Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
198/11.2TBSPS
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ALCOOLÉMIA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 10/09/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: S PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 19 C) DL Nº 522/85 DE 31/12, 563 CC
Sumário: 1. Há nexo de causalidade, para efeitos do disposto no artigo 563.º do Código Civil, entre uma acção e um evento, quando a acção do agente coloca, no processo causal que desembocou no evento, uma condição sem a qual esse processo causal não se teria formado, desde que a condição posta pelo agente, segundo a regra id quod plerumque accidit, contribua, juntamente com as outras condições existentes, para a produção desse resultado, salvo se a condição introduzida pelo agente for, na prática, inadequada para o resultado verificado, que só se produziu devido a outra ou outras condições anómalas ou excepcionais não conhecidas e, por isso, não controláveis pelo agente.
2. Comparando um condutor portador de uma taxa de alcoolemia de 1,03 g/l com um condutor sóbrio, o primeiro reage meio segundo mais tarde aos estímulos visuais que recebe. Considerando apenas uma velocidade de 36 km/hora, o condutor alcoolizado avança mais 5 metros antes de reagir aos mesmos estímulos, quando comparado com um condutor sóbrio, aumentando esta distância proporcionalmente à velocidade imprimida ao veículo.
3. Há nexo de causalidade, para efeitos do disposto no art. 19.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, entre um estado de alcoolemia de 1,03 g/l do condutor e o despiste do automóvel que conduzia, quando:
(a) O condutor ao chegar a uma curva, para sua esquerda, em vez de a descrever, mantém a mesma trajectória e sai para fora da faixa de rodagem embatendo num muro;
(b) Se verifica que, ao mesmo tempo, os cinco metros referidos em «III» eram suficientes para o condutor, ao aproximar-se da curva, seguir em frente e sair da faixa de rodagem, antes de dar início à acção apropriada à feitura da curva, após se aperceber dela, e que consistia em rodar o volante da direita para a esquerda e reduzir eventualmente a velocidade.
(c) Se constata a inexistência de qualquer outro facto indicativo de uma causa explicativa e alternativa para o despiste.
4. Não há qualquer justificação de natureza prática que possa levar o julgador a concluir que a explicação do acidente reside numa causa desconhecida, para a qual não existem indícios, e não reside na presença de uma taxa de 1,03 g/l na corrente sanguínea do condutor, quando esta taxa de alcoolemia tem capacidade explicativa relativamente ao evento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra (2.ª secção cível):

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Recorrente/Réu…………………...CO (…)

Recorrida/Autora………………….Companhia de Seguros F (…), S.A.


*

I. Relatório.

a) O presente recurso vem interposto da decisão que condenou o Réu a pagar à Autora a quantia de €86 474,35 (oitenta e seis mil, quatrocentos e setenta e quatro euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, contados desde o dia 01 de Junho de 2011, até integral pagamento.

Tal condenação resultou do facto do Réu ter sido interveniente num acidente de viação, ocorrido no dia 2 de Julho de 2007, quando conduzia o seu veículo automóvel.

O acidente consistiu no despiste do veículo contra um muro, evento que causou lesões em (…) e a morte de (…).

Devido ao contrato de seguro que tinha celebrado com o Réu, a Autora assumiu as responsabilidades deste perante terceiros, tendo pago, por isso, indemnizações no montante de €86 474,35 euros.

Exige agora do Réu, através da presente acção, o pagamento das quantias que pagou aos lesados, devido ao facto do Réu, na altura do acidente, ser portador de uma taxa de alcoolemia de 1,03 gramas por litro de sangue, facto que lhe confere um direito de regresso quanto ao que pagou, nos termos previsto no art. 19.º, al. c), do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

O Réu contestou o pedido da Autora e recorre agora da sentença que acolheu a pretensão dela porque, em síntese, entende que o facto de conduzir sob a influência de álcool na altura do acidente, em nada contribuiu para a ocorrência do mesmo.

Apresentou as seguintes conclusões:

«De todo o exposto resulta que, das provas quer testemunhal, quer documental não pode o douto tribunal condenar o R. a devolver aquela quantia peticionada. Não há nexo de causalidade entre o álcool de que seria portador o R., e a morte do António Pereira, para que a autora venha requerer o regresso dos montantes pagos às vítimas.

2.º - A A., não demonstrou, nem provou nos autos o nexo de causalidade, como lhe competia fazer.

3º Aliás, a causa da morte de (…) foi o de não trazer colocado o cinto de segurança, podendo concluir-se que caso o trouxesse não teria falecido.

4º O R., não está de acordo com a douta decisão do tribunal, que não decidiu correctamente, salvo melhor opinião. Não decidiu bem ao condenar o R., no pagamento global de 86 474,35 euros, em sede de direito de regresso, tendo este o seu Seguro em dia.

Nestes termos…».

A Autora contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão, referindo, em síntese, que a quantidade de álcool no sangue do Réu era idónea a provocar nele incapacidade sensitiva e neuromotora, diminuidora da sua percepção e reacção relativamente à condução do automóvel, sendo previsível que nestas condições o réu tivesse um acidente.

Quanto à imputação do falecimento da vítima ao facto de ela não levar colocado o cinto de segurança, é matéria de facto nova, a qual não pode ser apreciada em sede de recurso.

Concluiu pela improcedência do recurso.

b) Objecto do recurso.

A questão que cumpre apreciar e decidir no presente recurso consiste em verificar se, face aos factos provados, se pode concluir pela existência de um nexo de causalidade entre o despiste do veículo e a presença de álcool no sangue do Réu, na proporção de 1,03 gramas de álcool por cada 1000 mililitros de sangue.

Antes, porém, coloca-se uma questão que as partes não suscitaram, mas que não pode deixar de ser analisada.

Consiste em saber se a resposta dada ao quesito 4.º pode ser mantida, caso se considere que a resposta configura um juízo conclusivo de facto ou mesmo matéria de direito.

A resposta foi esta: «A taxa de álcool no sangue referida no ponto «4» contribuiu para a atitude do réu referida no ponto «8», isto é, contribuiu para o despiste.

Com efeito, se se mantiver esta resposta, a questão colocada no recurso fica resolvida ou, pelo menos, simplificada, na medida em que o nexo de causalidade sob o ponto de vista naturalístico está afirmado nessa resposta, a qual não foi impugnada em sede de recurso da matéria de facto, nos termos do artigo 685.º-B do Código de Processo Civil.

Por conseguinte, analisar-se-á em primeiro lugar a questão de saber se esta resposta deve ou não manter-se.

II. Fundamentação.

 A – Matéria de facto provada.

1 - Por contrato de seguro celebrado entre a autora Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S. A., e o réu Casimiro Oliveira Almeida, titulado pela apólice n.º 751383197, válido em 02 de Julho de 2007, a primeira assumiu a responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel de matrícula 76-31-HQ.

2 - No dia 02 de Julho de 2007, pelas 07:35 horas, ocorreu um acidente na estrada que liga S. Pedro do Sul ao Lugar de Anciães, área do concelho de S. Pedro do Sul.

3 - Foi interveniente em tal acidente o veículo HQ, conduzido pelo Réu, e no qual seguiam como passageiros (…) e (…).

4 - No momento do acidente, o Réu era portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,03 g/l.

5 - O veículo HQ circulava no sentido de São Pedro do Sul para Anciães.

6 - Na zona do acidente, a estrada por onde seguia o veículo HQ descreve uma curva para a esquerda, considerando o sentido de circulação daquele.

7 - Tal curva apenas permite uma visibilidade de cerca de 15 metros.

8 - Aquando do acidente, o veículo HQ circulava a determinada velocidade, cuja grandeza concreta não foi possível apurar, mas que não permitiu ao réu controlar a trajectória do veículo que conduzia, de forma a descrever a curva aludida no ponto 6 sem sair dos limites da faixa de rodagem.

9 - Não tendo o réu conseguido controlar a trajectória do veículo que conduzia, este entrou em despiste e foi embater num muro existente do lado direito da estrada, atento o sentido que levava.

10 - Como consequência do embate referido no ponto anterior, os passageiros do HQ sofreram diversas lesões físicas, que implicaram tratamentos médicos e hospitalares.

11 - As lesões físicas provocadas no (…) ocasionaram a sua morte.

12 - A taxa de álcool no sangue referida no ponto «4» contribuiu para a atitude do Réu referida no ponto «8».

13 - O valor dos tratamentos médicos e hospitalares efectuados a (…) ascendeu a €30.319,51 euros, que a Autora já pagou.

14 - Entre o reembolso de despesas de funeral, e a compensação de danos não patrimoniais, a autora pagou aos herdeiros de (…) o valor global de €49.700 euros.

15 - Pagou a Autora àqueles herdeiros, a título de danos patrimoniais, o montante de €300,00 euros.

16 - O valor dos tratamentos médicos e hospitalares efectuados a (…) ascendeu a €1.654,84 euros, que a Autora já pagou.

17 - A título de indemnização pela hospitalização e compensação de danos não patrimoniais, a Autora pagou ao referido (…)o montante global de €4.500, 00 euros.

B – Análise das questões objecto do recurso.

1 – No que respeita à questão de saber se o nexo de causalidade integra matéria de facto ou de direito, afigura-se pertinente reproduzir as considerações feitas a este respeito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Dezembro de 1998 (Noronha Nascimento) ([1]), onde se ponderou que «…a fixação da sequência naturalística dos factos, que conduz a um certo dano, o seu encadeamento sequencial de modo a determinar se o efeito proveio de um dado facto anterior, tudo isso se reconduz a matéria de facto, já que estamos perante a ponderação do trajecto naturalístico dos actos que se sucedem uns aos outros.

Mas se nos situarmos no âmbito da causalidade jurídica, a questão muda de figura.

Aqui, do que se trata é já de valorar, integrar e enquadrar normativamente a sequência naturalística dos factos e das coisas em ordem a saber se – face ao mundo do direito – essa sequência revela de forma a poder fixar-se normativamente a conexão de causa e efeito entre um facto e um dano.

Daí que possamos dizer que o Supremo Tribunal não pode apreciar o trajecto sequencial dos factos, mas pode apreciar a valoração causal que esses factos e esse trajecto – predeterminado e pré-dado pelas instâncias – suscitam. Aqui já não estamos na esfera estrita dos factos mas da sua valoração jurídica».

Extrai-se destas considerações que os juízos de facto respeitam a questões sobre a existência, sobre aquilo que existe ou não existe; sobre o que acontece ou aconteceu.

Por isso, limitam-se a descrever a realidade em bruto, muito embora já interpretada pelo observador, e não contêm qualquer apreciação subjectiva, por exemplo, se algo é bom ou mau, útil ou inútil, etc.

Verifica-se, no presente caso, que já está afirmado na matéria de facto provada que a presença da mencionada quantidade de álcool na corrente sanguínea do Réu contribuiu para o despiste.

É o que resulta da resposta ao quesito 4.º que foi esta: «A taxa de álcool no sangue referida no ponto “4” contribuiu para a atitude do réu referida no ponto “8”».

Como acima se referiu, se se considerar que esta resposta é formada apenas por matéria factual, então este facto já contém a resposta à questão colocada no recurso, que respeita à existência ou inexistência de nexo de causalidade entre a presença de álcool no sangue do Autor e o despiste do veículo que conduzia.

Com efeito, afirmar que a taxa de álcool no sangue de 1,03 g/I contribuiu para a perda de controlo da trajectória do veículo por parte do Réu e saída para fora da faixa de rodagem, onde embateu num muro, é afirmar, sem dúvida, a existência de um nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o despiste.
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado, como se pode verificar, por exemplo, através do seu acórdão de 5 de Fevereiro de 2009 ([2]) no sentido de que devem ter-se como não escritos os «factos conclusivos» ou de natureza meramente jurídica, com fundamento no art. 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente.
No acórdão de 15 de Novembro de 2011, ponderou-se que «As afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do acervo factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, e, quando isso não suceda e o tribunal se pronuncie sobre as mesmas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita» ([3]).
Considerou-se neste último acórdão que só os factos podem ser objecto de prova e, por ser assim, o n.º 4, do artigo 646.º, do Código de Processo Civil, estende o seu campo de aplicação às asserções de natureza conclusiva, não pelo facto desta norma contemplar expressamente a situação, mas porque, analogicamente, aquela disposição deve ser aplicada a situações em que esteja em causa um facto conclusivo que se integre na matéria do thema decidendum, porque, nestes casos, os juízos de facto conclusivos são juízos de valor e estes devem extrair-se de factos concretos objecto de alegação e prova, ao invés de serem afirmados pura e simplesmente.
A situação em apreço enquadra-se sem dúvida no thema decidendum, pois afirma que a taxa de alcoolemia influiu no despiste.
Considerando o exposto, julga-se a mencionada resposta como não escrita.
Passando agora à segunda questão colocada.

2 – Vejamos agora, face aos factos provados, se se pode concluir pela existência de um nexo de causalidade entre a saída do veículo para fora da faixa de rodagem e a presença de álcool na corrente sanguínea do Réu, na proporção de 1,03 gramas de álcool por cada 1000 mililitros de sangue, tendo em conta a restante matéria de facto provada.

Esta questão é essencial para o desfecho da presente acção na medida em que, nos termos do Acórdão uniformizador de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 28 de Maio de 2002, «A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente» ([4]).

Como acabou de se referir, a causalidade que importa em definitivo considerar é a causalidade em sentido jurídico, como conceito jurídico.

Com efeito, nos termos do artigo 563.º do Código Civil, «A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria se não fosse a lesão».

A doutrina e a jurisprudência concordam no sentido de que esta norma consagra a teoria jurídica da causalidade adequada.

Nas palavras do Prof. Vaz Serra, «Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse resultado. O problema não é um problema de ordem física ou, de um modo geral, um problema de causalidade tal como pode ser havido nas ciências da natureza, mas um problema de política legislativa: saber quando é que a conduta do agente deve ser tida como causa do resultado, a ponto de ele ser obrigado a indemnizar.

Ora, sendo assim, parece razoável que o agente só responda pelos resultados, para cuja produção a sua conduta era adequada, e não por aqueles que tal conduta, de acordo com a sua natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para produzir e que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária. Esta fórmula que é a de Enneccerus, não se distancia substancialmente das demais, que se referiram.

Não se afigura conveniente que o agente responda pelos resultados para cuja produção a sua conduta não era adequada. Se a responsabilidade se basear na culpa, o razoável é que o agente responda pelos danos que a sua conduta podia, segundo a natureza geral e as regras ordinárias da experiência, causar – pois só esses danos podia ele prever, ainda que com grande esforço, como consequência da sua conduta.

Baseando-se a responsabilidade na culpa, só quer impor-se o dever de indemnizar a quem procede com negligência: ora, por mais previdente que o homem seja, não é natural ou, pelo menos, obrigatório, que preveja consequências extraordinárias da sua conduta.

E, se assim é quando o dever de indemnizar se fundar na culpa, com maioria de razão assim deve ser quando a responsabilidade for independente dela.

Isto não significa que, para haver nexo causal, seja indispensável a previsibilidade do dano (…).

Seja como for, e ainda que o devedor da indemnização deva reparar também os danos imprevisíveis, isso só quer dizer que é obrigado a reparar mesmo os danos que não podiam ser previstos com a sua usual diligência. Mas não implica que deva ser forçado a reparar os danos que a sua conduta não podia, segundo o curso ordinário das coisas, produzir» ([5]).
A teoria da causalidade adequada selecciona, pois, de entre as várias condições que produzem o resultado danoso, aquelas que justificam juridicamente a sua atribuição a determinadas pessoas, segundo um critério objectivo e abstracto de normalidade ou probabilidade para produzir o dano, de harmonia com as regras da experiência.

Ou seja, o agente, para poder ser responsabilizado, há-de colocar, através de uma acção ou omissão suas, no processo causal que desembocou no evento, uma condição sem a qual esse processo causal não se teria formado, desde que a condição posta pelo agente, segundo a regra id quod plerumque accidit, contribua, juntamente com as outras já existentes, para a produção desse resultado, só não sendo assim se a condição introduzida pelo agente for em termos práticos inadequada para o resultado verificado, que só se produziu devido à presença de outra ou outras condições anómalas ou excepcionais não conhecidas e, por isso, não controláveis pelo agente.
A responsabilização do agente compreende-se considerando que ele podia ter optado por não colocar essa condição, mas optou por colocá-la, ou, então, nos casos de negligência, devia ter previsto que estava a colocar essa condição em marcha e devia ter-se abstido de executar a acção.
Dentro desta concepção há uma formulação dita positiva (mais restrita), no sentido de que a causa de um prejuízo será toda a condição que, segundo um critério de normalidade, for adequada ou idónea a produzi-lo e não por força de circunstâncias particulares ou estranhas ao curso normal das coisas (a menos que fossem conhecidas do agente), e uma fórmula negativa (mais ampla) para a qual a condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre inteiramente inadequada, indiferente para aquele resultado, que só se produziu devido a circunstâncias anómalas ou excepcionais (não conhecidas do agente). A doutrina e a jurisprudência mais representativas têm optado por esta última formulação no que respeita a factos ilícitos e culposos ([6]).

Vejamos de perto o caso concreto.

Quando afirmamos que certa quantidade de álcool na corrente sanguínea do condutor contribuiu para um acidente, estamos a referir-nos à ocorrência de um processo de natureza física, que se desenvolveu no corpo do agente, protagonizado pela substância «álcool», e que alterou o normal funcionamento do seu sistema nervoso.

Cumpre ter na devida conta que o nexo de causalidade, considerado do ponto de vista naturalístico, não é uma coisa, um objecto observável, mas sim um processo ([7]) e um processo consiste numa actividade que existe entre um ponto de partida e um ponto de chegada.

O que significa que o processo constitui, em si mesmo, a explicação do evento produzido através desse processo, isto é, o processo causal e a explicação sobre o que tornou possível o evento são a mesma coisa.

Por estar em causa a existência ou não existência de um nexo de causalidade, antes de mais de natureza empírica, cumpre, então, deixar aqui um apontamento sobre a explicação causal dos factos, utilizando, para o efeito, os ensinamentos de Karl Popper.

Segundo este autor «…apresentar uma explicação causal de um determinado acontecimento específico significa deduzir um enunciado descrevendo esse acontecimento a partir de dois tipos de premissas: certas leis universais e certos enunciados singulares ou específicos que poderemos denominar condições iniciais específicas. Por exemplo, podemos dizer que apresentámos uma explicação causal do facto de um fio se partir se verificarmos que esse fio apenas suportava uma carga de uma libra e que foi submetido a uma carga de duas libras. Se analisarmos esta explicação causal, constatamos que estão presentes duas componentes diferentes. (1) Certas hipóteses com o carácter de leis universais da Natureza, neste caso, talvez: “Para cada fio com uma certa estrutura s (determinada com base no material de que feito, na sua espessura, etc.) existe um peso característico p a partir do qual o fio se partirá se for pendurado nele um peso superior ”, e “ Para fios com a estrutura s1, o peso característico p é igual a uma libra”. (2) Certos enunciados (singulares) específicos - as condições iniciais - relativos ao acontecimento em causa: neste caso, haverá dois enunciados: “Este fio tem uma estrutura s1, e “O peso que foi pendurado neste fio era de duas libras”. Temos, assim, duas componentes diferentes, dois tipos de enunciados que, em conjunto, produzem uma explicação causal completa: (1) enunciados universais com o carácter de leis naturais; e (2) enunciados específicos relativos ao caso especial em questão, denominados “condições iniciais”. Ora, das leis universais (1) podemos deduzir, com a ajuda das condições iniciais (2), o seguinte enunciado específico (3): “Este fio vai partir-se”. Também podemos chamar a esta conclusão (3) um prognóstico específico. As condições iniciais (ou, mais precisamente, a situação que essas condições descrevem) são geralmente consideradas a causa do acontecimento em questão, e o prognóstico (ou melhor, o acontecimento descrito pelo prognóstico) o efeito; por exemplo, dizemos que colocar um peso de duas libras num fio que apenas suporta uma libra foi a causa e que o facto de o fio se partir foi o efeito» ([8]).

Isto significa, em palavras breves, que explicamos um facto quando mostramos através de uma lei que enunciamos, ou pressupomos comummente conhecida, que o facto que se pretende explicar é o resultado de outros factos previamente existentes.

Por conseguinte, no caso dos autos, afirmar o nexo de a causalidade entre o despiste do veículo e a quantidade de álcool existente na corrente sanguínea do Réu, passa por encontrar uma explicação para o facto do Réu não ter descrito a curva e ter saído da faixa de rodagem, em frente, isto é, seguindo a mesma trajectória que trazia antes de chegar ao início da curvatura da via.

Se se explicar a saída da faixa de rodagem devido à presença do álcool na corrente sanguínea do Réu, na proporção de 1,03 g/l, ainda que possa haver outras causas concorrentes, mas insuficientes sem a conjugação do álcool, para produzir a saída da faixa de rodagem, então pode afirmar-se um nexo de causalidade entre a presença do álcool no sangue e o embate no muro adjacente à estrada, pois sem a presença do álcool as demais condições não eram suficientes para produzir o evento; caso esta saída se explique apenas devido a outros factos causais que prescindem da alcoolemia do condutor, então afasta-se o nexo de causalidade.

Porém, como se disse, não sendo o nexo de causalidade um facto observável, mas sim um processo, a afirmação de que ocorreu um certo nexo de causalidade presta-se, em regra, a controvérsia, pois um céptico poderá sempre argumentar que o evento verificado pode ter-se ficado a dever a uma outra qualquer causa, ainda que desconhecida.

Por conseguinte, entre ambas as hipóteses existe sempre uma outra baseada num non liquet, ou seja, fundada na afirmação da impossibilidade de se saber se a presença do álcool foi ou não foi a causa do despiste, ficando em aberto qualquer uma das hipóteses, resolvendo-se então esta dúvida, mais tarde, pelas regras do ónus da prova.

Neste caso, se não for possível afastar outras causas conjecturáveis e fisicamente possíveis, ainda que não haja qualquer rasto da sua presença no caso, o nexo de causalidade poderá ser sempre colocado em dúvida e, logicamente, nunca será possível afirmar que há provas suficientes da sua existência.

Afigura-se, porém, que este estado de ignorância, de falta de clareza, de non liquet, só relevará se for objectivo, isto é, se os factos mostrarem algum indício que, ligado a uma regra de experiência, torne provável a existência de uma outra causa diversa da alcoolemia e mostre a inanidade da alcoolemia em relação ao acidente.

Se não se adoptar um critério objectivo como o indicado, então dificilmente se poderá imputar um qualquer resultado a uma certa causa, pois será sempre possível imaginar uma causa alternativa explicativa do evento ainda que não se saiba em que consiste. 

Vejamos, então, por fim, se se pode afirmar o nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia que afectava o Réu e o despiste deste.

Sendo o nexo de causalidade um processo, para se poder afirmar tal nexo, é necessário que a explicação causal do despiste do veículo inclua nas suas condições iniciais a quantidade de álcool que circulava na corrente sanguínea do Réu.

Nesta parte, temos de contar apenas com os factos que se encontram provados e com as hipóteses que podemos colocar a partir das regras da experiência.

Quanto aos factos provados, temos como relevantes a mencionada taxa de alcoolemia e a saída do veículo para fora da faixa de rodagem no início da curva.

Relativamente a conjecturas que em abstracto podem conduzir a tal resultado, podemos adiantar, entre outras, além da presença do álcool, o sono, uma avaria mecânica, como, por exemplo, a fractura de uma peça que assegurasse o controlo da direcção do veículo, a alteração súbita do estado de saúde do condutor impeditiva do controlo do automóvel, uma substância derramada no pavimento geradora de perda de aderência dos pneus, etc.

Ora, nenhuma destas hipóteses conjecturáveis, salvo a presença do álcool na corrente sanguínea do Réu, é indiciada por um qualquer facto que, segundo as regras da experiência, apoie a sua existência ([9]).

Por conseguinte, não há qualquer razão prática que possa levar o julgador a concluir que a explicação do acidente reside numa causa desconhecida, para a qual não existem indícios e não na presença de uma taxa de 1,03 g/l na corrente sanguínea do Réu, se porventura esta se revelar com potencialidade causal para explicar o evento.

Vejamos, então, se tal quantidade de álcool é explicativa em relação ao despiste.

Como referiram Pierre Harichaux/Jean Humbert, «A alcoolemia permite (…) avaliar o grau de intoxicação do doente: o seu estado e o seu comportamento são função directa do seu valor» ([10]).

Estes autores, no quadro que apresentam a folhas 28 da obra referenciada em nota, dizem-nos que uma taxa de alcoolemia entre 0,5 e 0,8g conduz a «Reflexos retardados. Euforia do condutor»; uma taxa entre 0,8 a 1,5g conduz a «Reflexos perturbados, embriaguez ligeira, condução perigosa»; uma taxa entre 1,5 a 3g conduz a «Embriaguez nítida, condução muito perigosa».

E continuam: «Chama-se tempo de reacção ou tempo morto a demora ou intervalo entre o aparecimento duma situação de urgência (luz vermelha, criança que surge de repente no caminho) e o começo da reacção necessária tida pelo homem [no caso dos autos a acção a praticar seria a rotação correcta do volante, destinada a descrever a curva, acompanhada ou não de redução da velocidade]. Isto faz-se por intermédio duma série de reflexos: visão ou audição, percepção, decisão e execução (e em seguida a acção mecânica).

O tempo médio de reacção total dum homem são é de 3/4 de segundo. O dum homem que tenha 0,8 por 1000 de álcool no seu sangue aumenta 2/3.

Que consequência pode ter este aumento de 0,5 segundo no tempo de reacção?

Tomemos o caso de um automobilista e admitamos que o seu poder de travagem não diminui com o álcool. Se ele rodar a:

 - 36 km/h (seja 36 000:3600 = 10m/seg), ele começará a travar 5 m mais tarde;

- 72 km/h (=2 x36), ele não começará a travar senão 10 m mais tarde.

Praticamente, se rodar com velocidade, ele não se deterá, portanto, senão 20 metros mais longe (…). Mais simplesmente, a distância de paragem do veículo será acrescida do espaço percorrido durante este suplemento ao tempo morto» ([11]).

Também Oliveira e Sá nos diz que «Efectivamente começam, desde os alvores da alcoolemia, a ser assinaladas perturbações da atenção e do carácter, rebate na coordenação motora e alargamento dos tempos de reacção. Tudo isto ainda antes de atingido 1g/1000 de alcoolemia (…). Se o indivíduo exige um tempo mais dilatado para reagir às situações novas isso corresponde, naturalmente, a uma posição favorecedora do acidente» ([12]). 

Ora, face ao que fica referido, não há dúvida que a presença do álcool na corrente sanguínea do Réu, na proporção de 1,03 g/l, implicou para ele um retardamento e perturbação dos seus reflexos de reacção.

Uma taxa com este valor implicou que ele tivesse demorado mais meio segundo a reagir em relação ao tempo que sempre demoraria se estivesse sóbrio, e, como se indica no exemplo acima, se ele circulasse a 36 quilómetros por hora, percorreria mais 5 metros antes de reagir e que não percorreria se estivesse sóbrio, distância a somar aos 7,5 metros percorridos em 3/4 de segundo à velocidade de 36 km/hora.

Se o Réu seguisse a 50 km/hora percorreria 10,4 metros no tempo de reacção normal de 3/4 e com uma taxa de alcoolemia de 1,03 g/l, avançaria mais 6,9 metros, portanto, 17,3 metros no total.

Ora, a demora provocada na reacção aos estímulos, causadora de um avanço de 5 metros, considerando apenas uma velocidade de 36 km/hora, é distância suficiente para um condutor, ao entrar numa curva, seguir em frente, e sair para fora da faixa de rodagem, como ocorreu no caso, antes de ele ter iniciado a acção apropriada, que consistia em rodar o volante da direita para a esquerda e reduzir eventualmente a velocidade.

Por conseguinte, não pode deixar de se concluir que a presença de tal taxa de alcoolemia na corrente sanguínea do Réu tem capacidade explicativa relativamente ao acidente, ou seja, o facto do veículo ter mantido a trajectória ao entrar na curva e ter saído, por isso, para fora da faixa de rodagem, é explicável através da acção do álcool.

Ou seja o despiste é explicável porque entre o momento em que o Réu se apercebeu da existência da curva e o momento em que devia ter começado a descrevê-la, o veículo percorreu, pelo menos, mais cinco metros que não teria percorrido se o Réu seguisse sóbrio, distância esta que é suficiente para, mantendo-se a mesma trajectória rectilínea colocar o veículo fora da faixa de rodagem.

Dir-se-á que não se sabe se o despiste se ficou ou não a dever a este excesso de retardamento da reacção por parte do Réu, no sentido de manobrar o volante a tempo de manter o veículo na faixa de rodagem.

A esta objecção responde-se que não existindo qualquer outro facto provado que indicie uma causa alternativa para o despiste, estando o juiz na posse de factos reais que têm capacidade para explicar o acidente, não se encontra um fundamento racional que justifique o afastamento desta causa para passar a atribuir-se o acidente a causas desconhecidas ou meramente conjecturais, fruto da imaginação e não indiciadas pelos factos, como é o caso do sono, de uma quebra da direcção, falta de aderência, etc. ([13])

Daí se concluir que, face aos factos conhecidos, a dita taxa de alcoolemia de 1,03 g/l, explica causalmente o acidente, o mesmo é dizer que há nexo de causalidade empírico entre a taxa de álcool e o despiste.
E há também um nexo de causalidade em sentido jurídico, pois é sabido de todos, até por experiência directa do próprio alcoolizado, que a ingerência de álcool gera no condutor uma diminuição das respectivas faculdades sensoriais, necessárias à condução de veículos, aparecendo o despiste do veículo, em abstracto, como um dos resultados possíveis de uma condução sob a influência de uma taxa de alcoolemia como aquela de que o Réu era portador.
Desta forma, verificado o nexo empírico entre a concreta alcoolemia e o despiste, pode também afirmar-se o nexo de causalidade sob o ponto de vista jurídico, pois o Réu sabia que a condução sob o efeito do álcool podia ser causa de um despiste e, no entanto, no livre exercício da sua vontade, ao conduzir em tal estado, colocou tal causa no processo causal concreto que levou ao despiste.
Conclui-se, por conseguinte, pela existência do apontado nexo de causalidade, o que implica a improcedência do recurso.

III. Decisão.

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


*

Coimbra, 09 de Outubro de 2012.

 Alberto Augusto Vicente Ruço ( Relator )

Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

 Maria Inês Carvalho Brasil de Moura



[1] Boletim do Ministério da Justiça n.º 482-207.
[2] Em http://www.gdsi.pt, com referência ao número 08P3629 (Rodrigues da Costa).
[3] Processo n.º 342/09.0TTMTS.P1.S1 (Pinto Hespanhol), em http://www.gdsi.pt.
[4] Publicado no D.R., I Série-A, n.º 164, de 18 de Julho de 2002, pág. 5395.
[5] Obrigação de Indemnização – BMJ n.º 84 (Março/1959), pág. 15/16.
[6] Cfr. Pereira Coelho, O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil (1955), pág. 20, nota 21; Inocêncio Galvão Teles – Direito das Obrigações, 3.ª edição (1980) pág. 364; Antunes Varela, Das Obrigações ena Geral, vol. I (1991), pág. 885 e seg.; A. Costa, Direito das Obrigações (1991), pág. 632; na jurisprudência, por todos, acórdão do S.T.J. de 20-01-2010 (Álvaro Rodrigues) no processo n.º 670/04.0TCGMR.S1, in www.dgsi.pt.
[7] A este respeito Stephen Hetherington, aludindo à causalidade, referiu que «Nunca podemos observar tal conexão, porque em cada caso os dois eventos envolvidos na interacção casual são existências distintas (…) Nem a fricção de um fósforo, nem a ocorrência de uma chama inclui literalmente o outro. Primeiro temos um; depois, – mesmo que rapidamente – temos o outro, metafisicamente distinto do primeiro. Embora possamos inferir que há um elo oculto, esta inferência ultrapassa qualquer apoio observacional directo que possamos ter em seu favor. Não podemos observar a ligação como tal» - Realidade Conhecimento Filosofia, uma introdução à metafísica e à epistemologia, pág. 163. Lisboa: Instituto Piaget, 2007.
[8] A Lógica da Pesquisa Científica, pág. 62. São Paulo: Editora Cultrix, 11.ª edição. 2004.
[9] De realçar a exiguidade dos factos narrados na petição, quando é certo que a participação policial permitia à Autora afirmar, pelo menos: «tempo bom», «ausência de travagem», «ausência de substâncias estranhas no piso da via», o que permitia eliminar à partida algumas causas conjecturais para o acidente.
[10] O Alcoolismo, pág. 26. Coimbra: Almedina, 1978.
[11] Ob. cit., pág. 72/73.
[12] Acidentes de Viação e Alcoolismo, pág. 72. Coimbra: Atlântida, 1964.
[13] Em apoio desta orientação ver o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-06-2011 (Granja da Fonseca) proferido no processo n.º 380/08.0YXLSB (em www.dgsi.pt), onde se ponderou: «Se é certo que a mera prova da taxa de alcoolemia é insuficiente para se considerar provado o nexo de causalidade, isso não implica que, em termos de apreciação crítica dos factos relevantes, o juiz esteja impedido de os relacionar e de, reportando-se aos factos em apreço, pela forma como ocorreu determinado acidente e, em face da inexistência de outra explicação razoável, conclua por aquele nexo. Trata-se afinal de inferir factos desconhecidos a partir de factos conhecidos (artigo 349º CC)» - sumário.
Cf. também, recentemente, o acórdão da Relação de Coimbra, de 08 de Maio de 2012 (Francisco Caetano)proferido no processo  2739/08.3TBVIS.C2 (em www.dgsi.pt), onde se decidiu que «Embora a relação entre o álcool e as capacidades de reacção na condução variem em função da respectiva taxa e de pessoa para pessoa e mesmo nesta, conforme as circunstâncias, uma TAS de 1,05 g/l constitui uma base bastante para, em conjugação como o modo como ocorreu o acidente, a prova produzida e as presunções judiciais, estabelecer o nexo causal entre a condução sob efeito do álcool e o acidente» - sumário.