Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
39/10.8TBMDA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: ESPÉCIE DE RECURSO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
LITISCONSÓRCIO
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/08/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MÊDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 28º, 28º-A, 288º Nº 1, D), 487º NºS 1 E 2, 493º NºS 1 E 2, 494º, E), 495º, 524º, NºS 1 E 2 E 693º-B, 1ª PARTE, DO CPC.
Sumário: ITendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

II - No primeiro caso o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame.

III - No segundo caso o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação.

IV - Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas.

V - Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

VI - Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

VII - A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3º, nº 3 do CPC).

VIII – Tendo o Tribunal limitado-se a afirmar que as partes são legitimas, a decisão correspondente não adquiriu a força de caso julgado formal e, por isso, nada obstava a que a sentença final viesse a apreciar essa excepção dilatória – como nada impede, que o tribunal ad quem dela venha a conhecer (artºs 510º, nº 3, 1ª parte, e 660º, nº 1 do CPC).

IX - Pelas razões já indicadas, ainda que esse pressuposto processual geral não constitua objecto do recurso, porque se trata de pressuposto de que o tribunal conhece oficiosamente, o tribunal ad quem pode sempre apreciá-lo e, caso conclua pela sua falta, absolver o autor da instância reconvencional (artºs 288º, nº 1, d), 487º, nºs 1 e 2, 493º, nºs 1 e 2, 494º, e) e 495º do CPC).

X - Com as suas alegações do recurso de apelação as partes só podem juntar documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes – i.e., cuja apresentação foi impossível até à apresentação dessas alegações - ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 524º, nºs 1 e 2 e 693º-B, 1ª parte, do CPC).

XI - Esta faculdade não compreende o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia – e deveria – ter oferecido naquela instância.

XII - A superveniência pode ser objectiva ou subjectiva: é objectiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento.

XIII - A parte que pretenda, nas condições apontadas, oferecer o documento deve, portanto, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, i.e., alegando e demonstrando o carácter objectiva ou subjectivamente superveniente desse mesmo documento.

XIV - No tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar - a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento.

XV - A superveniência objectiva é facilmente determinável: se o documento foi produzido depois do encerramento da discussão em 1ª instância, ele é necessariamente superveniente.

XVI - Portanto, só a superveniência subjectiva pode justificar a admissibilidade da junção, o que coloca o problema delicado da aferição dessa superveniência, dado que, pressupondo aquela superveniência a ignorância não culposa do documento, importa verificar em que condições se pode dar relevância ao desconhecimento do documento pela parte.

XVII - No litisconsórcio necessário, todos os interessados devem demandar ou ser demandados.

XVIII - A falta de qualquer parte, activa ou passiva, numa hipótese de litisconsórcio necessário determina sempre a ilegitimidade da parte ou partes presentes em juízo (artº 28º, nº 1 do CPC).

XIX - São, fundamentalmente, dois os critérios orientadores do litisconsórcio necessário: critério da disponibilidade plural do objecto do processo, que tem expressão no litisconsórcio legal e convencional; o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos, que tem expressão no litisconsórcio natural.

XX - O litisconsórcio necessário legal é o que imposto pela lei (artº 28º, nº 1 e 28º-A do CPC).

XXI - De harmonia com a definição legal, o efeito útil normal da decisão é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes – e só delas – quanto ao objecto do processo e, por isso, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados e em que, portanto, a ausência de um deles nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido, conclusão que é imposta pelo facto de a lei admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados (artº 28º, nº 2, 2ª parte, do CPC).

XXII - A acção na qual se impugne o facto justificado notarialmente constitui uma acção de simples apreciação negativa. De uma forma breve, pode dizer-se que a acção de simples apreciação negativa é aquela em que o autor apenas pretende a declaração inexistência de uma relação ou de um facto juridicamente relevante (artº 4º, nºs 1 e 2, a) do CPC). O julgamento da acção de simples apreciação apenas faz aparecer direitos anteriores, é um simples espelho de direitos.

XXIII - Na acção de simples apreciação negativa a actividade judicial limita-se a retirar de um estado de incerteza grave e objectiva o direito ou facto jurídico, verificando, em juízo, a sua inexistência: a situação jurídica permanece inalterada, no sentido de que o juiz, com a sua pronúncia não faz mais do que colocar em evidência aquilo que no mundo do direito já existia.

XXIV - Tratando-se de acção de simples apreciação negativa é ao réu e não ao autor que compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artºs 342º, nº 1 e 343º, nº 1 do Código Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

J… propôs, no Tribunal Judicial da Comarca de Meda, contra F… e cônjuge, C…, acção declarativa de simples apreciação negativa, com processo comum, sumário pelo valor, em que formulou estes pedidos:

a) Serem considerados impugnados o direito e respectivos factos justificados pela escritura pública de 11.02.08, referente à invocada aquisição pelos réus, por usucapião, de três prédios rústicos e de 1/7 indiviso de outro, declarando-se que os réus não têm o direito de propriedade sobre os prédios objecto da aludida justificação notarial;

b) Ser declarado ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura pública de justificação notarial;

c) Ser ordenado o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura.

Fundamentou esta pretensão no facto de as declarações dos réus, documentadas naquela escritura, de harmonia com as quais, o réu F… adquiriu, ainda no estado de solteiro, os direitos naqueles imóveis, no ano de 1984, por doação verbal de A…, e está na posse deles, adquirida e mantida, sem violência nem oposição, há mais de 20 anos, serem falsas, e de, como herdeiro de A…, ter o direito de impugnar o facto justificado, desacompanhado dos demais co-herdeiros, já que aquela escritura, a manter-se, diminuiria o património da herança, em claro prejuízo seu e dos seus três irmãos e dos irmãos do réu.

Os réus defenderam-se alegando a veracidade das declarações documentadas na escritura e pediram, em reconvenção, a condenação do reconvindo a ser declarado o direito de propriedade dos reconvintes sobre os prédios identificados, descritos e confrontados na escritura de justificação e, por via disso, a condenação do mesmo reconvindo a ser declarada válida a mesma escritura de justificação notarial.

O despacho saneador admitiu o pedido reconvencional e, no tocante à legitimidade, limitou-se a declarar que as partes são legítimas.

A sentença final da causa julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente.

A decisão de indeferimento liminar do requerimento de interposição do recurso ordinário de apelação atravessado pelo autor foi revogada, por via de reclamação, pelo juiz relator.

O autor pede, no recurso, a revogação da sentença impugnada e a sua substituição por outra que, do mesmo passo, julgue a acção procedente e a reconvenção improcedente, e que condene os recorridos como litigantes de má fé em multa e em indemnização, a seu favor, em quantia não inferior a e 3 500,00, tendo extraído da sua alegação estas conclusões:

Na resposta, os recorridos, depois de observarem, designadamente, que não deve ser admitida a junção do documento oferecido pelos recorrentes com a sua alegação e que a decisão que declarou as partes legítimas transitou em julgado, concluíram pela improcedência do recurso.

2. Factos relevantes para o conhecimento do objecto do recurso.

2.5. O Tribunal de que provêm o recurso julgou provados, no seu conjunto, os seguintes factos:

2.6. Aos factos referidos em 2.5. deve adicionar-se, por se mostrar documentalmente provado, o seguinte:

1. J… casou com R… no dia 28 de Agosto de 1965.

3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].

Um dos fundamentos do recurso é constituído pela ilegitimidade ad causam do recorrente para a reconvenção, por preterição do litisconsórcio necessário natural: de harmonia com a alegação do impugnante, o pedido reconvencional só poderia produzir o seu efeito útil normal se dirigido contra todos os herdeiros de A…, já que os seus bens passaram a integrar o acervo da herança aberta por óbito daquele, de que são titulares os seus irmãos e os descendentes deles.

Tendo em conta a finalidade da impugnação, os recursos ordinários podem ser configurados como um meio de apreciação e de julgamento da acção por um tribunal superior ou como meio de controlo da decisão recorrida.

No primeiro caso, o objecto do recurso coincide com o objecto da instância recorrida, dado que o tribunal superior é chamado a apreciar e a julgar de novo a acção: o recurso pertence então à categoria do recurso de reexame; no segundo caso, o objecto do recurso é a decisão recorrida, dado que o tribunal ad quem só pode controlar se, em função dos elementos apurados na instância recorrida, essa decisão foi correctamente decidida, ou seja, se é conforme com esses elementos: nesta hipótese, o recurso integra-se no modelo de recurso de reponderação[2].

No direito português, os recursos ordinários visam a reapreciação da decisão proferida, dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento.

Isto significa que, em regra, o tribunal de recurso não pode ser chamado a pronunciar-se sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida ou sobre pedidos que não hajam sido formulados.

Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais – e não meios de julgamento de julgamento de questões novas[3].

Excluída está, portanto, a possibilidade de alegação de factos novos - ius novarum nova – na instância de recurso. Em qualquer das situações, salvaguarda-se, naturalmente, a possibilidade de apreciação, em qualquer grau de recurso, da matéria de conhecimento oficioso[4].

Face ao modelo do recurso de reponderação que o direito português consagra, o âmbito do recurso encontra-se objectivamente limitado pelas questões colocadas no tribunal recorrido pelo que, em regra, não é possível solicitar ao tribunal ad quem que se pronuncie sobre uma questão que não se integra no objecto da causa tal como foi apresentada e decidida na 1ª instância.

A função do recurso ordinário é, no nosso direito, a reapreciação da decisão recorrida e não um novo julgamento da causa. O modelo do nosso sistema de recursos é, portanto, o da reponderação e não o de reexame[5].

Não obstante o modelo português de recursos se estruturar decididamente em torno de modelo de reponderação, que torna imune a instância de recurso à modificação do contexto em que foi proferida a decisão recorrida, o sistema não é inteiramente fechado.

A primeira e significativa excepção a esse modelo é a representada pelas questões de conhecimento oficioso[6]: ao tribunal ad quem é sempre lícita a apreciação de qualquer questão de conhecimento oficioso ainda que esta não tenha sido decidida ou sequer colocada na instância recorrida. Estas questões – como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis – constituem um objecto implícito do recurso, que torna lícita a sua apreciação na instância correspondente, embora, quando isso suceda, de modo a assegurar a previsibilidade da decisão e evitar as chamadas decisões-surpresa, o tribunal ad quem deva dar uma efectiva possibilidade às partes de se pronunciarem sobre elas (artº 3 nº 3 do CPC).

É verdade que o despacho saneador declarou que tanto o autor como os réus eram partes legítimas. Todavia, aquele despacho não discutiu nem apreciou essa legitimidade e, portanto, não a julgou em concreto. Como se limitou a afirmar que as partes são legitimas, a decisão correspondente não adquiriu a força de caso julgado formal e, por isso, nada obstava a que a sentença final viesse a apreciar essa excepção dilatória – como nada impede, que o tribunal ad quem dela venha a conhecer (artºs 510 nº 3, 1ª parte, e 660 nº 1 do CPC). Pelas razões já indicadas, ainda que esse pressuposto processual geral não constitua objecto do recurso, porque se trata de pressuposto de que o tribunal conhece oficiosamente, o tribunal ad quem pode sempre apreciá-lo e, caso conclua pela sua falta, absolver o autor da instância reconvencional (artºs 288 nº 1 d), 487 nºs 1 e 2, 493 nºs 1 e 2, 494 e) e 495 do CPC).

Note-se que esta conclusão vale também para a legitimidade ad causam do autor relativamente a acção: nada obsta a que esta Relação conclua que, afinal, o autor não é dotado de legitimidade ad causam para a acção – e já não simplesmente para a reconvenção - por exemplo, por falta de constituição do litisconsórcio necessário natural do lado activo e, por isso, que também os recorridos devem ser absolvidos da instância relativa a essa mesma acção. E nem é necessário, para essa apreciação, a audição prévia autor, dado que este logo na petição inicial, prevenindo a oposição pelo réu da excepção dilatória correspondente, tratou de justificar a sua legitimidade para a proposição da acção e, portanto, de tornar patente o seu ponto de vista quanto à questão processual correspondente.

A uma tal decisão não obsta decerto o princípio da prevalência da decisão de mérito, de que o abandono do dogma da prioridade da apreciação dos pressupostos processuais relativamente ao julgamento do mérito da causa constitui corolário[7], de harmonia com o qual a decisão de absolvição da instância só é admissível caso o conhecimento do mérito do recurso não seja favorável á parte relativamente à qual se verifica a falta desse mesmo pressuposto processual (artº 288 nº 3, 2ª parte, do CPC).

É que o pressuposto processual da legitimidade plural, cujo preenchimento que a imposição do litisconsórcio necessário visa assegurar, não é exclusivamente ordenado pelos interesses das partes presentes em juízo, mas de todos os demais interessados a quem esse litisconsórcio também é imposto.

Nestas condições tendo em conta o conteúdo das alegações da recorrente e dos recorridos e o conteúdo da decisão impugnada, as questões que importa decidir são as de saber se a sentença apelada deve ser revogada e substituída por outra que:

a) Absolva, tanto o recorrente como os recorridos da instância, da reconvenção e da acção, respectivamente ilegitimidade ad causam, resultante da preterição do litisconsórcio necessário, e caso a resposta seja negativa;

b) Julgue a reconvenção improcedente e a acção procedente;

c) Condene os recorridos, por litigância de má fé, em multa, e em indemnização agravada a favor do recorrente.

A resolução deste problema vincula, naturalmente, à aferição dos critério aferidores do litisconsórcio necessário e dos poderes de controlo desta Relação relativamente à decisão da matéria de facto da 1ª instância, e à ponderação dos pressupostos da aquisição do direito real de propriedade por usucapião e da condenação por litigância de má fé.

Previamente, porém, há que resolver um outro problema: o da admissibilidade da junção do documento produzido pelo recorrente com a sua alegação de recurso.

3.2. Junção de documento.

A questão que se coloca nesta sede é a de saber se a junção do documento oferecido pelo recorrente com a sua alegação deve ou não ser admitida.

Realmente, o recorrente ofereceu com a sua alegação de recurso um contrato de arrendamento rural, celebrado, no dia 19 de Maio de 1987, entre A…, representado por …, e o recorrido, dos prédios objecto da escritura de justificação notarial.

Alegou, para justificar a junção, que, após a prolação da sentença impugnada, tendo os actuais mandatários tido conhecimento que o recorrido requerera a sua instalação como jovem agricultor, tentaram indagar junto das autoridades competentes o título que legitimara aquela instalação, tendo verificado a celebração daquele contrato, documento que não era do seu conhecimento até ao encerramento da discussão em 1ª instância, nem era do conhecimento público, só tendo saído da esfera privada para instrução do procedimento administrativo de jovem agricultor e não tendo sido participado ao serviço de finanças, o que dificultou o seu conhecimento e a sua obtenção.

Os apelados, F… e C…, responderam que logo na contestação alegaram que o primeiro concluiu um curso de jovem empresário agrícola em Mirandela, pelo que nessa altura, o recorrente não podia ignorar que havia requerido a sua instalação como jovem agricultor, não estando, assim, demonstrada a impossibilidade da sua junção, que aquele documento destinou-se apenas a instruir o projecto de jovem agricultor, numa altura em que sendo já possuidor dos prédios doados, não dispunha de título bastante, e que as declarações nele insertas não correspondem à verdade, já que nem A… quis arrendar nem o recorrido quis tomar de arrendamento.

A junção de documentos na instância de recurso obedece, compreensivelmente, a regras particularmente restritivas.

Com as suas alegações do recurso de apelação, as partes só podem juntar documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes – i.e., cuja apresentação foi impossível até à apresentação dessas alegações - ou cuja junção se torne necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (artº 524 nºs 1 e 2 e 693-B, 1ª parte, do CPC). Mas é claro que esta faculdade não compreende o caso de a parte pretender oferecer um documento que poderia – e deveria – ter oferecido naquela instância[8].

A superveniência pode ser objectiva ou subjectiva: é objectiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento.

A parte que pretenda, nas condições apontadas, oferecer o documento deve, portanto, demonstrar a impossibilidade da junção do documento no momento normal, i.e., alegando e demonstrando o carácter objectiva ou subjectivamente superveniente desse mesmo documento.

No tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar[9] - a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento.

A superveniência objectiva é facilmente determinável: se o documento foi produzido depois do encerramento da discussão em 1ª instância, ele é necessariamente superveniente. Não é, decerto, esse o caso do documento apresentado pelo recorrente com a sua alegação, dado que notoriamente foi produzido mesmo em data muito anterior à da proposição da acção.

Portanto, só a superveniência subjectiva pode justificar a admissibilidade da junção, o que coloca o problema delicado da aferição dessa superveniência, dado que, pressupondo aquela superveniência a ignorância não culposa do documento, importa verificar em que condições se pode dar relevância ao desconhecimento do documento pela parte.

Assim, há que determinar o grau de culpa que é incompatível com a superveniência subjectiva e, que, por isso, impede que a parte possa alegar o documento como superveniente, já que pode entender-se que qualquer desconhecimento negligente é incompatível com aquela superveniência ou que só a negligência grave no desconhecimento do documento obsta à sua alegação como superveniente.

Apesar do carácter espinhoso da questão, não parece razoável exigir que a parte assuma na procura das provas documentais relevantes para a defesa dos seus interesses um juízo uma diligência maior do que aquela que a lei exige que ela tenha perante a contraparte: como a litigância de má fé pressupõe a actuação com negligência grave, isso mostra que a negligência leve é desculpável e, por isso, processualmente irrelevante (artº 456 nº 2, proémio, do CPC).

Assim, só o desconhecimento do atempado da existência do documento assente numa negligência grave deve obstar à sua alegação como documento subjectivamente superveniente.

Portanto, sempre que a parte desconheça sem negligência grave um documento e, por esse motivo, não o tenha oferecido no momento próprio, a sua junção não fica irremediavelmente precludida e aquele documento pode ser invocado como documento subjectivamente superveniente.

Em qualquer caso, a parte deve alegar e demonstrar que o desconhecimento do documento não ficou a dever-se uma negligência sua, já que só desse modo o documento pode ter-se por subjectivamente superveniente.

Na espécie do recurso, o documento cuja junção vem pedida é um documento puramente particular e era detido pela administração agrária, por ter sido utilizado na instrução de um procedimento administrativo relativo a um projecto de investimento agrário não sendo, por isso, facilmente acessível a terceiros não sujeitos do procedimento.

É também certo, porém, que logo no articulado de contestação, os recorridos alegaram que o apelado frequentara e concluíra um curso de jovem agricultor – facto que, na resposta, o recorrente não impugnou – e que explorava agricolamente os terrenos, circunstâncias de que o recorrente podia, em termos de razoabilidade, extrair a conclusão de que o apelado se instalara como jovem agricultor, o que permitiria inquirir, antes do encerramento da discussão em 1º instância, junto da administração agrária, do título com base no qual o recorrido se estabelecera com jovem agricultor.

Independentemente desta consideração, a verdade é que não está demonstrado que o recorrente só depois do proferimento da sentença apelada tenha tido conhecimento da instalação do recorrido como jovem agricultor e, portanto, que só nesse momento estava em condições de indagar junto da administração agrária o título legitimador dessa instalação e, correspondentemente, de tomar conhecimento da existência do documento cuja junção requer na sua alegação. Quer dizer: não está demonstrado sequer o carácter subjectivamente superveniente do documento.

Repete-se: não basta alegar a superveniência subjectiva do documento, sendo ainda exigível à parte a prova quer do não conhecimento tempestivo do documento, quer da inimputabilidade a uma culpa própria da ignorância da existência dele.

Maneira que a conclusão a tirar é a de que documento considerado se não deve ter por subjectivamente superveniente, dado que está demonstrado sequer o conhecimento da sua existência apenas em momento posterior ao do encerramento da discussão em 1ª instância.

Importa, pois, recusar a sua junção.

Este incidente, não é anómalo, por se inserir na tramitação normal do processo do recurso e, por isso, não está sujeito a tributação (artº 7 nº 5 do RCP).

3.3. Critérios orientadores da previsão do litisconsórcio necessário.

À semelhança do que sucede com outros ordenamentos adjectivos, o sistema processual português toma como base as situações jurídicas que possuem um único titular, activo ou passivo, tratando a simples pluralidade de interessados e de partes através da adaptação do regime paradigmático, que é sempre a singularidade de autor ou de réu. A verdade, porém, é que a legitimidade plural não é um simples somatório de legitimidade singulares, mas uma realidade com uma individualidade própria.

Do ponto de vista da sua origem, o litisconsórcio pode ser voluntário ou necessário e, na perspectiva da pluralidade de partes às quais é imposto, tanto pode ser activo ou passivo. O litisconsórcio necessário legal é aquele que imposto pela lei ao autor ou autores da acção ou ao réu ou réus reconvintes (artºs 28 nº 1 e 28-A do CPC).

No litisconsórcio necessário, todos os interessados devem demandar ou ser demandados. A falta de qualquer parte, activa ou passiva, numa hipótese de litisconsórcio necessário determina sempre a ilegitimidade da parte ou partes presentes em juízo (artº 28 nº 1 do CPC).

São, fundamentalmente, dois os critérios orientadores do litisconsórcio necessário: critério da disponibilidade plural do objecto do processo, que tem expressão no litisconsórcio legal e convencional; o critério da compatibilidade dos efeitos produzidos, que tem expressão no litisconsórcio natural.

O litisconsórcio necessário legal é o que imposto pela lei (artº 28 nº 1 e 28-A do CPC).

Exemplo de litisconsórcio necessário legal é o litisconsórcio entre cônjuges. Relativamente à propositura da acção, o litisconsórcio necessário quanto a direitos que apenas possam ser exercidos por ambos ou a bens que só possam ser administrados ou alienados (artº 28-A nº 1 do CPC). Nas acções referidas a actos de disposição, o litisconsórcio activo é necessário quando o objecto do processo for, designadamente, bens imóveis próprios ou comuns, salvo se os cônjuges forem casados no regime de separação de bens (artº 1692-A nº 1 do Código Civil).

Relativamente à demanda dos cônjuges, o litisconsórcio é imposto quando o objecto do processo for, nomeadamente, um direito que apenas pode ser exercido por ambos os cônjuges ou um bem que só por eles pode ser administrado ou alienado (artº 28 nº 3 do CPC).

O litisconsórcio necessário natural é o imposto pela realização do efeito útil normal da decisão do tribunal (artº 28 nº 2 do CPC).

De harmonia com a definição legal, o efeito útil normal da decisão é atingido quando sobrevém uma regulação definitiva da situação concreta das partes – e só delas – quanto ao objecto do processo e, por isso, o efeito útil normal pode ser conseguido ainda que não estejam presentes todos os interessados e em que, portanto, a ausência de um deles nem sempre constitui um obstáculo a que esse efeito possa ser atingido, conclusão que é imposta pelo facto de a lei admitir expressamente a não vinculação de todos os interessados (artº 28 nº 2, 2ª parte, do CPC).

Parece, assim, que se deve concluir que na determinação do litisconsórcio releva apenas a eventualidade de a sentença não compor definitivamente a situação jurídica das partes, por esta poder ser afectada pela solução dada numa outra acção entre outras partes.

Portanto, o litisconsórcio natural verifica-se, seguramente, quando sem a participação de todos os interessados, não é possível uma composição definitiva dos seus interesses. É que ocorre, por exemplo, na acção de divisão de coisa comum[10], na acção de prestação de contas[11] e na acção de revindicação de uma fracção autónoma de um imóvel em propriedade horizontal, com fundamento, na sua ocupação como parte comum, pelos condóminos que tem de ser proposta contra todos eles[12].

Todavia, a jurisprudência tem decidido que o litisconsórcio natural também se impõe quando a presença em juízo de todos os interessados seja necessária para garantir uma decisão uniforme entre eles, i.e., quando a ausência de qualquer dos interessados possibilite uma nova acção sobre a mesma relação e possa originar decisões contraditórias entre eles. De harmonia com esta orientação, o litisconsórcio natural é imposto, por exemplo, na acção de declaração de nulidade da venda de um imóvel que deve ser proposta por todos os herdeiros do vendedor[13], na acção de declaração de nulidade, por simulação de alienação de um lote de acções que deve instaurada contra todos os simuladores[14], na acção de preferência que deve ser proposta por todos os comproprietários[15], na acção de anulação de contrato promessa de compra e venda, que deve ser promovida por todos os promitentes-compradores[16], e na acção na qual se pede a declaração de nulidade de um contrato de compra e venda, em que é necessário demandar todos os intervenientes nesse negócio[17].

Quer dizer: o litisconsórcio natural é imposto quer por razões de compatibilidade lógico-jurídica, quer por motivos de coerência prática, i.e., o litisconsórcio necessário deve constituir-se não apenas nos casos em que a repartição dos vários interessados por acções distintas impeça uma composição definitiva entre as partes na causa – mas também nas situações em que a repartição dos interessados por acções distintas possa obstar a uma solução uniforme entres todos eles.

E è justamente esse o caso do recurso no tocante ao pedido reconvencional.

Os recorridos visam com a reconvenção estes exactos efeitos jurídicos: a declaração de que são titulares do direito real sobre os prédios rústicos objecto da escritura de justificação notarial impugnada pelo autor; a declaração de validade desta escritura.

Todavia, como emerge do contraditório desenvolvido pelas partes, tanto nos articulados como nas alegações do recurso, esses prédios integram a herança aberta por óbito de A… em que são também interessados pessoas diversas do recorrente e dos recorridos.

Nestas condições, a sentença a proferida no tocante à reconvenção só produz o seu efeito útil normal com a intervenção de todos os interessados na herança de A…, porque só essa participação comum assegura uma decisão uniforme entre eles, dado que a ausência de qualquer desses interessados torna admissível uma nova acção sobre a mesma relação ou com o mesmo objecto – a validade da escritura de justificação e a titularidade pelos recorridos do direito real de propriedade sobre os prédios – susceptíveis de originar decisões contraditórias entre eles: para alguns dos interessados naquela herança a escritura seria válida e os recorridos titulares daquele direito real e para outros não.

Ora, desde que a repartição dos vários interessados por acções distintas pode impedir uma solução uniforme daqueles dois problemas entre todos eles, deve realmente entender-se que a lei impõe o litisconsórcio natural entre o autor e os todos os herdeiros que foram chamados à herança de A...

Sendo isto exacto, segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que efectivamente, o recorrente não é dotado de legitimidade ad causam para a reconvenção, por preterição do litisconsórcio necessário natural e, por isso, que aquele deve ser absolvido da instância correspondente.

De resto, essa ilegitimidade é também patente, embora com outro fundamento: a preterição do litisconsórcio necessário passivo entre cônjuges: é que o autor é casado, no regime de comunhão geral de bens, e o objecto do processo é constituído por um bem que só por ambos pode ser administrado (artºs 1108 do Código Civil de 1867).

Simplesmente, essa mesma razão impõe a conclusão de que o autor, desacompanhado, quer dos demais interessados na herança de A… quer do seu cônjuge, não é também dotado de legitimidade ad causam para a acção o que justifica a absolvição dos recorridos da instância.

De forma deliberadamente simplificadora, pode dizer-se que a escritura pública de justificação que documenta as declarações dos recorridos relativas ao título, à posse e ao completamento do prazo da usucapião, prova plenamente que aqueles produziram essas declarações – mas não prova evidentemente que tais declarações sejam verdadeiras.

Admite-se, por isso, com larga liberalidade, a todo o tempo, a impugnação do facto justificado (artº 101 nº 1 do Código do Notariado e 8 nº 1 do Código de Registo Predial)[18].

A acção na qual se impugne o facto justificado notarialmente constitui uma acção de simples apreciação negativa. De uma forma breve, pode dizer-se que a acção de simples apreciação negativa é aquela em que o autor apenas pretende a declaração inexistência de uma relação ou de um facto juridicamente relevante (artº 4 nºs 1 e 2 a) do CPC). O julgamento da acção de simples apreciação apenas faz aparecer direitos anteriores, é um simples espelho de direitos[19].

Na acção de simples apreciação negativa, a actividade judicial limita-se a retirar de um estado de incerteza grave e objectiva o direito ou facto jurídico, verificando, em juízo, a sua inexistência: a situação jurídica permanece inalterada, no sentido de que o juiz, com a sua pronúncia não faz mais do que colocar em evidência aquilo que no mundo do direito já existia.

Em contrário, aparentemente, do princípio geral, tratando-se de acção de simples apreciação negativa, é ao réu e não ao autor que compete fazer a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artºs 342 nº 1 e 343 nº 1 do Código Civil).

Portanto, não é ao autor que está gravado com o encargo de provar a inexistência do direito ou de facto; é antes o réu que está onerado com a prova dos factos constitutivos desse direito.

No caso do recurso, o autor pede que se declare que os réus não têm o direito de propriedade objecto da justificação notarial e a ineficácia desta mesma escritura; por sua vez, os réus pedem, na reconvenção, a declaração do seu direito de propriedade sobre os prédios e da validade daquela escritura.

A reconvenção consiste, tipicamente, numa acção declarativa – condenatória, constitutiva ou de mera apreciação – proposta através da contestação, pelo réu contra o autor, e que provoca, no caso de ser admissível, uma acumulação, no processo pendente, de acções cruzadas ou sincrónicas – a acção inicial e a acção reconvencional. Numa palavra: a reconvenção é a demanda do demandado.

A reconvenção supõe, necessariamente, um pedido que deve ser a lógica conclusão dos seus fundamentos (artº 501 nº 1 do CPC). Esse pedido pode assumir uma natureza condenatória, constitutiva ou de mera apreciação.

Mas nem todo o pedido formulado pelo réu na contestação constitui uma reconvenção. Para que isso suceda é necessário que esse pedido seja autónomo em relação ao pedido do autor: o réu, através do pedido reconvencional, há-de querer obter do tribunal um efeito distinto da mera improcedência do pedido do autor. Um pedido que se destina apenas a afastar o direito alegado pelo autor não é uma reconvenção.

A autonomia do pedido reconvencional só se verifica quando o réu vise alcançar um efeito que jamais poderá decorrer ou ser a natural decorrência da improcedência da acção: a reconvenção deve conter um objecto próprio e autónomo, uma pretensão verdadeiramente nova.

                A compreensão da autonomia da reconvenção nas acções de simples apreciação negativa levanta algumas dificuldades. O pedido do réu no sentido de ser declarada a existência do direito de que se arroga titular reveste-se de natureza reconvencional ou é antes um típico pedido defensivo, desprovido de autonomia relativamente à pretensão do autor?

Realmente, não falta quem sustente que sentença proferida em acção de simples apreciação negativa comporta, no tocante ao caso julgado uma consequência notável: a sentença que a julgue a acção improcedente equivale a uma sentença que declare a existência do direito negado pelo autor[20]. Não se vê realmente – afirma-se - outro resultado possível, uma vez que essa improcedência equivale – e só se justifica – pelo reconhecimento do direito do réu, quer dizer, a improcedência resulta da prova efectiva do direito.

Mas também não falta quem afirme que nas acções de simples apreciação negativa o réu deverá utilizar a reconvenção para pedir, caso o deseje, a apreciação positiva do direito negado pelo autor e, portanto, que para que o réu obtenha o reconhecimento do direito negado pelo autor, não basta que impugne procedentemente essa afirmação do autor, pois que a improcedência de uma acção de simples apreciação negativa não implica o reconhecimento de qualquer situação jurídica, mas só a demonstração da inexistência da situação jurídica[21].

No caso, por força do caso julgado formal que se formou sobre a decisão que admitiu a reconvenção, está definitivamente assente que o pedido dos réus constitui uma verdadeira reconvenção (artº 672 e 677 do CPC)

Seja como for, certo é que o pedido dos réus é simetricamente inverso ao do autor, constitui o exacto reverso da pretensão deduzida pelo último na acção.

 Ora, seria deveras inexplicável que o autor, por estar desacompanhado dos restantes interessados na herança, não fosse dotado de legitimidade para a reconvenção, mas nesse mesmo condicionalismo, fosse dotado de legitimidade para a acção, que fosse dotado de legitimidade para pedir a declaração de que os recorridos não são titulares do direito real de propriedade e a ineficácia da escritura de justificação mas já não para contra ele ser pedida a declaração inversa.

De resto, o litisconsórcio necessário é aqui imposto não só pela compatibilidade dos efeitos produzidos – mas mesmo pela indisponibilidade individual do objecto do processo. Dito doutra forma, o caso não é de litisconsórcio necessário natural, mas mesmo de litisconsórcio necessário legal.

O autor alegou, logo na petição inicial, que, como herdeiro de A… tem o direito de impugnar em juízo o facto justificado, pois que tem interesse em que a totalidade do seu património hereditário seja preservada e que a escritura em apreço, a manter-se diminuiria, como é evidente, o património da referida herança, em prejuízo dos seus direitos, o aqui autor e seus três irmãos, e bem assim os irmãos do réu.

Portanto, o caso é, mesmo no ver do recorrente, de exercício de um direito relativo à herança.

Não se trata, porém, de acção de petição da herança, dado que esta tem como pedido principal o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro e como pedido derivado a condenação da pessoa, singular ou colectiva, contra quem o reconhecimento é pedido à entrega de todos os bens que compõem a herança ou parte deles (artº 2075 do Código Civil).

E não se tratando de petição de herança – que se individualiza através do fundamento específico do seu pedido principal – mas visando tanto a acção como a reconvenção actuar direitos relativos a uma herança a lei impõe aqui o litisconsórcio: os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros (artº 2091 nº 1 do Código Civil).

É certo que já decidiu – como logo salientou o recorrente na petição inicial – que no tocante à impugnação dos factos justificados por escritura de justificação notarial, a lei não imporia o litisconsórcio necessário activo entre todos os herdeiros, pelo que qualquer deles, desacompanhado dos restantes, disporia de legitimidade ad causam para a acção de simples apreciação negativa correspondente[22].

Faz-se notar, por um lado, que o herdeiro tem interesse na procedência desta acção, que tem por objectivo essencial o reconhecimento da inexistência do direito do R., que decorreria da justificação impugnada e, deste modo, a salvaguarda da integridade do activo hereditário, e, por outro que, no fundo, essa pretensão fica aquém e representa um menos em relação à que é prosseguida com a acção de petição de herança (art. 2075º do CC), que envolve a restituição dos bens que o demandado possui e a sua integração no acervo da herança e que, em relação a esta acção, reconhece-se ao herdeiro legitimidade para, separadamente dos demais herdeiros, pedir a totalidade dos bens em poder do demandado, pelo que seria incongruente que o mesmo herdeiro não tivesse legitimidade para impugnar a escritura de justificação notarial, visando, no fundo, um objectivo no essencial idêntico, que é, como se disse, o de salvaguardar a integridade do património hereditário.

È claro que o herdeiro tem interesse na impugnação da escritura e dos factos justificados. Mas a questão não é essa: é antes a de saber se pode actuar esse interesse desacompanhado dos demais herdeiros.

Depois, o argumento de que a acção de impugnação é um minus relativamente à acção de petição da herança – que é em si mesmo exacto – também não colhe: basta pensar que a acção de petição da herança é uma excepção à regra do exercício necessariamente conjunto por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros dos direitos relativos a bens integrados num património hereditário.

Ressalvado o caso da acção de petição de herança todos os direitos a ela relativos devem ser exercidos por ou contra todos os herdeiros, regra que exprime, adjectivamente, a situação de indisponibilidade individual – ou de disponibilidade plural – desses mesmos direitos.

Como se notou, sustenta-se que a sentença que a julgue improcedente a acção de simples apreciação negativa equivale a uma sentença que declare a existência do direito negado pelo autor. Sendo isto exacto, quando o objecto do processo consistir num direito que apenas possa ser exercido por ambos os cônjuges ou num bem que só por ambos possa ser alienado, então deve entender-se que a lei impõe o litisconsórcio necessário activo entre os cônjuges.

Mas vamos que aquela sentença não tem aquela eficácia e, portanto, que a sua improcedência da acção não implica o reconhecimento de qualquer situação jurídica, mas só a demonstração da inexistência da situação jurídica. Mesmo neste caso, deve ter-se por certo que o trânsito em julgado dessa acção impede que o autor, por força do caso julgado material correspondente, volte a instaurar essa mesma acção.

Assim, no caso de improcedência da acção de impugnação da escritura de justificação notarial, rectior, de impugnação dos factos justificados, a escritura de justificação e o subsequente acto de registo predial da aquisição do direito justificado – e a presunção de que dele decorre - permanece plenamente eficaz e oponível ao autor (artº 7 do CR Predial). Aquela eficácia e esta oponibilidade tornam indiscutível, na relação entre o autor e o justificante, que o último é realmente titular do direito real de justificado.

Nestas condições, se a acção tiver por objecto um direito que apenas possa ser exercido por ambos os cônjuges ou um bem que só por ambos possa ser alienado deve entender-se que, no tocante à propositura da acção, o litisconsórcio entre os cônjuges é também necessário. E não é outro o caso do recurso.

De tudo isto, pode, portanto, retirar-se esta conclusão: o autor não é dotado de legitimidade ad causam quer para a reconvenção quer para a acção, por preterição do litisconsórcio necessário.

Importa, portanto, absolver o recorrente da instância relativa à reconvenção - e os recorridos da instância relativa à acção (artºs 288 nº 1 d), 287 nºs 1 e 2, 493 nºs 1 e 2, 494 e) e 495 do CPC).

Esta decisão prejudica, evidentemente, a apreciação do mérito do recurso (artº 493 nº 2, 1ª parte, do CPC).

 Por sua vez, a abstenção do conhecimento desse mérito, e a inadmissibilidade da junção do documento oferecido pelo recorrente com a sua alegação, prejudica a apreciação do pedido de condenação dos recorridos como litigantes de má fé, dado que tal apreciação estava, necessariamente, na dependência da admissibilidade daquela junção e daquele conhecimento de mérito (artº 660 nº 2 do CPC).

A argumentação exposta para justificar a decisão absolutória da instância dos réus e do autor reconvindo, pode condensar-se nestas proposições: no caso de impugnação de escritura de justificação de direito relativo a bem que se integre na comunhão hereditária e na comunhão conjugal, é imposto o litisconsórcio necessário entre o autor e os demais interessados na herança e, bem assim, o seu cônjuge; na reconvenção no qual se pede a declaração de que se é titular do direito real justificado e a validade da escritura de justificação, é imposto o litisconsórcio natural passivo entre o autor e todos herdeiros chamados à herança na qual aquele direito se integrava.

                O recorrente e os recorridos deverão suportar, porque sucumbem, reciprocamente no recurso, as custas dele (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento do objecto processual do recurso, a respectiva taxa de justiça dever ser fixada nos termos da Tabela I-B, que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos:

a) Não se admite a junção do documento oferecido pelo recorrente, J… com a sua alegação de recurso;

b) Revoga-se a decisão impugnada e, consequentemente, absolve-se o recorrente, J…, da instância relativa à reconvenção, e os recorridos, F… e cônjuge, C…, da instância relativa à acção.

 Custas do recurso pelo recorrente, com base no valor da acção, e pelos recorridos, com base no valor da reconvenção, devendo a taxa de justiça ser fixada nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.

                                                                                                             

                                                                                                              Henrique Antunes (Relator)

                                                                                                     Regina Rosa

Artur Dias


[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.3.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1994, pág. 138 e ss., e Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra, 2009, págs. 50 e 51, Freitas do Amaral, Conceito e Natureza do Recurso Hierárquico, Coimbra, 1981, pág. 227 e ss. Embora sem aceitar a invocação de factos novos pelas partes, o recurso de apelação aproxima-se, numa situação específica, do modelo de recurso de reexame. Trata-se da possibilidade de a Relação determinar a renovação dos meios de prova produzidos na 1ª instância, que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade (artº 712 nº 3 do CPC). Nesta hipótese, o tribunal de recurso não se limita a controlar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, antes manda efectuar perante ele a prova produzida na instância recorrida.
[3] A afirmação de que os recursos visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova constitui jurisprudência firme. Cfr., v.g., Acs. STJ de 14.05.93, CJ STJ, 93, II, pág. 62 e RL de 02.11.95, CJ, 95, V, pág. 98.
[4] Ac. STJ de 23.03.96, CJ, 96, II, pág. 86.
[5] Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, pág. 81.
[6] Ac. do STJ de 23.05.96, CJ, II, pág. 86.
[7] Miguel Teixeira de Sousa, “Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais (Algumas reflexões sobre o dogma da apreciação prévia dos pressupostos processuais na acção declarativa)”, ROA, 49, 1989, págs. 85 e ss.
[8] Ac. do STJ de 03.03.89, BMJ nº 385, pág. 545 e João Espírito Santo, O Documento Superveniente para Efeitos de Recurso Ordinário e Extraordinário, Almedina, Coimbra, 2001, págs. 47 a 53.
[9] João Espírito Santo, O Documento Superveniente para efeito de recurso ordinário e extraordinário, cit., pág. 47.
[10] Ac. da RP de 08.07.82, CJ, 82, IV, pág. 205.
[11] Ac. da RC de 10.05.94, BMJ nº 437, pág. 590.
[12] Ac. do STJ de 15.12.81, BMJ nº 312, pág. 258 e Antunes Varela, RLJ, Ano 117, pág. 349.
[13] Ac. da RL de 18.02.76, CJ, I, pág. 239.
[14] Ac. do STJ de 16.07.85, BMJ nº 349, pág. 405.
[15] Ac. da RP de 03.04. BMJ nº 356, pág.440; contra, contudo, o Ac. da RC de 03.11.81, CJ, 81, V, pág. 55.
[16] Ac. do STJ de 18.02.88, BMJ nº 374, pág. 410.
[17] Ac. da RC de 17.04.90, BMJ nº 396, pág. 447.
[18] Ac. do STJ de 15.06.94, CJ, STJ, II, II, pág. 140).
[19] Miguel Teixeira de Sousa, Acções de simples apreciação (objecto; conceito; ónus da prova; legitimidade) RDES, 25 (1978), pág. 127 e ss., Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, 1967, págs. 199 e ss. cfr. Acs. do STJ de 04.01.79, BMJ nº 283, pág. 286 e 15.06.78, BMJ nº 278, pág. 144 e RL de 14.05.92 e 13.03.86, CJ, 92, III, pág. 177 e 86, II, pág. 102.
[20] Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, 1968, pág. 303, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, pág. 205, nota (1), Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, pág. 715, José Alberto C. Vieira, Direitos Reais, Coimbra, Editora, Coimbra, pág. 501 e Ac. do STJ de 30.01.03, www.dgsi.pt.
[21] Miguel Teixeira de Sousa, As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa, Lex, 1995, pág. 220, e o Interesse Processual na Acção Declarativa, Lisboa, AAFDL, 1989, pág. 31, Miguel Mesquita, Reconvenção e Excepção no Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 125, e J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto,  3ª edição, Coimbra, 2011, pág. 130, e Ac. do STJ de 23.01.01, CJ, STJ, I, pág. 77. Note-se que, no passado, o primeiro daqueles autores sustentou entendimento diverso. Cfr. “O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ nº 325, pág. 133.
[22] Ac. da RP de 13.10.05, www.dgsi.pt.