Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2546/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: SOCIEDADES COMERCIAIS POR QUOTAS
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
Data do Acordão: 12/06/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 252º, Nº 1, E 261º, Nº 1, DO C.S.C; E 21º, Nº 1, DO CPC .
Sumário: I – As sociedades por quotas são representadas pelos gerentes e à gerência, que pode ser singular ou plural, estão confiadas as funções de exteriorizar perante terceiros a vontade da sociedade, vinculativa desta .
II – Constando do contrato de sociedade que a gerência da dita fica a cargo de ambos os sócios, sendo obrigatória a assinatura de ambos para obrigar a sociedade, está-se a prever uma gerência plural e conjunta, para cujos actos de representação, designadamente em juízo, é necessária a assinatura de ambos os gerentes .

III – Daqui resulta que caso assim não suceda a sociedade não está devidamente representada em juízo, através de procuração emitida por apenas um dos gerentes , o que equivale à sua incapacidade judiciária .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO

1.1. - A Autora - A... – instaurou, na Comarca de Castelo Branco, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra a Ré – B..., com sede em Castelo Branco.
Alegou, em resumo:
No dia 26/12/93, faleceu C.., no estado de casado com a Autora, cuja herança se encontra por partilhar.
A Ré uma sociedade de que são sócios os filhos da Autora e do falecido, utilizando, a título de empréstimo gratuito, três prédios urbanos, pertencentes à herança.
Na qualidade de cabeça de casal, a Autora interpelou a Ré para proceder à entrega dos referidos imóveis ( descritos no art.4º), o que não fez.
Com fundamento no art.2088 do CC, pediu a condenação da Ré a entregar imediatamente à Autora, na qualidade de cabeça de casal da herança indivisa aberta por óbito de C..., os prédios urbanos identificados no art.4º da petição inicial, com todas as suas pertenças, livres e desocupados.
Contestou a Ré, defendendo-se, em síntese:
Ilegitimidade activa da Autora, por não ser ela quem exerce as funções de cabeça de casal, mas antes os filhos D... e E..., por acordo entre todos.
A Ré ocupa os imóveis por contrato de arrendamento celebrado com a herança, desde a data da constituição da sociedade, pagando a renda à Autora de 25.000$00, sem que esta emitisse recibos.
Ainda que não se logre comprovar o arrendamento, estando a herança por partilhar, na falta de acordo, qualquer dos herdeiros pode utilizar os bens comuns.
Concluiu pela improcedência da acção e pediu em reconvenção a condenação da Autora:
a) - A celebrar com a Ré o contrato de arrendamento com o qual pretende rentabilizar os imóveis;
b) – Subsidiariamente, a pagar à Ré a quantia de € 98.184,29, a título de indemnização por benfeitorias, acrescida de juros à taxa de 7% desde a sentença.
Replicou a Autora, arguindo a irregularidade do mandato, em virtude da procuração forense haver sido outorgada apenas por um dos sócios da Ré e requereu a supressão do vício, nos termos do art.40 nº2 do CPC, tendo contraditado a defesa por excepção e a reconvenção.
1.2. - No despacho saneador decidiu-se considerar a Ré validamente representada em juízo e regular o mandato conferido ao seu advogado, relegando-se para a decisão final o conhecimento da excepção de ilegitimidade activa.
Quanto ao mais afirmou-se a validade da instância.

1.3. - A Autora recorreu do despacho saneador – na parte em que julgou a Ré validamente representada em juízo – que foi admitido como de agravo, com subida diferida e efeito devolutivo -, formulando as seguintes conclusões:
1º) - Face ao preceituado no art.21 do CPC, as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem;
2º) - Dos arts.252, 260 nº1 e 261 nº2 do CSC, as sociedades por quotas são representadas por um ou mais gerentes, e no caso de gerência plural os poderes são exercidos conjuntamente, salvo cláusula contrária do pacto social.
3º) - No caso concreto, tratando-se de gerência plural ou colectiva, devendo os poderes de representação ser exercidos conjuntamente, conforme resulta do pacto social da Ré, onde se convencionou a obrigatoriedade da assinatura de ambos os gerentes para obrigar a sociedade, com excepção dos actos de mero expediente.
4º) - Os actos para contestar e outorgar procuração forense extravasam o conceito de acto de mero expediente, verificando-se uma situação de irregularidade do mandato.
5º) - O despacho recorrido violou os arts.21 do CPC, 252 nº1, 260 nº1, 261 nº1 do CSC e o artigo 4º do Pacto Social.
Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. - Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
a) - Condenar a Ré a entregar à Autora, enquanto cabeça de casal, como pedido, os seguintes prédios:
- um prédio urbano sito na Senhora de Mércules, em Castelo Branco, destinado a armazém, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Castelo Branco sob o artigo 9905;
- um prédio urbano, sito na Rua da Amoreirinha, n.º 46, em Castelo Branco, composto de edifício com 3 pisos, destinado a comércio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Castelo Branco sob o artigo 904, e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o n.º 24.457, a fls. 143, do livro B-65.
- Um prédio urbano, sito no Largo da Sé, em Castelo Branco, constituído por edifício com 5 pisos, destinado a comércio, inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Castelo Branco sob o artigo 4856 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 04654/230.898 de Castelo Branco.
b) - Condenar a Autora, na qualidade de cabeça de casal, a pagar à Ré, a título de benfeitorias, no que se liquidar em execução de sentença acrescida de juros à taxa de 4% ano.

1.5. – Inconformadas, recorreram de apelação tanto a Autora, como a Ré.
1.5.1. - Apelação da Ré – conclusões:
1º) - Atento o teor do documento de fls.455 e resposta ao quesito 4º da base instrutória, deveria ter sido referido que a herdeira Maria de Jesus cedeu o seu quinhão hereditário aos irmãos.
2º) - A excepção de ilegitimidade da Autora deveria ter sido julgada procedente, por não ser ela a cabeça de casal da herança aberta por óbito de C....
3º) - Se a Autora demonstrou durante o seu depoimento de parte não conhecer uma carta por ela assinada e não saber o que se discutia na acção, estando convencida que estava ali para discutir uma partilha, se recusou ainda a ideia de sido ela a intentar a acção, se negou ter conferido mandato ao seu mandatário, mesmo que depois, a instâncias deste, admita concordar com a acção, deveria ter-lhe sido perguntado se ratificava o processado. Tal omissão constitui nulidade processual que afecta todo o processo ( arts.40 nº2 e 201 do CPC ).
4º) - A sentença recorrida violou os arts.2084 do CC, 40 nº2 e 201 do CPC.
Contra-alegou a Autora, preconizando a improcedência do recurso.

1.5.2. - Apelação da Autora – conclusões:
1º) - Os imóveis onde foram realizadas as benfeitorias consideradas na sentença fazem parte da herança indivisa aberta por óbito de C..., na qual a recorrente é meeira e herdeira.
2º) - A existir obrigação de indemnização pelas benfeitorias, a corresponde responsabilidade é da herança.
3º) - Fora dos casos especialmente previstos na lei, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos por todos os herdeiros e contra todos os herdeiros, havendo listisconsórcio necessário.
4º) - O pedido reconvencional não se enquadra nos arts.2088 a 2090 do CC, mas no art.2091 do mesmo diploma, só podendo ser exercido contra todos os herdeiros.
5º) - A recorrente, mesmo na qualidade de cabeça de casal, é parte ilegítima em relação ao pedido reconvencional, cuja excepção é de conhecimento oficioso ( arts.494 e) e 495 do CPC ), devendo ser declarada.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II - FUNDAMENTAÇÃO

Subindo com a apelação os agravos retidos, em princípio devem ser todos julgados e pela ordem da sua interposição ( art.710 nº1, 1ª parte, do CPC ).
Sendo a agravante simultaneamente apelante e apelada, proceder-se-á como se ela fosse só apelante, pelo que merecendo provimento o agravo e tendo a infracção cometida influência no exame e decisão da causa, fica prejudicado o conhecimento do objecto das apelações ( art.710 nº2, 1ª parte, do CPC ) ( cf. AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág.197 e 199 ).
Recurso de Agravo:
O objecto do agravo, delimitado pelas respectivas conclusões, contende com a irregularidade de representação judiciária da Ré ( sociedade por quotas ).

Por escritura pública de 23/2/1996, foi constituída a sociedade Ré, pelos sócios D... e E..., constando do documento complementar anexo ( ponto 4º ) que “ A gerência da sociedade fica a cargo de ambos os sócios, desde já nomeados gerentes, sendo obrigatória a assinatura de ambos para obrigar a sociedade, à excepção das situações de mero expediente em que bastará a assinatura de um deles “ ( cf. docs. de fls.16 a 26 ).
Antes de apresentar a contestação, o sócio-gerente, D..., alegando estar pendente um processo especial para suprimento de consentimento quanto à outra sócia-gerente, com vista a contestar a acção, requereu a suspensão da instância, nos termos do art.279 do CPC, ou, caso assim se não entenda, a nomeação de um representante especial à Ré, ao abrigo do art.21 nº2 do CPC.
O pedido de suspensão da instância foi deferido, por despacho de fls.57.
Em 24/3/03, a Ré apresentou contestação ( fls.66 ), juntando procuração de 19/3/03 a favor do Ex.mo advogado subscritor a mesma, outorgada apenas pelo sócio-gerente D...( fls.76 ).
Não obstante estar ainda a decorrer a suspensão da instância, justificou a junção pelo facto de, por decisão de 8/7/02, no procedimento cautelar nº517/02, haver sida decretada a imediata suspensão dos poderes de gerência da sócia E... ( fls.77 a 88 ).
Por despacho de fls.222, foi declarada cessada a suspensão da instância.

Dispõe o art.21 nº1 do CPC que as sociedades são representadas em juízo por quem a lei, os estatutos ou o pacto designarem.
As sociedades por quotas são representadas pelos gerentes ( art.252 nº1 do CSC ), e à gerência, que pode ser singular ou plural, como órgão necessário, estão confiadas as funções de exteriorizar perante terceiros a vontade da sociedade, ou seja, é o círculo de competência representativa que lhe vale a designação de órgão social externo, vinculativo da sociedade ( cf. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 4ª ed., pág.341 a 346 ).
Considerou-se no despacho recorrido que, apesar da gerência ser plural e conjunta, o pacto é omisso sobre a representação em juízo, logo, por aplicação do art. 985 do CC, os dois sócios têm iguais poderes para administrarem a sociedade, logo, traduzindo-se a contestação num acto de mera administração, a Ré está devidamente representada, não sendo insuficiente o mandato conferido pelo sócio José Lopes, na qualidade em que o fez, acolhendo-se, por isso, o método disjuntivo.
Na gerência das sociedades por quotas é costume distinguir-se, na esteira da doutrina alemã, entre poderes de gestão ou administração e poderes de representação.
Mas como elucida RAUL VENTURA, não se torna necessário consignar no contrato de sociedade que os gerentes representam a sociedade “ em juízo e fora dele “, porque nos seus poderes representativos já está incluída em representação em juízo, activa ou passivamente ( Sociedades por Quotas, vol.III, pág.132 ).
Constando do contrato de sociedade que a gerência da sociedade Ré fica a cargo de ambos os sócios, sendo obrigatória a assinatura de ambos para obrigar a sociedade, está-se a prever uma gerência plural e conjunta, para cujos actos de representação, designadamente em juízo, é necessária a assinatura de ambos, em conformidade com o disposto nos arts. 252 e 261 nº1 do CSC.
Daqui resulta que, obrigando-se a Ré sociedade pela assinatura de dois gerentes, ela não está devidamente representada em juízo através de procuração emitida por apenas um deles.
Sucede, porém, que, por decisão judicial emitida no procedimento cautelar, anterior à apresentação da contestação, a sócia E... foi imediatamente suspensa da sua gerência, o que significa ter ficado impedida do exercício dos poderes de administração e representação.
Importa analisar da relevância deste facto para efeitos de representação judiciária.
O art.253 do CSC regula a substituição de gerentes em três situações: falta definitiva de todos os gerentes ( nº1 ); falta temporária de todos os gerentes ( nº2 ) e falta definitiva de gerente cuja intervenção seja necessária por força do contrato para a representação da sociedade ( nº3 ), prevendo para cada uma das hipóteses um mecanismo de suprimento.
A suspensão da gerência, por determinação judicial, em procedimento cautelar, não se traduz numa falta definitiva, pois se assim fosse implicaria a caducidade da respectiva cláusula do contrato, pelo que nenhum obstáculo existiria aos poderes de representação da Ré por parte do gerente José Lopes.
Parece-nos que a situação se configura antes como um caso de falta temporária de um gerente ( por impedimento legal ) cuja intervenção é necessária para a representação, situação não prevista expressamente na lei ( cf. RAUL VENTURA, loc.cit., pág.50 ).
Poder-se-ia dizer que sendo a sociedade constituída por dois sócios, ambos nomeados gerentes no pacto social, o impedimento legal, ainda que temporário de um deles, não obsta à representação da sociedade pelo outro, que, pela sua posição de sócio, passaria a assumir também as funções da gerente suspensa.
Mas com esta solução estar-se-ia a dar à falta temporária o mesmo tratamento legal cominado para a falta definitiva, o que para além de contrariar a ratio legis da norma, desvirtuaria o pacto social, transformando uma gerência plural em singular.
Não estabelecendo a lei outra forma de assegurar a representação em juízo da sócia gerente, E..., em virtude da suspensão da gerência ( falta temporária ), contrariamente para a falta definitiva ( art.253 nº3 do CSC ), impõe-se aplicar a regra do nº2 do art.21 do CPC, segundo a qual o juiz da causa deverá designar representante especial à sociedade, que a substitua, cujas funções cessarão logo que a representação possa vir a ser assumida por aquela ( cf., neste sentido, Ac RP de 25/6/2001, www dgsi.pt/jtrp ).
Como não foi nomeado este representante especial, verifica-se, assim, a irregularidade de representação judiciária da Ré, cujo regime de sanação é semelhante ao da incapacidade judiciária, tal como os efeitos da não sanação ( arts.23 e 24 do CPC ).
Nesta perspectiva, o suprimento da irregularidade da representação judiciária, enquanto pressuposto processual, não implica a nulidade de todo o processo, efectivando-se com a intervenção do representante especial ou provisório, previamente designado, que pode tomar uma de duas atitudes: ratificar os actos anteriormente praticados, seguindo o processo como se o vício não existisse, ou não ratificar, ficando, neste caso, sem efeito todo o processado posterior ao momento em que a irregularidade foi cometida, correndo novamente os prazos para a prática dos actos não ratificados, que podem ser renovados ( art.23 nº1 e 2 do CPC ).
Em resumo, procede o agravo, ficando prejudicado o conhecimento das apelações, por a infracção cometida influir no exame ou decisão da causa.
III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar procedente o agravo e revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro, com vista ao suprimento da irregularidade da representação judiciária da Ré, em conformidade com fundamentação aduzida.
2)
Declarar prejudicado o conhecimento das apelações.
3)
Sem custas.
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Coimbra, 6 de Dezembro de 2005.