Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
77/09.3T2ALB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
LEI INTERPRETATIVA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALBERGARIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.12, 13, 483, 493 CC, LEI Nº 24/2007 DE 18/7
Sumário: 1. Antes da Lei 24/2007 de 18.07 defendia-se, a par de mais duas teses e quiçá maioritariamente, que a responsabilidade dos concessionários de auto-estradas era de cariz extracontratual, respondendo estes pelos sinistro e danos provocados por estas ou nestas, com culpa presumida, ao abrigo do artº 493º nº1 do CC.

2. A referida Lei veio, no seu artº 12º, assumir-se como lei interpretativa daquela questão ainda existente, optando definitivamente pela natureza extracontratual e pela consagração da presunção de culpa, pelo que, nos termos dos artºs 12º nº2, 2ª parte e 13º nº1 do CC, tem eficácia retroactiva aplicando-se a factos e situações anteriores à sua entrada em vigor ainda subsistentes.

3. A elisão de tal presunção apenas emerge se a concessionária provar, não apenas procedimentos genéricos, rotineiros e por si predeterminados, mas factos concretos que, atentos os circunstancialismos e especificidades do caso, permitam a conclusão que a sua actuação foi idónea e adequada a evitar a causa objectiva do sinistro, nada mais assim lhe sendo razoavelmente exigível, ou que este se verificou por caso fortuito ou de força maior, ou de acto de terceiro que não estava em condições de impedir.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA.

1.

C (…), CRL, Associação de Utilidade Pública, intentou contra B (…) – AUTO ESTRADAS DE PORTUGAL e COMPANHIA DE SEGUROS (…), acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo sumario, para efectivação da Responsabilidade Civil por Dano Emergente de Acidente de Viação.

Pediu:

A condenação das Rés, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 5.445,29, bem como os juros legais vincendos desde a citação até efectivo pagamento, sobre a quantia de € 5.137,33, à taxa legal de 4% ao ano.

Alegou:

Que enquanto circulava na A1, sentido sul/norte, no dia 13 de Julho de 2007, deparou-se com uma roda que estava na via, não tendo tido tempo para se desviar, atenta a forma repentina e inesperada com que surgiu, pelo que embateu nela, tendo o seu veiculo ficado danificado.

Que a Ré B... é responsável pelo ressarcimento dos danos verificados, na medida em que deve assegurar permanentemente a desobstrução da via por forma a garantir a normal circulação

Contestaram as Rés.

A Companhia de Seguros (…) admitiu, em tese, a assunção de responsabilidade pelo pagamento das indemnizações devidas a terceiros, na sua qualidade de concessionária de exploração da auto estrada A1, por parte da B (…) no quadro e condições do contrato de seguro com esta firmado.

Relativamente à responsabilidade da B (…) alega que a responsabilidade da concessionária da auto-estrada insere-se no âmbito da responsabilidade extracontratual subjectiva, pelo que incumbia à autora o ónus de alegar, e provar, factos geradores da obrigação da segurada da aqui contestante em indemnizar, o que não fez, não assacando à B (…)qualquer facto concreto gerador de responsabilidade.

Termina pela improcedência da acção.

A B( …) disse que durante os patrulhamentos não foi detectado nem avistado qualquer anomalia na área concessionada. Mais refere que o oficial de mecânica da brisa que seguia à frente dos veículos embatidos, ao se aperceber do obstáculo – pneu completo – na via, de imediato parou para o ir retirar, sendo que nesse momento o SJ e o ZQ embateram no obstáculo. Assim, se o sinistro ocorreu ficou a dever-se aos seus condutores.

Mais alega que a responsabilidade da B (…) a existir é uma responsabilidade extracontratual subjectiva, e por isso incumbe ao lesado provar a culpa da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa

Por ultimo invoca a inconstitucionalidade da Lei 24/2007 de 18 de Julho.

Conclui pela improcedência da acção.

2.

Prosseguiu o processo os seus legais termos, tendo, a final, sido proferida sentença que:

Julgou procedente a acção e, consequentemente:

- Condenou as Rés, solidariamente a pagar à A. a quantia de € 3.587,33, (três mil, quinhentos e oitenta e sete euros e trinta e três sentimos) relativos aos danos patrimoniais sofridos, acrescidos de juros de mora a contar da citação, até efectivo e integral pagamento.

-Condenou a Ré B (…) a pagar à A. a quantia de € 1.550 (mil, quinhentos e cinquenta euros), relativos à privação do uso, acrescido de juros de mora a contar da citação, até efectivo e integral pagamento.

3.

Inconformadas recorreram ambas as demandadas.

3.1.

Conclusões da ré (…).

(…)

3.2.

Conclusões da B (…)


(…)

Contra-alegou a recorrida pugnando pela manutenção do decidido.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs 684º e 685º-A do CPC - de que o presente caso não constitui excepção - o teor das conclusões define o objecto do recurso, a questões essencial decidenda é a seguinte:

Responsabilização, ou não, das rés,  por consideração, ou não, de uma presunção de culpa relativamente à B (…)

5.

Os factos  apurados e a considerar são os seguintes:

A) No dia 13 de Julho de 2007, cerca das 14h15, circulavam pela auto-estrada A1, ao Km 241,240, na freguesia de S. João de Loure, do concelho e comarca de Albergaria-a-Velha, os veículos automóveis, ligeiros de passageiros: Toyota Hiace, matrícula SJ... e o Hyundai, matrícula ZQ...; propriedade da Autora, conduzidos, respectivamente, por (…) e por (…)

B) A Ré B (…) SA é titular do direito de concessão sobre o troço da A1 referido em A).

C) A Autora é aderente ao serviço Via Verde, possuindo as viaturas referidas em A) os identificadores números, respectivamente, ... e ... – e pagou as respectivas taxas de portagem pela utilização da A1 no dia aí referido.

D) A Autora, em 21-11-2007, interpelou a ré B (…).A, por, carta registada com aviso de recepção, recebida por esta em 22.11.07, nos precisos termos que consta de fls. 27, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

E)Por contrato de seguro para o efeito celebrado válida e eficaz na data referida em A), a ré B (…) SA. havia transferido a responsabilidade civil até ao montante de €748.196,85 por sinistro e por ano com uma franquia de €748,20 por sinistro, para a Companhia de Seguros (…)SA, titulado pela Apólice n.º ..., pelas indemnizações que, em conformidade com a lei possam ser exigidas pelos prejuízos e/ou danos causados a terceiros, na qualidade de concessionária da exploração da auto -estrada A1.

F)(…) do âmbito da cobertura referida em E) encontra-se excluídos, além do mais, os danos resultantes de lucros cessantes, paralisações e perdas indirectas de qualquer natureza – alínea e), nº2 do artigo 4º das Condições Gerais da apólice.

G) A Autora é uma instituição de solidariedade social, tendo por objecto a educação, a integração profissional e social, a formação, o atendimento ocupacional e residencial das pessoas e grupos socialmente mais vulneráveis.

H) Nas circunstâncias de tempo e local referidos em A) as viaturas aí referidas seguiam no sentido sul-norte, pela faixa direita da auto-estrada, atento o indicado sentido de marcha, uma atrás da outra, a primeira à frente e a segunda na retaguarda;

I) (…) à velocidade de cerca de 100 Km/hora;

J) Na dianteira do Toyota circulava um veículo pesado.

L)(…) Nas circunstancias de tempo referidas em A) e 1.º encontrava-se uma roda (jante e pneumático) imobilizada na faixa de rodagem por onde circulavam as viaturas ai referidas.

M)(…) Dada a curta distância em que se lhe deparou o obstáculo, e o trânsito que se fazia na faixa da esquerda, o condutor do Toyota não teve espaço para contornar a roda;

N) (…) Nem tempo para parar o veículo;

O)(…) apesar da consideração e atenção ao trânsito que se fazia sentir na via, pelo referido condutor;

P)(…) Por isso, ao passar no local da via onde se encontrava a roda, colidiu com a mesma, na frente esquerda e na parte inferior do veículo;

Q)(…) Nessa sequência ficaram danificados vários componentes do Toyota, de onde se desprenderam diversos estilhaços e peças fragmentadas, os quais foram projectados no ar;

 R)(…) Tais estilhaços e fragmentos das peças danificadas espalharam-se pela via e vieram embater no Hyundai que seguia na retaguarda, provocando-lhe danos na roda da frente direita, no guarda lamas direito e noutras partes da carroçaria;

S)(…) Tais objectos surgiram tão repentina e inesperadamente que a condutora do Hyundai não teve tempo de proceder a qualquer manobra para evitar que os mesmos lhe embatessem;

T)(…) apesar da consideração e atenção ao trânsito que se fazia sentir na via por esta condutora.

U) Os funcionários da Ré B (…)e a BT da GNR procedem ao patrulhamento regular da auto-estrada, na detecção e verificação de situações anómalas pondo termo às mesmas;

V)(…) 24 horas, todos os dias do ano;

W)(…) e não menos de doze a quinze vezes por dia, com passagens no mesmo sentido e no mesmo local a intervalos regulares inferiores a duas horas:

X)(….) No dia e local referido em A) esses patrulhamentos foram e estavam a ser realizados, mas tanto uns como outros não detectaram a presença na via aí referida de qualquer pneu de “jeep”.

Z)Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos em A) o oficial de mecânica da Ré B (…)SA encontrava-se em patrulhamento;

A’) Em consequência do referido em 3.º a 9.º o Toyota Hiace sofreu destruição e avaria de várias peças e componentes, designadamente da blindagem inferior do motor, depósito de combustível, braço da suspensão, charriot, esticador, caixa da direcção, braço da suspensão inferior e cinto de segurança;

B’)(…) A sua reparação, onde se incluiu o custo e substituição de peças, alinhamento da direcção e serviço de chapeiro e mecânica, importou em € 3.264,33, IVA incluído;

C’) (…) Valor que a Autora pagou à oficina.

D’) Em consequência do referido em 9.º a 11.º o Hyundai sofreu destruição de um pneumático, do SGPU, ligeiras amolgadelas e deteriorações na pintura;

E’)(…) A sua reparação, onde se incluiu o custo e substituição do pneu e SGPU, alinhamento da direcção e serviço de chapeiro e mecânica, importou em € 323,00, IVA incluído;

F’) (…) Valor que a Autora pagou à oficina.

G’) A Autora no âmbito das suas atribuições, faz o transporte dos alunos, utentes e formandos da sua residência para a sede social e vice-versa, bem como das demais deslocações inerentes às actividades curriculares e extra-curriculares desenvolvidas;

H’) (…) É com os veículos referidos em A), entre outros, que nos dias úteis, assegura e faz a gestão diária desse transporte;

I’) (…) No transporte de alunos, utentes e formandos a Toyota Hiace percorre diariamente 68 Km.

J’) (…) A Hyundai, em idêntico serviço, percorre diariamente 51 Km.

K’) Em consequência do referido em 21.º o Toyota ficou impossibilitado de circular;

L’) A A. ficou privada do Toyota desde a data referida em A) até à sua reparação, que durou cerca de um mês.

M’) Em consequência do referido em 24.º a Autora ficou privada da utilização do Hundai, durante o dia da reparação.

6.

Apreciando.

6.1.

A delimitação dos termos da responsabilidade da ré B (…)está plasmada nas Bases XXXIII – 1, XXXVI e XXII - 5 do contrato de concessão constante do Anexo ao DL 294/97, de 24/10.

Nos termos da Base XXXIII - 1: «A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando, nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente

Dispõe o n.º 2 da Base XXXVI do referido contrato que «a concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas, quer tenham sido construídas, quer lhe tenham sido entregues para conservação e exploração, sujeitas ou não ao regime de portagem.»

Relativamente à responsabilidade civil da B (…), enquanto concessionária de auto-estrada, por acidente de viação aí ocorrido, foram sendo defendidas três teses: a) uma, que considera que a responsabilidade é contratual, colocando a concessionária na veste de devedor da prestação de serviço proporcionado ao utente, fazendo impender sobre ela a presunção de culpa do art. 799.º do CC; b) outra, que sustenta ser tal responsabilidade civil extracontratual, o que implica caber ao lesado a prova da culpa do autor da lesão; c) uma terceira, que considera que a responsabilização da concessionária assenta no facto de ter à sua guarda coisa imóvel, o que remeteria para a sua culpa presumida, por via da regra do art. 493.º, n.º 1, do CC.

Porém está hodiernamente sedimentado, doutrinal e jurisprudencialmente, que as concessionarias das auto-estradas estão obrigadas e respondem no âmbito da responsabilidade extra-contratual ou aquiliana.

Emergindo, assim, o disposto nos artºs 483º e segs do CC - cfr. Menezes Cordeiro, in a Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação nas Auto-Estradas - Estudo de Direito Civil Português” – Almedina - Setembro de 2004.

 Sempre defendemos, na senda da terceira tese supra referida, e no que para o caso interessa, pois que estamos perante uma coisa imóvel sujeito ao dever de vigilância, a aplicação doo disposto no artº 493º nº1.

O que significa que compete ao lesado, desde logo mas apenas, a prova dos requisitos objectivos constitutivos do seu direito à indemnização, isto é, basta-lhe alegar e provar os factos caracterizadores do acidente, os danos e o nexo causal entre o sinistro e o facto causador do mesmo.

Já quanto ao elemento subjectivo, a culpa, há que aplicar a presunção estatuída naquele segmento normativo, com a consequente inversão do ónus da prova que incidirá sobre quem tenha de vigiar coisa imóvel, o qual responde pelos danos causados que tal coisa cause, excepto se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua – -  neste sentido cfr, entre muitos outros, os Acs.   da Relação de Èvora de 13.07.2006 e de 25.01.2007, p.286/06-3 e p.2335/06-2; da Relação do Porto de 13.02.2006, p.0650359 e de 09.10.2006, p.0653456; da Relação de Lisboa de 09.06.2005, p.4808/2005-6 e de 12.02.2007, p.2536/2006-8, de 15.05.2007, p. 6060/2006-7, de 14.05.2009, p. 2/2000.L1-8 e de 07.07.2009 p. 420/2002.L1-7; da Relação de Coimbra de 25.01.2006, p.2649/05, de 20.11.2007, p.411/04.2, de 28.04.2010, p. 2644/08.3TJCBR.C1 e de 01.06.2010, p. 312/07.2TBCNT.C2;  do STJ de 26.02.2004, p. 04B2885, de 14.10.2004, p.04B2885 e de 01.10.2009, p. 1082/04.1TBVFX.S1; todos acessíveis in dgsi.pt

Efectivamente a aplicação deste preceito tem, in casu, toda a razão de ser e pertinência já que as vias rápidas de circulação que são as auto-estradas mostram-se indispensáveis e contribuem para uma acentuada melhoria da mobilidade cada vez mais essencial ao desenvolvimento económico-social das actuais sociedades.

Pelo que as exigências acrescidas de segurança, até pelo perigo que representa a circulação de veículos em alta velocidade, justificam-se cabalmente.

Todavia, para alguns este preceito deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que ele consagra apenas uma presunção de culpa relativa a danos causados pelo imóvel e não a danos causados no imóvel, sob pena de se alargar irrazoavelmente a responsabilização com base numa culpa meramente presumida.

Assim tal presunção apenas deveria incidir relativamente a danos resultantes de um defeito na coisa objectivamente verificado que possa ser considerado como um defeito de construção da auto-estrada em si mesma considerada, ie. na sua estrutura física,vg. curvas mal concebidas.

E não já no respeitante a danos emergentes de causas atinentes aos deveres de conservação e de manutenção da coisa. Quanto a estes o ónus da prova competiria ao lesado, ainda que perspectivado com razoabilidade – cfr. Ac. do STJ de 14.10.2004, dgsi.pt, p.04B2885.

Não nos parece que este entendimento se perfile como o mais curial.

A letra da lei não permite tal interpretação já que ela se reporta, expressa e inequivocamente, ao dever de vigilância.

Assim sendo, para que a letra do preceito não caia na irrelevância ou inocuidade,  mesmo que se entenda que ele apenas abrange sinistros provocados pelo imóvel, têm de nele se integrarem os decorrentes  da constatação de um defeito, de uma anomalia ou anormalidade no seu funcionamento, v.g., um defeito de construção, de manutenção, de sinalização ou de iluminação ou da postergação ou cumprimento defeituoso de um dever de vigilância.  

Sendo que, inclusive: «Esse dever de manutenção da auto-estreada em “ boas condições de segurança” abrange não só os seus actos (manutenção da via sem obstáculos à circulação -buracos, pedras, etc.) - mas também actos de terceiros ou causas naturais…»

 Pelo que: «A existência de um destes vícios objectivos faz presumir a existência de um defeito de conservação, o qual, em sentido amplo, engloba a detecção e eliminação ou neutralização de focos de perigo e, consequentemente, não só a culpa da concessionária como também a ilicitude (violação de um dever), já que estamos perante deveres de agir para evitar danos para terceiros e, portanto, perante delitos de omissão, sendo que a violação do dever é aqui elemento da ilicitude» - Acs. da Relação de Lisboa de15.05.2007, p. 6060/2006-7 e do STJ de  01.10.2009, p. 1082/04.1TBVFX.S1, já supra cits.

E bem se alcança a ratio legis.

O vigilante melhor do que ninguém conhece a coisa e, assim, mais facilmente poderá demonstrar o cabal cumprimento do seu dever perante terceiros os quais não têm tal conhecimento.

Nesta interpretação, que temos por melhor, a  previsão legal consagra uma sensata e equitativa distribuição do ónus da prova dele desonerando o terceiro estranho à coisa e para o qual a prova de factos a ela atinentes se poderia revelar, aqui sim, um trabalho de Hércules, ou uma diabólica probatio.

Por outro lado, a imposição de tal ónus ao vigilante representa uma forma de pressão no sentido de ele exercer tal dever com maior empenho e acuidade pois que sabe, à partida, que terá de ser ele a provar a vigilância com cariz de  adequação.

 O que não é de somenos e será de incentivar, maxime quando estamos perante coisas que, quer por si próprias,  quer por virtude de circunstancialismos que podem afectar a sua utilização, revistam um certo grau de perigosidade e/ou desempenhem uma função de eminente relevo social – cfr. Ac.da Relação de Coimbra de 20.11.2007, supra citado.

6.2.

Mas mesmo que assim não fosse ou não se entenda, a questão da impendência do ónus da prova da culpa  está hoje resolvida pela publicação da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho.

Efectivamente estatui o seu artigo 12.º:

   1 – Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:

   a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;

   b) Atravessamento de animais;

   c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.

   2 – Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.

   3 – São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:

   a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;

   b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;

   c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.

Tal como acertadamente é mencionado na sentença, este preceito é aplicável a sinistros ocorridos antes da sua entrada em vigor pois que se trata de norma não inovadora mas meramente interpretativa.

Na verdade…
A lei interpretativa é aquela que se limita a fixar o sentido juridicamente relevante de um preceito existente.
A qual, no âmbito de classificação das regras jurídicas, se contrapõe à lei inovadora.
Esta  altera, de certo modo, a ordem jurídica pré-existente.
A lei interpretativa visa pôr fim a uma controvérsia ou a uma incerteza, que se prolonguem ao longo do tempo, sobre o sentido e alcance de certa regra jurídica, decorrentes de interpretações díspares por parte da doutrina e da jurisprudência.
Isto para evitar uma instabilidade e uma  diversidade de tratamento de casos iguais, com prejuízo da justiça relativa ou comparativa.

De referir que a lei nova, para que seja considerada interpretativa, não tem que consagrar uma corrente jurisprudencial prevalecente – o que, até certo ponto, poderia retirar  o cariz de incerteza ao sentido dado à norma e, assim, impedir  que a alteração daquela lei  pudesse ser classificada como interpretativa, antes o devendo ser como inovadora – sendo suficiente a adopção de uma interpretação, mesmo que minoritária, antes defendida. – cfr. Batista Machado in Sobre a Aplicação da Lei no Tempo, 1968, p.286 e sgs , cit, in Abílio Neto  CC Anotado, 13ª ed. p.37.
Assim é consensualmente aceite que são dois os requisitos necessários para que se esteja perante uma lei interpretativa:
a) que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta;

 b) que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei cfr. Baptista Machado in Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1983, pág. 245 e segs; Oliveira Ascensão in O Direito, 2ª ed. p. 197 e sgs;  Ac. da Relação do Porto de 07-10-2008, dgsi.pt, p. 0823758 e Ac. do STJ de 13-11-2007, p.07A3564.

Ora estatui o artº 13º nº1 do CC:

 «A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção, ainda que não homologada, ou por acto de análoga natureza»

Ou seja, a lei interpretativa tem eficácia retroactiva aplicando-se a factos e situações anteriores à sua entrada em vigor, rectius a relações ou situações jurídicas verificadas posteriormente à lei interpretada, pois que aquela se integra nesta.

O que quer dizer que retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada – Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, 2ª ed. p.50. e Ac. Relação de Coimbra de 8.4.2008, CJ, II, pgs. 20/23.

Aliás, por este motivo, defende Baptista Machado que a lei interpretativa não opera uma retroactividade substancial mas apenas formal – ob. cit. p.247.

Tal retroactividade justifica-se porque a lei interpretativa apenas vem a consagrar e fixar uma das interpretações possíveis da lei interpretada, com os quais os interessados podiam e deviam contar, não sendo, assim, susceptível de violar expectativas seguras e legitimamente fundadas.

De notar que pela análise do preceituado nos artºs 12º nº2 e 13º do CC se conclui que o grau ou alcance do efeito retroactivo da lei interpretativa é superior ou mais abrangente do que o da lei retroactiva, hoc sensu.

Assim a lei retroactiva pressupõe que o que se fez no passado foi correcto, ainda que por razões supervenientes se imponha alterá-lo. Por isso os actos e situações anteriores merecem alguma protecção. Ela atinge a fonte geradora, mas deixa subsistir os efeitos dela resultantes.

Já a lei interpretativa, porque postergadora de interpretações que reputa de menos adequadas, atinge todo o passado salvo o que ficou já assente, ou seja, abarca também os efeitos resultantes dos actos, negócios ou situações jurídicas praticados ou emergentes ainda no tempo da lei interpretada, salvo se já consumados ou protegidos pelo cumprimento, sentença, transacção ou acto análogo – cfr. Oliveira Ascensão, ob. cit. p.445/446.

6.3.

In casu é inequívoco que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho operou uma verdadeira interpretação autentica das teses em confronto supra referidas.

Pois que, perante uma divisão, na doutrina e jurisprudência, quanto à natureza da responsabilidade e, maxime, quanto ao ónus da prova do nexo de imputação do facto ao agente, ou seja, da culpa, tal diploma, adrede e inequivocamente,  consagrou que o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança impende sobre a concessionária.

O que vale por dizer que ela estabeleceu uma presunção de culpa desta  que por si tem de ser elidida.

Pois que como é consabido e, aliás, é referido pela recorrente, agir com culpa significa o agente actuar em termos de a sua conduta merecer a reprovação pessoal ou a censura do direito depois de se concluir que ele, no caso concreto, podia e devia ter agido ou procedido por outra forma ou de outro modo.

O legislador veio pois tomar partido sobre uma das teses antes em confronto e já anteriormente defensável.

E nem se diga que tal não se pode concluir porque não há uma referência expressa  daquela lei neste sentido.

 É que «na grande maioria dos casos o legislador não se preocupa com a classificação como interpretativas de normas que edita, que são efectivamente interpretativas e estão sujeitas, como tais, ao disposto no artº 13º» - Batista Machado, ob. e loc. cits.
E sendo certo que «Se a fonte expressamente nada determinar, o carácter interpretativo pode resultar ainda do texto, quando for flagrante a tácita referencia da nova fonte a uma situação normativa duvidosa preexistente» - Oliveira Ascensão, ob. cit. p. 198.
E nem se podendo corroborar o argumento da recorrente B... quando expende que a lei é inconstitucional por violação do princípio da igualdade pois que os restantes co-contratantes da Administração não estão onerados com esta presunção de culpa.
É que o que releva para a aferição da subsistência, ou não, de tal princípio, não é a diferenciação formal, mas antes a distinção material ou substancial entre situações.
Podendo, inclusive, uma norma ser inconstitucional por regular de modo igual duas situações que clamam tratamento diferenciado.

Ora, como já se disse, as características e especificidades do tráfego rodoviário em auto-estradas, maxime a segurança acrescida que para estas vias se pretende de sorte a que se evitem acidentes que, a ocorrerem, serão de consequências potencialmente demolidoras dadas as velocidades elevadas a que nelas se circula, permitem e, até, impõem, tal diferenciação.

Sendo que, como se expende na sentença: a norma do n.º 1 deste artigo 12.º foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, além do mais, nos Acórdãos n.ºs 585/2009,596/2009 e 597/2009 (este restrito à alínea b) daquele preceito legal), ambos de 18.11.2009, no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa, considerando, além do mais, que a mesma não violava os princípios do Estado de direito e da separação de poderes, nem o princípio da igualdade, nem a tutela da propriedade privada.

 A lei 24/2007 é, assim, neste particular conspecto uma lei interpretativa, de aplicação imediata e retroactiva, nos termos já mencionados.

Neste sentido se inclinando a nossa mais alta e recente jurisprudência – cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 28.04.2010 sup. cit. e Acs. do STJ de 13.11.2007, p. 07A3564, de 09.09.2008, p. 08P1856, de  01.10.2009, p. 1082/04.1TBVFX.S1 e de 08.02.2011  p. 8091/03.6TBVFR.P1.S1.

Assim sendo, In casu, impendendo sobre a ré B... a presunção de culpa competia-lhe elidi-la, provando que actuou com ausência de culpa da sua parte.

Resta apurar se tal aconteceu.

6.4.

A Sra. Juíza entendeu não ter sido operada tal elisão com o seguinte discurso argumentativo:

«Face à factualidade apurada, resulta que a ré provou genericamente ter cumprido as suas obrigações de vigilância. Não obstante, o certo é que o pneu não foi detectado a tempo.

Competia à ré, em suma, a prova histórica do acontecimento e com ela a conclusão de que não tinha havido falha no dever de vigilância, afastando a culpa inerente à presunção legal.

A presunção de culpa só é afastada demonstrar que a intromissão do obstáculo na via, não lhe é, de todo, imputável, sendo atribuível a outrem.

Assim, competia à ré B... (sobre quem impendia o ónus de provar a ausência de culpa), demonstrar de que forma é que a roda apareceu, bem assim que fez de tudo para afastar a produção de qualquer acidente, o que não aconteceu, não obstante o ter alegado. não apenas demonstrar que junto ao local do acidente não

Seguindo de perto a jurisprudência supra citada, consideramos que é esta a solução mais equilibrada e justa. De facto, considerar suficiente para afastar a presunção de culpa referida a prova genérica de que a concessionária cumpriu as obrigações decorrentes do contrato de concessão, implicava ser do lesado o ónus da prova quase impossível de alcançar, anulando-se o efeito útil da consagração legal da presunção de culpa.

Na verdade, “nos acidentes com animais (ou com outros objectos) em auto-estradas quem mais facilmente pode provar a proveniência do animal (ou objectos) é a concessionária. Só ela tem, pode ou deve ter, os meios idóneos à monitorização do tráfego, da circulação viária e da segurança, meios que lhe devem permitir detectar a introdução na via de animais ou de objectos nocivos à circulação automóvel. O utilizador da via depara-se com a óbvia e notória dificuldade natural em recolher meios ou elementos de prova. Não pode, como é notório, permanecer na auto-estrada com vista a determinar a causa da introdução do animal nem sequer tem, normalmente, equipamentos técnicas de recolha de prova”(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.09.2008, processo 08P1856, disponível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, é também esta a solução que melhor se coaduna com a letra da lei e o espírito do legislador (a protecção dos utentes das auto-estradas e a responsabilização/ interiorização do sentido de responsabilidade da concessionária, em quem o Estado confiou o exercício da actividade pública de exploração da auto-estrada).»

Concorda-se com esta argumentação.

A ré B (…)convoca para a defesa da sua tese os factos provados nas als. U), V), W), X) e Z)  dizendo que mais não está nem estava obrigada a provar.

Mas, salvo o devido respeito, não sufragamos o seu entendimento.

Não basta que a Ré demonstre que actuou de acordo com procedimentos estandardizados por si pré-estabelecidos.

Importa que prove, positivamente,  que as diligencias de vigilância efectivadas se mostram, em tese e perante as concretas circunstancias do caso, adequadas e suficientes para obviar ao evento despoletador do acidente, sendo-lhe inexigível a realização de outras.

Ou que prove qual o evento concreto que não lhe deixou realizar o cumprimento, demonstrando, por exemplo, tratar-se de uma situação enquadrável num caso de força maior ou de qualquer acto da autoria de terceiros, que não estivesse em condições de impedir ou condicionar, vg. por o pneu se ter introduzido na via muito pouco tempo - segundos ou poucos minuto -, antes de o embate se verificar.

Essa prova só teria sido produzida se se conhecesse, em concreto, o modo, o tempo e as circunstancias em que o pneu com a jante foi parar à faixa de rodagem.

Se assim não provar considera-se que  nem a causa ignorada do obstáculo na via, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente, exonera a concessionária da sua responsabilidade – cfr. Acórdão da Relação de Évora, de 08-05-2008, p. 2789/07-2.

E, apesar de não se lhe poder exigir um patrulhamento e vigilância  omnipresentes, permanentes e simultâneos em todos os troços das auto-estradas, deve exigir-se-lhe que, pelo menos, tais operações sejam efectivas e eficazes (com a colocação, por exemplo, de câmaras de vigilância, como parece que já vem acontecendo, o aumento da frequência das rondas e a melhoria dos meios técnicos nelas utilizados, etc).

Tudo de sorte a detectar, em tempo oportuno, potenciais fontes dos riscos de circulação automóvel e remover os obstáculos à mesma.

No caso concreto  apenas se provaram os genéricos procedimentos da B (…)

Os quais, como se viu, não foram bastantes e suficientes para evitar a presença e/ou a remoção atempada do obstáculo da faixa de rodagem.

E não provando ela que fez tudo o que lhe era possível e exigível para tal desiderato, ou que o sinistro só aconteceu em virtude de caso de força maior ou de facto de terceiro que não  lhe foi possível impedir, emerge, com plena validade e relevância, à luz do supra plasmado, a legal presunção de culpa.

Improcedem os recursos.

6.5.

Sumariando:

I- Antes da Lei 24/2007 de 18.07 defendia-se, a par de mais duas teses e quiçá maioritariamente, que a responsabilidade dos concessionários de auto-estradas era de cariz extracontratual, respondendo estes pelos sinistro e danos provocados por estas ou nestas, com culpa presumida, ao abrigo do artº 493º nº1 do CC.

II-  A referida Lei veio, no seu artº 12º, assumir-se como lei interpretativa daquela  questão ainda existente, optando definitivamente pela natureza extracontratual e pela consagração da presunção de culpa, pelo que, nos termos dos artºs 12º nº2, 2ª parte e  13º nº1 do CC, tem eficácia retroactiva aplicando-se a factos e situações anteriores à sua entrada em vigor ainda subsistentes.

III-  A elisão de tal presunção apenas emerge se a concessionária provar, não apenas procedimentos genéricos, rotineiros e por si predeterminados, mas factos concretos que, atentos os circunstancialismos e especificidades do caso, permitam a conclusão que a sua actuação foi idónea e adequada  a evitar a causa objectiva do sinistro, nada mais assim lhe sendo razoavelmente exigível, ou que este se verificou por caso fortuito ou de força maior, ou de acto de terceiro que não estava em condições de impedir.

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda negar provimento aos recursos e, consequentemente, confirmar a, aliás douta, sentença.

Custas pelas recorrentes.

Carlos Moreira ( Relator )
Moreira do Carmo
Alberto Ruço