Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | BRÍZIDA MARTINS | ||
Descritores: | ABUSO DE CONFIANÇA MOMENTO DA CONSUMAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/23/2005 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE AVEIRO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CRIME | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 205º, N.º 1, DO C. PENAL E 358º DO C. P. PENAL | ||
Sumário: | I- O crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente que receba a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini. II- Tendo efectivamente ocorrido este, a mera vontade de restituir em nada releva para efeitos de determinação de consumação do crime III- Não se traduz num problema de sucessão de leis no tempo o precisar da incriminação (art.º 358º do CPP) no âmbito da mesma lei penal aplicável | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra. * I – Relatório.1.1. Mediante acusação do Ministério Público, o arguido A..., com os demais sinais nos autos, foi submetido a julgamento pela alegada prática dos factos constantes da peça lavrada de fls. 99 a 103, consubstanciadores da autoria material consumada de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 do Código Penal [doravante CP]. B..., com sede na Quinta do Simão, em Esgueira, área da comarca de Aveiro, deduziu pedido de indemnização civil contra o dito arguido, alegando danos patrimoniais sofridos em consequência daquela relatada conduta e o respectivo ressarcimento pelo valor atribuído de € 4.251,51, acrescido dos juros de mora até então vencidos, no montante de € 394,05, bem como dos vincendos até integral pagamento de tal quantia. Durante a audiência a que, oportunamente, se procedeu, a M.ma Juiz convocando o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal [vulgo CPP], proferiu o seguinte despacho (vd. fls. 144/5): “Analisando o requerimento acusatório de fls. 99 e segs., constata-se que ao factos imputados ao arguido terão ocorrido entre o dia 1 de Agosto de 2002 e 19 de Setembro de 2003. De acordo com o mesmo requerimento acusatório, o arguido ter-se-á apoderado de um montante global de € 4.251,51. Tendo em consideração que nesse período temporal a UC era no montante de € 78,81, bem como o disposto no art.º 202.º, alínea a) do C.Penal, constata-se que a conduta descrita no requerimento acusatório integra o disposto no artigo 205.º, n.º 4, alínea a) do C.Penal, já que o referido montante é considerado de valor elevado. Tal alteração da qualificação jurídica implica uma agravação das sanções aplicáveis, pois que tal conduta é punível, em abstracto, com pena de prisão até 5 anos, ou multa até 600 dias. Assim sendo, comunica-se esta alteração não substancial dos factos nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358.º do CPP.” Perante este despacho, o arguido declarou não prescindir do prazo para organizar a defesa, o que se deferiu. 1.2. Na subsequente tramitação dos autos, acabou por vir a ser proferida sentença por meio da qual, e ao que ora releva, se decidiu julgar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente ao indicado pedido de indemnização civil, bem como condenar o arguido pela autoria material consumada do assacado crime de abuso de confiança, mas agora previsto e punido pelo citado artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 3,00. 1.3. Por se não conformar com a parte final do assim decidido, o arguido interpôs o presente recurso, sendo que da motivação oferecida, a propósito, decorre a formulação das conclusões seguintes: 1.3.1. Não resultou provado que da parte do ora recorrente existiu uma intenção de apropriação. Antes, e ao invés, se devia ter considerado na sentença recorrida, que o arguido sempre teve intenção de restituir as quantias de que se apossou. Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, seguiram os autos para audiência, a que se procedeu na estrita observância do artigo 423.º do CPP. Cabe, então, apreciar. * II – Fundamentação de facto. 2.1. A matéria de facto considerada como provada na decisão impugnada foi a seguinte: 2.1.1. O arguido trabalhou para a queixosa B..., pessoa colectiva n.º 500006415, com sede na Quinta do Simão, em Esgueira, área da comarca de Aveiro, de que é legal representante João Gonçalves Figueiredo, desde 01/08/2002 até 19/09/2003, data em que deixou de comparecer no local de trabalho, pelo que foi despedido. 2.1.2. O arguido tinha a categoria profissional de caixeiro-viajante, estando incumbido de contactar e vender a terceiros os produtos comercializados pela entidade patronal, de receber os pagamentos respectivos e de os entregar àquela. * III – Fundamentação de direito.3.1. No caso em apreço, é pacífico que este Tribunal tem poderes de cognição de facto e de direito (cfr. artigo 428.º, n.º 1 do CPP). Com efeito, mostram-se gravadas, magnetofónicamente, e transcritas, as declarações bem como os depoimentos prestados, oralmente, em audiência. Certo é, também, que em caso de recurso relativo à matéria de facto (não vindo requerida renovação da prova, como é o caso), o recorrente tem o ónus de especificar, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP: - Os pontos de facto considerados incorrectamente julgados; - As provas que impõem decisão diversa; - A referência aos suportes técnicos, tendo em vista aquelas especificações. Não olvidamos, obviamente, a jurisprudência do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade do citado preceito, quando interpretado no sentido de que a falta de cumprimento daqueles ónus, nas conclusões da motivação, acarreta a rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tais faltas. In casu, lendo as apresentadas pelo recorrente, facilmente se verifica que não primam por exemplares quanto à matéria. Em todo o caso, lançando-se mão à motivação do recurso, pode aferir-se com suficiência, o objecto do mesmo. Outro tanto não sucede com o recurso relativo à matéria de direito, que se mostra perfeitamente delimitado. Vejamos, pois, de ambos, salvo prejudicialidade do primeiro relativamente ao segundo, o que, adiantamos, se não afigura ser a hipótese dos autos. 3.2. Recurso relativo à matéria de facto. Neste circunspecto, a alegação essencial do recorrente desenvolve-se na forma seguinte: o crime de abuso de confiança é um crime doloso, exigindo como elemento subjectivo o dolo da apropriação; a intenção de restituir exclui essa forma de dolo; na sentença recorrida a M.ma Juiz fundamentou a prova daquele facto nas declarações do arguido; nos depoimentos das testemunhas João Figueiredo, José Russo e António Cardoso, bem como em diversos documentos juntos. Ora, fê-lo indevidamente pois que da prova produzida antes resultou provado (em contrário do decidido) que o arguido sempre teve a intenção de restituir à ofendida as quantias em causa. Quid iuris? A alegação do recorrente, se bem pensamos, reclama que, sumariamente, se faça uma explanação sobre o momento em que se deve considerar consumado o crime de abuso de confiança por cuja prática vinha acusado, bem como sobre aquilo em que se traduz a apreciação da prova pelo Tribunal. O ilícito em causa foi inspirado na doutrina do Prof. Eduardo Correia, in RDES, VII, n.º 1, pág. 62 e Revista de Legislação e Jurisprudência. Um dos elementos que o distingue do furto é a entrega. Para que esta ocorra não é necessário um acto material de entrega do objecto, bastando que o agente se encontre investido num poder sobre o mesmo que lhe dê a possibilidade de o desencaminhar ou dissipar. A consumação consiste na inversão do título de posse, ou seja, quando o agente passa a dispor da coisa animu domini. O crime de abuso de confiança pressupõe uma relação fiduciária, isto é, de confiança. O âmbito de protecção assegurada pelo crime de abuso de confiança reconduz-se, exclusivamente à propriedade, enquanto no furto, além dela, se protege também a incolumidade da posse ou detenção de uma coisa móvel – F. Dias, Comentário, II, pág. 94 –. Pressupõe-se neste ilícito uma entrega lícita de uma coisa móvel por título que não implique transferência de propriedade nem justifique a apropriação, mas antes obrigue à restituição ou a um uso ou fim determinado – E. Correia, cit. RDES, pág. 64 –. Quanto ao elemento entrega escrevia ainda este mesmo Mestre que o abuso de confiança supõe uma entrega e um recebimento lícitos. Efectivamente, sem aquela, estaremos no domínio possível do furto – ob. cit., pág. 62 –. Também, a propósito, escrevia Beleza dos Santos que é na entrega que aparece nítida a diferença entre o furto, a burla e o abuso de confiança. No primeiro, a coisa passa por subtracção, isto é, sem vontade do detentor, para o poder do agente; nos dois últimos, a coisa não é subtraída, mas entregue: é confiada ou posta à disposição do agente do crime, por vontade do detentor. Torna-se essencial que a coisa móvel objecto do crime de abuso de confiança tenha sido previamente entregue, por título não translativo da respectiva propriedade, ao agente do ilícito. Como referem Simas Santos e Leal Henriques, para que se verifique este elemento basta que o agente esteja investido de um poder sobre a coisa que lhe dê a possibilidade de a desencaminhar ou dissipar, não sendo necessário um prévio acto material de entrega do objecto. Na senda desta formulação escreveu-se, v. g., no Ac. do STJ, de 28 de Fevereiro de 1996, in CJ/STJ, Ano IV, Tomo I, pág. 214, que basta que, por mandato ou administração, o agente fique com a faculdade de dispor da coisa ou dissipá-la, como sucede com o gerente de uma cooperativa que tem poder sobre o património desta, sem que tenha havido um acto concreto de entrega. Por seu turno, a aludida actuação do agente animu domini, carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que ele já estar a dispor da coisa como se fosse sua. Neste sentido, escreveu-se no Ac. da R.P., de 24 de Maio de 1995, in CJ, Ano XX, Tomo III, pág. 262, que, continuando a coisa em poder do agente, não tendo por ele sido alienada ou consumida, a simples negativa de restituição ou omissão de emprego para determinado fim não significa, necessariamente, apropriação ilegítima, pois que a inversão do título de posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse. De igual modo refere José António Barreiros, in Crimes contra o Património, pág. 110, que o evidenciar-se que o agente alienou, onerou, destruiu ou danificou deliberadamente a coisa que estava em seu poder são factos objectivos que evidenciam a apropriação relevante para caracterizar o abuso de confiança. Mas, se é certo que a apropriação se caracterizará, as mais das vezes, por uma conduta positiva, como observa este autor, a mera omissão pode consubstanciar já o necessário para a consumação deste tipo de ilícito. Exemplificando, refere o caso de quem, tendo recebido dinheiro para efectuar um pagamento, o não efectiva, consumando-se o crime no momento em que omite o cumprimento a que estava obrigado. Ou, como se anota no Ac. da R.P., de 2 de Abril de 2003, in CJ, Ano XXVIII, Tomo II, pág. 210, partindo da menção feita por F. Dias, in RMP, n.º 79.º, e citando obras estrangeiras, “o elemento material do abuso de confiança encontra-se preenchido a partir do momento em que o proprietário da coisa confiada já não pode exercer os seus direitos sobre ela em resultado duma conduta fraudulenta daquele que a detinha. Na mesma senda, aliás, se escreveu no Ac. do STJ, de 10 de Janeiro de 2002, in CJ/STJ, Ano X, Tomo I, pág. 162: “O crime de abuso de confiança consuma-se quando o agente que receba a coisa móvel por título não translativo de propriedade para lhe dar determinado destino, dela se apropria, passando a agir animo domini, devendo, porém, entender-se que a inversão do título da posse carece de ser demonstrada por actos objectivos, reveladores de que o agente já está a dispor da coisa como se sua fosse”. Um dos temas nucleares do processo penal é o da prova, desdobrável em múltiplas vertentes: em que consiste a prova? A quem incumbe provar? Como é que ela se produz? Até onde deve ser estendida a obrigação de provar? As respostas a estas questões entroncam, necessariamente, em vários preceitos constitucionais, a saber, o da presunção da inocência; da dignidade da pessoa humana; da legalidade; da imediação; da contraditoriedade; da sua livre apreciação. Este último constitui um dever do julgador que axiologicamente se lhe impõe por força do princípio do Estado de Direito e da dignidade da pessoa humana – isto é, emerge dos arts. 1.º e 2.º da CRP -, traduzindo-se na possibilidade de formar uma convicção pessoal de verdade dos facto, convicção essa ainda assim racional, assente em regras de lógica e experiência, objectiva e comunicacional. Precisando tais características, escreveu Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, págs. 278/9: “(…) Para ser racional a convicção tem necessariamente de assentar em provas, e não na corazonada de que falava Vadillo…. Para ser assente em regras de lógica e experiência, tem que ser inexpugnavelmente compatível com os princípios que se reconhece regularem mentalmente a gnose. Daí …que o processo de valoração começa com a própria admissão dos meios de prova, seguindo pela aferição da respectiva credibilidade, e concluindo pela conferência dos respectivos resultados com os demais meios probatórios – resolvendo-se nessa sede qualquer contradição ou incompatibilidade entre os meios em presença. Para ser objectiva, tem de ser desprovida de subjectivismo injustificável, ser assente em elementos reais ou externos ao Tribunal, afastando-se de meros conhecimentos ou presunções privadas do Homem que ocupa a posição de julgador. O objectivismo aqui convocado é aquele, aliás, que justifica a imparcialidade soberana, e elevada, do Juiz, não prejudicada pelo seu poder de investigação ex officio, mas antes por ele potenciada (aqui o entrecruzamento máximo entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio do acusatório). Para ser comunicacional, tem de ser intrinsecamente reflectida e claramente compreensível por terceiros, com o que se procura garantir, ao limite, a inexistência de falhas ou erros de julgamento e se permite que a pena inflingida possa cumprir os fins para que foi criada: a retribuição devida ao criminoso, pelo mal do crime, a prevenção espacial e a prevenção geral. Nisto se consubstancia a essência da motivação. Ou seja, é genética e inquebrantável a ligação entre o princípio da livre apreciação da prova, o princípio do Estado de Direito, o princípio da presunção da inocência, o princípio in dúbio pro reo, o princípio da continuidade da audiência e da imediação da prova, o dever de fundamentação das decisões penais, e o direito ao recurso. (…)” A consagração do apontado princípio da livre apreciação da prova consta do artigo 127.º do CPP, que recolhe na fórmula utilizada as ideias mestras atrás resumidas e que a jurisprudência e doutrina devem ir densificando em permanente devir. As provas acolhidas na decisão recorrida para fundamentarem a convicção da julgadora eram todas elas objectivas e legalmente admissíveis, como decorre dos artigos 125.º e segs. do CPP. Através da fundamentação inserta na decisão recorrida mostram-se avaliadas com recurso às imprescindíveis regras da lógica e de experiência comum. Na verdade, como decorre das declarações e dos depoimentos acolhidos, bem como dos documentos juntos aos autos e aí acolhidos, o arguido, depois de admitido para trabalhar para a queixosa e tendo também como função receber dos clientes pagamentos e de os entregar àquela, a partir de certa altura, apesar de os receber, passou a não entregar o correspectivo valor, detendo-o indevidamente até ao momento muito posterior em que acabou por “transigir” com a ofendida. Logo na altura em que recebeu dos clientes as diversas quantias parcelares mencionadas, que de imediato devia restituir à entidade laboral, por virtude do vínculo que à mesma o ligava, e omitiu tal dever, passando a detê-las animo domini se consumou o ilícito em causa. A mera (ou, concedendo-se, mesmo que real) vontade de restituição em nada relevava para efeitos de determinação da consumação do crime, entretanto efectivamente ocorrida. Como assim não se mostra alheia às aludidas regras da livre apreciação da prova a convicção adquirida pela M.ma Juiz a quo, que cumpre acatar. Vale por dizer que improcede o recurso respeitante à matéria de facto. 3.3. Recurso relativo à matéria de direito. Neste circunspecto, como decorre da motivação e conclusões apresentadas pelo recorrente, a sua argumentação desenvolve-se nos termos seguintes: a acusação imputava-lhe o cometimento de um crime de abuso de confiança, previsto e punido pelo artigo 205.º, n.º 1 do CP. Em audiência, a M.ma Juiz comunicou-lhe que a subsunção dos factos devia ser antes feita pelos n.ºs 1 e 4 de tal normativo, o que se traduz na possível imposição de uma medida da pena mais gravosa, como, na verdade, acabou por suceder. Ora, terminou, postergou-se, assim, o princípio que impõe a aplicação da lei mais favorável ao arguido. O raciocínio do recorrente assenta, manifestamente, num equívoco. É que verdadeiramente o sucedido nos autos não se traduz num problema de sucessão de leis no tempo, tal como prevenido no artigo 2.º, n.º 4 do CP. Antes o que se verificou foi de, no âmbito da mesma lei penal aplicável (redacção do artigo 205.º citado, resultante da revisão efectuada do Código Penal através do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), precisar a incriminação tal como legalmente devida (consideração da circunstância “valor elevado” de acordo como o valor da unidade de conta “no momento da prática do facto”, como o fez o despacho exarado em audiência, e não de acordo como o valor entretanto decorrente da sua alteração e já vigente na data da acusação e de julgamento). O que, sem mais, se traduz na improcedência desta parte do recurso. Nenhum outro fundamento vindo invocado pelo recorrente, nem nenhuma circunstância de conhecimento oficioso se nos afigurando existir, é tempo de concluir. * IV – Decisão.São termos em que, perante todo o exposto, se nega provimento ao recurso interposto, e, consequentemente, se mantém, na íntegra, a decisão recorrida. Custas pelo recorrente (sem prejuízo da consideração do apoio judiciário concedido), fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs. Notifique. * Coimbra, 23 de Novembro de 2005 |