Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
730/08.9TBLSA-O.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: IMPEDIMENTO
EXERCÍCIO
ADVOGADO
Data do Acordão: 07/12/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART.S 76.º A 78.º DO ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
Sumário: É à Ordem dos Advogados e não ao juiz do processo que compete decidir se se verifica alguma das incompatibilidades ou dos impedimentos para o exercício da advocacia previstos nos artigos 76.º a 78.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


I

No âmbito do processo de insolvência, que corre termos na comarca da Lousã, em que foi declarada insolvente A... S.A., B... L.da instaurou uma acção de reconhecimento ulterior de créditos.

Nessa acção, a aí autora B... L.da deduziu um incidente que denominou de "Incidente de Impedimento e Suspeição da Sr.ª Mandatária da Massa Insolvente de A... S.A.".

Alegou, em síntese, que a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente, Dr.ª C... , exerce também as funções de Administradora de Insolvência, o que, nos termos dos artigos 76.º n.º 2 e 77.º n.º 1 o) do Estatuto da Ordem dos Advogados, "é incompatível com o exercício da advocacia" e que, por isso, "está impedida de exercer o mandato".

Mais alega que essa Ilustre Mandatária é irmã da Sr.ª Administradora da Insolvência e que as duas partilham o mesmo escritório, pelo que "sempre recairia sobre a mesma a suspeição atento" esse "circunstancialismo".

Termina pedindo que se julgue "procedente o invocado incidente de impedimento e suspeição da Sr.ª Mandatária da Massa Insolvente".

A Ilustre Mandatária da Massa Insolvente, Dr.ª C... , respondeu dizendo, em suma, que a circunstância de ser irmã da Administradora da Insolvência não faz recair sobre si qualquer suspeição e que é a Ordem dos Advogados quem tem competência para declarar a existência de algum impedimento, da sua parte, para o exercício da advocacia.

Conclui pronunciando-se pela improcedência do "incidente de suspeição suscitado".

O Meritíssimo Juiz proferiu despacho decidindo que:

"Pelo exposto rejeita-se o incidente de impedimento deduzido pela A.

Custas do incidente pelo requerente fixando em 10 UC's a taxa de justiça."

Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:

A)- O incidente deduzido não pode ser qualificado de anómalo e injustificado,

B)- O incidente foi deduzido com base em factos pura e simplesmente objectivos, que visaram trazer ao conhecimento do Tribunal uma situação que, em nosso entender, não é compatível com as normas legais aplicáveis.

C)- Não colhem as afirmações de que o facto de a Administradora da Insolvência e a Mandatária da Massa Insolvente serem irmã não implica, por si só qualquer suspeição sobre a Administradora.

D)- Não colhem as afirmações segundo as quais nunca existiria tal situação de suspeição uma vez que o exercício da advocacia deve ser feito sempre com total autonomia e independência, o que por si afasta qualquer motivo de suspeição ou impedimento.

E)- A ser assim, não faria qualquer sentido que o legislador tivesse previsto e regulamentado a situação, sob pena de ficarem esvaziadas de conteúdo as normas legais aplicáveis.

F)- É inegável que a Sr.ª Administradora da Insolvência e a mandatária da Massa Insolvente são irmãs e partilham o mesmo escritório.

G)- É inegável que de acordo com o estipulado no n.º 1 do Art. 8.º do Estatuto do Administrador da Insolvência - DL 54/2004, de 18.03 - os Administradores da Insolvência estão sujeitos aos mesmos impedimentos e suspeição aplicáveis aos juízes,

H)- Nos termos do Art. 122.º alínea d) do CPC "Nenhum Juiz pode exercer funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária "Quando tenha intervindo na causa como mandatário judicial o seu cônjuge ou algum seu parente ou afim na linha recta ou no segundo grau da linha colateral,"

I)- A Administradora da Insolvência está, com as necessárias adaptações, naquelas condições em relação ao mandatário judiciai: trata-se da constatação de um facto, em si, puramente objectivo,

J)- O impedimento resulta do grau de parentesco directo que aqui se verifica, nos exactos termos que a lei prevê,

L)- A Recorrente limitou-se a tecer alegações de carácter puramente objectivo e, que traduzem a constatação pura e simples de factos que ocorrem no caso concreto e, que subsumidos às normas legais em vigor e aplicáveis, resultam na verificação da existência do impedimento invocado,

M)- A Recorrente não qualificou/adjectivou negativamente os factos objectivos que relatou, nem tão pouco emitiu qualquer juízo de valor relativamente aos mesmos: limitou-se a constata-los, trazê-los aos conhecimento do Tribunal, por entender que, objectivamente tem relevância jurídica e, deveriam ter o tratamento Juridicamente adequado,

N)- O Acórdão de que o Tribunal "a quo" se socorre para fundamentar a sua decisão, não trata situação similar com a dos autos, uma vez que se refere a uma sociedade comercial, a qual tem personalidade e capacidade jurídica próprias e, que pela sua própria natureza não pode ser comparável à presente situação,

O) Nos termos do disposto no n.º 2 do Art. 447.º do C,P,C. "A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente e é fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais".

P)- A questão trazida aos autos para apreciação e decisão não reveste qualquer complexidade, o que resulta da parca extensão/fundamentação do despacho de que se recorre, sendo diminuto o seu valor.

Q)- Não se justifica e, é desproporcional o montante em que a Recorrente foi condenada a título de custas pelo incidente e, não devia exceder uma UC.

R)- O requerimento em causa não é infundado, nem resulta de falta de prudência ou diligência da parte, nem tão pouco se revelou dilatório, na medida em que tanto quanto é possível verificar os autos não estiveram parados em virtude do mesmo, mantendo-se o normal andamento do processo.

Termina pedindo que o recurso seja "julgado procedente por provado, com as legais consequências".

Não foram apresentadas contra-alegações.

Face ao disposto nos artigos 684.º n.º 3 e 685.º-A n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil, as conclusões das alegações de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:

a) a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente se encontra impedida de exercer as suas funções de advogada nestes autos;

b) a taxa de justiça fixada a título de custas do incidente não deve exceder 1 UC.


II

1.º


Para a decisão das questões em causa há que considerar os seguintes factos:

1.º a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente é irmã da Sr.ª Administradora da Insolvência e ambas têm escritório no mesmo local;

2.º a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente encontra-se inscrita na Lista Oficial dos Administradores de Insolvência do Distrito Judicial de Coimbra;

3.º a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente mantém activa a sua inscrição na Ordem dos Advogados.


2.º

Face ao que se afirma nas conclusões C e G a J, importa começar por recentrar o objecto do recurso.

É inequívoco que o incidente deduzido pela autora se refere a um "Impedimento e Suspeição da Sr.ª Mandatária da Massa Insolvente", fundando-se ele na alegação de que esta, a Dr.ª C... , se encontra numa situação "incompatível com o exercício da advocacia" e que, por isso, "está impedida de exercer o mandato".

Por sua vez, o que se decidiu na decisão recorrida foi que "rejeita-se o incidente de impedimento deduzido pela A.".

Portanto, o que a decisão recorrida julgou improcedente foi o impedimento e a suspeição que a autora, no incidente que deduziu, considerava verificar-se.

Assim, não está em causa uma eventual incompatibilidade da Sr.ª Administradora da Insolvência para o exercício dessa sua função; isso não foi objecto do incidente suscitado pela autora. É certo que o Meritíssimo Juiz, na fundamentação do seu despacho, se pronuncia sobre essa questão. Mas, não foi isso que lhe tinha sido pedido que apreciasse, nem é isso que se encontra abrangido no decisório da decisão recorrida. Acresce que, nessa parte, não foi suscitada qualquer nulidade.


3.º

Segundo a autora, face ao disposto nos artigos 76.º n.º 2 e 77.º n.º 1 o) do Estatuto da Ordem dos Advogados, a Dr.ª C... , por se encontrar inscrita na Lista Oficial dos Administradores de Insolvência do Distrito Judicial de Coimbra, "está impedida de exercer o mandato" que lhe foi conferido pela massa insolvente.

Aquele n.º 2 estabelece que "o exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a independência e a dignidade da profissão", esclarecendo este n.º 1 o) que é incompatível "com o exercício da advocacia" a actividade de "gestor judicial ou liquidatário judicial".

Sendo assim, a Dr.ª C... poderá[1], efectivamente, encontrar-se numa situação de impedimento para o exercício da advocacia.

Porém, nos termos do n.º 5 do artigo 76.º daquele estatuto, "as incompatibilidades ou os impedimentos são declarados e aplicados pelo conselho geral ou pelo conselho distrital que for o competente". Significa isso que não é no processo onde o advogado está a exercer a advocacia que se decidirá se ele está impedido de actuar nessas vestes; não é da competência do tribunal declarar a existência de alguma das "incompatibilidades ou [d]os impedimentos" previstos nos artigos 76.º a 78.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Portanto, mesmo que a Dr.ª C... , por estar inscrita na Lista Oficial dos Administradores de Insolvência do Distrito Judicial de Coimbra, se encontre numa situação de incompatibilidade para o exercício da advocacia, isso não poderá ser aqui reconhecido e declarado.

A autora defende também que recai sobre a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente uma "suspeição atento todo o circunstancialismo supre descrito". Se bem se interpreta o pensamento da autora, "o circunstancialismo supre descrito" consiste no facto dessa mandatária ser irmã da Sr.ª Administradora da Insolvência e de ambas terem escritório no mesmo local.

A autora fala em suspeição, mas não a concretiza, nem menciona qualquer norma que dê cobertura ao que, nesta parte, requer.

Sucede que não há disposição legal que impossibilite que um advogado, por ser irmão de quem representa uma parte no processo, possa patrocinar esta. Por outro lado, o mandatário está, em termos processuais, do mesmo lado que o mandante, não existindo entre eles interesses antagónicos. Assim, em termos abstractos não se encontra qualquer fundamento que sustente a alegada suspeição e em termos concretos nada foi alegado.

Aqui chegados, conclui-se que, neste momento, a Dr.ª C... pode exercer as funções de mandatária da Massa Insolvente.


4.º

A autora censura ainda a decisão recorrida por nela ter sido condenada em 10 UC de custas do incidente.

Afirma que "a questão trazida aos autos para apreciação e decisão não reveste qualquer complexidade" e que por isso "é desproporcional o montante em que a Recorrente foi condenada a título de custas pelo incidente e, não devia exceder uma UC"[2].

Deste modo, o que, nesta parte, se coloca em crise é unicamente o montante da taxa de justiça que foi fixada.

A taxa de justiça agora em apreço só pode ser enquadrada na taxa de justiça sancionatória prevista nos artigos 447.º-B do Código de Processo Civil e 10.º do Regulamento das Custas Processuais e, por força deste último preceito, ela situa-se entre um mínimo de 2 UC e um máximo de 15 UC.

Ora, verifica-se que não só que a complexidade da questão suscitada é diminuta, como também que a Ilustre Mandatária da Massa Insolvente poderá estar a agir em violação ao disposto no artigo 77.º n.º 1 o) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Sendo assim, não se justifica uma condenação em mais do que 2 UC de taxa de justiça.


III

Com fundamento no atrás exposto, julga-se:

a) parcialmente procedente o recurso, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça do incidente, revogando-se neste segmento a decisão recorrida;

 b) improcedente o recurso na restante parte, pelo que, pese embora com fundamentação diversa, se matem, no mais, a decisão recorrida.

Custas pela autora na proporção de 4/5 e sem custas na restante parte.

Transitado em julgado extrai certidão desta decisão e remeta à Ordem dos Advogados para que, entendendo-se oportuno, se aprecie se a Sr.ª Dr.ª C... , por se encontrar inscrita na Lista Oficial dos Administradores de Insolvência do Distrito Judicial de Coimbra, está, dado o disposto no artigo 77.º n.º 1 o) do Estatuto da Ordem dos Advogados, numa situação de incompatibilidade para o exercício da advocacia.


António Beça Pereira (Relator)
Nunes Ribeiro
Hélder Almeida


[1] A questão não se resume necessariamente aos factos e normas aqui mencionados, pois poderá haver outros factos e normas, como é o caso do artigo 81.º EOA, que podem ser relevantes para se alcançar uma decisão definitiva quanto a essa matéria.
[2] Cfr. conclusões P e Q.