Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
88/05.8TAACN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUISITOS
Data do Acordão: 04/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ALCANENA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 283º, Nº 3, ALÍNEA C; 287, Nº 2 E 3; 290º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL; 217º DO CÓDIGO PENA
Sumário: I.– O requerimento para abertura da instrução deduzido pelo assistente constitui substancialmente uma acusação, devendo conter todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo imputado ao arguido;

II. – A não descrição no requerimento de abertura de todos os factos que preencham o tipo do crime imputado conduzirá à sua rejeição, por inadmissibilidade legal da instrução;

III. – O crime de burla sendo um crime de dano só se torna perfeito com a lesão efectiva do bem jurídico tutelado, ou seja com a verificação de um prejuízo efectivo no património do ofendido.

IV. – O crime burla como crime de resultado exige a produção de um acontecimento consubstanciador da actividade do agente, qual seja a saída do bem do âmbito da disponibilidade de facto do lesado.

V. – O crime de burla é um crime de execução vinculada porquanto a lesão do bem jurídico que visa tutelar se verifica em consequência de uma específica forma de actuar do agente, traduzida na utilização de um meio enganoso capaz de induzir o burlado em erro, erro este que o determinará à prática de actos causadores do prejuízo.

VI. – Na execução do crime de burla ocorre um duplo nexo de causalidade: por um lado a existência de uma conduta enganatória causante do erro do burlado, e por outro, a indução vinculada, mediante o erro causado, da entrega da disposição patrimonial em que se consubstancia o prejuízo.

Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.  

Findo o inquérito no âmbito do processo nº 88/05.8TAACN, dos serviços do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da comarca de Alcanena, em que foi constituído arguido AA. …, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido despacho de arquivamento relativamente aos factos participados pelas assistentes MM. … e NN. … .

Pelas assistentes, em requerimento subscrito apenas pelo Exmo. Mandatário da MM. …, foi requerida a abertura da instrução, nos seguintes termos (transcrição):

   “ (…).

I O Ministério Público fundamentou o arquivamento no facto de não resultarem dos autos prova suficiente de que os arguidos praticaram o crime denunciado.

II Baseia tal conclusão no facto de não existir um elemento concreto da localização do outdoor em causa.

III Porém, tal resulta do depoimento da testemunha JJ. …e em particular do levantamento topográfico de que se junta cópia e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos (Doc. nº l).

IV Além disso, tal situação de conflito resultou do facto de os arguidos não quiseram reconhecer a situação quando sabiam perfeitamente que estava a invadir a propriedade da Assistente e aqui requerente MM. …. Deste modo,

V Não foi por ignorância que os arguidos facturaram e continuaram a facturar à Assistente NN. …verbas em contrapartida da utilização do outdoor, que ocupa a extensão de 5 metros e oitenta e nove centímetros, dos quais 5,45 metros são na propriedade da Assistente MM. ….

VI Na verdade o arguido sabia perfeitamente que o mesmo se encontrava em propriedade alheia, com excepção de 54 centímetros, como resulta claro do levantamento.

VII Houve sempre discussão sobre essa matéria, o que levou a aqui Assistente MM. …a fazer o referido levantamento topográfico, mas os arguidos nunca quiseram saber de tal situação no óbvio intuito de extorquir as correspondentes quantias à Assistente NN. ….

VIII Nessas facturas, juntas ao processo, os arguidos sempre afirmaram que o referido painel estava instalado na sua propriedade, sabendo sempre que tal declaração era falsa no referido intuito astucioso de continuar a receber as mensalidades correspondentes.

                IX Ora, não sofre dúvidas que o arguido tinha intenção de enganar a Assistente NN. … pois astuciosamente refere expressamente nas facturas que o painel estava em propriedade sua, pois caso contrário a assistente NN. … nunca tinha pago nenhuma quantia (Doc. nº 2).

X Não pode prevalecer o depoimento do arguido gerente de que não foi ele próprio que contactou as Assistentes mas sim um representante seu, pois foi ele próprio que redigiu uma carta à Assistente NN. …a solicitar o pagamento das facturas em atraso, que esta deixou de pagar ao ter conhecimento que o outdoor se encontrava em terreno alheio (Doc. nº 3).

XI Note-se que o próprio acaba por confessar que o terreno que ele diz ser seu já desde há muito deixou de ser propriedade sua, tendo-o devolvido às finanças de Alcanena.

Pelo exposto, requerem a V.Exa., declarando-se aberta a Instrução, se proceda a: …

(…)”.

*

Sobre este requerimento incidiu o seguinte despacho (transcrição):

   “ (…).

O Tribunal é o competente.

Dispõe o art. 287.º, n.º 3 do Código de Processo Penal que o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, esclarecendo o seu n.º 2 que o mesmo não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à acusação ou à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º  n.º 3, alíneas b) e c) (…).

Nos presentes autos, pelo Ministério Público foi proferido o despacho de arquivamento constante de fls. 111 e seguintes, consubstanciando a sua comprovação por via judicial, precisamente, o escopo da fase instrutória; in casu, e perante a solução entretanto preconizada nos autos, pretenderão as assistentes que, a final, seja proferido despacho de pronúncia dos arguidos.

Sucede que, sendo a instrução requerida por assistente, a par dos requisitos insertos no n.º 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal, supra transcrito, o requerimento tendente à sua abertura deve conter os requisitos de uma acusação, os quais se evidenciam necessários à própria realização da instrução, particularmente no tocante ao funcionamento do contraditório e à elaboração da decisão instrutória.

Na verdade, e ainda antes da última alteração legislativa do Código de Processo Penal, argumentava Souto Moura que "se o assistente requerer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados" (Souto Moura, in "Jornadas de Processo Penal", CEJ, 120 e seguintes).

Ora, o requerimento de abertura de instrução em causa, ainda que aponte algumas concretas razões de facto e de direito para a discordância relativa à não acusação, detém-se sobretudo em conclusões de facto e em conceitos de direito, não precisando com os contornos que reputamos indispensáveis a matéria objecto de instrução. É que a sindicância da decisão de arquivamento está intrinsecamente ligada aos meios de prova colhidos no inquérito e por via dos quais se chegou à decisão que o encerrou, não servindo a fase ora em discussão para que o Juiz se substitua ao Magistrado do Ministério Público, por meio de transformação da instrução em nova investigação. Em crise encontra-se, tão só, o quanto é preceituado pelo n.º 1 do art. 286.º do Código de Processo Penal, o mesmo é dizer, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Termos em que, por ter como irregular o presente requerimento destinado à abertura de instrução, determino a notificação das assistentes para, querendo, procederem ao seu aperfeiçoamento, mormente completando-o com os elementos omitidos e formulando uma concreta e delimitada acusação, quanto aos factos possíveis de sindicância nesta fase, e que constituam ou possam constituir objecto da instrução, porque passíveis de sanção penal.

Prazo: 10 dias.

(…)”.

Foi apresentado novo requerimento para abertura da instrução, em nome de ambas as assistentes mas, novamente, apenas subscrito pelo Exmo. Mandatário da MM. …, com o seguinte teor (transcrição):

   “ (…).

   I O Ministério Público fundamentou o arquivamento no facto de não resultarem dos autos prova suficiente de que os arguidos praticaram o crime denunciado.

    II Baseia tal conclusão no facto de não existir um elemento concreto da localização do outdoor em causa.

    III Porém, tal resulta do depoimento da testemunha JJ. …e em particular do levantamento topográfico de que se junta cópia e que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos (Doc. nº 1).

IV Além disso, tal situação de conflito resultou do facto de os arguidos não quiseram reconhecer a situação quando sabiam perfeitamente que estava a invadir a propriedade da Assistente e aqui requerente MM. …. Deste modo,

V Não foi por ignorância que os arguidos facturaram e continuaram a facturar à Assistente NN. …verbas em contrapartida da utilização do outdoor, que ocupa a extensão de 5 metros e oitenta e nove centímetros, dos quais 5,45 metros são na propriedade da Assistente MM. ….

VI Na verdade o arguido sabia perfeitamente que o mesmo se encontrava em propriedade alheia, com excepção de 54 centímetros, como resulta claro do levantamento.

VII Houve sempre discussão sobre essa matéria, o que levou a aqui Assistente MM. … a fazer o referido levantamento topográfico, mas os arguidos nunca quiseram saber de tal situação no óbvio intuito de extorquir as correspondentes quantias à Assistente NN. ….

VIII Nessas facturas, juntas ao processo, os arguidos sempre afirmaram que o referido painel estava instalado na sua propriedade, sabendo sempre que tal declaração era falsa no referido intuito astucioso de continuar a receber as mensalidades correspondentes.

                IX Ora, não sofre dúvidas que o arguido tinha intenção de enganar a Assistente NN. …pois astuciosamente refere expressamente nas facturas que o painel estava em propriedade sua, pois caso contrário a assistente NN. …nunca tinha pago nenhuma quantia. (Doc. nº 2)

X Não pode prevalecer o depoimento do arguido gerente de que não foi ele próprio que contactou as Assistentes mas sim um representante seu, pois foi ele próprio que redigiu uma carta à Assistente NN. …  a solicitar o pagamento das facturas em atraso, que esta deixou de pagar ao ter conhecimento que o outdoor se encontrava em terreno alheio. (Doc. nº 3)

XI Note-se que o próprio acaba por confessar que o terreno que ele diz ser seu já desde há muito deixou de ser propriedade sua, tendo-o devolvido às finanças de Alcanena.

XII Nesta conformidade, conclui-se que:

a) Ao contrário do constante no despacho de arquivamento prova-se que a localização do referido "outdoor" é na propriedade do assistente MM. …. e não na do arguido conforme planta anexa e declarações da testemunha JJ …, que, para efeitos de confirmação deverá ser reinquirida bem como o respectivo topógrafo que executou o trabalho como adiante se requer;

b) Ao contrário do constante no despacho de arquivamento o arguido não era proprietário do terreno confinante, como capciosamente declara, pois há muito que tinha deixado de o ser e sabia perfeitamente que não o era, pelo que, face ao acima alegado, induziu deliberadamente e dolosamente de forma astuciosa – designadamente indicando repetidamente nas facturas juntas que se tratava de propriedade sua – a assistente NN. …em erro no evidente intuito de lhe extorquir quantias elevadas, aspecto essencial comprovado pelos documentos juntos e a apurar através das testemunhas indicadas adiante, não havendo por isso qualquer indício de boa-fé ou imprevidência;

c) Ademais o anterior proprietário do terreno onde estava localizado o referido "outdoor" era um emigrante à data da prática dos factos, aspecto que era do total conhecimento do arguido, e que se aproveitava com evidente astúcia, de modo ardiloso do desconhecimento da situação no terreno por quem se encontrava por muitos anos ausente, aspecto importante também a apurar pela reinquirição das testemunhas.

d) Estes aspectos deverão ser considerados no intuito de conduzirem a uma acusação face à configuração do crime de burla conforme alegado, dando assim cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 287º do actual CPP, pelo que o inquérito deve ser considerado manifestamente insuficiente devendo por isso ser deduzida a competente acusação após reconsideração da prova e o arguido acusado pelo disposto nos artigos 217º e 218º do Código Penal.

Pelo exposto, requerem a V. Exa., declarando-se aberta a Instrução, se proceda a: …

(…)”.

*

   Foi então proferido o seguinte despacho (transcrição):

   “ (…).

   Efectuado o convite ao aperfeiçoamento, no sentido da delimitação do objecto instrutório, dada a irregularidade patente do requerimento inicialmente apresentado, os assistentes limitaram-se a repetir o quanto já haviam articulado no requerimento anterior, apenas tendo aditado conclusões de sua lavra, quando, tão simplesmente, o Tribunal pretendia que fossem trazidos a Juízo factos, tal qual sucede numa qualquer acusação. Significa isto que não foram carreados para os autos os elementos necessários e legalmente exigíveis in casu. Afinal, e como já salientámos em despacho anterior, no caso de proferimento, pelo Ministério Público, de despacho de arquivamento dos autos, é mister que o requerimento para abertura de instrução equivalha à acusação, devendo conter a indicação dos factos concretos a averiguar e que possam preencher os elementos objectivos e subjectivos do crime em causa.

Ora, "se o assistente não completar o requerimento, o juiz não procederá à instrução" (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 1996, 456), outra alternativa não restando a este Tribunal que não a da rejeição do requerimento destinado à abertura de instrução nos presentes actos. Note-se, designadamente, que outra solução poderia desencadear a nulidade cominada no art. 309.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Termos em que rejeito o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes. Taxa de justiça pelos mesmos, a qual se fixa em 2 UC – art. 85.º, n.º 3, e) do Código das Custas Judiciais.

   (…)”.

*

   Inconformadas com a decisão, dela recorrem as assistentes, de novo em requerimento apenas subscrito pelo Exmo. Mandatário da MM. …., formulando no termo da motivação apresentada as seguintes conclusões (transcrição):

   “ (…).

    a) O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução nos termos do nº 3 do art. 287º e nada disso sucedeu, desde logo neste caso: não foi extemporâneo, não havia incompetência do juiz e a instrução era admissível;

b) Também não é verdade que o requerimento não indique os factos que pretende provar e aqueles em que discorda do despacho de arquivamento: Os factos a provar são a existência de um suporte publicitário em prédio alheio, tendo um terceiro convencido astuciosamente a assistente de que era proprietário desse suporte e do respectivo terreno, e dessa forma tendo-lhe facturado durante vários meses quantias avultadas a esse título.

c) Todos estes factos estão alegados sendo que na fase de instrução apenas haveria que averiguar as duas situações de discordância do despacho de arquivamento e que foram alegadas: a localização e o dolo e astúcia desse procedimento que levou ao engano a assistente e a extorquir-lhe as quantias elevadas;

d) Quanto à localização, tal aspecto foi carreado para os autos através de uma planta de localização, sendo por isso facto a provar na instrução que se alegou nos artigos III a VII do requerimento de instrução;

e) Quanto ao dolo e à astúcia foram os novos factos alegados nos artigos VIII a XI com novos elementos.

f) Quanto às discordâncias elas resultaram das conclusões onde se especifica essas discordâncias do despacho de arquivamento, como o impõe o artigo 287º nº 2 do CPP.

g) Acresce ainda que os assistentes indicaram os elementos de prova que pretendiam que fossem levados a cabo e considerados, como impõe esse mesmo artigo.

h) Estão por isso configurados todos os elementos do requerimento de instrução pelo que não há base suficiente para rejeitar, assim, sem mais, a instrução na qual se pretende provar os referidos factos e alegados no seu texto, sob pena de denegação de justiça.

i) Nestes termos o Juiz "a quo" não deveria ter rejeitado a abertura da instrução, violando o disposto nos artigos 287º nº 2 e 3 mas antes deveria ter recebido o requerimento e declarado aberta a instrução e determinado as diligências requeridas.

Pelo exposto, deve ser revogado o despacho de rejeição do requerimento de abertura da Instrução admitindo-se essa abertura e determinando-se as diligências requeridas em ordem a apurar os factos alegados e em especial as discordâncias factuais do despacho impugnado, de modo a fazer-se A COSTUMADA JUSTIÇA!

    (…)”.

Respondeu ao recurso a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, formulando no termo da sua contra motivação as seguintes conclusões (transcrição):

   “ (…).

   I – De acordo com o disposto no art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal.

    II – Dos autos não resulta a verificação de qualquer dos circunstancialismo acima referido.

    III – O requerimento de abertura de instrução deverá ser admitido.

    IV – O despacho recorrido deve ser revogado.

    Este o nosso entendimento.

    V. Exas., porém, decidirão de Justiça!

   (…)”.

No seguimento de notificação efectuada para pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso, veio a assistente NN. …. dizer a fls. 182 não ter dado quaisquer instruções para que fosse interposto recurso, enquanto a fls. 183 veio a assistente MM. …, por intermédio do seu Exmo. Mandatário, esclarecer que se deveu a lapso a circunstância de o requerimento de interposição de recurso ter sido efectuado também em nome daquela assistente, devendo entender-se que apenas à Pedecão respeita já que é a única que o advogado signatário representa.

Por despacho de fls. 184 foi então considerado que o recurso interposto respeita apenas à assistente MM. ….

Na vista a que alude o art. 416º do C. Processo Penal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, expressando o entendimento de que é o requerimento para abertura da instrução que fixa o objecto do processo, devendo observar o formalismo enunciado no art. 283º, nº 3, b) e c), do C. Processo Penal, e cuja omissão se insere no conceito de inadmissibilidade legal da instrução, porque o requerimento não deu cumprimento a tal preceito, apesar de resultar de um indevido convite ao aperfeiçoamento, concluiu pelo não provimento do recurso com a consequente confirmação da decisão impugnada.  

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

III. Fundamentação.

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido

   Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 335, Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 103, e Acs. do STJ de 24/03/1999, CJ, S, VII, I, 247 e de 17/09/1997, CJ, S, V, III, 173).

   Desta forma, atentas as conclusões formuladas pela recorrente, as questões que urge decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- A de saber se o requerimento de abertura da instrução contém ou não, os requisitos exigidos pelos arts. 283º, nº 3, b) e c) e 287º, nº 2, do C. Processo Penal;

- Em caso de resposta negativa, a de saber se tal omissão se enquadra em alguma das situações de rejeição do requerimento, previstas no nº 3 do art. 287º, do C. Processo Penal.

Dos requisitos do requerimento para abertura da instrução do assistente.

1. A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º, nº 1 do C. Processo Penal).

Trata-se de uma fase intermédia do nosso processo penal – entre o inquérito e o julgamento – que tem por objectivo a confirmação judicial da decisão do Ministério Público de deduzir acusação ou arquivar o inquérito ou da decisão do assistente de deduzir acusação por crime particular.

  

Da competência de um juiz, a instrução compreende os actos que este entenda dever levar a cabo e que sejam necessários àquela comprovação judicial, sendo sempre obrigatória a realização do debate instrutório (arts. 288º, nº 1, 289º, nº 1 e 290º, nº 1, do C. Processo Penal).

   Realizados os actos de instrução e o debate instrutório, se o juiz, procedendo à sua análise e valoração global, entender que foram recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, profere despacho de pronúncia pelos factos respectivos e, no caso contrário, profere despacho de não pronúncia (art. 308º, nº 1, do C. Processo Penal).

              

Relativamente aos requisitos do requerimento para abertura da instrução, dispõe o artigo 287°, nº 2, do C. Processo Penal que:

O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação de dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º. Não podem ser indicadas mais de 20 testemunhas.”.

Assim, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente deve conter:

- A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada (art. 283º, nº 3, b), do C. Processo Penal) revestindo, nesta medida o requerimento a forma de uma verdadeira acusação (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Ed., 139, Cons. Maia Gonçalves, C. Processo Penal Anotado, 1999, 10ª Ed., 544 e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, UCE, 741); com efeito, não compete ao juiz perscrutar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que se podem neles indiciar como cometidos pelo arguido sob pena de violação dos princípios constitucionais em vigor, cabendo ao assistente enumerar e indicar os concretos factos que àquele imputa (cfr. Ac. da R. de Coimbra de 05/09/1999, CJ, XXIV, IV, 57);  

- A indicação das disposições legais violadas pelo arguido (art. 283º, nº 3, c), do C. Processo Penal);

- As razões de discordância relativamente ao arquivamento do Ministério Público;

- A indicação, sendo disso caso, dos actos de instrução que se pretende que o juiz realize, e dos meios de prova não considerados no inquérito.  

A observância dos requisitos exigidos à narração de facto reveste particular importância, pois define o objecto da instrução.

É que o juiz de instrução não pode, sob pena de nulidade da decisão instrutória, pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação, pública ou particular, ou no requerimento para abertura da instrução (art. 309º, nº 1, do C. Processo Penal).

Posto isto.

2. O Mmo. Juiz de Instrução rejeitou o requerimento para abertura da instrução por entender que, imputando a assistente ao arguido a prática de um crime de burla, p. e p. pelos arts. 217º e 218º do C. Penal, não fez aquela constar do requerimento a descrição factual que permita imputar a este o crime referido.

Entende por sua vez a assistente, que o requerimento para abertura da instrução por si apresentado não só não está sujeito a formalidades especiais, como contém a necessária descrição dos factos que pretende provar que sintetiza da seguinte forma: “ (…) a existência de um suporte publicitário em prédio alheio, tendo um terceiro convencido astuciosamente a assistente de que era proprietário desse suporte e do respectivo terreno, e dessa forma tendo facturado durante vários meses quantias avultadas a esse título.”.

2.1. O art. 217º, nº 1, do C. Penal, que prevê o tipo base do crime de burla, dispõe:

Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”. 

Decompondo os elementos constitutivos do tipo temos:

- A acção típica ou seja, que o agente, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine o burlado à prática de actos que lhe causem a si ou a terceiro (tipo objectivo);

- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto, ao qual acresce uma específica intenção (dolo específico), a intenção de obtenção, para o agente ou para terceiro, de um enriquecimento ilegítimo (tipo subjectivo).

A burla que, como é sabido, tutela o património considerado de forma global, é assim um crime de dano, um crime de resultado e também um crime de execução vinculada.

Um crime de dano porque só se torna perfeito, só se consuma, com uma lesão efectiva do bem jurídico, com a verificação de um prejuízo efectivo no património do ofendido.

Um crime de resultado na medida em que exige a produção de um acontecimento como consequência da actividade do agente, a saída do bem do âmbito da disponibilidade de facto do lesado.

   E um crime de execução vinculada porque a lesão do bem jurídico que tutela se verifica em consequência de uma específica forma de actuar do agente, traduzida na utilização de um meio enganoso capaz de induzir o burlado em erro, erro este que o vai determinar à prática de actos causadores do prejuízo. Assim, a execução do crime de burla passa pela verificação de um duplo nexo de causalidade: a conduta enganatória tem que ser causa do erro do burlado, erro este que, por sua vez, tem que ser causa da entrega, da disposição patrimonial em que se consubstancia o prejuízo (cfr. Prof. Cavaleiro de Ferreira, Scientia Juridica, Ano 1970, 301, Cons. Leal Henriques e Simas Santos, C. Penal Anotado, 2º Vol, 1996, 539 e A. M. Almeida Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 293 e ss.).

Ora, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, a que alude o art. 283º, nº 3, b), do C. Processo Penal, são precisamente, os factos preenchedores dos elementos constitutivos do tipo do crime imputado os quais deverão, quando possível, ser acompanhados das circunstâncias de lugar, tempo e motivação da sua prática, e do grau de participação que o agente neles teve.

São portanto, estes factos, preenchedores do tipo objectivo e subjectivo do crime imputado ao arguido, os que a lei exige que constem do requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente.

   Posto isto.

2.2. Atento o valor tutelado pelo crime de burla, o ofendido deste tipo é, obviamente, a pessoa a quem é causado prejuízo patrimonial e que tanto pode ser, como vimos, o burlado, como um terceiro (arts. 113º, nº 1 e 217º, nº 1, do C. Penal).

O ofendido pode constituir-se assistente no processo penal (art. 68º, nº 1, a), do C. Processo Penal), sendo esta qualidade, pressuposto processual da faculdade de requerer a instrução (art. 287º, nº 1, a) e b), do C. Processo Penal). 

Nos autos duas sociedades foram admitidas como assistentes (fls. 47). A Troncadis, enquanto sociedade que terá pago o uso do painel publicitário, será a burlada e simultaneamente, a lesada patrimonialmente e portanto, a ofendida do imputado crime de burla. A Pedecão, ora recorrente, é apenas a proprietária do prédio onde se encontrará o dito painel, ou parte dele, mas só desde 16 de Julho de 2004, conforme escritura de fls. 32 e seguintes ou seja, adquiriu o domínio do imóvel mais de um ano depois de a Troncadis ter deixado de pagar qualquer quantia pelo dito painel.

Não tendo a qualidade de ofendida no crime imputado, não deveria a Pedecão ter sido admitida como assistente. Tendo-o sido, há que respeitar o caso julgado formal.

2.3. Como já tivemos oportunidade de referir, a recorrente começa por afirmar que os factos a provar são a existência de um suporte publicitário em prédio alheio, tendo um terceiro convencido astuciosamente a assistente de que era proprietário desse suporte e do respectivo terreno, e dessa forma tendo facturado durante vários meses quantias avultadas a esse título (ponto 7º da motivação e conclusão b), e porque entende, se bem percebemos a motivação, que estes factos, ditos essenciais, estão provados, na instrução apenas haveria que averiguar duas situações de discordância com o despacho de arquivamento: a localização do outdoor e o dolo e a astúcia do procedimento que levou ao engano (pontos 8º e 9º da motivação e conclusão c).

Mas não é assim pois, como vimos, o objecto da instrução requerida pelo assistente é balizado pelos factos que constam do respectivo requerimento, só podendo o juiz de instrução pronunciar pelos factos que dele constem.

Ora, não é isso, manifestamente, o que sucede com o requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente. Vejamos.

a) Nos artigos II, III e VII do requerimento para abertura da instrução, já aperfeiçoado, a recorrente Pedecão alega que o arquivamento pelo Ministério Público se deveu à circunstância de não existir um elemento concreto da localização do outdoor em causa, localização que contudo resulta do depoimento de uma testemunha que identifica e da cópia do levantamento topográfico que agora junta, o qual aliás foi feito devido à discussão que existia sobre a matéria e da qual os arguidos nada quiseram saber com o intuito de extorquirem dinheiro à assistente Troncadis.          

Começaremos por dizer que nos autos apenas existe um arguido, AA. …, como tal constituído a fls. 68, parecendo dever-se a referência a arguidos à circunstância de a queixa ter sido deduzida contra aquele e ainda contra a sociedade LL. ….

Para demonstrar a localização do outdoor impunha-se que, em primeiro lugar, fosse localizado o prédio onde, alegadamente, aquele, total ou parcialmente, se situa ou situava. E a localização do prédio passava pela sua concreta identificação, não bastando para tanto alegar, já que de mera conclusão se trata, que os arguidos sabiam perfeitamente que estavam a invadir a propriedade da recorrente (artigos IV e VI) com a colocação do dito painel (artigo VI).

   E depois de identificado e localizado o prédio era ainda necessária a concreta localização do outdoor, não bastando a simples remissão para uma cópia de um levantamento topográfico já que esta apenas seria o meio de prova para demonstrar aquele facto.

   b) Quanto à astúcia alega a recorrente que nas facturas juntas aos autos os arguidos sempre afirmaram que o painel estava instalado na sua propriedade, sabendo ser falsa tal declaração, com o intuito astucioso de continuarem a receber as mensalidades correspondentes, com intenção de enganar a assistente Troncadis que, a não ser assim, nunca teria pago qualquer quantia (artigos VIII e IX). 

As concretas mensalidades não constam do requerimento (e a circunstância de terem sido mencionadas na queixa não sana a omissão verificada).

   Por outro lado, as facturas demonstram a existência de um negócio jurídico, formal ou não, mas este não foi concretamente invocado no requerimento designadamente, não são mencionadas as pessoas físicas que nele intervieram e em representação de quem, bem como as não são referidas as respectivas cláusulas.

   Acresce que qualquer artifício fraudulento teria já e necessariamente ocorrido na data da celebração de tal negócio e não apenas, no respectivo cumprimento. 

c) Finalmente, não se vê sequer que no requerimento tenha sido alegada, através dos competentes factos, a existência de qualquer prejuízo para a assistente NN. ….

É que se esta pagou as prestações, eventualmente acordadas, pela publicidade efectuada no outdoor, também terá obtido a prestação correspectiva ou seja, no dito outdoor terá sido efectivamente feita publicidade à empresa da assistente referida.

E quanto à recorrente não se vê sequer como possa ter esta tido qualquer prejuízo, ainda que não relacionado com o imputado crime, na medida em que, como já foi dito, apenas se tornou titular do direito de propriedade do imóvel onde afirma estar parcialmente colocado o outdoor em 16 de Julho de 2004 ou seja, quando a assistente NN. … já nada pagava no âmbito do supra mencionado negócio jurídico.  

2.4. Concluindo, diremos que o requerimento para abertura da instrução deduzido pela assistente, mesmo depois de aperfeiçoado, não contém os elementos necessários à configuração de uma verdadeira e própria acusação, e que dele tinham, obrigatoriamente, que constar, pois a matéria de facto que dele consta é manifestamente insuficiente para o preenchimento do tipo do crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do C. Penal.

Da rejeição do requerimento para abertura da instrução

3. Pretende a recorrente que, porque o requerimento apenas pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, e nenhuma desta situações ocorreu, o despacho recorrido violou o disposto no art. 287º, nºs 2 e 3, do C. Processo Penal.

Nos termos do nº 3 do art. 287º do C. Processo Penal, o requerimento de abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

   É seguro que o requerimento não é extemporâneo e que o Mmo. Juiz de Instrução era o competente.

   Assim, a questão coloca-se apenas relativamente à inadmissibilidade legal da instrução, sendo este o fundamento implícito no despacho recorrido, para a indeferir.

   São casos de rejeição do requerimento por inadmissibilidade legal da instrução, aqueles em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), aqueles em que existem obstáculos de natureza processual (ilegitimidade do requerente) e aqueles em que a fase da instrução não está, pura e simplesmente, prevista na lei, como acontece com os crimes particulares ou nas formas de processo especial (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, ob. cit., 134, Cons. Maia Gonçalves, ob. e loc. cit., e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., 737).  

Uma vez que o requerimento para abertura da instrução da assistente tinha de constituir, substancialmente, uma verdadeira acusação, se dele resulta a falta de tipicidade da conduta imputada ao arguido, porque o procedimento não pode prosseguir por falta de objecto, o mesmo não é admissível, impondo-se a sua rejeição, ao abrigo do disposto no art. 287º, nº 3, do C. Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução (cfr. Acs. da R. de Coimbra de 14/02/2007, p. nº 727/05.0TATNC.C1, e de 27/09/2006, p. nº 60/03.2TANLS.C1, da R. de Lisboa de 30/05/2006, p. nº 1111/2006.5 e da R. do Porto de 21/06/2006, p. nº 0611176, todos em http://www.dgsi,pt). 

Conclusões:

- O requerimento para abertura da instrução deduzido pelo assistente constitui substancialmente uma acusação, devendo por isso conter todos os elementos de facto necessários ao preenchimento do tipo imputado ao arguido;

- Quando em tal requerimento não são descritos todos os factos ou os factos descritos não preenchem o tipo do crime imputado, há lugar à sua rejeição por inadmissibilidade legal da instrução;

- O requerimento para abertura da instrução deduzido pela assistente, mesmo depois de aperfeiçoado, não contém os elementos necessários à configuração de uma verdadeira e própria acusação, pois a matéria de facto que dele consta é manifestamente insuficiente para o preenchimento do tipo do crime de burla, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do C. Penal, imputado ao arguido;

- Não merece pois censura, o despacho que o rejeitou.

III. DECISÃO.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam integralmente o despacho recorrido.

Custas pela assistente recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs. (arts. 515º, nº 1, b), do C. Processo Penal e 87º, nº 1, b), do C. Custas Judiciais).

Coimbra