência Seleccionada de Teoria Geral do Direito Civil I, pág. 321.