Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2/04.8TBAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL DOS TRIBUNAIS PORTUGUESES
ACÇÃO CÍVEL EMERGENTE DE MATÉRIA CONTRATUAL COMERCIAL
Data do Acordão: 12/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE AVEIRO - 2º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 2º, 5º E 60º, Nº 1, DO REGULAMENTO CE/44/2001, DE 22/12/00
Sumário: I – Para a determinação da competência internacional do tribunal, a regra é a do domicílio do réu – artº 2º, nº 1, do Regulamento CE/44/2001.

II – Em matéria contratual, o artº 5 do citado Regul. estabelece como critério especial de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida, esclarecendo-se no seu nº 1, al. b), que o lugar do cumprimento da obrigação em questão será, no caso da venda de bens, o Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.

III – Entendeu-se que o foro do lugar de cumprimento da obrigação não só está bem colocado para a condução do processo como também é aquele que, em regra, apresenta a conexão mais estreita com o litígio.

IV – Porém, se o réu comparecer para contestar ou confessar o pedido do autor, o tribunal torna-se competente internacionalmente se não o era antes, mas aquele pode apenas comparecer para arguir a excepção da incompetência internacional, caso em que não se aplica a regra da extensão tácita antes referida.

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO
I.1- «A...», com sede em Aveiro, intentou em 18.12.03 acção declarativa sob a forma ordinária contra, «B...», com sede em Itália, pedindo a condenação desta sociedade ao pagamento da quantia de 226.573,57 € acrescida de juros de mora, correspondente ao preço devido pelas vendas de produtos do seu fabrico que efectuou à ré, a pedido desta, facturadas nos documentos que junta.
A ré contestou, excepcionando a incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por força dos arts.2º, 60º/1 e 5º/1-b) do Regulamento CE/44/2001, de 22.12.00. Para o caso de assim se não entender, e relativamente ao cumprimento, alegou que a autora tem para com a ré uma dívida que em 11.7.05 ascendia ao montante global de 87.041,67, concluindo pela sua absolvição do pedido efectuando-se a compensação do seu crédito com o crédito da autora, e pediu a suspensão da instância com fundamento em estar pendente acção que intentou contra a autora perante o Tribunal de Bolonha.
A autora respondeu, sustentando que não existe fundamento que suporte, do ponto de vista processual, a pretendida suspensão da instância, e que o tribunal é competente para conhecer o pedido, atento o disposto no art.24º do citado Regulamento.
I.2- No prosseguimento dos autos foi proferido em 16.3.06 saneador-sentença, no qual se decidiu não haver motivo para a suspensão da instância, se julgou improcedente a excepção da incompetência do tribunal, se dispensou a realização da audiência preliminar e, conhecendo-se do pedido, operou-se a compensação parcial de créditos condenando-se a ré a pagar à autora o restante em débito no montante de 142.963,09 €, acrescido de juros de mora.
I.3- Inconformada, recorreu a ré, formulando na suas alegação as conclusões que assim se resumem:
1ª- Deveria ter sido julgada procedente a arguição da incompetência internacional do tribunal de Aveiro para apreciar o presente processo, nos termos do disposto no art.2º do Regulamento CE/44/2001;
2ª- A apelante deduziu a sua defesa alegando a incompetência, sendo que apenas subsidiariamente invocou a compensação de créditos e a suspensão da instância;
3ª- Não devia ter sido dispensada a realização da audiência preliminar, ao abrigo do disposto no art.508º-B/1-b),C.P.C., por não se verificarem as pressupostos de que dependeria a sua aplicação;
4ª- Tendo em consideração os factos articulados, a questão de existir mais de uma ordem jurídica em causa no diferendo entre as partes, a existência de documentos protestados juntar pela apelante ainda não obtidos, e a dedução de defesa por excepção e impugnação, não poderá deixar de concluir-se que devia ter sido convocada a audiência preliminar a que se refere o art.508º-A/C.P.C.;
5ª- Nos termos do disposto no art.28º/1 do Regulamento, quando questões conexas estiverem pendentes em tribunais de diferentes Estados-Membros, o tribunal a que a acção foi submetida em segundo lugar pode suspender a instância;
6ª- Não se verificam quaisquer entraves à suspensão da instância, pelo que, nos termos do art.279º/C.P.C., deveria ter sido proferido despacho de suspensão até que se mostrasse definitivamente julgada a questão prejudicial pendente junto do tribunal de Bolonha.
I.4- Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
No precedente relatório constam já os factos com interesse para a resolução da questão colocada, e que essencialmente se resume em saber se à luz do Regulamento (CE) nº44/01, de 22.12.00, do Conselho da União Europeia, relativo à competência judiciária e que veio substituir a Convenção de Bruxelas, o tribunal de Aveiro é internacionalmente competente para conhecer da presente acção de condenação, como entendeu a sentença recorrida.
Antes importa dilucidar se a audiência preliminar podia ter sido dispensada como foi, entendimento contra o qual se insurge a apelante.
A audiência preliminar encontra-se regulada nos arts.508º-A e 508º-B do C.P.C., constando naquele primeiro preceito as várias finalidades desta audiência. Entre elas a destinada a facultar ás partes a discussão da matéria de facto ou de direito quando ao juiz cumpre conhecer alguma excepção dilatória ou quando pretenda conhecer imediatamente do pedido [art.508º-A/1-b)].
Por seu turno, dispõe o art.508º-B/1 que o juiz pode dispensar a audiência preliminar quando, destinando-se ela à fixação da base instrutória, a simplicidade da causa o justifique [al.a)]; ou, sendo ela destinada à discussão de excepções dilatórias de que o juiz deva conhecer no despacho saneador, essas excepções houverem sido já debatidas pelas partes nos respectivos articulados [al.b)].
No caso vertente estavam em causa situações em princípio enquadráveis na al.b) do art.508º-A, já que foi arguida a excepção dilatória da incompetência absoluta e o juiz tencionava conhecer imediatamente do pedido.
Contudo, para a discussão de excepções só deve haver audiência se o juiz delas pretende conhecer oficiosamente, sem que as partes se tenham pronunciado sobre tal matéria. Ora, a excepção dilatória em referência foi levantada pela aqui apelante na contestação, e sobre ela se pronunciou a autora na réplica. O que vale por dizer que essa matéria foi debatida nos articulados, ficando assim assegurado o contraditório.
Por outro lado, a discussão do mérito da causa revestia manifesta simplicidade. Na verdade, a ré/apelante aceitou implicitamente ser devedora da quantia peticionada ao pretender fazer operar a compensação do crédito que a autora sobre ela detém com o crédito que alegou existir sobre a autora, tendo por base um contrato de licença entre ambas celebrado. A autora aceitou a existência de créditos recíprocos e não se opôs à compensação.
Por conseguinte, a apreciação dessa questão era sem dúvida simples, o que significa que não havia necessidade de convocar as partes para discutir a matéria de facto e de direito.
Nenhuma censura justifica, portanto, a decisão proferida no sentido da não convocação da audiência ao abrigo do citado art.508º-B/b).
Dito isto, improcedem as conclusões 3ª e 4ª.

Passando agora à análise da questão essencial decidenda.
Conforme relatado, a autora é uma sociedade cuja sede se situa em Portugal, e que demandou uma sociedade sedeada em Itália, países que são estados-membros da União Europeia.
A acção foi instaurada em 18.12.03 tendo natureza civil, já que o litígio é relativo a matéria contratual, na vertente de omissão de pagamento do preço por via de remessa de mercadorias à ré para a sua sede em Itália, encomendadas à autora e por esta despachadas.
O Conselho da União Europeia tem entendido que o bom funcionamento do mercado interno exige a uniformização em matéria de competência internacional e de reconhecimento de decisões estrangeiras, tendo adoptado três regulamentos neste domínio, entre eles o referido Regulamento em matéria civil e comercial (CE) nº44/01, de 22.12.00, que entrou em vigor em 1.3.02 (art.76º) e cujas regras são aplicáveis ás acções judiciais intentadas depois da sua entrada em vigor (art.66º/1), como é o caso presente.
O regime de competência contido no Reg. prevalece sobre o regime interno por força da norma constitucional de recepção (art.8º/3, C.R.P.). [Cfr. Luís de Lima Pinheiro, «Direito Internacional Privado», Vol.III, pág.71.]
Para determinação da competência internacional do tribunal, a regra é a do domicílio do réu.
Com efeito, o art.2º/1 determina que sem prejuízo do disposto nesse Reg., as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado. E o art.3º/1 estabelece que as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado-Membro quando se verifique um critério especial de competência previsto no Reg. (secção 2 a 7).
No que concerne aos critérios especiais de competência, releva essencialmente o art.5º. Em matéria contratual estabelece-se o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida [art.5º/1-a)], esclarecendo-se no nº1-b) do mesmo preceito, que o lugar do cumprimento da obrigação em questão será, no caso da venda de bens, o Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues.
Entendeu-se que o foro do lugar de cumprimento da obrigação não só está bem colocado para a condução do processo como também é aquele que, em regra, apresenta a conexão mais estreita com o litígio.
Conforme observa o autor infra-mencionado, o art.5º/1-b) estabelece que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação de entrega, sendo assim irrelevante o lugar do cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens, mesmo que o pedido de fundamente nesta obrigação. [ ob.cit., pág.84]
No acórdão do STJ de 3.3.05, afirmou-se que “decorrentemente, é fundado o entendimento de que a al.b) do nº1 do art.5º abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento da contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objecto mediato.”. [Relator: Salvador da Costa, in www.stj.pt] No entanto, considerou-se também que não releva o lugar onde deva ser realizada a prestação do pagamento do preço, designadamente a circunstância de dever ocorrer em território português.
Na situação em apreço, irrelevando para o efeito a obrigação de pagamento do preço que a autora faz valer na acção, resultando das facturas juntas que o preço é devido pelos bens que foram e deviam ser entregues na sede da ré no âmbito de um contrato de compra e venda, sendo a sede social o lugar onde a sociedade tem domicílio [art.60º/1-a)], à luz das regras acima referidas há que concluir que a sociedade ré deveria ter sido demandada perante os tribunais italianos.
A 1ª instância assim não entendeu, ponderando a aplicação da regra constante do art.24º do Reg., segundo a qual, “Para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro perante o qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objectivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do art.22º”.
Desta regra resulta que, se o réu comparece para contestar ou confessar o pedido do autor, o tribunal torna-se competente se o não era. Mas pode comparecer para arguir a excepção de incompetência absoluta. Neste caso não se aplica a regra da extensão tácita. Outra excepção é a existência de uma competência exclusiva, que aqui não ocorre.
Fundamentando a aplicação desta regra de extensão da competência, diz-se na sentença que a ré compareceu perante o tribunal de Aveiro tendo deduzido contestação, sem que se tenha limitado a arguir a incompetência internacional, tendo também invocado a compensação de créditos e requerido a suspensão da instância.
Tem razão a recorrente quando sustenta que a invocação da compensação e da suspensão foi a título subsidiário, conforme art.469º/1,C.P.C., afastando desse modo a extensão tácita da competência.
Na realidade, face ao disposto nos arts.487º/1, 489º/1 e 2 e 490º/1, todos do C.P.C., na contestação o réu defende-se por impugnação e por excepção, a defesa deve ser deduzida na contestação, e depois desta só podendo ser deduzidos as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, devendo o réu ao contestar tomar posição definida perante os factos articulados na petição.
Significa isto que a ré não podia limitar a sua defesa excepcionando a incompetência absoluta para afastar aquela regra de competência resultante da comparência do requerido e, no caso de improcedência da excepção, apresentar nova contestação onde tomaria posição perante os factos articulados pela autora. Se se limitasse a arguir aquela excepção (podia inclusive fazê-lo em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença transitada em julgado – art.102º/1,C.P.C.), sujeitar-se-ia à sanção prevista no art.490º/2, ou seja, à admissão da veracidade desses factos.
Ora, a ré arguiu expressamente a incompetência absoluta (arts.1º a 19º da contestação), dizendo logo no art.20º que “à cautela, caso o presente tribunal não se declare incompetente, o que apenas por mera hipótese de raciocínio se admite, sem conceder, sempre se dirá o seguinte”.
A regra do citado art.24º corresponde à contida no art.18º da Convenção de Bruxelas, e já então o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias entendia que este art.18º devia ser interpretado no sentido de que permite ao requerido não só contestar a competência, mas também apresentar, ao mesmo tempo, a título subsidiário, a sua defesa, sem contudo perder o direito de arguição da excepção de incompetência.
Na hipótese em análise, como vimos, previamente à defesa de mérito da causa, a ré arguiu de forma expressa a excepção de incompetência, apreciando depois, e subsidiariamente, a questão do mérito.
Portanto, e em conclusão, quer à luz da regra geral do art.2º, quer em face da regra especial do art.5º/1-b), afastada a regra da extensão do art.24º, a competência para apreciar e decidir a presente causa cabe, não aos tribunais portugueses, mas sim aos tribunais de Itália.
Tal como se salientou no Ac.STJ de 3.3.05, [Relator: Barros Caldeira - CJstj-I/05, pág.114-120] pese embora as dificuldades que se colocarão à autora pela necessidade de demandar a ré nos tribunais italianos, tal demanda reveste-se de vantagens para ela na medida em que evita que tenha de apresentar em Itália requerimento de declaração de executoriedade de eventual sentença proferida em Portugal, sendo certo que, face ao disposto nos arts.33º/1 e 35º/1, correria o risco de não ver reconhecida uma tal sentença.
Em suma, o Tribunal de Aveiro é internacionalmente incompetente para decidir do mérito desta acção, o que determina a absolvição da ré da instância – arts.65º, 101º, 102º, 105º, 288º/1-a), 494º/1-a) e 495º, todos do C.P.C..
Deste modo, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando-se a sentença apelada, julga-se procedente a excepção da incompetência absoluta do Tribunal de Aveiro em razão das regras de competência internacional, e absolve-se a ré da instância.
Custas pela autora.