Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2256/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACÇÃO REAL
IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
TESTEMUNHAS
DOCUMENTOS
INEXISTÊNCIA DA GRAVAÇÃO DA PROVA
INSPECÇÃO JUDICIAL
INEXISTÊNCIA DO AUTO DE REGISTO DOS ELEMENTOS ÚTEIS
NULIDADE SANADA
Data do Acordão: 10/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.ºS 201º, 205º, Nº1, 615º E 712º, Nº 1, AL. A), TODOS DO C.P.C.
Sumário: I – O Tribunal da Relação não pode modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artº 712º do C.P.Civil, se os depoimentos das testemunhas não foram gravados e o único documento identificado pelos recorrentes é uma fotografia do local da questão que não elucida, minimamente, sobre os factos constantes da Base Instrutória.
II – O artº 615º do C.P.Civil dispõe que da inspecção judicial é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa. A falta de tal registo pode constituir o cometimento de uma nulidade com previsão no artº 201º, por se tratar de uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa. No entanto, tal nulidade encontra-se sanada, face ao disposto no artº 205º, nº 1, se os réus, bem como o respectivo mandatário, estiveram presentes na altura em que teve lugar a inspecção e não arguíram, nesse momento, a respectiva irregularidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:



A... e mulher, B..., intentaram, em 12/09/2003, pelo Tribunal da comarca de Nelas, acção declarativa com processo comum sumário, contra C... e mulher, D..., alegando, em síntese, que os réus procederam ao desaterro do terreno que é pertença deles, mas que retiraram os marcos que dividiam as duas propriedades e invadiram uma faixa de terreno que é dos autores, com cerca de trinta metros quadrados.
Terminam pedindo que, na procedência da acção, sejam os réus condenados: (a) a reconhecerem que o prédio identificado em 1º) da petição inicial pertence aos autores; (b) a demolirem e a removerem do prédio dos AA. os alicerces e o muro de pedra que ai edificaram; (c) a reporem o prédio dos AA. tal como se encontrava antes do desaterro, colocando até à estrema toda a terra removida e os três marcos arrancados; e, (d) a pagarem aos AA. a quantia de 1.500,00€ referentes à indemnização pelos danos não patrimoniais advindos em consequência dos seus actos.
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Os Réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção, visto que quando procederam ao desaterro do seu prédio, fizeram-no na parte que lhes pertencia, sem invadir o terreno dos autores, reivindicando estes a posse de uma área de terreno que nunca foi propriedade dos mesmos.
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Foi proferido o despacho saneador e organizada a selecção dos factos considerados assentes e dos que constituem a base instrutória, com reclamação dos autores, deferida em parte.
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Efectuado o julgamento - com deslocação do Tribunal ao local da questão, onde foram inquiridas três das testemunhas -, e decidida a matéria de facto controvertida, foi proferida a sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e condenou os réus a reconhecer os autores como proprietários do imóvel melhor identificado no artº 1º d p.i., que engloba a faixa de terreno melhor descrita na resposta aos quesitos 10º e 11º da B.I., a demolirem e a removerem do prédio dos autores os alicerces e muro de pedra ali edificados e a reporem o prédio dos autores tal como anteriormente se encontrava antes do desaterro, colocando até à estrema toda a terra removida e os três marcos arrancados.
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Na 1º instância foi dado como provado o seguinte:
Factos Assentes:
A) - Aos autores pertence o prédio rústico de pinhal, sito á Caramelada, no limite da freguesia de Aguieira, concelho de Nelas, com 406,83 m2, a confrontar em termos matriciais no Norte com Idalécio Figueiredo e outro, nascente com a estrada, sul com o R. Ramiro Lopes Correia e do Poente com Adelino Marques Novo, inscrito na matriz sobre o art. 3562.
B) - Tal prédio foi adquirido pelos autores a António dos Santos Galante e Maria da Apresentação dos Santos.
C) - Prédio que se encontra registado a favor dos autores na Conservatória do Registo Predial de Nelas pela inscrição n.º 00993/2003.07.11.
D) - Os autores por si, vêm, há mais de vinte anos, cortando pinheiros, apanhando o mato, pagando os impostos do prédio referido em A).
E) - À vista de toda a gente, na convicção de que o prédio lhes pertence, sem a oposição de ninguém e na convicção que a coisa é sua.
F) - Aos réus pertence o prédio rústico com 1312 m2. sito no local da Caramelada, em parte confinante com o dos AA, do lado nascente e a confrontar do norte com caminho, do nascente com os autores e Adelino


Marques Novo, do Sul com a estrada e a Poente com António R. Pereira, prédio inscrito sob o artigo 3519, adquirido em 21.06.01 a Maria Adelina Ferreira Amorim dos Santos.
G) - O prédio dos autores a partir da actual estrada tem uma inclinação ascendente até ao topo norte, onde faz estrema com o Pinhal de Adelino Marques Novo.
H) - Configuração que também correspondia ao prédio dos réus.
I) - Há cerca de dois anos, os réus procederam ao desaterro daquele terreno para construir uma moradia.
J) - Após o desaterro, o terreno ficou ao mesmo nível da estrada e a um nível inferior do prédio dos autores.
K) - No dia 10 de Julho de 2003, os réus abriram uma vala para os alicerces do muro.
L) - Os autores, pelas 10h30m do dia 11 de Julho, procederam ao embargo extrajudicial dessa parte da obra.
M) - Embargo que foi judicialmente ratificado a 18 de Julho de 2003.

Base Instrutória:
1º a 4º - Os antecessores dos autores vêm há mais de 20 anos a praticar os actos referidos em C), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de que a coisa é sua.
5º e 6º - O prédio dos autores fazia parte de um outro situado a Sul, o qual se encontra separado pela estrada que liga Carvalhal Redondo à povoação, dividido em dois.
- Pertencia, no seu todo, a António dos Santos Galante e Maria Apresentação dos Santos.
9º - O prédio dos autores sempre alinhou, na sua estrema poente desde a actual estrada em direcção à antiga com o prédio do Adelino Novo.
10º e 11º - Com o desaterro efectuado, os réus entraram cerca de 40 centímetros, junto à estrada e cerca de trinta centímetros junto ao tojeiro, numa extensão de cerca de quinze metros contados desde a estrada até ao mesmo tojeiro, no terreno dos autores, pelo lado Poente.


12º e 13º - O prédio dos autores encontrava-se delimitado do dos réus com três marcos em pedra, um junto à estrada, um junto ao tojeiro e um no meio deles.
15º e 16º - Após o embargo judicialmente ratificado a 18 de Julho de 2003, os réus procederam ao enchimento dos alicerces e à construção do muro com uma fiada de pedra.
17º, 19º e 20º - Os três marcos referidos em 12º foram colocados há cerca de um ano, na presença da autora mulher com a ajuda de Eduardo de Sousa.
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Por discordarem da sentença, interpuseram os réus recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Através do presente recurso, pretendem os recorrentes impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto e a consequente aplicação do direito a esses factos e a decisão proferida.
2- O processo contém todos os elementos de prova para que V. Exªs possam alterar a decisão do tribunal de 1ª Instância sobre a matéria de facto nos termos do artº 712º nº 1 do C.P.C.
3- O Mmº Juiz da 1ª Instância não valorizou devidamente os documentos juntos aos autos, nem apreciou correctamente os depoimentos produzidos em audiência de julgamento e desse modo respondeu de forma incorrecta aos quesitos constantes da base Instrutória, nomeadamente 10 a 13.
4- Na 1ª instância não foram registados em acta os elementos que o Tribunal colheu na diligência, nem quaisquer dados, nomeadamente distâncias e medições que depois se vêem erradamente a fazer constar dos factos provados e da decisão.
5- Assim, não podia o Tribunal em desrespeito por todo o rigor exigível numa decisão judicial concluir por medições concretas de centímetros constantes da sentença, e que nunca foram provados nem poderiam sê-lo.
6- Estas medições que se fazem constar do processo, têm forçosamente de resultar de provas periciais ou de inspecção ao local com instrumentos de medição rigorosos.
7- Pois que não é do depoimento de testemunhas que o Tribunal pode com isenção e rigor concluir pelas medições e factos que faz constar da decisão.
8- Aliás, da fundamentação da resposta à matéria de facto o Mmº Juiz quanto ao quesito


10º a 13º refere elementos vagos de medição, como “situou um marco um pouco para poente do tojeiro …” e “o segundo marco foi por si colocado “a dois palmos para poente do pinheiro que se encontra derrubado junto à estrada…”.
9- E sobretudo tal versão dos factos, como consta dos autos, foi colocada em causa por outras testemunhas que afirmaram que ficou terreno entre o desaterro e os marcos.
Certo é que os recorrentes compraram o seu lote de terreno à Srª D. Maria Adelina Ferreira Amorim Santos.
10- O referido prédio encontra-se devidamente delimitado em toda a sua extensão, quer pela estrada que liga a povoação de Nelas à povoação de Aguieira e por marcos.
11- Os referidos marcos foram colocados pela testemunha Eduardo Sousa, na presença da aqui alegada, um junto a um tojeiro, outro a dois palmos de um pinheiro que se encontra tombado no terreno dos apelados.
12- Os apelantes ao procederem ao desaterro do terreno, não invadiram o terreno dos apelados, deixando cerca de 25 cm de terreno por desaterrar que é propriedade dos mesmos.
13- Dos documentos indicados nos factos dados como assentes e dos restantes documentos juntos aos autos, conjugados com os depoimentos das testemunhas Eduardo Sousa e Maria da Apresentação dos Santos, não resulta que os alegantes ao procederem ao desaterro do terreno tenham ocupado; ilegitimamente a faixa de terreno descrita na resposta aos quesitos 10º e 11º da base Instrutória.
14- Com base em tais elementos e nos termos pormenorizadamente indicados nestas alegações deviam ter sido dados como não provados os quesitos 10 e 11.
O Mmº Juiz a quo violou as regras da apreciação da prova constantes nos artºs 341º, 362º, 390º e 369º do C.C. conjugadas com as regras da experiência comum.
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Os autores contra-alegaram, defendendo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).

Começam os recorrentes por alegar que o processo contém todos os elementos de prova para que possa ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos termos do nº 1 do artº 712º, e que o Mmº Juiz não valorizou devidamente os documentos juntos aos autos, nem apreciou correctamente os depoimentos produzidos em audiência e desse modo respondeu de forma incorrecta aos quesitos constantes da base instrutória, nomeadamente 10 a 13.
A alteração, pela Relação, da decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto só pode verificar-se se ocorrer alguma das situações contempladas nas três alíneas do nº 1 do artº 712º.
E isto é assim porque no nosso direito processual civil se acha consagrado o princípio da prova livre (artº 655º), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e responde de acordo com a convicção que tenha formado acerca de cada facto, salvo se a lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial, pois neste caso esta não pode ser dispensada.
De harmonia com esse princípio – que se contrapõe ao princípio da prova legal – as provas são apreciadas livremente, sem nenhuma escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram realmente no espírito do julgador acerca da existência de cada facto, só cedendo às situações de prova legal que se verifiquem, especialmente nos casos de prova por confissão, por documentos - por documentos autênticos e por certos documentos particulares quanto à materialidade das sua declarações – e por presunções legais (artºs 350º, nº 1, 358º, 371º e 376º do Código Civil).
Daí que, em regra, a Relação não possa alterar as respostas aos quesitos, a não ser, excepcionalmente, nas situações acima descritas.

No caso sub iudice, os recorrentes não indicam em qual das alíneas do nº 1 do artº 712º se apoiam para pretenderem a alteração das respostas aos quesitos 10 a


13º da Base Instrutória, mas só podem querer referir-se à al. a), visto dizerem que o processo contém todos os elementos de prova para que possa ser alterada a matéria de facto em causa, e, de qualquer forma, por o disposto nas outras duas alíneas não poder ter aplicação ao presente caso.
Verifica-se da acta de julgamento que foram ouvidas diversas testemunhas (Adelino Marques Novo, Eduardo Costa Marques Sousa, Abel Ramos Pereira, José Rodrigues Marques, António dos Santos Pereira e Joaquim dos Santos Correia) à matéria desses pontos 10º a 13º, sem que, no entanto, tenham sido gravados os respectivos depoimentos.
Ora, a al. a) exige que constem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto em causa, o que não se verifica no presente caso, uma vez que, como se viu, os depoimentos das testemunhas não foram gravados, não sendo possível apreciar, aqui e agora, o que cada testemunha disse em relação aos factos constantes dos pontos 10º a 13º.
Não tendo acesso ao conteúdo desses depoimentos, não é possível alterar as respostas a esses quesitos unicamente com base na prova documental.
O único documento identificado pelos recorrentes na sua alegação é o que foi junto como doc. nº 1 junto com a oposição ao pedido de ratificação de embargo de obra nova (processo apenso).
Trata-se de uma fotografia do local da questão que, por si só, não permite alterar a decisão sobre a matéria de facto, já que não nos elucida, minimamente, sobre os factos constantes dos pontos 10º a 13º da Base Instrutória.
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Insurgem-se os recorrentes contra o facto de não terem sido registados em acta os elementos que o Tribunal colheu na inspecção ao local, nem quaisquer dados, nomeadamente distâncias e medições, que depois se vêem erradamente a fazer constar dos factos provados e da decisão.
O artº 615º dispõe que da inspecção judicial é lavrado auto em que se registem todos os elementos úteis para o exame e decisão da causa.
A falta de tal registo pode constituir o cometimento de uma nulidade com previsão no artº 201º, por se tratar de uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa.

No presente caso, o Tribunal deslocou-se ao local da questão, mas não foi registado qualquer dos elementos a que alude o artº 615º citado, pelo que terá sido cometida uma nulidade.
Tal nulidade, no entanto, encontra-se sanada.
Com efeito, o artº 205º, que regula a regra geral sobre o prazo de arguição das nulidades secundárias (onde se incluem as previstas no artº 201º), dispõe no seu nº 1 que se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar.
Ora, no presente caso, tendo os réus, bem como o respectivo mandatário, estado presentes na altura em que teve lugar a inspecção judicial (v. acta de fls. 86), deveriam ter arguido, nesse momento, a respectiva irregularidade.
Não o tendo feito, tem a nulidade que se considerar sanada, como se referiu.
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Finalmente, carece de qualquer fundamento a afirmação dos recorrentes de que as medições que se fazem constar do processo têm forçosamente de resultar de provas periciais ou de inspecção ao local com instrumentos de medição rigorosos, pois que não é do depoimento de testemunhas que o Tribunal pode com isenção e rigor concluir pelas medições e factos que faz constar da decisão.
Com efeito, como já dissemos, não conhecemos o conteúdo dos depoimentos das testemunhas, em virtude de não ter sido requerida a gravação dos mesmos, pelo que não se pode estar a aferir da sua possibilidade ou impossibilidade para concluir pelas medições constantes da decisão.
O mesmo se diga da inspecção ao local, em relação à qual, como se viu, não houve registo de quaisquer elementos.
No que diz respeito à prova pericial, convém apenas referir que ela poderia ter sido requerida pelos réus, ora, recorrentes. O que não se verificou (!).
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Mantêm-se, assim, as respostas dadas àqueles pontos da matéria de facto (nºs 10º a 13º), sem qualquer alteração.
Com a matéria de facto dada como provada, e atrás discriminada, julgou a sentença a acção parcialmente procedente nos termos também já atrás referidos.


Confirmamos inteiramente a sentença recorrida, remetendo para os fundamentos da respectiva decisão, fazendo uso da faculdade conferida pelo nº 5 do artº 713º.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes.