Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
282/16.6GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL VALONGO
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO;
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA;
INEXISTÊNCIA DE CRIME
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 311.º, N.ºS 2, AL. A), E 3, AL. D), DO CPP
Sumário:
I - A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, conducente à rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do CPP, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível e discutida por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
II – Carece de sustentação legal a invocação da referida disposição normativa quando em causa está apenas a omissão na acusação da referência ao lugar da prática dos factos.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 282/16.6GAACB do Tribunal Judicial de Leiria - Juízo local criminal de Alcobaça, na sequência do despacho proferido pelo Ministério Público finda a fase de inquérito, nos termos e para os efeitos do art 285º, nº 1 do CPP, veio a assistente apresentar acusação particular contra a arguida A…, imputando-lhes a prática de três crimes injúrias p.p. no artigo 181º n.º1 do Código Penal.
2. Tal acusação particular veio a ser rejeitada - ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do Cód Proc. Penal, - por manifestamente infundada.

3. Inconformada com a decisão recorreu a assistente B…, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
“1. A Assistente deduziu contra a arguida A…, acusação particular pela prática de três crimes de injúria.

2. Os factos imputados à arguida na acusação particular deduzida pela assistente foram acompanhados pelo Ministério Público.

3. O Tribunal à quo considerou a acusação manifestamente infundada, por não descrever o lugar e o tempo em que os crimes foram cometidos, tendo-a rejeitado e não admitido o pedido de indemnização civil.

4. Com o devido respeito, entende a recorrente que o Tribunal a quo não interpretou devidamente o disposto nos artigos 283º, n.º3 al b) e 311, n.º2 al a) e n.º3, al b) do CPP.

5. O art.º 283, n.º3 al b) não impõe a obrigatoriedade de se mencionar o lugar e o tempo da prática dos factos, apenas dispõe que se deverá mencionar “… se possível”.

6. O local e o tempo da prática dos factos não são elementos essenciais, pelo que a acusação não poderá ser rejeitada por manifestamente infundada, por falta destes elementos.

7. A acusação contém os elementos objectivos e subjectivos necessários para ser admitida.

8. Atendendo ao meio utilizado para a prática do crime (chamadas pelo telemóvel), estamos perante um crime de localização duvidosa ou desconhecida, pelo que se terá de atender ao disposto no art.º21, n.º2 CPP.

9. Os elementos objectivos e subjectivos estão preenchidos.

10. Não faz parte da ilicitude do tipo legal de crime o lugar da prática dos factos, tratando-se de um mero elemento circunstancial, pelo que a sua falta não poderá implicar uma acusação manifestamente infundada e consequentemente a sua rejeição.

11. A indicação do local não é um elemento essencial para a Arguida preparar a sua defesa.

12. O local da prática do crime pode ser apurado no julgamento, visto que se tratará de uma alteração não substancial de factos.

13. Pois, termos do disposto no artigo 21.º do CPP, sempre que seja desconhecido o local da prática do crime, é competente o Tribunal do local onde tiver havido primeiro a notícia do crime.

14. Não constando da acusação a localização temporal (data) dos factos, pois indica que foi no Verão de 2016, não pode ser rejeitada por manifestamente infundada.

15. A Acusação deverá ser aceite e não considerada manifestamente infundada porque contém a identificação da arguida, narra os factos, indica as disposições legais e as provas e os factos constituem crime.

16. No sentido da posição defendida no presente recurso, faz a Recorrente referência à jurisprudência, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17.02.2016, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.07.2017 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2011, publicados em www.dgsi.pt.

17. Ao decidir como o fez, o despacho recorrido violou as seguintes disposições: artigo 181º do Código Penal, artigos 283° n° 3 alínea b), artigo 311, n°2, a) e n°3, b), do Código de Processo Penal.

18. Atendendo aos fundamentos supra expostos, deverá o presente Recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por outro que designe dia e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento nos seus precisos termos, imputando à arguida a prática de três crimes de injúria previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal.

Assim se fará JUSTIÇA!”

4. O recurso admitido e fixado o respectivo regime de subida e efeito.

5. Ao recurso respondeu o Ministério Público, concluindo:
“(…)
Nos termos previstos no artigo 181.º/1 do Código Penal, «quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias».
É evidente que, como conclui a assistente, louvando-se nos arestos que cita no respectivo recurso, a concretização do momento da prática dos factos imputados à arguida não integra o tipo objectivo do crime de injúria, tratando-se de um elemento acidental, tal como o será o da concreta localização dos factos – o que, de resto, decorre da norma prevista no artigo 283.º/3, alínea b), do Código de Processo Penal: «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
In casu, os crimes imputados à arguida terão ocorrido «desde o final do ano 2015» e «aquando do Verão de 2016», pelo que, os três crimes terão alegadamente ocorrido durante um período temporal de cerca de nove meses: (…).
Salvo melhor entendimento, será tanto quanto baste para que esteja possibilitado o exercício do contraditório pela arguida, uma vez que bastará escalpelizar, aquando da produção de prova em audiência de julgamento, se as imputadas expressões injuriosas ocorreram em três momentos distintos (e, se possível, em que datas) ou não; na afirmativa, estarão demonstrados os três crimes imputados à arguida, ainda que possam eventualmente não ser determináveis as concretas datas da prática dos factos.
Refira-se, ainda, que a defesa não fica prejudicada pela não alegação das concretas datas em que os factos imputados terão ocorrido, nomeadamente para efeitos de eventual conhecimento da prescrição do procedimento criminal, na medida em que sempre seria de considerar-se o marco temporal referido como «desde o final do ano 2015» - ou seja, desde 31.12.2015.
A acusação particular contém, ainda que sinteticamente, a «narração dos factos», os quais, a serem julgados como provados, integram o tipo do crime de injúria imputado à arguida e, portanto, fundamentam a aplicação de uma pena.
O despacho recorrido, embora igualmente sustentado em jurisprudência dos tribunais superiores, ao julgar a acusação particular manifestamente infundada com o fundamento na alínea b) [«Quando não contenha a narração dos factos»] do n.º 3 do artigo 311.º do Código do Código de Processo Penal, interpretou indevidamente essa norma perante o caso concreto, devendo, pois, ser revogado.
*
Pelo exposto, Ministério Público junto do Tribunal a quo considera que o recurso interposto pela assistente merece provimento e, consequentemente, deverá ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que, recebendo a acusação particular, designe data para a realização da audiência de julgamento.”

7. Remetidos os autos à Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“(…)
Do mérito

Acompanhamos as considerações e o entendimento da assistente no sentido de que a acusação deduzida contém todos os elementos exigidos no art. 283º, n° 3, do CPP, não podendo confundir-se falta de indicação do tempo ou do lugar em que ocorreram determinados factos com a falta da narração dos factos.

Acresce que da acusação em causa e tal como salienta o Magistrado do M° P° na 1ª Instância, cujas considerações subscrevemos, resulta qual o período de tempo em que os factos ocorreram - entre o final do ano de 2015 e o final do Verão de 2016 - e que durante esse período os factos descritos se repetiram com frequência.

Não restam dúvidas de que a não narração dos factos na acusação determina que a mesma seja considerada manifestamente infundada e por isso deva ser rejeitada nos termos das disposições conjugadas dos arts 283º, n° 3 e 311, n°s 2, al. a) e 3, al. b), todos do CPP. O que se questiona é a conclusão retirada pela decisão recorrida no sentido de que a acusação deduzida nestes autos pela assistente e ora recorrente não contém a concretização dos factos.

E, tal como a assistente e o Magistrado do M° P° junto do Tribunal recorrido, entendemos que a acusação deduzida nos autos observa todas as exigências do n° 3, do art. 283º, do CPP, contém a narração dos factos, pois concretiza as expressões proferidas, o contexto em que o foram, o meio usado (telemóvel com 2 números diferentes para o telemóvel da assistente, cujo número também é indicado) e mesmo o período temporal em que ocorreram, permitindo à arguida o exercício do contraditório. A não indicação do lugar onde se encontrava a arguida e a assistente no momento em que foram efectuados os telefonemas em causa não é essencial para o exercício daquele direito pela arguida.

Assim, concordando, embora, com o entendimento que decorre da jurisprudência citada na decisão recorrida, afigura-se-nos que a acusação em causa não se enquadra nas situações objecto de análise naqueles arestos.

Em conformidade com o exposto, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso interposto pela assistente.”

*

8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve reacção.
9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

A questão que importa decidir, face às conclusões efectuadas pela recorrente na sua motivação, resume-se a saber se ocorre motivo para rejeição liminar da acusação, por manifestamente infundada.

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho recorrido:

“(…)
O Tribunal é o competente e a assistente tem legitimidade para deduzir acusação particular.
Ressalvado o quadro de apreciação que segue, o processo mostra-se isento de nulidades que o invalidem totalmente, inexistindo outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
***
- DA REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO PARTICULAR
A fls. 125 a 127, e acompanhada pelo Ministério Público a fls. 130-131, a assistente B… deduziu acusação particular contra a arguida A…, imputando-lhe a prática de três crimes de injúria, pp. e pp. pelo artigo 181.º do Código Penal.
Estriba tal imputação na seguinte (transcrita) factualidade:
«”(…)”».
Ora, por expressa remissão do artigo 285.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, é aplicável à acusação particular, no que ao caso mais importa, o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma, à luz do qual a acusação contém, sob pena de nulidade, « [a] narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada».
Por outro lado, e tal como também por exemplo se assinala no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-09-2015 (disponível em www.dsgi.pt sob Processo n.º 775/13.7GDGDM.P1), tem vindo a ser reiteradamente posto em relevo pela jurisprudência dos tribunais superiores que «[a]s imputações genéricas, sem uma precisa especificação das condutas e do tempo e lugar em que ocorreram, por não serem passíveis de um efetivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado no art. 32.º, n.º1, da CRP, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente», em razão do que devem ser consideradas não escritas.
Pelo mesmo diapasão afina o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09-01-2017 (também disponível em www.dsgi.pt, neste caso sob Processo n.º 628/11.3TABCL.G1), sublinhando que «os “factos” que constituem o “objecto do processo” têm que ter a concretude suficiente para poderem ser contraditados e deles se poder defender o arguido e, sequentemente, a serem sujeitos a prova idónea».
Revertendo à situação dos autos, constata-se que a acusação particular em apreço não traduz uma precisa – nem sequer mínima - especificação do tempo e sobretudo, do lugar e do concreto contexto em que ocorreram as condutas que são imputadas à arguida, ficando do nosso ponto de vista por perceber, além do mais, o porquê da imputação de três (e não de menos ou mais) crimes em concurso real.
Com efeito, a assistente alega apenas, no que aqui releva, que «desde o final do ano de 2015, a arguida começou constantemente a efectuar telefonemas para a assistente inicialmente através do n.º 9xxxxxxxx e posteriormente através do n.º9yyyyyyy» e que «[a]quando do Verão de 2016 os seus amigos (…), presenciaram a assistente receber chamadas da arguida e sem qualquer justificação proferir as expressões supra referenciadas».
Num tal contexto, em que sobretudo não se referem quaisquer datas e nem sequer meses em concreto em que a arguida terá apelidado a assistente com as expressões mencionadas no ponto 6, está a nosso ver irremediável e inaceitavelmente coarctado o efectivo e pleno exercício do contraditório constitucionalmente consagrado a favor da primeira.
Aqui chegados, temos que na fase do julgamento, ao nível do saneamento do processo, e em caso de não ter havido instrução, avulta a regra contida no artigo 311.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nos termos da qual «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (…)», sendo que nos termos do n.º 3 do mesmo preceito, a acusação se considera manifestamente infundada, para além do mais, quando não contenha a narração dos factos [cfr. alínea b)].
Tal é o que se verifica in casu, na medida em que, como vimos, as imputações não contextualizadas espácio-temporalmente dirigidas à arguida devem considerar-se não escritas.
Pelo exposto, ao abrigo do artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do Cód Proc. Penal, decido rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular deduzida a fls. 125 a 127 pela assistente B… contra a arguida A….
Custas a cargo da assistente, com taxa de justiça que fixo em 2 (duas) unidades de conta, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido a fls. 18-19 – artigos 515.º, n.º 1, alínea f), do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º 9, e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.
Notifique.
***
- DA REJEIÇÃO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
Em face do que vem de decidir-se, e na medida em que, nos termos dos artigos 129.º do Código Penal e 71.º do Cód. Proc. Penal, o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal deve apenas fundar-se na prática de um crime, decido rejeitar, por inadmissibilidade legal, o pedido deduzido por B… a fls. 127 a 129.
Notifique.
*
Alcobaça, 21-12-2017

*
3. Apreciando

Dispõe o artigo 311º nº 2 do CPP que «se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) de não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente».
A acusação considera-se manifestamente infundada, segundo a norma do nº 3 do referido artigo:
a) quando não contenha a identificação do arguido;
b) quando não contenha a narração dos factos;
c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;
d) se os factos não constituírem crime».

O modelo processual penal vigente em Portugal desde 1987 estrutura-se no princípio do acusatório, mitigado pelo princípio da acusação (artigo 2º n.º 2 ponto 4 da Lei 43/86 de 26 de Setembro, Lei de Autorização legislativa em matéria de processo penal) traduzido numa nítida separação entre acusação e julgamento, entre a função de acusar e a de julgar, com incidência constitucional, com expressa indicação da entidade que tem a seu cargo a fase investigatória eventualmente a culminar numa acusação e da entidade que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto de tal acusação.
Porém e como se alerta no Ac desta Relação, de 14-04-2010, na vigência da redacção originária do art. 311º do CPP suscitaram-se dúvidas sobre os poderes do juiz de julgamento, no despacho inicial, quando recebe o processo sem que tenha sido requerida a instrução – caso em que o J.I.C. goza de amplos poderes da apreciação dos indícios do crime acusado, mas não pode, por outro lado, intervir na fase de julgamento, - e porque a lei não apresentava qualquer esboço de definição do conceito de manifesta improcedência.
Com efeito, o nosso sistema penal consagra uma estrutura acusatória do processo, ou seja, o juiz tem de ser imparcial relativamente às posições assumidas pela acusação e pela defesa e, por isso, não pode nunca assumir a veste de acusador, ainda que indirectamente, provocando a acusação pelo Mº Pº ou definindo-lhe os termos – cfr. Germano M. Silva, Curso de Processo Penal, I, 58.
Daí que perante as dúvidas e questões de constitucionalidade do preceito que se vinham suscitando (cfr., em síntese, Maia Gonçalves, CPP Anotado, 16ª ed. em anotação ao citado art. 311º) na revisão operada pela Lei 59/98 de 25.08, o legislador tenha sentido a necessidade de aditar ao preceito o actual n.º 3, com a redacção supra reproduzida, que contém, precisamente, a definição do que o legislador considera manifesta improcedência, para efeito de rejeição da acusação. De que resultou a inequivocidade do modelo pretendido para o processo penal e a caducidade do Assento do STJ n.º 4/93.
Logo, sem pôr em causa o modelo acusatório estabelecido, o legislador elencou os casos de rejeição por manifesta improcedência e definiu-os taxativamente no n.º 3 do art. 311º.
“Impediu-se assim, entre outras situações, que o juiz quando profere o despacho ao abrigo do artigo 311º, tenha um papel equivalente ao sujeito processual “Ministério Público” fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.
Por outro lado, importa considerar que as referidas previsões do n.º 3 do art. 311º CPP têm correspondência nas alíneas do nº 3 do artigo 283º, CPP que definem as nulidades da acusação.
O referido art. 283º, nº 3, prevê, de forma genérica, as nulidades da acusação - as quais, na falta de preceito que as regule especificamente, deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
O art. 311º nº 3 CPP prevê apenas os casos extremos pois a rejeição liminar só se justifica em casos limite insusceptíveis de correcção sem prejudicar o direito de defesa fundamental, que a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria. Trata-se de um tipo de nulidade sui generis, extrema, insuperável ou insanável, ainda que susceptível de correcção pelo Ministério Público, a ponto de permitir ao juiz de julgamento a intromissão na acusação, de forma a evitar um julgamento sem objecto fáctico e probatório [al. b) e segunda parte da al. c) - provas], sem acusado [al. a)], sem incriminação [al c)], ou sem objecto legal [al. d)].
Daí que o regime de qualquer outro vício da acusação - previsto no art. 283º ou eventualmente em outras disposições legais - terá que ser procurado, fora da previsão do n.º 2, al. a) do art. 311º, por não coberto nem pela letra nem pelo espírito do referido preceito na perspectiva de inserção no direito de defesa e na estrutura acusatória do processo - Ac cit de 14-04-2010.
Assim, o nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, - ainda que o legislador não o diga de forma expressa, - veio consagrar um específico regime de nulidades da acusação que, face à gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na Constituição da República Portuguesa, são insuperáveis/insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
Assim se entende que a rejeição liminar apenas possa ter lugar naquelas situações típicas extremas e não relativamente a outros vícios de menor densidade.
Decorre da taxatividade legalmente estabelecida, um obstáculo inultrapassável à substituição por outra interpretação que não aquela que o legislador pretendeu.
Quanto às alíneas a) a c) não se suscitam grandes dúvidas sobre o seu conteúdo e quanto à alínea d) o limite da interpretação do seu conteúdo coincide com o que a estrutura dos princípios processuais admite, a significar que o Tribunal só pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la quando a factualidade respectiva não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado ou de qualquer outro, pois pode constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determina o art. 358º do Cód. Proc. Penal.
“Sublinhe-se que este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente, por muito válida que seja. Só assim, numa interpretação tão restritiva se assegura o princípio do acusatório, na vertente referenciada.” – Ac Rel Coimbra de 25 de Março de 2010.
Em suma, o poder de sindicância da acusação pelo juiz do julgamento engloba no seu âmbito apenas o controlo dos vícios estruturais graves da acusação referidos no art 311º, nº 3, do CPP - ( cfr PP Albuquerque Com CPP pág 790).
A irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
Ora, como é sabido, o tipo legal de crime é conformado pelos elementos constitutivos objectivos e subjectivos.
Vejamos o tipo legal do crime de injúria, (acórdão desta Relação - N.º 3486/16.8T9CBR.C1- de 16-05-2018, relatora Des Elisa Sales:
"Art.º 181.° do Cód. Penal
1. Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
2. ………."

São elementos constitutivos deste tipo legal de crime:
- Injuriar outrem;
- Dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração;
- O dolo, em qualquer das suas formas.

"Injúria é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida ao próprio visado. O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal." ( - Vd. NELSON HUNGRIA citado por LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in "Código Penal de 1982" 1986, Ed. Rei dos Livros, Vol. II, pág. 203. ) ( - No mesmo sentido, vd. JOSÉ DE FARIA COSTA, in "Comentário Conimbricense do Código Penal", Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 629.

)
"Honra «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter...».
Consideração é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros».
Por outras palavras pode dizer-se que a honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um - o próprio eu.
A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública" ( - Vd. LEAL HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in obra citada, pág. 196. )
Como escreve JOSÉ DE FARIA COSTA ( - Obra citada, pág. 604. ) "... entre nós, BELEZA DOS SANTOS: "a lei não exige, como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento da honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se."
Revertendo aos autos.
É manifesto que a factualidade imputada na acusação particular é susceptível de preencher os elementos constitutivos do tipo legal de crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.°, 1, do Cód. Penal.
A acusação indica a disposição legal violada, as provas que a fundamentam, narra os factos e faz a identificação completa da arguida. A descrição factual inclui o período de tempo em que os factos ocorreram - entre o final do ano de 2015 e o final do Verão de 2016 - e afirma de forma expressa que durante esse período os factos descritos se repetiram com frequência. Embora exista uma referência à casa da assistente, - como local de recepção das chamadas telefónicas - é omitido o local da prática dos factos - local de emissão -, sendo de ponderar que a utilização dos telemóveis é compaginável com uma panóplia de lugares até ao limite do território português.
A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
Não faz sentido, de facto, a invocação, no caso, do disposto na al. d), do n.º 3, deste normativo, estando em causa apenas a omissão na acusação da referência ao lugar da prática dos factos narrados na mesma, tratando-se, assim, de uma circunstância meramente acidental e não de um elemento essencial à constituição do tipo de ilícito penal imputado ao arguido.

Mas também não pode dizer-se que se verifique, no caso, a situação prevista na al. b), do n.º 3, do mesmo normativo, porquanto se constata que a referida acusação contém a narração dos factos, tendo sido omitida apenas a citada referência ao lugar da prática dos factos, tratando-se, porém, de uma circunstância a incluir apenas se possível, nos referidos termos legais.
Recorde-se que nos termos do art.º 283º, n.º 3, do C. Proc. Penal, a acusação contém, sob pena de nulidade:
“a) ...
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática …”.
E como já se decidiu no acórdão de 30.05.2007, deste Tribunal da Relação, proferido no recurso n.º 9563/2006-3 (in www.dgsi.pt): “Não deverá ser rejeitada, por manifestamente infundada, a acusação deduzida … contra a arguida … ainda que contendo uma enunciação fáctica deficiente, se aquela comporta factos bastantes minimamente susceptíveis de justificarem a aplicação de uma pena.”
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ob cit, pág. 790:
“O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal Portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante.”
E, a propósito da articulação do n.º 3, do art.º 311º com a nulidade prevista no n.º 3, do art.º 283º, escreve Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Verbo, 2000, págs. 207 e 208, no que se refere à al. b), deste último normativo:
“Se não há factos objecto da acusação, não pode haver processo, a relação é inexistente, não pode manter-se o processo e, por isso, o juiz não deve receber a acusação. A narração defeituosa, mas suprível, constitui nulidade sanável e, por isso, não é também causa de rejeição da acusação, se não for arguida.” - sublinhado nosso.
Assim sendo e em conformidade, a decisão em causa deve ser substituída por outra que não rejeitando a acusação, por inadmissibilidade legal, designe data para julgamento, se não se verificarem outras circunstâncias que impeçam a designação dessa data.
Admitindo, se assim o entender, o pedido de indemnização deduzido.
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III DECISÃO
Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida, devendo a senhora Juiz, caso não encontre qualquer outro motivo que imponha a rejeição da acusação, dar seguimento aos termos do processo, tendo em conta o artigo 311º do CPP.
Sem tributação.
Notifique.
(Certifica-se que o acórdão foi elaborado e revisto pela relatora)

Coimbra, 10 de Julho de 2018

Isabel Valongo (relatora)

Jorge França (ajunto)