Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1503/2005
Nº Convencional: JTRC
Relator: RIBEIRO MARTINS
Descritores: LEGITIMIDADE PARA A QUEIXA
FURTO DE PEÇA DE VEÍCULO
Data do Acordão: 06/29/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.º 203º, N.º 3, DO C. PENAL E ART.º 49º, N.º 3, DO C. P. PENAL
Sumário: I- O tipo de crime de furto não tutela apenas a propriedade, mas também todo o legítimo poder de facto sobre a coisa, a detenção ou a mera posse como disponibilidade material da coisa com um mínimo de representação jurídica.
II- Assim, assiste à PSP o direito de queixa de furto de peças de veículos, por si apreendidos e removidos no exercício das suas atribuições .
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal da Relação de Coimbra:
I-
1.1- No processo comum com o n.º 66/00 do 1º juízo criminal da comarca de Coimbra, A... foi acusado pelo Ministério Público da prática dum crime de furto qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 203º/1 e 204º/2 alínea e) do Código Penal .
1.2- Realizado o julgamento e fixada a matéria de facto provada, o M.mo Juiz com o fundamento de que “a conduta do arguido preenche os elementos constitutivos do tipo legal de crime de furto simples ( ...) de natureza semi-pública e por isso o respectivo procedimento criminal dependente de queixa (...) não exercida por quem teria legitimidade para o efeito”, concluiu pela ilegitimidade do Ministério Público para acusar e ditou absolvição do arguido da instância.
2- O Ministério Público recorre, concluindo –
a) É enquadrável na previsão da alínea e) do art.º 204º/20 do Código Penal a conduta do agente que, em ordem à subtracção de coisa alheia, se introduz em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, sejam estes últimos dependentes ou não de habitação.
b) O conceito de escalamento da alínea e) do art.º 202º do mesmo Código não afasta tal entendimento por apenas se referir expressamente “a introdução em casa ou em lugar fechado dela dependente”, pois que o que cabe no mais cabe no menos.
c) Na verdade, não temos dúvidas de que a circunstância qualificativa da aludida alínea e) foi pensada em primeira linha para a habitação no sentido lato em que é esta é pacificamente entendida, por ser nela que por excelência se pensa quando falamos em respeito pela privacidade.
d) Todavia, por um lado essa privacidade — embora ligada à actividade comercial ou industrial exercida ou à protecção do que se fecha, veda ou preserva — não deixa de estar presente, embora de forma menos premente, quando o furto acontece em estabelecimentos comerciais, industriais ou outros espaços fechados desde que por arrombamento, escalamento ou chaves falsas.
e) Por outro lado, a conduta do agente é idêntica quer no primeiro caso quer nos restantes no que comporta ou pode comportar de intensidade do dolo (vencimento ou superação de obstáculos) e elevado grau de ilicitude.
f) O Assento n07/2000 fixou jurisprudência quanto à controvérsia que envolvia o furto levado a cabo em veículo automóvel por arrombamento, e não quanto á. interpretação da alínea e) do n02 do art0204” em tese geral.
g) Razões pelas quais se deveria ter condenado o arguido pela autoria material de um crime de hirto qualificado p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 203º e 204º n.º’2 alínea e) do Cód. Penal.
h) Não o tendo feito, violou tais normativos devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido.
i) Todavia, se assim se não entender, sempre a conduta do arguido plasmada nos factos provados integrada um crime de furto qualificado p. e p. pelo art02040, n01, al. f) do Cod. Penal, ainda de natureza publica,
j) Provado que está que entrou num espaço fechado não dependente de habitação e se apoderou de bens nele guardados,
k) Caído o argumento de que o escalamento é restrito à penetração em casa ou em lugar fechado dela dependente arrogado para afastar a qualificativa da alínea e) do n.º2 da mesma norma.
l) Valendo ainda nesta sede os argumentos invocados supra de que para efeitos da qualificativa da alínea 1) do n01 é indiferente se o estabelecimento comercial ou industrial ou auto espaço fechado onde tenha ocorrido o furto é ou não dependente de habitação.
m) Razões pelas quais o arguido, ainda assim, deveria ter sido condenado pela autoria material de um crime de furto qualificado desta feita p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts.2030 e 2040,n01, ai. O do Cód. Penal.
n) Por fim, se dessa forma não for entendido — considerando-se antes a conduta do arguido como integrante de um crime de furto simples - sempre a PSP teria legitimidade para apresentar queixa pelo furto,
o) Uma vez que os veículos de onde foram retiradas as peças furtadas se encontravam à guarda da PSP, por esta os ter removido para aquele parque afecto a tal fim.
p) O bem jurídico protegido não é só a propriedade plena da coisa, devendo antes ver-se “como a especial relação de facto sobre a coisa — poder de facto sobre a coisa — tutelando-se dessa maneira a detenção ou mera posse como disponibilidade material da coisa. “(Comentário Conimbricence, citado)
q) Pelo que, em ultima análise, sempre o arguido deveria ter sido condenado pela autoria material de um crime de furto simples p. e p. pelo art02030 do Cod. Penal.
3.1 - Respondeu o arguido pelo infundado do recurso.
3.2- Em douto parecer o Ex.mo Procurador - Geral Adjunto entende que deve dar-se provimento ao recurso .
4- Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir!
II-
1.1- Factos provados na sentença -
a) Por volta das 6 horas do dia 20.02.2000, o arguido dirigiu-se ao parque de viaturas da Câmara Municipal de Coimbra, onde se encontravam os veículos removidos pela PSP, sito na Rua Dr. Ernesto Sena de Oliveira, em Coimbra, parque este não dependente de qualquer casa, que se encontrava fechado e completamente vedado com uma rede própria, com cerca de 2, 50 m de altura.
b) Conseguindo subir até ao cimo da rede, o arguido transpô-la, saltando para o interior do parque.
c) Então aí, apoderou-se de 4 jantes especiais, de liga leve, com 4 pneus de marca “Dayton”, avaliados em 40 000$00, 1 auto-rádio de marca “Delcom”, avaliado em 5 000$00, 1 macaco automóvel, com valor de 2 500$00, 1 chave de estrias e uma chave busca-pólos, sem valor venal.
d) Retirou tais objectos de várias das viaturas ali aparcadas, integrando-os na sua esfera patrimonial.
e) Quando se preparava para abandonar o local e tendo já no interior do veículo automóvel em que se fazia transportar as rodas e o auto-rádio, o arguido foi interpelado por agentes da PSP.
f) Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com o propósito de fazer seus os referidos bens, que sabia não lhe pertencerem, e que agia sem autorização e contra a vontade dos seus legítimos donos.
g) Sabia a sua conduta contrária à lei e criminalmente punível.
h) Aufere cerca de € 750, 00 líquidos mensais; vive com uma companheira, doméstica, e um filho, em casa dos sogros; tem a 4.ª classe.
i) Não se lhe conhecem antecedentes criminais.
2.1- No presente recurso suscitam-se como questões a resolver o recorte significativo da noção de «espaço fechado» usada na alínea f) do n.º1 e na alínea e) do n.º2 do art.º 204º do Código Penal ; bem como estoutra de se saber quem poderá apresentar queixa por furto -, se apenas o dono da coisa furtada ou se também aquele que, de momento, detenha quanto à coisa furtada um legítimo poder de facto, ainda que precário.
2.2- Compulsados os autos verifica-se que o arguido foi detido em flagrante delito pela PSP e que da ocorrência apresentou “auto de notícia”, igualmente participando que « Do referido parque têm desaparecido acessórios dos veículos ali arrumados, suspeitando-se que sejam indivíduos que saltam a vedação durante a noite».
3- Apreciando
3.1- Para afirmar a ilegitimidade do Ministério Público para deduzir acusação, o M.mo Juiz descaracterizou a actuação do arguido como furto qualificado, socorrendo-se da Jurisprudência do Assento n.º7/2000 in DR. I-A de 7/3/2000 onde se fixou que « Não é enquadrável na previsão da alínea a) do n.º2 do artigo 204º do Código Penal a conduta do agente que , em ordem à subtracção de coisa alheia, se introduz em veículo automóvel através do rompimento , fractura ou destruição, no todo ou em parte, de dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada no interior daquele veículo».
Mas para assim concluir, o STJ aí doutrinou que a partir da revisão do Código Penal operada pelo DL. n.º 48/95, de 15/3, se operou uma «redução previsiva» da noção de arrombamento limitando-o a nova lei a uma actuação conforme em casa ou lugar fechado dela dependente.
Efectivamente, após a referida alteração legal, o que se colhe das noções de «arrombamento» e de «escalamento» constantes das alíneas d) e e) do art.º 202º do Código Penal é o que se afirma no referido Assento, i é, são noções que no âmbito do crime de furto qualificado se cingem a « casa ou a lugar fechado dela dependente».
Apesar da noção de « espaço fechado» inserto na alínea f) do n.º1 do artigo 204º do Código Penal se encontrar liberta dos espartilhos «arrombamento » e «escalamento» de cuja noção cuida o art.º 202º do citado diploma, sempre se dirá que, por um lado, a noção « espaço fechado» não é equivalente a «espaço vedado» e , pelo outro, não seria congruente que a mesma expressão [ «espaço fechado»] tivesse significação diversa na alínea e) do n.º2 e na alínea f) do n.º1 do mesmo artigo, sabido que em direito penal vigora o mais rígido e estrito princípio da igualdade quanto ao valor de uso dos conceitos Este princípio é afirmado por Faria da Costa, RLJ, Ano 133, n.º 3917, pág. 250.
Daí que se aceite o que se doutrina na parte dispositiva do Assento onde se afirma “ ser certo que a expressão « espaço fechado» a que se reportam a alínea f) do n.º1 do art.º 204º deste diploma e a alínea e) do n.º2 do mesmo normativo não poderá deixar de ser compreendida com o significado restrito de lugar dependente de casa”. Ideia que repete na “síntese conclusiva - A expressão « espaço fechado» que consta da alínea e) do n.º2 do art.º 204º do Código Penal [ e também referida na alínea f) do n.º1 do mesmo preceito] tem, forçosamente, de ser entendida com o restrito sentido de lugar fechado dependente de uma casa(...)”.
Jurisprudência reafirmada posteriormente no Ac de 15.6.2000 do mesmo Tribunal como se pode ver em anotação ao Código Penal de Maia Gonçalves, 16ª ed., 2004, pág. 685 - « O espaço fechado, referido na alínea f) do n.º1 do art.º 204º do Código Penal, tal como o referido na alínea e) do n.º2 do mesmo artigo, tem o sentido de lugar fechado dependente de casa».
Não há, assim, razões que justifiquem um entendimento diverso do que consta do dito Assento n.º 7/2000.
3.2.1- Mas como também se refere na douta motivação do recurso, tal não será necessário para se concluir pelo desacerto da decisão impugnada.
Efectivamente, ficou provado que “ (...) o arguido dirigiu-se ao parque de viaturas da Câmara Municipal de Coimbra, onde se encontravam os veículos removidos pela PSP (...), parque fechado e vedado por uma rede com cerca de 2,5 metros de altura. Transpôs a rede e saltou para o interior do parque onde se apoderou de 4 jantes de liga leve, 1 auto/rádio, 1 macaco automóvel , 1 chave de estrias e 1 chave busca-pólos, tudo em valor não inferior a 47.500$00, integrando-os na sua esfera patrimonial.
Apreende-se intuitivamente que se tratava de veículos apreendidos ou removidos pela PSP e à sua guarda em parque vedado cuja utilização lhe fora cedida pela Câmara Municipal, de acesso interdito a estranhos.
Tratando-se de veículos apreendidos ou removidos pela PSP no exercício das suas atribuições -, consequentemente à sua ordem -, incumbia-lhe zelar pela sua guarda e regular estado de conservação, também respondendo perante os donos pelos danos neles causados enquanto não lhes fossem devolvidos ou declarados perdidos a favor do Estado.
Constatando-se que estavam colocados sob a vigilância duma autoridade pública, é esta e, em última análise, o Estado, o garante da guarda e preservação de tais veículos.
Nessa medida, como refere o Ex.mo Procurador - Geral Adjunto, ganha realce a situação de indisponibilidade em que os mesmo se encontravam relativamente aos seus donos.
3.2.2- Como se refere no recurso citando Faria Costa ( Comentário Conimbricense , Tomo II, págs. 29/30), “o bem jurídico protegido (...) é a propriedade(...). Todavia, fácil é de compreender que se em muitas circunstâncias é a simples relação de propriedade que é ofendida com o crime de furto porquanto coincidem na vítima as qualidades de proprietária e de fruidora do gozo ( posse e mera posse) atinente às utilidades da coisa, não é menos certo verificar-se em outros casos uma separação ou um corte juridicamente aceite e até tutelado entre aquelas duas qualidades(...) Temos para nós que o bem jurídico aqui protegido se deve ver como a especial relação de facto sobre a coisa - poder de facto sobre a coisa - tutelando-se dessa maneira a detenção ou mera posse (...). Dessa forma percebemos o furto como uma agressão ilegítima ao estado actual das relações, ainda que provisórias, dos homens com os bens materiais(...) É esta pretensão de que a ordenação material dos bens está correctamente estabelecida que faz com que o furto se veja como uma alteração ilegítima e insustentável daquela ordenação pré – estabelecida e, por isso, susceptível de censura jurídico/penal.
3.2.3- Pelo que se acaba de referir, o tipo de crime em causa não tutela apenas a propriedade, mas também todo o legítimo poder de facto sobre a coisa, a detenção ou a mera posse como disponibilidade material da coisa com um mínimo de representação jurídica.
Nesta conformidade, assistia à PSP o direito de participar da ocorrência com relevância jurídico/penal, i é, em termos de se ter a participação por suficiente para se desencadear o procedimento criminal contra o arguido e de legitimar a acusação deduzida pelo Ministério Público.
III-
Decisão
Termos em que, dando-se provimento ao recurso, se revoga a sentença na parte em que afirma a ilegitimidade do Ministério Público para acusar e absolve o arguido da instância, devendo ser substituída por outra em que se conheça do mérito jurídico/penal dos factos provados .
Custas pelo arguido [que fez oposição ao recurso] com o mínimo de taxa de justiça.
Coimbra,