Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
820/04.7PBFIG.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO ANTÓNIO MIRA
Descritores: ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL
Data do Acordão: 09/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA FIGUEIRA DA FOZ – 2.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 358.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: – A evolução interpretativa a que se foi procedendo, tanto no plano constitucional como na jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal, aportaram a necessidade de consolidar a ideia cardeal de no uso do instituto da alteração substancial dos factos se consolidar a plenitude de garantias de defesa exigidas pelo artigo 32.º, n.º 1, do texto constitucional, tornando clarividente que do ponto de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo, os comportamentos humanos que pela lei são declarados passíveis de sancionamento. Neste contexto o direito de defesa tem de ser configurado também em função da consequência jurídica decorrente do concreto substrato factológico imputado ao arguido.
II. – Resultando tão só a alteração da qualificação jurídica não é necessária a comunicação ao arguido para eventual preparação de defesa relativamente à diversa qualificação jurídica operada pelo tribunal dado que a alteração resulta da imputação de um crime simples, quando da acusação resultava a imputação do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador-agravante inicialmente imputado, pois que o imputado já teve oportunidade de se defender em relação a todos os elementos de facto e normativos que lhe estavam imputados no libelo acusatório.
III. - “O tempo estritamente indispensável” a que se alude no artigo 358.º do Código de Processo Penal há-de corresponder ao tempo que se revele suficiente e necessário à preparação da defesa do arguido, criteriosamente aferido em função da natureza e complexidade (ou falta dela) de cada caso concreto.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca da Figueira da Foz, foram submetidos a julgamento, em processo comum, com intervenção do tribunal singular, os arguidos:

- MG …, solteira, empregada de balcão, filha de … e de …, nascida no dia …, na Guarda, residente na Rua …, Buarcos, Figueira da Foz;

- AM…, solteiro, empregado de mesa, filho de …e …, nascido no dia …, na freguesia de …, Figueira da Foz, residente na Rua …, Buarcos, Figueira da Foz; e

- LO…, casado, carpinteiro de limpos, filho de … e …, nascido no dia …, em …, Montemor-o-Velho, residente na Rua …, Várzea, Alhadas, Figueira da Foz;

acusados, os dois primeiros arguidos, da prática, em co-autoria e sob a forma tentada, de um crime de coacção grave, p. p. pelo artigo 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência aos artigos 154.º, n.º 1, 144.º, 22.º e 23.º, do mesmo diploma legal; e o arguido LO…., da prática, em autoria material, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, als. a) e c), do DL n.º 454/91, de 28-12, na redacção dada pelo DL n.º 316/97, de 19-11 e DL n.º 323/2001, de 17/12.

2. “…, Lda.” deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido LO…, pedindo a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia de € 3.150,23, acrescida de juros de mora legais, contados desde a data da dedução do pedido até efectivo e integral pagamento.

3. Por sentença de 16 de Julho de 2007, o tribunal, julgando a acusação parcialmente procedente e o pedido de indemnização civil totalmente procedente, decidiu nos seguintes termos:

- Condenou a arguida MG…, pela prática, em co-autoria material e sob a forma tentada, de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º, todos do Código Penal, na pena de 95 (noventa e cinco) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);

- Condenou o arguido AM…, pela prática, em co-autoria material e sob a forma tentada, de um crime de coacção, p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º, do Código Penal, na pena de 105 (cento e cinco) dias de multa, à razão diária de € 5,00;

- Condenou o arguido LO…, pela autoria material e sob a forma consumada, de um crime de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, als. a) e c), do DL n.º 454/91, de 28-12, na redacção dada pelo DL n.º 316/97, de 19-11, e DL n.º 323/2001, de 17-12, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros);

- Condenou o demandado LO…. a pagar à demandante “…, Lda.” a quantia de € 2.845,00 (dois mil oitocentos e quarenta e cinco euros), acrescida de juros de mora, à taxa leal, desde a data da emissão do cheque em questão, até efectivo e integral pagamento.  

3. Inconformados com a decisão, dela recorreram os arguidos MG… e LO…, formulando na respectiva motivação as seguintes conclusões:

A) Arguida Goreti Teixeira (fls. 513/515):

1.ª – A Recorrente dá aqui por reproduzido os demais recursos interpostos (com as respectivas motivações), já que em todos mantém interesse.

2.ª – A prova produzida não permite julgar provado qualquer dos factos imputados à ora Recorrente, como resulta negativamente de todos os depoimentos prestados em audiência em que a Meritíssima Senhora Juíza assentou tal decisão – cfr. as gravações contidas nas cassetes que registaram a produção de prova e as respectivas transcrições.

3.ª – Os factos imputados à Recorrente, por omissão de elementos essenciais, como a data, não são susceptíveis de integrar a previsão dos tipos de ilícito em causa.

4.ª – Por essa razão, deveria ter sido julgada nula a acusação que serviu de base ao julgamento.

5.ª – O facto de o P… ter apenas tomado conhecimento dos factos que se imputa à ora Recorrente através do CM…, e não directamente pela ora Recorrente ou pelo A…, é revelador e obriga à conclusão de que se não verificou qualquer situação de coacção do dito P…da responsabilidade da ora Recorrente ou do A….

6.ª – E não sendo possível, perante isso, considerar sequer que a ora Recorrente (ou o A…) tivessem constrangido, ou tivessem tentado constranger, o ofendido a qualquer acto ou omissão. Muito menos que ele se tivesse sentido constrangido.

Temos em que, deve a sentença recorrida ser revogada e a recorrente absolvida.

B) Arguido LO… (fls. 471 a 482):

1.ª – O arguido LO… foi condenado, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo artigo 11.º, n.º 1, als. a) e c), do DL n.º 454/91, de 28-12, na redacção dada pelo DL n.º 316/97, de 19-11 e DL n.º 323/2001, de 17-12.

2.ª – O Tribunal a quo deu como provado que “5. No dia 02 de Janeiro de 2004, o arguido LO… assinou e entregou, no bar discoteca …, sito … e ao portador, o cheque n.º 7775558055, com o valor inscrito de € 2845,00 (dois mil oitocentos e quarenta e cinco euros), destinado a servir de meio de pagamento de despesa de consumo pelo arguido, naquele dia na … (…) 8. Ao não receber o montante titulado no cheque, a ofendida teve prejuízos, posto não o pode utilizar no seu circuito comercial”.

3.ª – O Tribunal a quo formou a sua convicção nos documentos constantes dos autos, bem como do NUIPC 340/04.0TAFIG e do NUIPC n.º 31/04.1PBFIG.

4.ª – O Tribunal recorrido não valorou as declarações do arguido LO…, prestadas em julgamento.

5.ª – Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo julgou incorrectamente os referidos factos, porquanto, em relação aos mesmos, não foi produzida prova.

6.ª – Da análise da prova produzida não ficou demonstrado que o arguido tivesse assinado o cheque dos autos, nem sequer que o tivesse entregue de livre vontade no bar …, nem que o arguido tivesse efectuado despesa de consumo naquele bar em valor correspondente à importância do citado cheque.

7.ª – Das declarações do arguido em sede de julgamento, e transcritas na presente, resultou comprovado o facto de o mesmo ter sido pressionado a apor um rascunho no cheque dos autos, o que não corresponde à sua assinatura, conforme cópia do seu Bilhete de Identidade constante dos autos.

8.ª – O Tribunal a quo deveria, salvo o devido respeito, ter considerado as declarações prestadas pelo arguido em julgamento como válidas e merecedoras de credibilidade, até porque nenhum testemunho foi prestado nos autos que pudesse contradizer a sua versão, nem que pudesse provar o alegado (e não provado) pela ofendida e demandante civil.

9.ª – A factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo não colhe apoio em prova testemunhal, nem se compatibiliza com a prova documental junta aos autos.

10.ª – Não ficou provado em sede de julgamento que o arguido tivesse emitido e entregue à ofendida o cheque dos autos.

11.ª – Também não se fez prova em audiência da existência de uma relação jurídica subjacente que justificasse um prejuízo patrimonial no valor do cheque em apreço.

12.ª – In casu não foram preenchidos dois dos quatro elementos objectivos do tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão, p. e p. no artigo 11.º, n.º 1, als. a) e c) do DL 454/91, de 28-12, com as consequentes alterações, nomeadamente, a emissão e entrega do cheque a outrem e a exigência que esse comportamento cause prejuízo patrimonial.

13.ª – Entendemos, salvo melhor opinião, que o Tribunal recorrido não seguiu um raciocínio lógico e de acordo com as regras da experiência comum na apreciação da prova, o que se evidencia do texto da respectiva decisão.

14.ª – Vemos como claramente ilógico e arbitrário o facto de o Tribunal a quo ter dado como provado que o arguido, naquele dia e hora, tivesse realizado despesa de consumo no bar …, durante menos de uma hora, no valor de dois mil oitocentos e quarenta e cinco euros, quando tal não corresponde às declarações do arguido, e a prova desses factos não foi feita em julgamento.

15.ª – Consequentemente, e sem embargo do conhecimento oficioso que assiste ao Tribunal da Relação, em nosso modesto entender temos que se verificou erro notório na apreciação da prova na douta decisão recorrida, previsto nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.Penal.

16.ª – Na decisão sob recurso não é possível decidir contra o arguido, pois não decorre da factualidade provada que fossem preenchidos todos os requisitos indispensáveis do tipo legal de crime de que o arguido foi acusado.

17.ª – Na decisão recorrida não é feita referência aos concretos elementos de prova que permitam ao julgador formar a sua convicção quanto aos factos provados para além de qualquer dúvida razoável, até porque, efectivamente, esses elementos de prova são inexistentes.

18.ª – No caso em apreço, entendemos, com o devido respeito, que se deve aplicar o princípio in dubio pro reo, previsto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, sem qualquer limitação.

19.ª – Ao ordenar que a dúvida seja resolvida a favor do réu, segundo o princípio in dubio pro reo os factos favoráveis ao arguido devem dar-se como provados desde que certos e duvidosos, ao passo que para a prova dos factos desfavoráveis ao arguido se exige certeza (cfr. Ac. STJ 04-10-01).

20.ª – Face à prova produzida em sede de julgamento, o arguido deveria ter sido absolvido, pois a decisão viola flagrantemente o disposto no artigo 410.º, n.ºs 1 e 2 do C.P.Penal e o princípio in dubio pro reo.

21.ª – Pelas razões expostas, deverá ser revogada a douta sentença do tribunal a quo e ser proferido acórdão que absolva o arguido Licínio de Oliveira Paulino do crime de que foi acusado.

4. A arguida MG…recorreu também dos despachos proferidos a fls. 393, 395 e 440.

A) Rematou a motivação do recurso interposto dos despachos de fls. 393 e 395 com as seguintes (transcritas) conclusões (fls. 444 a 450):

A. Os despachos recorridos baseiam-se em interpretação do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal que parece errada e sempre faria enfermar a norma em causa de absoluta inconstitucionalidade.

B. No primeiro dos despachos recorridos, a Meritíssima Juíza já se pronunciou sobre a prova de alguns dos factos alegados na acusação, considerando alguns deles como já provados.

C. O artigo 358.º consagra a possibilidade de o Juiz corrigir as acusações aproveitando o mesmo processo para continuação do julgamento e eventual condenação dos arguidos e, por outro lado, o correspondente direito de os arguidos apresentarem nova defesa.

D. De acordo com o artigo 358.º citado e em todos os casos nele previstos, o arguido poderá beneficiar do prazo normal de contestar, devendo o disposto na parte final do respectivo n.º 1 ser interpretado no sentido de que, quando a lei impõe ao Juiz que perante a comunicação da alteração conceda ao arguido, se ele o requerer, o tempo estritamente indispensável para a preparação da defesa, se está a referir ao prazo previsto no artigo 315.º do Código de Processo Penal, actualmente de 20 dias.

E. O “estritamente” utilizado no texto da disposição em causa significa apenas que o Juiz não pode suspender a audiência por prazo superior ao que lhe for pedido pelo arguido para preparação da sua defesa.

F. O arguido 358.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do direito de defesa consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, na interpretação seguida ou revelada pela Meritíssima Juíza nos despachos recorridos, de que nos casos previstos no respectivo n.º 3 o julgamento da matéria de facto já está concluído, que o arguido terá apenas o direito de se pronunciar sobre a qualificação jurídica e que não pode beneficiar do prazo normal para preparar a defesa, antes se tendo que sujeitar ao prazo que lhe foi concedido pelo tribunal.

G. A norma em causa deverá ser sempre considerada inconstitucional, por violação do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, se for interpretada em sentido diferente do antes defendido, de conceder ao arguido o direito de apresentar nova defesa e de lhe atribuir para o efeito prazo de duração até à fixada no artigo 315.º.

H. Os despachos antes citados violam, pois, o artigo 358.º do Código de Processo Penal, na interpretação que no entender da Recorrente dele deve ser feita.

I. E, na medida em que pressupõem e (no caso do primeiro deles) expõem o entendimento de Meritíssima Senhora Juíza de que há factos alegados na acusação que se devem desde já considerar parcialmente provados, violam, ainda, os mais elementares direitos dos arguidos e os princípios mais básicos do todo o “moderno” direito processual, como sejam: o direito de não ser condenado sem julgamento; o direito de alegar oralmente, através de defensor constituído ou nomeado, antes da conclusão do julgamento sobre a matéria de facto e sobre as questões de direito, consagrado no artigo 360.º do Código de Processo Penal; o direito do arguido prestar últimas declarações sobre os factos, consagrado no artigo 361.º do Código de Processo Penal; o princípio do in dubio pro reo – consagrado legal e constitucionalmente; o dever de o tribunal nada deliberar e não se pronunciar sobre a matéria de facto, esclarecendo e decidindo qual a que está provada e qual a que não pode ser assim considerada, antes do encerramento da discussão da causa – consagrado, nomeadamente, nos artigos 361.º, n.º 2, 365.º, n.º 1, 368.º, e tantos, tantos,…outros, do Código de Processo Penal e da Constituição da República Portuguesa.

J. A violação destas normas, destes princípios e destes deveres tem como consequência a absoluta e insanável nulidade do julgamento.

K. Aqui se invocando a inconstitucionalidade do artigo 119.º do Código de Processo Penal, se este não for interpretado no sentido de incluir a situação descrita na respectiva alínea c), por violação, por omissão, do direito de acesso ao direito e aos tribunais e das garantias de defesa dos arguidos, consagrados nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que se pede (…) sejam todos os actos de julgamento até agora ocorridos declarados nulos, ordenando-se a repetição de todos eles;

Subsidiariamente, sejam os despachos recorridos revogados e concedido à Arguida Recorrente o prazo por ela pedido para preparar a sua defesa perante a alteração de factos que lhe foi comunicada.

B) Conclui a motivação do recurso interposto do despacho de fls. 440 nestes termos (fls. 506 a 510):

A. A ora Recorrente apresentou nova defesa, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, indicando como testemunhas JL…e EG…, que identificou tão completamente quanto lhe foi possível, indicando também as respectivas moradas.

B – Esta situação não é idêntica, semelhante ou análoga à prevista no artigo 316.º do Código de Processo Penal, de adicionamento ou alteração do rol de testemunhas, tratando-se, diferentemente, da apresentação de uma nova defesa, decorrente da alteração de facto que havia sido comunicada e do respeito pelo princípio do contraditório e pelos direitos e garantias de defesa.

C. Esta nova defesa não merece tratamento diverso, mais condicionado ou limitado, que a defesa a que todo o arguido em processo penal tem direito, devendo ser considerada exactamente como qualquer outra defesa prevista no artigo 315.º do Código citado; como uma verdadeira contestação, ali prevista, e com o rol, a que ali se faz referência.

D. Nenhuma obrigação impende nestes casos sobre os arguidos de apresentarem os meios de prova ou de requererem a notificação das testemunhas, bastando aos arguidos identificarem as testemunhas pelo seu nome e morada para que o Tribunal fique obrigado a ordenar a respectiva notificação, quer tal lhe tenha sido expressamente requerido quer o não tenha.

E. A Meritíssima Senhora Juíza violou, na decisão recorrida, o disposto no artigo 315.º e no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Penal. E prejudicou decisiva e muito gravemente o direito de defesa da arguida, impedindo-a de produzir prova sobre os factos que alegou em sua defesa.

F. A norma do artigo 316.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, na interpretação feita ou pressuposta na decisão de recurso, que permite interpretar na previsão desta norma a indicação de testemunhas para o exercício do direito de defesa previsto no artigo 358.º, n.ºs 1e 3.

G. A norma artigo 358.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, igualmente por violação do disposto no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, na interpretação feita ou pressuposta na decisão sob recurso, que desconsiderou ou despreza o direito de defesa nele consagrado, limitando-o relativamente ao normal exercício de defesa previsto no artigo 315.º.

Termos em que, deve a decisão ser revogada e ordenada a notificação das testemunhas para serem ouvidas em audiência de julgamento.

5. O Ministério Público respondeu aos recursos (interpostos da decisão final pelos arguidos MG… e LO… e intercalares interpostos pela arguida MG…) nos termos que constam de fls. 532/542, pugnando pela manutenção das decisões recorridas.

6. No mesmo sentido se pronunciou a demandante civil “…, Lda.”, quanto ao recurso interposto da sentença pelo arguido LO… (cf. fls. 558 e 559).
7. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido improcedência dos recursos.
Operada a notificação prevista no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, apenas a demandante civil “…, Lda.” apresentou resposta, na qual manifestou concordância com a posição sufragada pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta.
8. Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, cumprindo, agora, apreciar e decidir.

II. Fundamentação:

1. Delimitação do objecto do recurso e poderes cognitivos do tribunal ad quem:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (cfr. Ac. do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro, publicado no DR, 1-A de 28-12-1995).
Tendo em conta as conclusões formuladas pelos recorrentes, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:
A. Arguido LO…:
a) Da ocorrência dos alegados erros de julgamento em matéria de facto;
b) Erro notório na apreciação da prova;
c) Violação do princípio in dubio pro reo.
B. Arguida MG…:
1. Recurso intercalar interposto dos despachos de fls. 393 e 395:
a) O prazo a conceder ao arguido, por força do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, é o de 20 dias, previsto no artigo 315.º do mesmo diploma legal?
b) O artigo 358.º do Código de Processo Penal é inconstitucional, por violação do direito de defesa consagrado no artigo 32.º da CRP, na interpretação seguida ou revelada pela M.ma Juiz nos despachos recorridos, de que, nos casos previstos no n.º 3 da primeira das invocadas normas, o julgamento da matéria de facto está concluído, porquanto ao arguido apenas assiste o direito de se pronunciar sobre a qualificação jurídica e que não pode beneficiar do referido prazo de 20 dias para preparação da sua defesa?
c) Na medida em que os citados despachos pressupõem e expõem o entendimento da M.ma Juiz de que há factos alegados na acusação que se devem desde já considerar provados, violam os mesmos, ainda, o direito de o arguido não ser condenado sem julgamento; o direito de alegar oralmente, através de defensor constituído ou nomeado, antes da conclusão do julgamento sobre a matéria de facto e sobre as questões de direito, consagrado no artigo 360.º do CPP; o direito de o arguido prestar declarações sobre os factos, consagrado no art. 361.º do CPP; o princípio do in dubio pro reo; o dever de o tribunal nada deliberar e não se pronunciar sobre a matéria de facto, esclarecendo e decidindo qual a que está provada e qual a que não pode ser assim considerada, antes do encerramento da discussão da causa – consagrado, nos artigos 361.º, n.º 2, 365.º, n.º 1, e 368.º, todos do CPP?
d) A violação destas normas, destes princípios e deveres tem como consequência a absoluta e insanável nulidade do julgamento?
e) Da inconstitucionalidade do artigo 119.º do Código de Processo Penal.
2. Recurso intercalar interposto do despacho de fls. 440:
a) Da violação do disposto nos artigos 315.º e 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal;
b) Da inconstitucionalidade do artigo 316.º do referido diploma legal;
3. Recurso interposto da sentença:
a) Impugnação da matéria de facto provada;
b) Da verificação do crime de coacção, na forma tentada.

4. Elementos relevantes ao conhecimento dos recursos intercalares:

a) Na sessão de julgamento de 26 de Junho de 2007, produzida a prova e proferidas as alegações orais, a M.ma Juiz designou, para leitura da sentença, o dia 10 de Julho de 2007.

b) Neste dia, reaberta a audiência, foi proferido o despacho de fls. 392, do seguinte teor:

«No decurso da audiência de julgamento resultou que os factos pelos quais os arguidos MG… e AM… vêm acusados não se enquadram na qualificação jurídica descrita na acusação e parcialmente provados, ou seja, os artigos 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, ou seja, os arts. 155.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, por referência aos artigos 154.º, n.º 1, 144.º, 22.º e 23.º do mesmo diploma legal, mas sim ao crime de coacção na forma tentada, p. e p. pelos arts. 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal. Verifica-se, pois, haver alteração não substancial dos factos descritos na acusação, entendendo o Tribunal alterar a qualificação jurídica dos mesmos, nos termos supra expostos (cfr. art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP).

Pelo exposto, comunica-se aos arguidos a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, nos termos atrás referidos, concedendo-lhes, se o requererem, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa».

c) Pela arguida MG…foi, então, requerido prazo para a preparação da defesa, o que determinou a prolação do despacho de fls. 393, com este conteúdo:

«Face ao ora requerido pela arguida MG…, decido interromper a presente audiência, designando para a continuação da mesma o dia 16 de Julho de 2007».

d) No dia 13 de Julho de 2007, a arguida MG… requereu a concessão de mais cinco dias para o efeito referido supra, pretensão que foi indeferida, pelo despacho de fls. 395, que se transcreve:

«Nos termos do disposto no art. 398.º, n.º 1, do CPP, uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, como sucede no caso em apreço, importa a sua comunicação ao arguido que se o requerer, terá o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

No caso em apreço, a alteração não substancial verificada radicou na alteração da qualificação jurídica de factos descritos na acusação, diga-se, para crime menos gravoso.

Não se vislumbra, pois, qual o sentido do requerimento que antecede, sendo certo que o prazo que foi concedido à arguida para preparação da defesa (como o requereu) é manifestamente suficiente (e até quiçá demasiado dilatado).

Pelo exposto, indefiro o requerido».

e) No dia 16-07-2007, pelas 1:35 horas, via fax, a arguida MG…apresentou a defesa que decorre de fls. 408 e requereu a inquirição das testemunhas JL… e EG… indicando a residência das mesmas.

f) Reaberta a audiência, no dia 16 de Julho de 2007, a M.ma Juiz o seguinte despacho:

«Na audiência que teve lugar no dia 10-07-2007, veio o Tribunal a proferir despacho, considerando verificar-se uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação por alteração da qualificação jurídica dos mesmos, tendo a arguida MG…, na sequência de tal comunicação, requerido prazo para preparação da defesa, o que foi deferido, interrompendo-se a audiência para continuação no dia de hoje.

Veio então a arguida MG… apresentar a sua defesa, arrolando testemunhas.

As testemunhas em questão não se encontram presentes neste Tribunal, sendo certo que a arguida não requereu a notificação das mesmas.

Entende-se que incumbia à arguida apresentar os seus meios de prova, ou seja, apresentar as testemunhas arroladas, no dia de hoje ou, em alternativa, requerer a notificação das mesmas. Não o fez a arguida.

Assim e verificando-se que as testemunhas arroladas não se encontram presentes em Tribunal não é possível proceder à sua inquirição, pelo que se decide prosseguir com a diligência, procedendo-se de imediato à leitura da sentença».

g) Na referida data, na apreciação do requerimento de fls. 438, no qual a arguida MG… arguiu a nulidade do despacho que se vem de citar, foi proferido o despacho de fls. 440, deste teor:

«Não obstante o entendimento da arguida afigura-se-nos não padecer o despacho ora posto em crise de qualquer ilegalidade.

Tal despacho afigura-se suficientemente fundamentado.

Ademais cumpre referir ainda o seguinte:

No caso em apreço, como resulta do despacho proferido na última audiência, não se verifica de facto qualquer alteração de factos descritos na acusação, mas tão só um diverso enquadramento jurídico dos factos, que são os mesmos.

Como todos os presentes sabem, o julgamento decorreu com observância do formalismo legal, nomeadamente, finda a produção de prova, foi dada a palavra à Digna Magistrada do Ministério Público e às Ex.mas Advogadas dos arguidos para alegações, o que todos fizeram. Após, foi dado a cada um dos arguidos a possibilidade de terem a última palavra em matéria de defesa.

Pelo exposto, e não se afigurando a existência da arguida nulidade, indefere-se o requerido».

h) Em seguida, a M.ma Juiz procedeu à leitura da sentença.

5. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

1. Em datas não concretamente apuradas mas posteriores ao dia 16 de Janeiro de 2004, os arguidos MG… e AC… agindo de forma concertada, dirigiram-se, por várias vezes, à residência de CA…, sita na Rua …, Redondos, Alhadas, Figueira da Foz, dando-lhe conhecimento que o seu irmão, PS…, havia contraído uma dívida no montante de 1800,00 (mil e oitocentos euros) no bar – discoteca …, sito na Figueira da Foz, tendo a arguida dito ao Carlos, de viva voz e em tom alto, que o Paulo Jorge devia pagar a dívida, pois caso não o fizesse, qualquer dia aparecia esticado numa valeta.

2. O PS… veio a ter conhecimento de tal actuação dos arguidos através do CA….

3. Os arguidos MG… e AC… agiram de forma livre, actuando de forma concertada e em conjugação de esforços e com o propósito de fazer crer ao C… e ao PS… que tais anúncios se concretizariam, de forma a que este último pagasse a dívida em causa, assim lhes produzindo receio, medo e inquietação, resultado que representaram, não logrando obter com êxito o referido pagamento por circunstâncias alheias à sua vontade.

4. Os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

5. No dia 02 de Janeiro de 2004, o arguido LO… assinou e entregou no bar-discoteca …, sito na Estrada Nacional n.º 111, n.º 75, r/c, n.º 3, Figueira da Foz, explorada comercialmente por “…, Lda.”, e ao portador, o cheque n.º yyyyyyyyy, com o valor inscrito de 2845,00 (dois mil oitocentos e quarenta e cinco euros), destinado a servir de meio de pagamento de despesas de consumo efectuadas pelo arguido naquele dia na ….

6. Tendo sido sacado sobre a conta do arguido com o n.º xxxxxxxxx da Agência da Figueira da Foz do Banco Atlântico, foi o mesmo apresentado a pagamento no Banco Português de Negócios a 06 de Janeiro de 2004 e 15 de Janeiro de 2004, sendo contudo devolvido, das duas vezes, na compensação do Banco de Portugal, com a menção de “falta ou insuficiência de provisão”, conforme nota aposta no verso.

7. Até à data, o arguido não pagou à “…, Lda.” o capital constante do cheque.

8. Ao não receber o montante titulado pelo cheque, a ofendida teve prejuízos, posto que não o pode utilizar no seu circuito comercial.

9. O arguido agiu de forma livre e deliberada, bem sabendo que não dispunha na conta sacada de fundos suficientes para prover ao pagamento do cheque na respectiva data de emissão nem nos oito dias subsequentes e que por essa forma prejudicava financeiramente a ofendida pelo montante inscrito no cheque e que punha em causa a confiança pública no poder circulatório e liberatório do cheque, como título de crédito.

10. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

11. A arguida MG…é vendedora, auferindo, a título de vencimento e comissões, a quantia mensal média de € 700,00.

12. Reside em casa arrendada, pela renda mensal de € 350,00.

13. Não tem antecedentes criminais.

14. O arguido AC… aufere o vencimento mensal de € 470,00.

15. Reside com a companheira, doméstica, e dois filhos menores, em casa arrendada, pagando a renda mensal de € 225,00.

16. Já foi condenado pela prática dos seguintes crimes:

- crime de condução sem habilitação legal, cometido em 17-02-1999, por sentença transitada, proferida na mesma data;

- crime de condução sem habilitação legal, cometido em 10-09-2002, por sentença transitada em 30-09-2002.

17. O arguido LO… aufere o vencimento mensal de € 670,00.

18. Reside com a mulher, doméstica, em casa própria.

19. Tem despesas mensais médias em medicamentos, água e luz, no montante de € 100,00.

6. E como factos não provados:

Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa e, nomeadamente, que:

- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. supra dos factos provados, os arguidos MG…e AC… se faziam acompanhar de indivíduos cuja identidade não foi possível apurar.

- Nessas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida MG… disse ao CM… que o PS… devia pagar a dívida pois caso não o fizesse ia pagar pelo que fez e o patrão qualquer dia contratava capangas.

- Na mesma altura o arguido AC… disse que o ideal era o PS… pagar o que devia para não ter problemas.

- O arguido LO… preencheu o cheque supra aludido.

7. Relativamente à motivação da decisão de facto, ficou consignado:

O tribunal fundou a sua convicção na conjugação crítica dos seguintes elementos de prova:

- teor do depoimento da testemunha CA… que de forma coerente e consistente relatou as várias visitas que os arguidos lhe fizeram em sua casa, motivos dessas visitas, e o que na ocasião lhe disseram, que concretizou, o que o levou a ficar receoso por si e seu irmão PS…, a quem relatou o sucedido, dando-lhe conta do que os arguidos lhe haviam dito;

- no teor do depoimento da testemunha PS…, que de forma coerente e consistente, relatou que era frequentador do bar …, cujo objecto especificou, no qual fez desacatos, que concretizou, relatando o contacto que o irmão lhe fez na sequência das várias  visitas que os arguidos MG… e AC… fizeram a casa do mesmo, concretizando o que na ocasião o mesmo lhe disse, o que o levou a ficar receoso que algo de mal lhe acontecesse se não procedesse ao pagamento da quantia pretendida por aqueles, tendo deixado, inclusivamente, e durante cerca de um mês e meio/dois meses de vir de fim de semana a casa sita na Figueira da Foz, com receio que aqueles atentassem contra a sua integridade física. Esclareceu ainda que face a tais pressões para pagamento da dívida e receio que sentiu face ao que lhe relatou seu irmão, decidiu apresentar queixa contra os arguidos, sendo que a partir de tal momento cessaram os contactos dos mesmos;

- no teor dos documentos de fls. 2, 3, 35, 72 a 77, 118 a 121, 125, 126, 196, 200, 206 a 208 dos autos; fls. 4 e 5 do NUIPC 340/04.0TAFIG, e fls. 8 e 9 do NUIPC n.º 31/04.1PBFIG.

Não valorou o tribunal a versão apresentada pelos arguidos MG… e AC…, que não obstante confirmarem as várias visitas que fizeram a casa de CM…, e objectivo das mesmas (tentativa de cobrança de uma dívida do irmão daquele PM…), negaram que tenham pressionado por intermédio do CM…o PS… a proceder ao pagamento da dívida pela forma descrita na acusação, já que tal versão foi definitivamente infirmada pela prova testemunhal produzida (testemunhos de CM…e PS…), que se apresentou como coerente, consistente e merecedora de inteira credibilidade.

Não valorou igualmente o tribunal a versão apresentada pelo arguido LO…, que não obstante tenha confirmado que no dia constante do cheque como sendo o da sua emissão esteve no bar …, onde fez consumo, e que apôs pelo seu próprio punho nesse cheque uma assinatura, encontrando-se já o mesmo preenchido (por outrem) com o montante, que referiu ser inferior ao que do mesmo agora consta, na parte em que afirmou ter sido coagido a assinar tal cheque, o que fez contra a sua vontade e com receio de que lhe batessem caso o não fizesse.

Com efeito, tal versão não foi confirmada por qualquer outra testemunha, sendo que as testemunhas LAR…, mulher do arguido, e AP…, filha do arguido, nenhum conhecimento directo dos factos revelaram ter, limitando-se  a contar o que o arguido lhe relatou, apenas sabendo, de forma directa, que algum tempo depois, alguns homens foram a casa do arguido exigir-lhe o pagamento de uma dívida que aquele tinha contraído no bar …, desconhecendo o montante dessa dívida.

Por outro lado, o arguido admitiu ter estado no dia em questão no bar …, durante cerca de uma hora, onde fez consumo, e que após a sua assinatura no cheque em questão, não tendo entregue para além desse cheque qualquer montante para pagamento do consumo que efectuou.

Quanto à situação pessoal dos arguidos, interessaram as suas próprias declarações, bem como os depoimentos das testemunhas SS…, que conhece há anos o arguido AC…, e relatou sobre a sua inserção social, familiar e profissional; e das testemunhas JR…e ALÍNEA…, vizinhos e amigos do arguido LO…há largos anos, que esclareceram sobre a sua inserção familiar, profissional e social; interessaram ainda os CRC juntos aos autos.

Relativamente à testemunha MR… actual gerente da demandante, nenhum conhecimento directo dos factos revelou ter, limitando-se a explicar que o controlo dos consumos na demandante é feito através de cartão de crédito, e que estão afixados os preços das bebidas.

A falta de prova dos factos supra enunciados ficou a dever-se à insuficiência de prova produzida em julgamento, já que os arguidos MG… e AC… negaram os mesmos e nenhuma das testemunhas inquiridas referenciou os mesmos; sendo que o arguido Licínio negou que tivesse preenchido o cheque, não se tendo produzido prova segura quanto a tal facto.

8. Sobre o recurso do arguido LO…:

No pertinente segmento da matéria de facto, deu o tribunal a quo como provado que, no dia 2 de Janeiro, o arguido assinou e entregou, no bar-discoteca …, ao portador, o cheque n.º cheque n.º 7775558055, com o valor de 2.845,00 euros, sacado sobre a conta do arguido com o n.º 43680188 da Agência da Figueira da Foz do Banco Atlântico, destinado a servir de pagamento de despesas de consumo por aquele efectuadas, no referido dia, no dito estabelecimento, título esse que, apresentado a pagamento no Banco Português de Negócios, a 6 de Janeiro de 2004 e 15 de Janeiro de 2004, foi devolvido, por duas vezes, na Compensação do Banco de Portugal, com a menção de “falta ou insuficiência de provisão”.

E como não provado que o arguido LO…tivesse procedido ao preenchimento do aludido cheque.

Como decorre expressamente do artigo 1.º da Lei Uniforme sobre Cheques, o cheque tem de conter, além do mais, a indicação da quantia a pagar e da data em que foi passado.

O título a que faltar qualquer destes requisitos não produz efeito como cheque (cfr. artigo 2.º da citada Lei).

Faltando os apontados requisitos o cheque é nulo, não gozando, consequentemente, de protecção penal.

Porém, o artigo 13.º, ainda da mesma Lei, permite o acordo para o preenchimento do cheque passado em branco, de tal modo que, se for posteriormente completado conforme ao acordo realizado, ganha total eficácia, assumindo relevância também no domínio penal.

Não existindo esse acordo de preenchimento, o cheque continua a ser incompleto, sem conter os requisitos essenciais para a sua eficácia.

Em suma, só é válido o cheque em branco, desde que seja completado nos termos do acordo realizado.

No caso dos autos, como vimos, o tribunal a quo limitou-se a dar como não provado que o arguido LO… preencheu o referenciado cheque (facto constante do pedido de indemnização civil que não da acusação), justificando a sua opção valorativa na circunstância de não se ter produzido prova segura quanto a tal facto.

Postas as coisas nestes termos, fica-se sem saber se o foi o arguido ou terceira pessoa quem preencheu, nomeadamente quanto à quantia e data de emissão, o título em causa.

No primeiro caso (preenchimento pelo arguido), o cheque goza obviamente de eficácia, sendo assim, objecto de protecção penal.

No segundo caso (preenchimento por pessoa diversa do arguido), das duas uma: provado o acordo de preenchimento, o cheque ganha eficácia; provado que ele não existiu ou não provado que tenha existido ou tenha faltado, a consequência é, como se disse, não produzir efeito como cheque[i].

Ora, afigura-se-nos que o tribunal a quo, no uso dos poderes de investigação que lhe são cometidos pelo artigo 340.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, podia e devia ter ido mais longe no apuramento dos factos pertinentes à dilucidação das apontadas questões.

Ouvidas as declarações do arguido LO… (cfr. cassete 1, lado A, rotações 821 a 1211), referiu o mesmo ter sido pressionado a assinar o cheque, mas que não o emitiu, sendo que, inicialmente, o título tinha inscrita a quantia de € 845 e não de 2.845 €.

As testemunhas LG…, AP…, respectivamente mulher e filha do arguido, MR…, JR… e AF…não revelaram conhecimento sobre os factos relativos à emissão e entrega do cheque (cfr. cassete 1, lados A e B, e cassete n.º 2, lado A, até rotações 921).

Porém, um simples olhar sobre o cheque (fls. 4 do apenso 340/04.0TAFIG), permite ver que, no espaço destinado à inscrição da quantia, em numerário, está aposto o valor de € 2.845,00. No entanto, as quadrículas à esquerda do “8” estão “cortadas” com um traço contínuo, inclusive a que contém o número dos milhares “2”. Por outro lado, o “extenso” da referida quantia sugere ter sido feito em dois momentos distintos, porquanto, a “olho nu”, os segmentos “Dois mil” e “oitocentos e quarenta e cinco euros” não têm o mesmo aspecto gráfico e aparentam terem sido desenhados por tinta diversa.

Assim, só o necessário exame pericial grafológico, com prévia recolha da letra e assinatura do arguido, é adequado a esclarecer se os dizeres contidos no cheque foram apostos pelo mesmo punho, inclusive a assinatura que do título consta; se todos eles, nomeadamente a quantia (em numerário e em extenso), foram inscritos com utilização do mesmo instrumento de escrita; e ainda se os referidos elementos são ou não do punho do arguido.

Realizado o exame, e produzida a demais prova que seja tida como relevante, disporá então o tribunal a quo de condições para decidir sobre as questões de saber se foi ou não o arguido quem preencheu o cheque e se, no segundo caso, existiu (ou não) acordo de preenchimento.

Exercido pelo tribunal a quo o dever oficioso de instruir e esclarecer esses factos, se subsistirem, a final, dúvidas, tem o tribunal de reverter esse estado de dúvida a favor do arguido, de acordo com o princípio in dubio pro reo.

Em face do exposto, estamos perante o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, na justa medida em que o apuramento dos referidos factos, com recurso aos meios de prova supra referenciados, é manifestamente relevante para apurar da verificação do crime de emissão de cheque sem provisão imputado ao arguido.

A ocorrência do referido vício determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto no art. 426.º, n.º 1 do CPP, cingido àqueles concretos ponto de facto, e subsequente reconsideração de toda a matéria de facto em nova sentença que importará elaborar.

9. Do mérito dos recursos intercalares interpostos pela arguida MG…:

Todas as questões colocadas pela recorrente conduzem-nos directamente ao disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.

Aí de dispõe:

«1. Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.

2. Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.

3. O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».

A citada norma foi o resultado de uma longa evolução interpretativa, moldada pelas garantias de defesa do arguido, constitucionalmente consagradas.

Em 27 de Janeiro de 2003, pelo plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça foi fixada jurisprudência do seguinte teor:

«Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2 e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave» (Assento n.º 2/93, publicado no DR, 1.ª Série-A, de 10-03-1993).

O Tribunal Constitucional, no conhecimento de recurso interposto do citado assento, proferiu o Acórdão n.º 279/95, com a seguinte decisão:

«Julgar inconstitucional – por violação do princípio do princípio constante do artigo 32.º, n.º 1 da Constituição – o disposto no artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal, conjugado com os artigos 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2 e 379.º, al. b), e interpretado nos termos constantes do Assento 2/93, como não constituindo alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), mas tão-só na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídico-penal dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que o arguido seja prevenido da nova qualificação jurídica e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».

A tese interpretativa vincada no referido Acórdão, no seguimento daquele outro, com o n.º 173/92, de 7 de Maio de 1992, proferido no processo n.º 38/90[ii], deu nova linha de rumo à problemática da alteração da qualificação jurídica, no domínio da nossa jurisprudência, que até então, com quase total unanimidade, vinha entendendo que a qualificação jurídica pelo tribunal era totalmente livre, que a defesa do arguido é relativamente aos “factos e não das qualificações jurídicas que deles se fazem”[iii], não sendo de exigir sequer a comunicação ao arguido da diversa subsunção dos factos ao direito.

A citada jurisprudência constitucional acentuou a necessidade de compatibilização da alteração da qualificação jurídica com a plenitude de garantias de defesa exigidas pelo artigo 32.º, n.º 1, do texto constitucional, tornando clarividente que o pondo de vista que ao direito importa é a referência dos acontecimentos às normas jurídicas, e ao processo, os comportamentos humanos que pela lei são declarados passíveis de sancionamento. Neste contexto o direito de defesa tem de ser configurado também em função da consequência jurídica decorrente do concreto substrato factológico imputado ao arguido.

«A defesa não pode ser eficazmente assegurada se não puder ter por referência e por objecto uma incriminação legal precisa (…).

Ora, a referida preparação da defesa pode ser gravemente prejudicada (…) se, depois de encerrada a discussão o tribunal vier a optar por uma qualificação jurídico-penal com que a defesa não contava.

Não só a estratégia de defesa do arguido como a própria utilidade da defesa podem resultar inteiramente frustrados por essa surpresa processual (…): se soubesse que corria o risco de vir a ser condenado por crime mais grave, ou até simplesmente por um crime diverso, ainda que de igual ou até menor gravidade, o arguido podia (…) ter-se ocupado a carrear para os autos elementos de prova que achou desnecessários face à incriminação constante da acusação (…); podia inclusive ter assentado o seu esforço probatório e argumentativo em afastar a relevância de determinados elementos de facto que, se bem que indicados na acusação, eram de todo em todo inúteis face ao tipo criminal indicado na acusação ou na pronúncia»[iv].

Em suma, se o arguido preparou a sua defesa em função de uma determinada consequência jurídica, é óbvio que, se a consequência jurídica passa a ser outra, toda a anterior defesa pode perder grande parte do seu sentido e transformar-se numa inutilidade, se ao arguido não for dada a possibilidade de, perante a alteração registada, modificar a defesa antes apresentada, tendo em conta o novo enquadramento jurídico-penal.

Posteriormente, pelo Acórdão n.º 445/97, de 25 de Junho de 1997 (proc. n.º 154/97), o TC declarou, «com força obrigatória geral - por violação do princípio constante do nº 1 do artigo 32º da Constituição -, a norma ínsita na alínea f) do nº 1 do artº 1º do Código de Processo Penal, em conjugação com os artigos  120º, 284º, nº 1, 303º, nº 3, 309º, nº 2, 359º, nºs 1 e 2 e 379º, alínea b) do mesmo Código, quando interpretada, nos termos constantes do acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal de Justiça em 27 de Janeiro de 1993 e publicado, sob a designação de «Assento nº 2/93», na 1ª Série-A do Diário da República de 10 de Março de 1993 - aresto esse entretanto revogado pelo Acórdão nº 279/95 do Tribunal Constitucional -, no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».

O STJ procedeu à reformulação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 2/93, em 13-11-1997, da seguinte forma:

«Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando exista, o Tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, ao arguido, da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo possa organizar a sua defesa jurídica».

O mesmo Alto Tribunal, pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 3/00, de 15 de Dezembro de 1999, DR, 1.ª Série-A, de 11-02-2000), proferiu decisão do seguinte teor:

«Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da passibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa».

Entretanto, o legislador tomara posição expressa sobre a questão, na revisão do Processo Penal de 1998, consagrando a disposição legal (artigo 358.º) supra citada.

Feito este percurso histórico sobre a problemática da alteração jurídica e da sua correlação com os direitos de defesa do arguido, é chegado o momento de enfrentarmos as concretas questões vertidas nos recursos intercalares.

E começamos por dizer que a M.ma Juiz de 1.ª instância começou por fazer o que não devia, acabando por não fazer o que devia.

Expliquemo-nos.

A arguida MG está acusada, pelos factos constantes da acusação pública de fls. 248 a 252, da prática, em co-autoria material, de um crime de coacção grave, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, por referência aos artigos 154.º, n.º 1, 144.º (a alusão, na acusação, a este normativo é completamente despropositada), 22.º e 23.º, do mesmo diploma legal.

Finda a produção de prova, a M.ma Juiz, partilhando o entendimento de que os factos constantes da acusação, “parcialmente provados”, apenas constituíam o crime de coacção simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º, do referido corpo normativo (cfr. despacho proferido em 10 de Julho de 2007, a fls. 392 dos autos), disso deu conhecimento aos arguidos, tendo sido requerido, pela arguida MG, prazo para preparação da sua defesa. Em face do requerido, foi proferido o despacho recorrido de fls. 393, no qual foi decidida a interrupção da audiência, com designação do dia 16 de Junho para continuação da mesma.

Como salienta Maia Gonçalves[v], «não é necessária a comunicação ao arguido quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infracção que representa um minus relativamente à da acusação ou à da pronúncia, pois que o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e a possibilidade de os contraditar. Aqui podem apontar-se os casos de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o crime simples»[vi].

No caso em apreciação, o que se verifica é tão só o afastamento da circunstância qualificativa-agravante prevista na alínea a) do n.º 1, do artigo 155.º do Código Penal, e a reconfiguração do crime de coacção ao tipo simples do artigo 154.º, n.ºs 1 e 2.

Assim, não seria caso que exigisse o cumprimento do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, porque a alteração resulta da imputação de um crime simples, quando da acusação resultava a imputação do mesmo crime, mas em forma mais grave, por afastamento do elemento qualificador-agravante inicialmente imputado, já que a arguida se defendeu em relação a todos os elementos de facto e normativos que lhe estavam imputados no libelo acusatório.

Contudo, não tendo sido impugnado, por via de recurso, o despacho em causa, de fls. 392, tornou-se definitivo, face à intangibilidade do caso julgado formal, impossibilitando que se retire agora à arguida o direito de defesa que antes lhe foi concedido.

Retomando o desenvolvimento processual verificado nos presentes autos, a arguida Goreti requereu, em 13-07-2007, a concessão de mais 5 dias para preparação da sua defesa face à alteração da qualificação jurídica, fundamentando a sua pretensão na insuficiência do prazo inicialmente concedido para o referido fim.

A Mma. Juiz, por despacho da mesma data, a fls. 395, do qual também foi interposto recurso pela arguida, indeferiu o requerido, fundamentando a decisão tomada na circunstância de “a alteração não substancial verificada radicar na alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação (…) para crime menos gravoso”, sendo, por isso, suficiente o prazo que á arguida “foi concedido para preparação da sua defesa”.

Não obstante ter interposto recurso, em simultâneo, dos despachos de fls. 393 e 395, a arguida MG, por requerimento remetido, via fax, pela 01:35h do dia 16-07-2007 - levado ao conhecimento da Mma. Juiz em momento anterior ao da leitura da sentença -, “face à comunicação da alteração na qualificação jurídica (…), nos termos do artigo 358.º, n.º 3, do CPP, condicionalmente à sorte do recurso (…)”, apresentou a sua defesa nos termos que constam de fls. 408 e 409 e indicou para inquirição duas testemunhas devidamente identificadas.

Nesses recursos, invoca a recorrente que os despachos recorridos, de fls. 393 e 395, por exporem (o primeiro) e pressuporem (o segundo) o “entendimento da Meritíssima Senhora Juíza de que há factos alegados na acusação que se devem desde já considerar parcialmente provados, violam, assim, os mais elementares direitos dos arguidos e os princípios mais básicos de todo o “moderno” direito processual penal”, como sejam os direitos elencados na alínea i) das conclusões da motivação do recurso, transcrita supra.

Não vemos que assim seja.

A comunicação aos arguidos da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação “e parcialmente provados” teve lugar após a produção da prova e quando já haviam sido produzidas as alegações orais previstas no artigo 360.º do CPP.

Tratando-se de julgamento por tribunal colectivo, é no momento da deliberação e votação (artigo 368.º, n.º 3, do CPP) que, normalmente, o tribunal reúne condições para constatar a alteração da qualificação jurídica e só altura poderá obviamente aferir da existência de alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

No caso de julgamento por tribunal singular, não existindo processo de deliberação colegial e votação, o julgador, encerrada a produção de prova e efectuadas as alegações orais, pode desde logo ponderar e apreciar a prova, sem que daí decorra qualquer juízo preconcebido quanto à culpabilidade da arguida. Veja-se o artigo 373.º, n.º 1, do CPP que, como regra, determina a imediata elaboração da sentença.

Aduz ainda o arguido, no âmbito do recurso em apreciação, que o disposto na parte final do n.º 1 do artigo 358.º deve “ser interpretado no sentido de que, quando a lei impõe ao juiz que, perante a comunicação da alteração, conceda ao arguido, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa, se está a referir ao prazo previsto no artigo 315.º do CPP”.

Também aqui, não concordamos com a recorrente.

A preparação da defesa não envolve a realização de um novo julgamento, mas sim a concessão ao arguido da possibilidade de dispor de todos os direitos perante a alteração da qualificação jurídica: o direito à prova e o direito ao contraditório, etc – que lhe assistem.

Daí que não faça qualquer sentido a interpretação que a recorrente pretende dar ao assinalado segmento normativo do artigo 358.º, n.º 1, do CPP (versão da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, a vigente no momento da prolação dos despachos recorridos – cfr. artigo 5.º do CPP).

Veja-se que, em caso de alteração substancial dos factos, nos casos referidos no n.º 2 do artigo 359.º do CPP, o legislador não foi além do prazo de 10 dias para o arguido preparar a defesa, sendo inconcebível que estivesse na sua mente a dação de um prazo superior no caso de alteração jurídica.

“O tempo estritamente indispensável” há-de corresponder ao tempo que se revele suficiente e necessário à preparação da defesa do arguido, criteriosamente aferido em função da natureza e complexidade (ou falta dela) de cada caso concreto.

Na precisa situação dos autos, não temos como desajustado o prazo de cinco dias para o específico fim em vista. Aliás, a arguida não manifestou a necessidade de maior prazo, conformando-se com o que lhe foi dado. Só em momento posterior (decorridos que foram 3 dias) requereu a sua prorrogação por igual período, sem concretizar minimamente os motivos determinantes do alargamento do prazo anteriormente concedido.

Por todo o exposto, os despachos recorridos não fizeram interpretação incorrecta do artigo 358.º, do CPP, nem vemos que os mesmos tenham de algum modo atentado contra o direito de defesa consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, razão por que não descortinamos as inconstitucionalidades dirigidas àquela norma (artigo 358.º) pela recorrente, na dimensão interpretativa referida na motivação e conclusões do recurso.

Como assim, os referidos despachos também não padecem de nenhuma nulidade, nomeadamente da insanável do artigo 119.º, alínea c), do CPP, assinalada pela recorrente, ficando, em consequência, prejudicada a questão relativa à inconstitucionalidade desta norma quando interpretada em sentido diverso do que é preconizado no articulado de recurso.

Na justa medida do que se deixa escrito, o recurso interposto dos despachos de fls. 393 e 395 é improcedente.

O mesmo não sucede, todavia, com o recurso interposto do despacho de fls. 440.

Reaberta a audiência de julgamento, no dia 16-07-2007, a M.ma Juiz lavrou o despacho que consta de fls. 431/432, no qual expôs os fundamentos que determinaram a não inquirição das testemunhas indicadas pela recorrente Maria Goreti, no âmbito da defesa que ofereceu face à alteração da qualificação jurídica.

Tais fundamentos resumem-se ao facto de as testemunhas não se encontrarem presentes no Tribunal e de não ter sido requerida pela arguida a sua notificação.

Arguida, em tempo, a nulidade do despacho, foi ela tida por inexistente (cfr. despacho de fls. 440). Logo de seguida, a M.ma Juiz procedeu à leitura da sentença.

Como já acima ficou dito, o sentido da notificação do arguido quando se vislumbra a possibilidade de serem alterados não substancialmente os factos ou a qualificação jurídica decorre da necessidade de não pôr em causa o seu direito de defesa, o direito de se pronunciar quanto a elementos surpresa de que não pôde oportunamente defender-se. Daí que se tivesse dito também que, na concreta situação dos autos, a transmutação do crime de ameaça grave para o tipo simples não envolveria qualquer alteração relevante que justificasse o cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP, uma vez que a arguida já havia exercido os direitos de defesa, na latitude que foi referida: factos e direito. Porém, a concessão pelo tribunal do direito à apresentação de defesa por parte da arguida constitui agora uma realidade adquirida, por força do caso julgado formal. Também isto já foi referido.

Neste contexto, e só neste, toda a razão está do lado da recorrente.

Perante o arrolamento para audição das duas testemunhas, o tribunal a quo só tinha dois caminhos a seguir: ou entendia que o caso não justificava a inquirição, fundamentando a sua opção, ou então procedia à audição das testemunhas, assegurando a comparência destas em julgamento.

Não tendo sido feita uma coisa nem outra, foram afectados os direitos de defesa do arguido, verificando-se a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, al. c), do CPP - preterição de diligências de âmbito probatório essenciais para a descoberta da verdade -vício este que foi oportunamente arguido pela recorrente.

Tal nulidade torna inválido o acto em que se verificou (a audiência de julgamento) e, por arrastamento, toda a “produção de prova” e a sentença subsequente (cfr. artigo 122.º do CPP).

Na verdade, havendo que inquirir as testemunhas indicadas pela arguida MG…, a prova antes produzida perdeu eficácia, nos termos do artigo 328.º, n.º 6, do CPP.

Impõe-se, assim, a repetição do julgamento, pela Ex.ma Juiz que presidiu ao ora anulado, Sr.ª Dr.ª HM…, se possível, com a produção da prova que, na respectiva parte, os autos comportam, nomeadamente a inquirição das testemunhas indicadas pela arguida MG…, referidas supra, e da demais prova que se venha a considerar relevante à boa decisão da causa, sendo a final proferida nova sentença relativamente àquela arguida e ao arguido AM… - a este está imputada a co-autoria, conjuntamente com a dita arguida, de um crime de coacção (na forma tentada) -, dando-se como adquirido que a qualificação jurídica dos factos corresponde ao crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal.

Nesta medida, fica prejudicado o conhecimento do recurso interposto pela arguida MG… da sentença de fls. 414 a 427.

O reenvio para novo julgamento, no que respeita ao arguido LO…., e os efeitos da nulidade, quanto aos arguidos MG… e AC…, implicam necessariamente a separação do processo a reenviar, na parte atinente, continuando nos presentes autos os actos processuais que cabe praticar, relativos ao imputado crime de coacção, na forma tentada.

Em conformidade, recebidos os autos, a M.ma Juiz titular do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Figueira da Foz procederá à separação do processo objecto de reenvio, que remeterá ao tribunal referido no artigo 426.º-A do CPP.

10. Responsabilidade pelas custas:

Face à improcedência do recurso intercalar interposto dos despachos de fls. 393 e 395, a arguida MG é responsável pelo pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.º 1, al. b), do Código das Custas Judiciais.

Tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica da visada, fixa-se, de taxa de justiça, o valor de 3 UC´s.

III. Decisão:

Posto o que precede, decide-se:

1. Determinar o reenvio do processo para o tribunal referido no art. 426.º-A do Código de Processo Penal, para que, em novo julgamento, se apure, na forma exposta, os factos supra mencionados no ponto 8. da fundamentação deste acórdão, relativos ao arguido LO…, devendo depois, em conformidade, ser lavrada nova sentença.

2. Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida MG…dos despachos de fls. 393 e 395.

3. Julgar procedente o recurso interposto pela arguida MG… do despacho de fls. 440 e, em consequência, declarar a nulidade da audiência de julgamento e, por arrastamento, toda a produção de prova e a sentença de fls. 414 a 427, e determinar a repetição do julgamento, pela Ex.ma Juiz que presidiu ao ora anulado, se possível, com a produção de prova que, na parte respectiva, os autos comportam, nomeadamente a inquirição das testemunhas indicadas a fls. 453/454 pela arguida MG… e da demais prova que se tenha como relevante à boa decisão da causa, sendo a final proferida nova sentença relativamente àquela arguida e bem assim ao arguido AM…, dando-se como adquirido que a qualificação jurídica dos factos é a de crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo artigo 154.º, n.ºs 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal.

4. Determinar que no tribunal a quo se proceda à separação do processo a reenviar, na parte atinente, o qual será remetido ao tribunal referido no artigo 426.º-A do CPP.


[i] Cfr. fundamentação contida no Assento n.º 1/93, de 9 de 2 de Dezembro de 1992, publicado no DR, 1.ª Série-A, de 09-01-1993.
[ii] Julgou inconstitucional, «por violação do princípio constante do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a disposição do artigo 418.º, n.º 2, do Código de Justiça Militar, na parte em que permite ao tribunal condenar por infracção diversa daquela de que o arguido foi acusado (caso os factos que integram o respectivo tipo incriminador constem do libelo acusatório), quando a diferente qualificação jurídico-penal dos factos conduzir à condenação do arguido em pena mais grave, mas tão-só na medida em que não prevê que se previna o arguido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa».
[iii] Cfr. Frederico Isasca, in Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, pág. 100 e ss..
[iv] Cfr. o referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 173/92.
[v] Código de Processo Penal, anotado e comentado, 15.ª edição, p. 696, nota 3.
[vi] Neste sentido, que julgamos unânime na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, v. g., Acórdãos de 02-05-2002, 07-11-2002, 06-04-2006, 14-06-2006 e 31-10-2007, todos publicados, em sumário ou texto integral, em www.dgsi.pt.