Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
240/19.9GBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CONVERSÃO DA MULTA NÃO PAGA EM PRISÃO SUBSIDIÁRIA
AUDIÇÃO DO CONDENADO
NULIDADE INSANÁVEL
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DO FUNDÃO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 49.º DO CP; ARTS. 61.º, N.º 1, AL. B), E 119.º, AL. C), DO CPP
Sumário: I – Previamente à conversão da multa não paga em prisão subsidiária, impõe-se a audição do condenado, podendo o mesmo demonstrar que o não pagamento em causa lhe não é imputável e requerer a suspensão prevista no n.º 3 do artigo 49.º do CP.

II – Perante a alegação do condenado sobre a dita conversão, poderá justificar-se a realização, pelo tribunal, de diligências probatórias tendentes a apurar as concretas razões determinantes do não pagamento da multa, incluindo solicitação de relatório social.

III – A falta de audição do condenado, por colidir com os direitos fundamentais de defesa do condenado, constitui a nulidade insanável prevista na al. c) do artigo 119.º do CPP.

Decisão Texto Integral:







Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



1. Relatório

A. interpôs recurso da decisão proferida no processo sumário n.º 240/19.9GCFND, do juízo local criminal do Fundão, Comarca de Castelo branco, que converteu a multa de 99 dias, em que havia sido condenado, em 66 dias de prisão subsidiária.


1.1. Recurso do arguido (conclusões):

– Por douta sentença transitada em julgado, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução sob efeito de álcool, na pena de 99 dias de multa, à taxa diária de 5,00 euros, o que perfaz a multa no valor global de € 495,00, que não pagou.

– Decorre dos autos que não se mostra viável a cobrança coerciva do montante relativo à pena de multa, atenta a inexistência de bens suscetíveis de penhora pertença do arguido que permitam o pagamento do valor relativo à pena de multa.

–Entendeu o Tribunal a quoestarem, assim, reunidos os pressupostos para proceder à conversão da multa não paga em prisão subsidiária, em razão do que determinou, sem mais, a conversão da pena de 99 dias de multa aplicada ao arguido em 66 dias de prisão subsidiária.

– Este despacho que, ao abrigo do disposto no artigo 49º do Código Penal, converteu a pena de multa não paga em prisão subsidiária, configura uma alteração superveniente do conteúdo decisório da sentença de condenação, que tem como efeito a privação da liberdade do arguido condenado.

- O tribunal deveria proceder à audição do arguido para saber do motivo ou motivos que o impediram de pagar a multa em que foi condenado.

- O tribunal deveria, também, ordenar a elaboração de relatório social, não só para apurar as razões do não pagamento da multa, mas também para se inteirar da situação pessoal, financeira e económica do arguido; e só depois da realização dessas diligências deveria ter-se pronunciado sobre a conversão da pena de multa em prisão subsidiária.

– Caso se demonstrasse que o não pagamento da multa não se deveu a culpa do arguido, deveria o tribunal ter ponderado a possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão subsidiária, subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta, nos termos do preceituado no artigo 49º, nº 3, do Código Penal.

-Decidindo como decidiu - e como nas precedentes conclusões se deixou expendido – o Tribunal a quo fez errada interpretação e aplicação do preceituado no artigo 49º, nº 1 e 3º do Código Penal.»


1.2. Resposta do Ministério Público (conclusões):
«1. Por sentença datada de 11.04.2019, transitada em julgado em 20.05.2019, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), sendo que operando o desconto previsto no artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal, ou seja, descontando um dia de detenção sofrido pelo arguido no cômputo geral da pena de multa, temos uma pena de 99 (noventa e nove) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa global de 495,00€ (quatrocentos e noventa e cinco euros);
2. O ora recorrente não procedeu voluntariamente ao pagamento da pena de multa, nem tão pouco requereu a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade;
3. Como resulta dos autos, não obstante as diligências realizadas, não são conhecidos ao arguido, bens ou rendimentos penhoráveis;

4. Encontram-se verificados os pressupostos legais para conversão da pena de multa aplicada na correspondente pena de prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49.°, n.º 1, do Código Penal, ou seja, cumprimento de prisão subsidiária pelo tempo correspondente ao número de dias de multa em que o arguido foi condenado na referida sentença, reduzido a dois terços, ou seja, pelo período de 66 (sessenta e seis) dias de prisão;

5. O recorrente colocou-se numa situação em que podia agir de modo diverso;
6. Com vista à eventual suspensão de execução de pena de prisão subsidiária, dispõe o artigo 49.°, n.º 3, do Código Penal, que é o arguido quem terá de provar ao tribunal que a razão do não pagamento da pena de multa não lhe é imputável (se for o caso), e não o contrário, que seja este a realizar as diligências respetivas, para apuramento da situação pessoal e económica do arguido;
7. A decisão ora em crise levou em consideração todos os factos e elementos de prova atinentes à decisão fundamentada para converter a pena de multa em prisão subsidiária, inexistindo qualquer omissão de pronúncia.
8. Tal despacho não violou qualquer princípio ou norma legal, designadamente, a norma constante do n.º 3, do artigo 49.° do Código Penal, como invocado pelo recorrente.»

1.3. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador da República acompanhou a resposta do Ministério Público, concluindo pelo não provimento do recurso do arguido.

2. Questões a decidir no recurso

O objeto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
a) Nulidade da decisão proferida por violação do contraditório;
b) Suspensão da execução da pena de prisão subsidiária.
*


3. Fundamentação

- Ocorrências processuais com relevo para a decisão:

1. Por sentença datada de 11.04.2019, transitada em julgado em 20.05.2019, o arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução sob efeito de álcool, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), sendo que operando o desconto previsto no artigo 80.º, n.º 2, do Código Penal, ou seja, descontando um dia de detenção sofrido pelo arguido no cômputo geral da pena de multa, temos uma pena de 99 (noventa e nove) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz a multa global de 495,00€ (quatrocentos e noventa e cinco euros).

2. Foi emitida a guia para pagamento da multa em 7.06.2019, que não foi paga;

3. Foram extraídas do sistema (bases de dados) informações relativas a pagamento de prestações à segurança social de trabalho prestado pelo arguido, bens móveis sujeitos a registo e imóveis em seu nome, e declarações de rendimentos do arguido;

4. Por promoção do Ministério Público de 10.7.2019, foi requerida a conversão da multa não paga (99 dias) em 66 dias de prisão subsidiária, com o seguinte fundamento: “Decorre ainda dos autos que não se mostra viável a cobrança coerciva do montante relativo à pena de multa, atenta a inexistência de bens suscetíveis de penhora pertença do arguido que permitam o pagamento do valor relativo à pena de multa”.

5. A 12.9.2019 foi proferida a seguinte decisão recorrida:
“Como decorre dos autos, o arguido A. foi condenado na pena de 99 (noventa e nove) dias de multa à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), o que perfaz o montante global de 495,00€ (quatrocentos e noventa e cinco euros).
O arguido não procedeu ao pagamento da pena de multa em que foi condenado.
Decorre, ainda, dos autos que não se mostra viável a cobrança coerciva do montante relativo à pena de multa, atenta a inexistência de bens suscetíveis de penhora pertença do arguido que permitam o pagamento do valor relativo à pena de multa.
Dispõe o artigo 49.º, n.º 1, do Código Penal que se a multa não for paga, de forma voluntária ou coerciva, é cumprida pena de prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
Assim, uma vez que o arguido não pagou voluntariamente a totalidade da pena de multa em que foi condenado, e se mostra inviável a sua cobrança coerciva, determina-se que a pena de multa aplicada seja convertida em 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, nos termos do disposto no artigo 49.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.
Notifique.
Após trânsito, conclua para efeitos de emissão de mandados de condução ao EP competente.”
               6. Esta decisão foi pessoalmente notificada ao arguido a 24 de setembro de 2019, através de entidade policial.


3.1. Conhecimento do recurso:

A) Violação do princípio do contraditório:

Estabelece o art. 49º do Código Penal, com a epígrafe conversão da multa não paga em prisão subsidiária:
1- Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do n.º 1 do artigo 41º.
 2- O condenado pode a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa a que foi condenado.
3- Se o condenado provar que a razão do não pagamento da multa lhe não é imputável, pode a execução da prisão subsidiária ser suspensa, por um período de 1 a 3 anos, desde que a suspensão seja subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não económico ou financeiro. Se os deveres ou regras de conduta não forem cumpridos, executa-se a prisão subsidiária; se o forem, a pena é declarada extinta. (…)

No caso, a pena de multa não foi substituída por trabalho (o que carecia de requerimento do condenado apresentado no prazo concedido para pagamento da multa – art. 48º do Código Penal). Assim, no caso de não pagamento da multa, o tribunal afere, num primeiro momento, da possibilidade de pagamento coercivo da multa; num segundo momento, caso não obtenha ou não seja possível o pagamento coercivo da multa, o tribunal impõe o cumprimento de prisão subsidiária – que pode ser obstado, total ou parcialmente, com o pagamento total ou parcial da multa.

            Por outro lado, no n.º 3 do preceito transcrito prevê-se a possibilidade de suspensão da pena subsidiária de prisão caso o não pagamento da multa não seja imputável ao condenado, cabendo o ónus de comprovar este facto ao próprio arguido (se o condenado provar…).

            A liberdade de locomoção de um indivíduo só pode ser limitada nos casos e com as garantias que a Constituição da República Portuguesa prevê, conforme decorre do seu art. 27º, impondo que sejam respeitadas as garantias processuais aplicáveis à situação.

            Uma das garantias processuais que têm de ser respeitadas numa decisão que determine a privação da liberdade é o princípio do contraditório, consagrado no n.º 5 do art. 32º da Constituição da República Portuguesa. Trata-se de um princípio estrutural do processo equitativo, talhado como direito fundamental no art. 6º, 1º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e capital no leque dos direitos do arguido consagrados nos arts. 60º a 63º do Código de Processo Penal.

            Assim, previamente a ser tomada a decisão que converte a pena de multa em prisão subsidiária, o arguido tem o direito de se pronunciar, desde logo para exercer a sua defesa quanto ao preenchimento dos pressupostos da conversão.

            Desde logo, não suscita qualquer dúvida que a decisão em causa afeta pessoalmente o arguido, para os efeitos do disposto no art. 61º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, razão pela qual é obrigatória a sua prévia audição.

            Por outro lado, é no exercício do contraditório sobre a promoção do Ministério Público com vista à conversão da pena de multa em prisão subsidiária que o condenado deve invocar as razões da falta de cumprimento da sua obrigação, essencial para que seja tomada a decisão de aplicar, ou não, a prisão subsidiária: o n.º 3 do art. 49º do Código de Processo Penal, transcrito, prevê que o mero incumprimento não conduz, só por si, à aplicação da prisão subsidiária, podendo esta ser suspensa e condicionada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta de conteúdo não pecuniário.

            A conversão da multa não paga em prisão subsidiária configura uma alteração superveniente do conteúdo da sentença de condenação que tem como efeito a privação da liberdade do condenado, podendo o condenado demonstrar que lhe não é imputável o não pagamento da multa, e requerer a sua suspensão.

           

Na verdade, do n.º 3 do art. 491º do Código de Processo Penal infere-se que, após esgotadas todas as possibilidades de cobrança coerciva da multa, o tribunal pode suspender a execução da prisão subsidiária, que pode ser requerida pelo Ministério Público ou pelo condenado – donde se extrai a necessidade de audição do condenado previamente à aplicação da prisão subsidiária, ainda que para se pronunciar sobre a eventual suspensão da prisão subsidiária, caso seja requerida pelo Ministério Público.

Mais: perante a alegação em concreto do condenado sobre a referida conversão, poderá inclusive ser necessária a realização de relatório social para, por um lado, apurar as razoes do não pagamento da multa, e, por outro lado, aferir da situação familiar e económica do arguido.

            Encontra-se, pois, o tribunal vinculado ao dever de audição das partes.

           

Aqui chegados, urge considerar que a audição do arguido é a forma processual e legal de dar efetividade ao exercício deste ser ouvido, e ao princípio do contraditório – art. 61º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal (cf. Ac. desta RC de 11.9.2019, relatado pelo Des. Luís Teixeira, no endereço www.dgsi.pt).

Assim, a falta de audição do arguido nos casos em que a lei comina tal obrigatoriedade, por colidir com os direitos fundamentais de defesa (como é o caso), constitui nulidade insanável, prevista no art. 119º, al. c), do Código de Processo Penal, interpretada extensivamente, e passível de ser suscitada em recurso, nos termos no art. 410º, n.º 3, do mesmo Código (cf. os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 8.11.2006, proc. 162/04.8GAANS-A.C1, de 11.10.2017, proc. 911/13.3GCLRA-A.C1, de 11.9.2019, proc. 31/15.6IDCTB.C2, da Relação de Guimarães de 3.12.2018, proc. 733/09.6PBGMR.G1, de 14-10-2019, proc. 1163/17.1T9VCT.G1, da Relação de Évora de 20.5.2014, proc. 335/09.7IDFAR-A.E1, da Relação do Porto de 11.1.2017, proc. 1884/96.0JAPRT.P1, da Relação de Lisboa de 15.3.2011, proc. 432/08.6POLSB-A.L1-5, todos em www.dgsi.pt; no sentido de se tratar de nulidade secundária, prevista no art. 120º do Código de Processo Penal, cf. o Ac. desta Relação de Coimbra de 16.3.2016, proc. 243/12.4GCLRA.C1).

Deverá, assim, proceder-se à formalidade omitida, ouvindo-se o condenado relativamente à promoção do Ministério Público para conversão da multa em prisão subsidiária – através de notificação ao arguido e seu defensor, sendo a notificação ao arguido por via postal registada, se remetida para a morada constante do TIR, caso tenha sido prestado posteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 20/2013.


B) Suspensão da prisão subsidiária

Conforme se referiu, o tribunal não pode decretar a suspensão da prisão subsidiária sem que o condenado ou o Ministério Público o requeiram, com os fundamentos previstos no art. 49º, n.º 3, do Código de Processo Penal, o que deve ser requerido em momento anterior à conversão da multa não paga em prisão subsidiária.

Sendo nulo o despacho em causa, encontra-se o recorrente em tempo de requerer a aplicação de tal instituto, o que deve fazer no prazo que lhe venha a ser concedido para exercício do contraditório, conforme se ordena nesta decisão.


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4. Decisão

Nos termos expostos, concede-se provimento ao recurso, e declara-se nulo o despacho que converteu a multa aplicada ao recorrente em prisão subsidiária, sem prévia audição deste, por violação do princípio do contraditório.

Sem tributação.

Coimbra, 4 de março de 2020

Ana Carolina Cardoso (relatora)

João Novais (adjunto)