Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3361/18.1T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO
BOA FÉ
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E DE PROVA
ANULAÇÃO DO CONTRATO
Data do Acordão: 11/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 24º E 25º DO RJCS (DEC.LEI Nº 72/2008, DE 16/04).
Sumário: 1. - O dever pré-contratual de declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado/aderente – previsto no art.º 24.º do RJCS, aprovado pelo Dec.Lei n.º 72/2008, de 16-04 (e anteriormente no art.º 429.º do CCom.) –, incide sobre todas as circunstâncias conhecidas do declarante (e só essas), desde que relevantes para a apreciação do risco.

2. - Cabe ao réu, defendendo-se, por via de exceção, mediante a invocação do incumprimento daquele dever e consequente invalidade (no caso, anulabilidade) do contrato de seguro, demonstrar tal incumprimento, impendendo sobre si o ónus da alegação e prova dos respetivos factos concludentes.

3. - No quadro da declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado (ou pessoa segura/aderente), na fase pré-contratual tendente à celebração do contrato de seguro, assume papel essencial o princípio da boa-fé, desde logo por o contrato de seguro ser tradicionalmente considerado como contrato uberrima bona fides.

4. - O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé.

5. - Se a pessoa segura, em sede de declaração inicial do risco, ao responder ao questionário médico integrante da proposta de adesão ao seguro, bem sabia que tinha sido submetida a transplante renal (com inerente cirurgia), por força de patologia que lhe deu causa, tal como sabia que tinha de responder de forma exata e completa quanto a essa matéria, declarou, ao invés, estar em bom estado de saúde, não sofrer de qualquer doença, nem ter sido submetida a qualquer intervenção cirúrgica, omitindo aquele transplante, incorreu, por isso, em atuação dolosa, tendente a enganar a contraparte, quanto a uma circunstância pessoal relevante para apreciação do risco pela seguradora.

6. - Estando provado que tal seguradora, se soubesse da existência desse prévio transplante renal, não teria aceite subscrever o contrato de seguro, verificada está a existência de omissão dolosa, praticada por aquela pessoa segura/declarante, viciante da vontade de contratar da contraparte (perturbando a sua avaliação sobre a dimensão/intensidade do risco), a justificar a anulação do contrato de seguro ao abrigo do disposto no art.º 25.º do RJCS.

7. - Não estando o contrato cumprido – por a seguradora não ter realizado a prestação contratualmente definida a seu cargo –, pode a anulabilidade ser arguida a todo o tempo, designadamente por via de exceção na ação tendente ao cumprimento.

Decisão Texto Integral:







Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1.ª – M...,

2.ª – F..., e

3.ª – J..., todas com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra

A..., Portugal, Companhia de Seguros de Vida, S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo que:

a) Se declare «válido o contrato de seguro de vida celebrado entre a 1.ª autora, M (…) e o seu marido, J..., com a ré (…), em vigor desde 20/12/2009, a que correspondem as apólices n.º ...»;

condenando-se a R.

b) «a pagar o capital em dívida ao Banco P..., S. A.; capital esse que à data do óbito de J..., ocorrido em 31/01/2017, era de 32.082,56 € (…)»;

c) «a pagar o remanescente do capital em dívida de 32.917,44 € às autoras, cônjuge e descendentes da pessoa segura e já falecida, J...»;

d) «no pagamento às autoras dos juros moratórios vencidos e vincendos sobre o capital seguro até efetivo e integral pagamento, à taxa legal de 4%, perfazendo os vencidos» até à da entrada da petição inicial em juízo «3.732,60€».

Para tanto alegou, em síntese, que:

- no quadro de um crédito bancário à habitação, em que a 1.ª A. e o seu falecido marido, J..., eram mutuários, estes celebraram um contrato de seguro de vida, em 06/09/2000, em que o banco credor assumiu a qualidade de beneficiário irrevogável, seguro esse que foi substituído por outro em 20/12/2009, o qual viria a ser acionado por morte do aludido J..., vítima de doença terminal (tumor no pâncreas), cujo óbito ocorreu em 31/01/2017;

- embora tenham cumprido a obrigação de pagamento do prémio de seguro e o falecimento se tenha devido a causas naturais, a R. não pagou ao banco beneficiário, como devia, o valor do capital ainda em dívida no âmbito do contrato de mútuo, garantido, além do mais, pelo seguro de vida;

- nem pagou às AA. o remanescente do capital que tal seguro cobria.

Contestando, a R. defendeu-se:

- alegando que a sua falta de pagamento foi justificada pela circunstância de se dever considerar nulo o contrato de seguro de vida, no que à pessoa do falecido J... respeita, por este ter omitido intencionalmente, aquando da sua adesão ao contrato de seguro, na respetiva proposta de seguro, informações relevantes quanto ao seu estado de saúde (ocultou que já tinha sido submetido a cirurgia e que era um doente transplantado), as quais, se tivessem então sido conhecidas pela R., a levariam a não celebrar o contrato de seguro (cfr. art.ºs 25.º a 27.º da contestação);

- assim pugnando pela improcedência da ação, com a absolvição da demandada dos pedidos formulados.

No exercício do direito ao contraditório, as AA. negaram que o falecido J... tivesse omitido intencionalmente qualquer informação, impugnando a proposta de seguro, que não teria sido preenchida por aquele no que se reporta ao questionário clínico, sendo que não foram dele conhecidas partes daquela proposta de seguro.

Na sequência, a R. pediu a condenação das AA., como litigantes de má-fé, em multa e indemnização, invocando conhecerem estas a falsidade do que alegaram quanto ao preenchimento e conhecimento integral da proposta de seguro.

Proferido despacho saneador e definidos o objeto do litígio e os temas da prova, procedeu-se depois à realização da audiência final, a que se seguiu a sentença, esta com dispositivo absolutório: foi julgada improcedente a ação, com total absolvição da R. dos pedidos ([1]).

De tal sentença absolutória vieram as AA. interpor o presente recurso, apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões ([2]):

...

A R. contra-alegou, pronunciando-se sobre as questões suscitadas em sede de recurso e pugnando pela total improcedência do mesmo, com a decorrente confirmação da decisão impugnada.

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais, como é consabido, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]) ([4]) –, importa saber, no essencial ([5]):

a) Se está consubstanciada causa de nulidade da sentença – o invocado vício de excesso de pronúncia (cfr. conclusões 29.ª e segs. das Apelantes);

b) Se ocorre contradição entre factos dados como provados e erro de julgamento quanto ao ponto 44 do factualismo julgado provado, este a dever ser julgado como não provado (conclusão 10.ª);

c) Se não foi invocada a exceção da anulabilidade do contrato de seguro ou se esta deve improceder, por não demonstrada (conclusões 4.ª e segs.);

d) Se ocorre sanação do vício ou caducidade do direito a invocar tal anulabilidade (conclusões 20.ª e segs.).

III – Fundamentação

         A) Nulidade da sentença

         Do excesso de pronúncia

         Invocam as Recorrentes que a sentença enferma de vício de nulidade, por ter incorrido em excesso de pronúncia ao avançar para o conhecimento da matéria – exceção – da anulabilidade do contrato de seguro, matéria essa que, não sendo de conhecimento oficioso, não foi, a seu ver, suscitada/alegada pela R./Recorrida.

         A contraparte, em resposta, pugna pela improcedência desta argumentação das Apelantes, invocando ter alegado a matéria em causa, de molde a ter deixado, na sua contestação, deduzida adequadamente essa exceção.

         Vejamos.

         No campo das invalidades do negócio jurídico, a anulabilidade tem de ser invocada por quem tiver legitimidade para tal – as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece –, não constituindo, pois, matéria de conhecimento oficioso (art.º 287.º, n.º 1, do CCiv.), ao contrário da nulidade, que é de conhecimento oficioso (art.º 286.º do CCiv.).

         Assim, enquanto matéria de exceção que aproveita ao réu, cabe a este alegar e provar a factualidade tendente a demonstrar tal vício de anulabilidade (art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.).

Dúvidas não restam, pois, de que cabia à aqui R., no caso dos autos, a alegação e prova quanto à matéria de anulabilidade do discutido contrato de seguro/adesão, para que, nessa senda, o Tribunal pudesse conhecer da questão.

Com efeito, nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., é nula a sentença quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

E, como também é consabido, são as conclusões formuladas pela parte recorrente, com reporte à decisão impugnada, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, devendo, por outro lado, ser respeitada a regra do duplo grau de jurisdição, também em matéria de direito, de molde a não prejudicar o direito ao recurso que assiste às partes, não cabendo ao Tribunal de recurso decidir questões que o Tribunal recorrido não apreciou (criar direito novo), mas sim sindicar a bondade do que haja sido decidido na instância inferior (apreciar o julgado por outro Tribunal).
          Ainda por outro lado, pode ocorrer que as partes, não concordando com o sentido da decisão proferida, venham invocar omissão ou excesso de pronúncia, a falta de decisão devida ou o extravasar para decisão indevida, para obterem um diverso veredito, uma inversão da decisão judicial proferida.
          Em tais casos, porém, o que pode ocorrer é uma divergência face ao sentido decisório adotado, o que se prende já, não com os vícios formais da decisão (nulidades da sentença), mas com o mérito da mesma, com o fundo da questão, o que já encerrará matéria de direito, prendendo-se com um eventual erro de julgamento de direito.
          Acresce ainda que, como vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência, somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no aludido preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([6]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([7]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([8]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([9]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.
          No caso dos autos, a sentença impugnada decidiu no sentido da procedência do vício de anulabilidade, considerando o Tribunal recorrido que «a R. se pretende aproveitar» desse vício «ao recusar o pagamento, como o fez até à presente data», sendo ainda que «Legítima e tempestivamente o fez» e «só na pendência desta ação que a R. pode confirmar que, à data em que subscreveu a proposta de Adesão, J... era um doente renal, já transplantado» (cfr. fls. 323 do processo físico).
          Assim, importa saber se a R. excecionou, ou não, tal invalidade na sua contestação.
          Ora, percorrido esse articulado, logo se constata que tal R. alegou que:
          - as AA. estavam obrigadas a fornecer os elementos clínicos, nomeadamente relatório médico com o historial da doença que vitimou J... (art.º 4.º);
          - quanto à causa da morte, constava do certificado de óbito que o referido J... tinha feito um transplante renal, bem como adenocarcinoma do pâncreas metastizado (art.º 6.º);
          - aquele J... preencheu o questionário médico, que instruiu a proposta de seguro, relativamente ao seu estado de saúde, formulando todas as respostas no sentido de, não só gozar de bom estado de saúde, como ainda não sofrer de qualquer doença, nunca ter sido submetido a nenhuma intervenção cirúrgica, nem nunca tal lhe ter sido recomendado, nunca ter sofrido acidente, nem ser portador de incapacidade profissional superior a 15%, com declaração de ter respondido de forma exata e completa aos quesitos e ter sido exato em todas as circunstâncias que conhecia e que são significativas para a apreciação do risco pela seguradora  (art.ºs 7.º a 9.º);
          - foi perante isso que a R. analisou o risco e aceitou a proposta de adesão (art.º 10.º), no pressuposto de serem verdadeiras e completas as respostas ao questionário (art.º 11.º);
          - por isso, a vontade da seguradora encontra-se viciada, visto ter aceitado cobrir um risco de ocorrência de sinistro com base numa avaliação de circunstâncias desconforme com a realidade (art.º 12.º);
          - as AA. não apresentaram, apesar de tal lhes ter sido solicitado, a documentação referente ao historial do transplante renal, sendo essencial conhecer a data do início dos sintomas e os tratamentos referentes às patologias que constam do certificado de óbito (adenocarcinoma do pâncreas e transplante renal), sabido que o contrato de seguro teve início em novembro de 2009, termos em que, caso o transplante renal seja anterior, a situação é de falsas declarações, o que só não foi apurado por falta de colaboração das AA., conduzindo à nulidade do contrato, pelo que a R. não está obrigada a pagar o capital seguro (art.ºs 13.º a 26.º).
          Ora, perante este conjunto alegatório, é manifesto que a R., na sua contestação – no âmbito próprio –, invocou a invalidade do contrato de seguro/adesão, por via de falsas declarações em sede de declaração inicial do risco, de molde a desobrigar-se da sua prestação contratualmente prevista, não sendo relevante que tenha qualificado o vício como nulidade (art.º 26.º aludido) em vez de anulabilidade, posto se tratar de matéria de qualificação jurídica ([10]), em cujo âmbito o Tribunal goza, como é por demais consabido, de inteira liberdade (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.).
          Em suma, deve ter-se por deduzida, no tempo processual próprio, a dita exceção da invalidade (no caso, trata-se de anulabilidade) do contrato/adesão, com base no que a R. pediu a improcedência da ação e a sua decorrente absolvição do peticionado.
          Donde que, tendo o Julgador conhecido dessa matéria de exceção, não ocorra excesso de pronúncia, mas, ao invés, dever de conhecimento/pronúncia sobre tal questão jurídica, com a extração das legais consequências para o desfecho do litígio.
          Com o que, inexistindo a invocada nulidade da sentença, logo improcedem as conclusões das Apelantes em contrário.
          B) Da contradição e erro de julgamento em matéria de facto

Importa agora verificar se, como defendem as AA./Recorrentes, ocorre contradição entre factos dados como provados e, bem assim, erro de julgamento quanto ao ponto 44 julgado provado, este a dever ser dado como não provado pela Relação.

...

Donde que inexista, salvo o devido respeito, a invocada contradição entre factos dados como provados.

E, em acréscimo, tendo em conta que as impugnantes não invocam quaisquer concretas provas produzidas ([11]) no sentido de se dar como não provado o ponto/facto 44 – apenas aludem a uma tácita aceitação, pela R./seguradora, do risco previsto no contrato de seguro, conclusão que retiram das circunstâncias de tal entidade seguradora ter aceitado subscrever o contrato e receber os prémios de seguro «ao longo de vários anos», sendo, porém, patente que um tal raciocínio e o decorrente enunciado conclusivo nunca poderiam caber na esfera do julgamento da matéria de facto, apenas podendo ser objeto de ponderação no âmbito da fundamentação jurídica da sentença, por já se situarem no campo da matéria de direito, mediante a extração de conteúdo conclusivo perante as apresentadas premissas referentes à aceitação de subscrição do contrato e ao recebimento dos prémios durante vários anos –, resta considerar, nesta Relação, que não são descortináveis quaisquer motivos, de ordem probatória, para a inversão da decisão proferida pela 1.ª instância ([12]).

Improcede, pois, a empreendida impugnação da decisão relativa à matéria de facto, termos em que permanece inalterada – e, assim, tornada definitiva – a factualidade constante da parte fáctica da sentença em crise (a julgada provada e a não provada), sendo só esse, por isso, o factualismo a atender para decisão do recurso.

C) Matéria de facto

Na 1.ª instância foi julgada – e assim subsiste – como provada a seguinte factualidade:

...

D) Substância jurídica do recurso

1. - Da (in)validade do contrato

Esgrimem, como visto, as AA./Apelantes nem sequer ter sido invocada a exceção da anulabilidade do contrato de seguro, faltando factos de suporte, e, em todo o caso, dever esta improceder, por não demonstrada (conclusões 4.ª e segs.).

Porém, já se constatou – ao apreciar a questão da nulidade da sentença – que tal matéria de exceção foi oportunamente deduzida, pelo que restará conhecer do mérito da decisão do Tribunal recorrido ao considerar a exceção procedente.

Antes, porém, diga-se apenas, perante o exposto sob a conclusão 12.ª das Apelantes, que foram alegados factos de suporte com vista à caraterização das invocadas omissões (ou falsas declarações) em sede de declaração inicial do risco, motivo pelo qual tal factualidade, sem atropelo ao princípio do dispositivo (cfr. art.º 5.º, n.º 1, do NCPCiv., quanto ao ónus de alegação dos factos essenciais à procedência da exceção invocada, em conjugação com o disposto no art.º 342.º, n.º 2, do CCiv.), foi vertida na parte fáctica da sentença.

Basta atentar no alegado sob os art.ºs 7.º a 12.º da contestação – referentes às respostas dadas por J... no «questionário médico a instruir a proposta de seguro» e decorrente avaliação do risco pela seguradora –, em confronto com o vertido nos art.ºs 6.º, 17.º a 19.º e 25.º a 27.º, todos do mesmo articulado, quanto à existência de anterior transplante renal, ocultado à seguradora ao tempo da sua vinculação contratual e até ao óbito ocorrido, viciando a vontade desta em sede de tal vinculação («não teria aceite subscrever o contrato de seguro»).

Passando, então, à matéria/questão da (im)procedência da exceção da anulabilidade do contrato de seguro, verifica-se que as Recorrentes começam por invocar, se bem se entende, que não ficou demonstrado que as declarações prestadas em sede de declaração inicial do risco tenham influído na decisão da R. de se vincular no contrato de seguro celebrado, sendo que – acrescentam – a seguradora já conhecia então a situação clínica de J..., incluindo o transplante renal a que fora submetido (conclusão 5.ª).

Que dizer?

Atendendo ao quadro fáctico que persiste provado, forçoso é ponderar que aquele J... não declarou a existência de qualquer patologia, designadamente o transplante renal, no questionário médico integrante da proposta de adesão ao contrato de seguro (factos 37 e 38), embora tenha afirmado que respondeu de forma exata e completa sobre todas as circunstâncias que conhecia e que eram significativas para a apreciação do risco pela seguradora (facto 39), sendo, porém, que bem sabia já ter então sido submetido a um transplante renal (facto 36).

Perante isto, é notória a omissão, em sede de declaração inicial do risco, de tal transplante renal e inerente patologia (aquela que obrigou ao transplante), bem como a respetiva cirurgia.

Mas será essa omissão relevante para a determinação do risco pela seguradora e decisão (da R.) de vinculação contratual?

Obviamente, a resposta só poderá ser afirmativa (quanto à pessoa segura entretanto falecida, só esta estando em causa), posto vir também provado que:

- tendo por base o teor da proposta de adesão ao seguro, as informações e as declarações dela constantes, nomeadamente as respostas dos proponentes ao questionário médico, a R. analisou o risco e aceitou a proposta de adesão, sem necessidade de exames médicos, tendo em conta os critérios internos de conjugação de idade e capital em risco (facto 40);

- a aceitação da proposta de adesão ao seguro por parte da R. teve como pressuposto que a A. M... e J... responderam com verdade ao questionário médico, prestaram declarações verdadeiras e que tais declarações não padeciam de incorreções ou omissões (facto 41);

- caso tivesse conhecimento de que J... já tinha sido sujeito a um transplante renal, a R./seguradora, segundo a sua prática comercial, não teria aceite subscrever o contrato de seguro (facto 44).

Assim, é patente, à luz do alegado pela R. e provado nos autos, que esta não se vincularia contratualmente, quanto à pessoa segura J..., se soubesse, ao tempo da celebração do contrato, que essa pessoa já tinha sido sujeita a um transplante renal, factualismo que não lhe foi comunicado/declarado – antes tendo sido ocultado – pelo respetivo proponente.

É nesse âmbito que a R./Apelante pugna pela invalidade do aludido contrato de seguro face ao disposto no dito RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro), o aqui aplicável, como acertadamente se refere na sentença recorrida – vista a data de celebração do contrato em discussão (finais do ano de 2009), sendo aquele RJCS que então se encontrava já em vigor (início de vigência em 01 de janeiro de 2009), por ter substituído o disposto nos art.ºs 425.º e segs., mormente 429.º, do CCom. –, onde deverá ser procurada a solução para a questão da invocada (in)validade do contrato.

Tratando-se, assim, de ação com essencial vertente condenatória, destinada à efetivação da prestação pecuniária, prevista no contrato, a cargo da seguradora em caso de ocorrência do evento morte de uma das pessoas seguras (tudo como contratualmente estipulado), é patente que às AA./Apelantes competia, na economia desta ação, alegar e provar um conjunto de factos geradores desse dever de prestar, traduzidos, designadamente, no facto/sinistro e na operância e valor da respetiva cobertura, decorrente esta do contrato de seguro celebrado/adesão, pois que se trata aqui de elementos constitutivos do direito pretendido (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), enquanto à contraparte (a R./Apelada), que se defendeu por via de exceção, invocando, enquanto seguradora, a invalidade do contrato de seguro, cabia o ónus de alegar e provar a factualidade necessária a demonstrar essa matéria de exceção, como já explicitado.

Na sentença recorrida considerou-se haver conduta dolosa do mencionado J... («intencionalmente enganadora», posto que este «tinha plena noção do seu estado de saúde»), concluindo-se pela demonstração da invocada causa de anulabilidade do contrato, sendo, então, este visto como inválido, com o que não se conformam as demandantes.

Argumentou assim o Tribunal a quo:

«(…) a realização de transplante se situa no pico das capacidades médicas e curativas com tamanha importância e risco de falibilidade associado, que jamais poderia ser considerado pelo segurado como uma questão de somenos importância, como as gripes sazonais, ou as alergias, que, como tal pudesse considerar-se irrelevante ao ponto de não merecer referência.

Por outro lado, prova-se também que a aceitação do contrato de seguro foi efetuada no pressuposto de que as declarações e informações prestadas por J... não padeciam de incorreções ou omissões que, no futuro, pudessem originar a resolução dos contratos ou cessação das garantias conferidas e foi com base na proposta de adesão que a Ré pôde avaliar e aceitar os riscos garantidos (…).

Além disso, prova-se que a omissão daquelas informações impediu a Ré de efetuar uma avaliação dos riscos de acordo com a sua existência vindo a tomar conhecimento daquela patologia após a participação do sinistro. E, que o quadro clínico pré-existente de J... se tivesse sido declarado, teria condicionado a aceitação do risco (…) por forma a que a R. não teria celebrado o contrato de seguro.

Somos, por isso, forçados a concluir que a omissão declarativa associada à intencional resposta negativa à questão de saber se tinha ou não sido sujeito a qualquer intervenção cirúrgica não se pode considerar senão intencionalmente enganadora, com o objetivo de levar a R. a outorgar o contrato de seguros de vida, para a concessão do crédito.» (itálico aditado).

As AA. invocam, em contrário, que a R. já tinha conhecimento ao tempo da apresentação da proposta de contrato de seguro – o tempo da declaração inicial do risco – da situação clínica de J..., incluindo a sua submissão a transplante renal. Porém, tal não resultou provado, antes se provando o contrário, isto é, que a R., se tivesse obtido o conhecimento dessa submissão, não teria sequer aceite vincular-se no contrato (facto 44).

Depois, as Apelantes esgrimem que ocorreu aceitação tácita (e assunção) dos riscos inerentes ao contrato de seguro, por a R., tendo conhecimento da situação clínica daquele J..., ter, ainda assim, optado por subscrever o contrato e receber continuadamente/reiteradamente os prémios de seguro.

Todavia, como se torna evidente, falha o pressuposto deste raciocínio: não se demonstra – reitera-se –, de modo algum, que a R. tivesse conhecimento, ao tempo da celebração do contrato, da situação clínica de J..., visto aquele lhe ter ocultado os respetivos factos (patologia e transplante renal).

Ora, é sabido que a declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado (ou, como no caso, pessoa segura/aderente), na fase pré-contratual tendente à celebração do contrato de seguro em geral, está detalhadamente regulada nos art.ºs 24.º e segs. do dito RJCS, prescrevendo os art.ºs 25.º e 26.º, respetivamente, quanto a omissões ou inexatidões dolosas ou negligentes, nesse âmbito, daquele tomador do seguro ([13]), tratando-se, pois, de um campo onde assume papel essencial o princípio da boa-fé, desde logo por o contrato de seguro ser tradicionalmente considerado como contrato uberrima bona fides ([14]).

O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabili­dade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé, que pode o próprio legislador plasmar nos preceitos da lei positiva.

Um exemplo deste tipo de concretização da boa-fé por via legis­lativa é atualmente constituído pela disciplina legal atinente à fase pré-contratual em matéria de contrato de seguro, salientando-se agora, para além de deveres do segurador, os deveres do tomador do seguro ou segu­rado, deveres estes, de proteção, de lealdade e informação, de cujo encadea­mento decorre que são estabelecidos com base no princípio da boa-fé, estando pressupostas exigências de transparência e de justiça contratual, bem como de proteção da confiança das partes, ou uma linha de rumo baseada na dita regra de conduta a fixar padrões ou critérios de razoabilidade, probidade e equilíbrio de atuação, no sentido do comportamento correto, honesto e leal, a dever ser adotado pelas partes, no âmbito das suas negociações, em termos de reciprocidade, o que é tanto mais expressivo quanto é certo que tal complexo de deveres recíprocos é imposto numa fase em que nem sequer há contrato algum ([15]).

Ora, não existindo ainda um vínculo contratual – pode nem resultar das negociações qualquer contrato –, torna-se notório que aqueles deveres pré-contratuais recíprocos assentam no princípio da boa-fé, o qual lhes confere a necessária legitimação e sustentação.

E, em alguma assimetria com o tradicional enfatizar da declaração inicial do risco (dever do tomador do seguro ou segurado) como o aspeto caraterizador do contrato de seguro como uberrima fides, o legislador vem perspetivando na atualidade – atento também ao fenómeno da contratação em massa, com recurso a contratos de adesão – como essenciais os deveres do segurador ([16]).

No caso dos autos, não sendo invocado qualquer incumprimento de deveres pré-contratuais do segurador, nem qualquer ambiguidade ou obscuridade do questionário médico integrante da proposta de adesão ao seguro, nada há a conhecer nessa matéria, pressupondo-se tais deveres como observados.

A questão coloca-se quanto aos deveres pré-contratuais do outro lado da relação, sabido estabelecer a lei um exigente dever de informação para com o segurador, concernente à declaração inicial do risco, cujo incumprimento estará sujeito, tendo em conta a gravidade dos casos, às consequências invalidantes previstas nas normas já aludidas do RJCS.

Ocorrendo aqui um dever pré-contratual de apresentação da informação relevante, o de dar a conhecer, prestando as necessárias informações, ao segurador todos os factos relevantes para a sua delimitação e apreciação do risco, é líquido que, in casu, o obrigado a tal informação bem sabia que tinha sido submetido ao dito transplante renal (com correspondente cirurgia), por força de patologia que lhe deu causa, tal como sabia que tinha de responder – de acordo, aliás, com o por si declarado na proposta de seguro – de forma exata e completa quanto a essa matéria, o que, porém, não fez, posto ter declarado estar em bom estado de saúde, não sofrer de qualquer doença, nem ter sido submetido a qualquer intervenção cirúrgica.

Omitiu, pois, uma circunstância muito relevante para a apreciação do risco pela seguradora ([17]), circunstância que, à partida, sempre conduziria a um agravamento do risco e que poderia levar a contraparte a recusar vincular-se no contrato.

Com efeito, vem mesmo provado que, se tivesse sido informada dessa circunstância omitida, a R. não teria aceite subscrever o contrato de seguro/adesão relativamente à pessoa segura J...

A atuação desta pessoa só pode ter-se por intencional – com “intencionalidade enganadora”, como referido na sentença –, posto tratar-se de factos pessoais da mesma, que, por isso, não poderia ignorar, e que optou por omitir, de forma dolosa, já que lhe eram desfavoráveis no confronto com a contraparte no âmbito específico do contrato de seguro em causa.

Para tais casos dispõe o art.º 25.º do RJCS que «o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro» (n.º 1), não estando o segurador «obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso (…), seguindo-se o regime geral da anulabilidade» (n.º 3), tendo o segurador «direito ao prémio devido» (n.º 4).

Donde que nada haja a censurar, salvo o devido respeito por diverso entendimento, ao decidido na sentença quanto à existência deste vício de invalidade (anulabilidade).

2. - Da sanação do vício e caducidade do direito a invocar a anulabilidade

Mas invocam as Apelantes que ocorreu sanação através de confirmação, nos termos do disposto no art.º 288.º do CCiv..

Ora, a confirmação somente é eficaz se ocorrer posteriormente à cessação do vício que serve de fundamento à anulabilidade e o seu autor tiver conhecimento desse vício e do direito que lhe assiste à anulação (n.º 2 daquele art.º 288.º).

E já se viu que ficou por provar que a R./seguradora soubesse da situação clínica daquela pessoa segura (J...), bem como da sua anterior submissão a transplante renal, e, ainda assim, tivesse optado por celebrar o contrato e receber, nesse contexto, os respetivos prémios. O que se prova é, inversamente, que não sabia.

Por isso, tem de improceder o acervo conclusivo das Recorrentes em contrário.

Igualmente improcede a invocação de que não se trata de circunstância suscetível de influenciar a decisão de contratar da aqui R./Apelada. Ao contrário, os factos 40, 41 e 44 mostram claramente que se trata de circunstância decisivamente influente na decisão de contratar da seguradora, posto que esta, se não fosse a omissão ocorrida, não aceitaria vincular-se contratualmente quanto àquela pessoa segura.

Também, notoriamente, não pode concluir-se do recebimento dos prémios de seguro, no pressuposto da validade do contrato, que a R./seguradora quis com isso aceitar esse contrato independentemente dos vícios de que pudesse sofrer, designadamente a aludida omissão intencional quanto ao anterior transplante renal ([18]).

Inexiste, pois, sanação do vício.

Mas haverá caducidade?

As AA./Apelantes invocam, nesta órbita, a data do óbito e do conhecimento do óbito pela seguradora.

Porém, importa atender, para este efeito, é à data em que a R. teve conhecimento do vício, pois só a partir de então poderia considerar-se ocorrer «cessação do vício que lhe serve de fundamento», começando a correr o prazo de um ano a que alude o preceito do n.º 1 do art.º 287.º do CCiv..

Ora, não bastava ter ficado a saber, pelo certificado de óbito, que a pessoa segura havia sido sujeita a transplante renal. Logicamente, importava saber quando teve lugar esse transplante: se antes ou depois da vinculação contratual subsistente, visto que se fosse de ocorrência posterior à celebração do contrato/adesão em vigor não tinha a virtualidade de o fazer viciar de invalidade, ao invés do que seria de concluir em caso de anterioridade.

E é sabido que a R. solicitou à A. M... os elementos clínicos necessários sobre a matéria, ao que esta não correspondeu (cfr. factos 42 e 43 provados).

Donde que não ocorresse ainda a «cessação do vício» (por desconhecimento pela seguradora do quadro fáctico global relevante, referente a circunstâncias pessoais de uma das pessoas seguras), a que alude o n.º 1 do art.º 287.º do CCiv., fazendo cair a argumentação das Recorrentes a respeito.

Mas, em qualquer caso, parece claro que o negócio não estava cumprido – desde logo, por a R. não ter efetuado a prestação contratualmente prevista a seu cargo (aquela que as AA. peticionam na ação) –, pelo que, à luz do disposto no n.º 2 do mesmo art.º 287.º, podia a anulabilidade ser arguida sem dependência de prazo, por via de ação ou de exceção.

A invocação/arguição/declaração da anulabilidade (as Recorrentes aludem a falta de comunicação da invalidade pela seguradora) ocorreu no âmbito dos autos, em sede de contestação – assim levada aquela ao conhecimento da contraparte –, sendo ainda tempestiva, desde logo por, como visto, não ter então ocorrido cessação do vício, nem estar, por outro lado, o negócio ainda cumprido.

Em suma, improcede a apelação, nada havendo a censurar à decisão em crise, a dever, por isso, ser integralmente mantida.


***

IV – Síntese conclusiva (art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.):

1. - O dever pré-contratual de declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado/aderente – previsto no art.º 24.º do RJCS, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04 (e anteriormente no art.º 429.º do CCom.) –, incide sobre todas as circunstâncias conhecidas do declarante (e só essas), desde que relevantes para a apreciação do risco.

2. - Cabe ao réu, defendendo-se, por via de exceção, mediante a invocação do incumprimento daquele dever e consequente invalidade (no caso, anulabilidade) do contrato de seguro, demonstrar tal incumprimento, impendendo sobre si o ónus da alegação e prova dos respetivos factos concludentes.

3. - No quadro da declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado (ou pessoa segura/aderente), na fase pré-contratual tendente à celebração do contrato de seguro, assume papel essencial o princípio da boa-fé, desde logo por o contrato de seguro ser tradicionalmente considerado como contrato uberrima bona fides.

4. - O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé.

5. - Se a pessoa segura, em sede de declaração inicial do risco, ao responder ao questionário médico integrante da proposta de adesão ao seguro, bem sabia que tinha sido submetida a transplante renal (com inerente cirurgia), por força de patologia que lhe deu causa, tal como sabia que tinha de responder de forma exata e completa quanto a essa matéria, declarou, ao invés, estar em bom estado de saúde, não sofrer de qualquer doença, nem ter sido submetida a qualquer intervenção cirúrgica, omitindo aquele transplante, incorreu, por isso, em atuação dolosa, tendente a enganar a contraparte, quanto a uma circunstância pessoal relevante para apreciação do risco pela seguradora.

6. - Estando provado que tal seguradora, se soubesse da existência desse prévio transplante renal, não teria aceite subscrever o contrato de seguro, verificada está a existência de omissão dolosa, praticada por aquela pessoa segura/declarante, viciante da vontade de contratar da contraparte (perturbando a sua avaliação sobre a dimensão/intensidade do risco), a justificar a anulação do contrato de seguro ao abrigo do disposto no art.º 25.º do RJCS.

7. - Não estando o contrato cumprido – por a seguradora não ter realizado a prestação contratualmente definida a seu cargo –, pode a anulabilidade ser arguida a todo o tempo, designadamente por via de exceção na ação tendente ao cumprimento.
V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pelas AA./Recorrentes (vencidas).

Coimbra, 23/11/2021

Escrito e revisto pelo Relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (Relator)

Luís Cravo

Fernando Monteiro


([1]) Tendo ainda sido julgado improcedente o incidente de litigância de má-fé, com decorrente absolvição das AA. nesse âmbito.
([2]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Cfr. art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, e 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06.
([5]) Segue-se uma ordem lógica e jurídico-sistemática de conhecimento das questões relevantes, independentemente da ordem por que suscitadas pelas Recorrentes, assim se começando pelos vícios formais da sentença (nulidade da mesma, tal como invocada), para depois se passar à parte fáctica da decisão (contradição e erro de julgamento em matéria de facto) e, finalmente, à matéria de direito substantivo (questões relativas à fundamentação jurídica da decisão sob impugnação).
([6]) Cfr. “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 9.ª ed., p. 57.
([7]) Vide “Código de Processo Civil, Anotado”, vol. V, p. 143.
([8]) In “Dos Recursos”, Quid Júris, p. 117.

([9]) Cfr. “Manual de Processo Civil”, p. 686.
([10]) Note-se que o próprio legislador, no art.º 429.º do CCom., se reportava à «nulidade» do contrato de seguro, embora a jurisprudência largamente maioritária entendesse que se tratava de uma mera anulabilidade, solução esta que viria a ser adotada no art.º 25.º do RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04, com entrada em vigor em 01/01/2009), o qual se reporta explicitamente à anulabilidade – cfr., sobre o tema, por todos, José Vítor dos Santos Amaral, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-fé, Almedina, Coimbra, 2017, p. 152 e seg..
([11]) Que devessem, uma vez analisadas pelo Tribunal ad quem, merecer uma leitura diversa da adotado pelo Julgador a quo.
([12]) Obviamente, no plano probatório, não poderia concluir-se que a R., por ter aceitado subscrever o contrato de seguro e, em decorrência, receber reiteradamente os respetivos prémios, sabia, sem mais, da situação clínica integral do falecido, mormente da sua submissão a transplante renal, e apesar disso aceitou vincular-se no contrato, assumindo a (agravada) intensidade do risco decorrente dessa situação clínica que não foi declarada em sede de declaração inicial do risco.
([13]) Estava antes prevista, quanto a “inexactidões” ou “reticências”, no art.º 429.º do CCom..
([14]) Cfr. José Vítor dos Santos Amaral, op cit., ps. 45 e segs. e, por outro lado, ps. 175 e segs., já quanto aos deveres pré-contratuais das partes na negociação, estabelecendo o legislador um «exaustivo dever de informação para com o segurador, concernente à declaração inicial do risco, cujo incumprimento está sujeito, consoante a gravidade dos casos, às consequências previstas nos arts. 25.º (inadimplemento doloso) e 26.º (inadimplemento negligente) do mesmo RJCS», sendo ainda certo que ocorre «aqui um “dever pré-contratual qualificado de apresentação da informação relevante”, o de dar a conhecer, prestando as necessárias informações, ao segurador todos os factos relevantes para a sua delimitação e apreciação do risco – a lei alude a declarar, com exatidão, “todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco” (art. 24.º, n.º 1, do RJCS)». Daí a conclusão no sentido de «a conduta do obrigado à declaração informativa estar sujeita a diversos parâmetros, num encadeamento de deveres de completude, de verdade e de razoabilidade e proporcionalidade, do que o próprio segurador (um especialista) deve, por sua vez, prestar esclarecimento prévio ao tomador do seguro ou segurado (tipicamente um não especialista)», tudo, obviamente, «sem perder de vista, por outro lado, o questionário facultado para o efeito por tal segurador». Sendo ainda de notar, quanto ao dever de completude, que «devem ser declaradas ao segurador todas as circunstâncias conhecidas do tomador do seguro declarante que devam (por este) ser tidas por significativas para a delimitação e apreciação do risco, tenham ou não menção no questionário» (p. 176). Já quanto ao dever de verdade, «determina a lei que a obrigação de declaração seja cumprida com exatidão, pelo que as informações prestadas terão de ser exatas, verdadeiras, conformes com a realidade dos factos», posto que, «faltando o declarante ao dever de verdade, configura-se uma inexatidão da informação prestada, que, se reportada a factos relevantes, por significativos para a delimitação do risco, consubstanciará, por isso, incumprimento do dever de informação, o qual pode, como dito, ser doloso ou negligente» (p. 182).

([15]) Cfr. os art.ºs 18.º a 23.º, quanto aos deveres do segurador, e 24.º a 26.º, quanto aos deveres do tomador do seguro ou segu­rado, todos do aludido RJCS.

([16]) Tal prioridade aos deveres de informação e esclarecimento pré-contra­tuais do segurador (cfr. art.ºs citados do RJCS) visa a proteção da parte considerada débil, no intuito de conferir o equilíbrio mínimo imprescindível a uma adequada rela­ção negocial, à partida desigual, por forma a que resultem criadas as condi­ções negociais que permitam uma justa composição, em moldes substanciais, dos interesses das partes, em caso de celebração do contrato, não só, pois, em termos de consciente e esclarecida celebração do mesmo (exigências de transparência no relacionamento negocial), como ainda de permitir alcançar o fim contratual visado por ambas as partes.
([17]) É sabido que um “enxerto”, no âmbito médico/cirúrgico, se traduz no transplante de um órgão ou de segmento orgânico ou tecidual caraterizado pela falta de vínculo anatómico ao organismo, havendo, quando se trata de transplante de um órgão, um sujeito dador e um sujeito recetor (quando o transplante se faz entre indivíduos da mesma espécie, fala-se em homoenxerto), podendo haver fenómenos de rejeição, devidos a reações imunológicas [a rejeição deve-se a eventos imunológicos do recetor provocados por antigénios do órgão transplantado (por exemplo, um rim)], as quais são tanto menos marcadas quanto mais próxima for a relação biológica entre dador e recetor, sendo que continua por se descobrir uma maneira eficaz de anular o mecanismo de rejeição do homoenxerto – cfr. Verbo Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 7, Editorial Verbo, Lisboa, ps. 624 e seg..
No mesmo âmbito e com pertinência, a Associação Portuguesa de Urologia – cfr. estudo de Pedro Tiago Coelho Nunes, intitulado «Transplante Renal», disponível em  https://www.apurologia.pt/publico/frameset.htm?https://www.apurologia.pt/publico/transplante_renal.htm – esclarece que:
- «O transplante renal é um método de substituição da função renal, estando indicada a sua realização quando existe insuficiência renal, ou seja quando os rins deixam de realizar de uma forma adequada as suas normais funções. As doenças que causam insuficiência renal são variadas, sendo as mais comuns a diabetes, a hipertensão arterial, malformações, infecções e inflamações dos rins. Os doentes com um só rim mas que funcione bem não necessitam de tratamentos para substituir a função renal. As opções de substituição da função renal são o transplante renal e a hemodiálise e suas variantes (como por exemplo a diálise peritoneal). // O transplante de um rim permite que este desempenhe de uma forma satisfatória a função antes realizada pelos dois rins do doente»;
- «Só os doentes com insuficiência renal terminal necessitam ser transplantados»;
- «Os órgãos a ser transplantados – designados por enxertos – têm origem em dadores, que podem ser cadáveres (…) ou dadores vivos (…)»;
- «a colheita do rim de um dador vivo é uma cirurgia em que o rim é removido em simultâneo ou pouco tempo antes da operação no receptor»;
- «durante o transplante os rins do receptor são mantidos, a não ser que exista algum motivo que obrigue a que estes sejam removidos. O enxerto é posicionado habitualmente na fossa ilíaca (parte baixa e lateral do abdómen) e ligado à artéria, veia e bexiga do receptor»;
- «Além dos riscos inerentes a qualquer cirurgia (anestésicos, hemorragia) o transplante renal é susceptível de complicações específicas. O rim pode não funcionar de imediato e ser necessário diálise durante alguns dias»;
- «a maior parte dos rins transplantados têm um período de funcionamento findo o qual entram eles próprios em falência. Em média um rim transplantado funciona adequadamente cerca de 15 anos. Após a falência o doente retorna à diálise e pode eventualmente ser novamente candidato a transplante»;
- «A percentagem de rins transplantados que funcionam adequadamente é de 89% aos 12 meses, 78% aos 5 anos e 51% aos 15 anos e a percentagem de doentes transplantados renais que se encontram vivos é de 96,2% aos 12 meses, 91,2% aos 5 anos e 75% aos 15 anos após o transplante (dados de todos os transplantes realizados em Portugal até ao final de 2008)».
([18]) Note-se que o dito art.º 25.º, n.º 4, do RJCS explicita que «O segurador tem direito ao prémio devido (…)».