Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
431/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. RUI BARREIROS
Descritores: ALTERAÇÃODAS RESPOSTAS DADAS NO JULGAMENTO
Data do Acordão: 03/30/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Legislação Nacional: ART. 667ª.; 666.º C.P.C.
Sumário:

Apesar de ser difícil detectar se uma alteração a resposta dada no julgamento da matéria de facto constitui erro material, se for possível tirar essa conclusão com segurança, nada impede que se proceda à alteração.
Decisão Texto Integral:
Acordam, na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, no recurso de apelação nº 431/03, vindo do 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Cantanhede (acção ordinária nº 298-C/98):
...
6.1. A fls. 381, o Sr Juíz alterou as respostas que havia dado aos nºs. 16 a 20 da base instrutória: inicialmente, dados como provados, foram, então, considerados não provados.
...
10. O Direito.
10.1. Relativamente ao agravo.
10.1.1. No despacho em que foram dadas as respostas à base instrutória, proferido em 23 de Outubro de 2001, deu-se como não provada a matéria sob os números 16 a 20. De seguida, o processo foi concluso para prolação da sentença, e, em 20 de Novembro de 2001, o Sr. Juiz proferiu um despacho a alterar as respostas dadas aos referidos números: «ao pretender elaborara a sentença constato que, por manifesto erro de escrita, considerei que as respostas aos quesitos 16º a 20º eram “provados”, quando, na verdade, as respostas deveriam ser de “não provados”».
10.1.2. A recorrente defende que a alteração às respostas não tem base legal, não sendo possível fazê-la no momento da elaboração da sentença; não resulta que tivesse havido erro manifesto, tanto que a fundamentação das primeiras respostas remete para a prova testemunhal e a recorrente apresentou testemunhas que depuseram de forma a poder dar-se como provada a referida matéria; tal alteração impede que a recorrente reclamasse das respostas dadas, por força da primeira resposta dada; houve trânsito em julgado e tem de salvaguardar-se o princípio de segurança e certeza jurídica; não se vê contradição entre as primeiras respostas e a respectiva fundamentação; a sentença há-de ser elaborada de acordo com as respostas dadas e não o inverso. O poder jurisdicional tinha-se esgotado.
A recorrida defende tratar-se de um erro de escrita e que a matéria dos números 1 a 11, para além da constante da Especificação, já era suficiente para a procedência do pedido.
10.1.3.1. Se é certo que «proferido o despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria respectiva» [1], também é verdade que «se o despacho contiver erros de escrita ou quaisquer inexactidões devidas a lapso manifesto, pode ser corrigido por simples despacho a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz» [2]. O Sr. Prof. Alberto dos Reis, por causa de divergência com o Sr. Prof. Barbosa de Magalhães, teve o cuidado de explicitar que «o princípio da intangibilidade da decisão judicial, formulado no art.666º, pressupõe que a sentença ou despacho reproduz fielmente a vontade do juiz» [3]; pelo que «a inalterabilidade da decisão cessa quando a vontade expressa na sentença [4] não é a que o juiz quis declarar» [5].
Esta divergência entre o que foi escrito e aquilo que se queria ter escrito é que caracteriza o erro material. No erro de julgamento, o que se escreveu foi o que se quis escrever na altura, embora, posteriormente, se reconhecesse que estava mal escrito, mas por desconformidade com o direito ou com a realidade do facto ocorrido, e não por desencontro entre o pensamento e a actuação deste. Nesta distinção, o Sr. Prof. Alberto dos Reis, para ilustrar o erro material, dá o seguinte exemplo: o juiz queria escrever “absolvo” e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: “condeno”» [6].
10.1.3.2. Ora, o caso em análise, em princípio, tem proximidade com este exemplo, aquela referida troca de palavras também pode acontecer entre um “provado” e um “não provado”.
A recorrente cita três Acórdãos para estribar a sua posição. O primeiro, o Acórdão da Relação do Porto de 10 de Janeiro de 1995 [7], diz o mesmo que acabámos de dizer: «quando não existe qualquer lapso ou erro involuntário que tenha conduzido o Juiz a escrever algo diferente do que queria, não há erro material»; o que falta averiguar, em cada caso, é se há ou não erro material. O segundo, o Acórdão do STJ, de 17 de Junho de 1997, relatado pelo Sr. Conselheiro Cardona Ferreira [8], só indirectamente tem a ver com o nosso caso, o que veremos mais adiante: «quem não reclamou da selecção da matéria de facto não tem legitimidade para abordar tal matéria em recurso de decisão final». O terceiro é o que realmente tem a ver com o caso concreto deste processo: «o juiz que ao proferir a sentença se aperceba da contradição entre as respostas a dois quesitos não pode rectificar o erro, que é um erro de julgamento. Essa rectificação, não autorizada, alterou a matéria de facto, influindo no exame da causa, pelo que constitui nulidade nos termos do artigo 201º nº 1 do Código de Processo Civil» [9].
10.1.3.3. As soluções a dar aos problemas só podem ser iguais quando o são, também, os respectivos pressupostos. Quando se diz não pode rectificar o erro, que é um erro de julgamento, estamos de acordo, partindo do princípio que é, de facto, um erro de julgamento. Mas essa premissa tem de ser verificada, porque, se não for um erro de julgamento, a afirmação de que se não pode rectificar o erro já não é verdadeira.
Ora, a este propósito, o Sr. Prof. Alberto dos Reis trata a concreta questão das respostas aos quesitos, o que foi objecto de um Acórdão desta Relação, de 12 de Fevereiro de 1941: «quando as respostas do Tribunal Colectivo sejam contraditórias, não pode o presidente, ao lavrar a sentença, considerar erro de escrita a resposta dada a alguns quesitos em contradição com a dada a outros, atribuindo-se a responsabilidade de tal engano» [10]. E o Mestre faz a seguinte consideração: «na hipótese que estamos figurando, é muito difícil distinguir o simples erro material de escrita do erro de julgamento. Como há-de apreciar-se e verificar-se que, onde está provado, quis escrever-se não provado? Como há-de evitar-se que, a título de rectificação de erro material, o tribunal efectue uma verdadeira alteração do julgado? A dificuldade que apontamos, tornará, quase sempre, pràticamente impossível a aplicação do art. 667º ao caso que deixamos exposto» [11].
Estamos inteiramente de acordo com esta posição, mas temos de a ler atentamente porque o Mestre não afirma que, neste caso, é sempre impossível distinguir um erro material de um erro de julgamento; o que ele afirma é que é muito difícil essa distinção, praticamente impossível, mas não impossível.
10.1.3.4. Ora, considerando que o erro de escrita ou o lapso manifesto sempre há-se resultar do «próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita» [12], afigura-se-nos legítima a alteração operada pelo Sr. Juiz, por se tratar de um manifesto erro material.
As circunstâncias em que ocorreu o erro são de tal modo ostensivas, que não podem restar dúvidas de que, apesar da dificuldade prática de detecção do erro material, ele se verificou no caso em análise.
Logo em primeiro lugar, o facto do Sr. Juíz, na fundamentação, ter escrito: «os factos não provados foram assim considerados por sobre eles não ter existido prova objectiva e credível ou serem eles mera contra-prova dos já tidos por provados». Ora, no despacho viciado materialmente, não havia respostas de não provado, pelo que não fazia nenhum sentido ter-se escrito, logo a seguir às respostas, os factos não provados foram assim considerados por. Quais factos? Não os havia, na primeira versão!
Vejamos. As respostas aos números da base instrutória são as seguintes [13]:
- Quesitos 1º a 12º, ambos inclusive: provados;
- Quesito 13º: em 10 de Maio/00, a 3ª ré comunicou o início de exercício da sua actividade, reportada a 1.1.1996, na Repartição de Finanças. Tinha-se perguntado se «comunicou (a 3ª ré) à Repartição de Finanças de Trancoso, a sua actividade», pelo que a resposta nada tem de negativo, de “não provado”, mas, antes, é uma resposta afirmativa com desenvolvimento.
- Quesito 14º: provado;
- Quesito 15º: tem procedido à exploração de pelo menos um estabelecimento de restauração, em Viseu. Tinha-se perguntado se tem procedido à exploração de diversos estabelecimentos comerciais», pelo que a resposta, no máximo, é restritiva, mas do ponto de vista geográfico - em Viseu -, e restritivo só relativamente: pelo menos em Viseu - e não da essência do que foi perguntado - tem procedido à exploração de diversos estabelecimentos comerciais?-. A referida fundamentação nada tem a ver com esta resposta.
- Quesitos 16º a 20º, ambos inclusive: provados;
- Quesito 21º: o que consta da escritura inserta a fls. 347 e segs dos autos.
Então, qual é a resposta negativa que justificava que o Sr. Juiz, logo a seguir, na fundamentação, tivesse escrito os factos não provados foram assim considerados...?
Em segundo lugar, e continuando na referida motivação aos factos não provados, escreveu-se: ... foram assim considerados por sobre eles (os factos não provados) não ter existido prova objectiva e credível. Esta parte contraria frontalmente a tese da recorrente quando diz que apresentou testemunhas que corroboraram o que tinha alegado na Contestação. Aliás, não houve recurso da decisão de facto.
E continua a fundamentação: (e credível) ou serem eles mera contra-prova dos já tidos por provados. Ora, são exactamente os números 16º a 20º da base instrutória que contêm matéria contrária à alegada pela autora e esta, considerada provada, está consonante com a fundamentação dada. Este aspecto leva-nos inexoravelmente à impossibilidade de responder afirmativamente aos números 16 a 20 quando, ao mesmo tempo, se tinha respondido afirmativamente aos números 1 a 11, por os respectivos factos serem opostos, contraditórios.
Vejamos. A matéria dos números 16 a 20 foi retirada da Contestação da recorrente e a fundamentação das respostas primeiramente dadas afasta a resposta afirmativa à matéria alegada na Contestação, excepção feita à que não é oposta à alegada pela autora, como a que consta dos números 12 a 15, absolutamente indiferente à solução a dar ao conflito.
Na verdade, escrevia o Sr. Juiz na fundamentação inserta no primeiro despacho: «estribou-se a convicção do Tribunal ..., tendo sido essenciais os depoimentos das testemunhas arroladas pela autora que, no exercício das suas funções profissionais ligadas ao sector bancário, souberam do teor e montante dos encargos assumidos pelos primeiros réus. A sua subsequente conduta, alienando bens, mas mantendo, efectivamente, a respectiva gestão, e a não participação nela dos 2º e 3º réus na mesma, segundo regras de experiência comum e em termos de normalidade, permitiram a conclusão do desígnio de todos eles ao participarem nas alienações e aquisições em causa».
Fácil é concluir que, face a esta fundamentação, não era possível responder provado às seguintes perguntas:
...
10.1.3.5. Os restantes argumentos aduzidos pela recorrente no corpo das Alegações não põem em causa a nossa tese:
a) a alteração às resposta não impedia que a recorrente tivesse reclamasse das respostas dadas, quer das que constam do primeiro despacho, quer das do segundo;
b) só há trânsito em julgado quando se esgota o poder jurisdicional do juiz, o que, nos casos previstos no artigo 667º não acontece;
c) a sentença foi elaborada de acordo com as respostas dadas e não aconteceu, obviamente, o inverso; a verdade, é que a recorrente faz a afirmação, mas não a demonstra.
10.1.3.6. Portanto, neste caso concreto, com os elementos de interpretação que o próprio despacho materialmente viciado ostenta, é sem hesitação que consideramos ter havido um manifesto lapso de escrita. Uma coisa é ser muito difícil detectar um erro material num despacho de resposta à base instrutória, outra, diferente, é ser impossível: «na espécie particular sobre que recaiu o acórdão da Relação de Coimbra, a contradição entre as respostas devia ter sido desfeita mediante a reclamação admitida pela alínea h) do art. 653º. Desde que o não foi, nem o presidente tomou a iniciativa de convocar novamente o Tribunal Colectivo para fazer a rectificação do erro material, é claro que ...» [14]. Esta citação culmina e vem na sequência das que anteriormente fizemos do Sr. Prof. Alberto dos Reis, pelo que, quem tinha afirmado que era praticamente impossível distinguir a natureza do erro quando se responde aos quesitos, também admite que se faça a rectificação do erro material.
Quando, lá atrás, dissemos que havia proximidade entre um erro de “absolvo” e “condeno” e um de “não provado” e “provado”, restringimos a afirmação: em princípio; por causa desta tomada de posição do Sr. Prof. Alberto dos Reis quanto à impossibilidade prática (pràticamente impossível) de distinguir o erro material do de julgamento no contexto de um despacho de resposta às perguntas sobre a matéria de facto: «como há-de apreciar-se ...? Como há-de evitar-se que, a título de rectificação de erro material, o tribunal efectue uma verdadeira alteração do julgado?». Bem, mas se, apesar de tudo, for possível, da lógica e coerência do raciocínio, concluir com segurança que o que aconteceu foi realmente um corte entre o que se pensou e o que se actuou, tem de concluir-se pelo erro material, sem que as fórmulas apostas noutros documentos - passagens doutrinais e jurisprudenciais [15] - possam entorpecer o rigor e o desenvolvimento do direito. Temos de distinguir duas realidades diferentes: a) o facto de, num despacho de resposta à base instrutória, pela sua estrutura e natureza, ser difícil detectar um erro material (ao passo que numa peça em que se diga “condeno” ou “absolvo” tal derivar necessariamente de um raciocínio que já inculca aquela conclusão), daquelas palavras serem ostensivamente o corolário de uma construção lógica que as antecede; b) ser possível, num caso concreto, ter elementos suficientes para poder concluir pela existência de um erro material, apesar da diferença que há entre um despacho de resposta à base instrutória e uma conclusão que leva a “condenar” ou a “absolver”.
Assim, concluímos pela legalidade do segundo despacho, em que o Sr. Juíz rectificou as respostas dadas aos números 16 a 20 da base instrutória porque, notoriamente, ostensivamente, as inicialmente dadas estavam viciadas por erro de escrita. Até porque seguimos o que os recorrentes defendem nas suas Alegações: «Assim sendo, não pode deixar de valer, em relação ao despacho recorrido, o decidido pelo Acórdão da Relação de Coimbra de 21 do 04 de 1992 (BMJ, 416- 726) em cujos termos, para que o Juíz possa rectificar a sentença com base na existência de erro material, não basta que afirme a sua existência, sendo necessário também que esse erro seja evidenciado pelo contexto da decisão» [16].
10.2. Quanto ao recurso de apelação.
...
III – Conclusão.
Nestes termos, negam provimento ao agravo ...
Custas pela recorrente.
30 de Março de 2004.

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[1] nº 1, do artigo 666º, do Código de Processo Civil (CPC), adaptado por força do disposto no respectivo nº 3.
[2] nº 1, do artigo 667º, adaptado por força do disposto no nº 3 do artigo 666º, ambos do CPC.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, vol. V, pág. 130, anotação ao artigo 667º.
[4] ou no despacho.
[5] obra e local citado.
[6] obra e local citado, penúltimo §.
[7] a recorrente não indica o local de publicação e não o encontrámos em www.dgsi.pt.
[8] www.dgsi.pt.
[9] a recorrente não indica o local de publicação e não o encontrámos em www.dgsi.pt.
[10] publicado na Revista de Justiça, 26º, 163. Cf. obra e volume citados, pág. 133.
[11] obra e volume citados, págs. 133 e 134.
[12] artigo 249º do Código Civil (CC).
[13] fls. 378.
[14] Prof. Alberto dos Reis, obra e volume citados, pág. 134, 2º §; sublinhámos. É nesta passagem que o Mestre afirma que a contradição entre as respostas devia ter sido desfeita mediante reclamação, o que tem a ver com a afirmação contida no segundo Acórdão citado pela recorrente: não tendo havido reclamação não há legitimidade para levantar a questão em recurso.
[15] para já não falar de sumários, mesmo que eles condigam com o texto.
[16] Conclusão nº 5 das Alegações da recorrente (cf. nº 7.1.5.).