Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/98.0IDCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: INFRACÇÃO TRIBUTÁRIA
PRINCIPIO DA SUFICIÊNCIA DO PROCESSO PENAL
LIMITES DO CASO JULGADO
PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 03/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE OLIVEIRA DO HOSPITAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 7.º DO C.P.P.; 51.º DO RJIFNA E 48.º DO R.G.I.T.
Sumário: I. - A sentença que dê como verificada a ilegalidade dos actos tributários (liquidações adicionais do IVA e IRC) e como não provada a existência de simulação constitui caso julgado para o processo penal tributário relativamente a estas questões, nos termos dos artigos 51.º (RJIFNA) e 48.º (RGIT);
II. - Se a sentença se limitou a julgar extinta a instância impugnatória, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, por prescrição da obrigação tributária – não tendo, por isso, conhecido do objecto da impugnação –, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP, as questões relevantes, maxime, as que se correlacionam com a simulação, devem ser decididas no domínio do processo penal.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No âmbito do inquérito registado sob o n.º 30/98.0IDCBR que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital, o Ministério Público proferiu, em 26 de Outubro de 2007, a fls. 945/951 (vol. 4.º), ao abrigo do disposto no artigo 283.º do Código de Processo Penal (doravante designado apenas por CPP), acusação contra os arguidos …, … e “…, Lda.”, devidamente identificados nos autos, imputando, a cada um dos dois primeiros arguidos, a prática de um crime de fraude fiscal, p. e p., à data dos factos, pelo artigo 23.º, n.º 1, n.º 2, alínea c), n.º 3, alínea a) e n.º 4 do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (RJIFNA), sendo a sociedade arguida responsável em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do citado diploma legal, e, actualmente, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, alínea c), e 104.º, n.º 2, ambos do Regime Geral das infracções Tributárias (DL n.º 15/2001, de 5 de Junho), cabendo responsabilidade à sociedade arguida por força do disposto nos artigos 7.º e 8.º do RGIT.

2. Inconformados com o despacho de acusação, os arguidos requereram a abertura de instrução, nos precisos termos de fls. 975/988.

3. Admitida a abertura da instrução, teve lugar o respectivo debate, tendo a final sido proferido despacho, no qual ficou decidido «não pronunciar os arguidos “…, Lda.”, … e …, pelos factos constantes da acusação pública e qualificáveis como prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 23.º, n.ºs 1, 2, al. c), 3, al. a), e 4, do RJIFNA, sendo a sociedade responsável em conformidade com o disposto nos artigos 6.º e 7.º do mesmo diploma legal».

4. Da decisão de não pronúncia recorreu o Ministério Público, formulando na motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – As decisões proferidas pelo Tribunal Tributário não conheceram da conformidade dos actos da Administração Fiscal e, por isso, não vieram declarar a ilegalidade das liquidações de impostos que, subsequentemente, tinham sido objecto de reclamação graciosa (que fora indeferida) e de impugnação judicial.

2.ª – Assim, não foi definitivamente decidido, nesse foro, qualquer questão substantiva que, pela sua natureza se imponha ao processo penal tributário e assuma carácter prejudicial ao seu prosseguimento.

3.ª – O processo penal tem que prosseguir, quer porque cessou a respectiva causa de suspensão (artigos 50.º do RJIFNA e 47.º do RGIT), quer porque nele foi deduzida acusação, descrevendo e imputando, aos arguidos, a prática de factos com tipicidade penal e fortemente indiciados por diversos meios de prova, delimitando o objecto em causa que pode e deve ser, na sua plenitude, discutida e decidida nesta sede.

4.ª – A decisão recorrida não fez a mais correcta interpretação legal e assim ofendeu, designadamente, o disposto nos artigos 6.º, 7.º , 23.º, n.º 1, n.º 2, al. c), n.º 3 e n.º 4, e 51.º do RJIFNA, nos artigos 7.º, 8.º, 48.º, 103.º, n.ºs 1 e 2, al. c) e 104.º, n.º 2, do RGIT, e nos artigos 7.º e 308.º, do Código de Processo Penal.

Nestes termos (…), concedendo-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão instrutória recorrida, far-se-á justiça.

5. Devidamente notificados, os arguidos não apresentaram resposta ao recurso.

6. Nesta Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, a fls. 1091 dos autos, no sentido da procedência do recurso.

7. Cumprido o art. 417.º, n.º 2 do CPP, nenhum dos arguidos exerceu o seu direito de resposta.

8. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II. Fundamentação:

1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e objecto do recurso

Como flui do disposto no n.º 1 do art. 412.º do CPP, e de acordo com jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do STJ), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.

As conclusões apresentadas pelo recorrente circunscrevem o recurso à questão de determinar se as sentenças proferidas, em 31 de Março de 2006, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, no âmbito dos processos de impugnação n.º 130/2003 e 135/2003, já transitadas em julgado, ao terem declarado a prescrição do direito à cobrança das obrigações constantes das liquidações adicionais impugnadas, prejudicam e em que termos o julgamento dos arguidos pelo imputado crime de fraude fiscal.
2. Dos autos de inquérito, com interesse para a resolução da questão posta no recurso, retiram-se os seguintes elementos relevantes:
I. Com vista à investigação de crimes de natureza fiscal, foi levantado, em 31-03-1998, pelos Serviços de Prevenção e Inspecção Tributária (SPIT) da Direcção de Finanças de Coimbra, auto de notícia contra os ora arguidos.
O referido auto e os pareceres de fls. 4 a 17, 106 a 124 e 883 a 893, revelam, em síntese, o seguinte quadro fáctico:
A) No ano de 1994, o arguido … terá emitido as facturas discriminadas a fls. 2 dos autos, a favor de “…, Lda.”, as quais não correspondem a qualquer serviço prestado, consubstanciando, assim, um negócio simulado, visando a obtenção pela sociedade arguida de uma vantagem patrimonial a que não tinha direito, a qual foi efectivamente obtida: - através da dedução indevida de IVA, no montante de 5.174.400$00 (€ 25.809,80), inscrito na declaração periódica de 94-12; - na consideração de custos deduzidos ao nível de IRC, por força dos quais a sociedade arguida deixou de efectuar o pagamento de IRC, no ano de 1994, no montante de € 85.815,37.
B) Por não ter facturado todos os serviços prestados, o arguido J... obteve, por sua vez, vantagem patrimonial indevida, correspondente à não entrega, à Administração Fiscal, de IRS e IVA, do ano de 1994, nos montantes de € 92.996,89 e € 23.289,35, respectivamente.
II. Os montantes de imposto referidos na alínea A) foram apurados nas liquidações adicionais do IVA n.ºs 98054031 e 98054032, e do IRC n.º 8310008995, todas do ano de 1998.
III. Em 28 de Setembro de 1998, a sociedade arguida, nos termos do artigo 95.º e seguintes do Código de Processo Tributário, reclamou graciosamente das liquidações adicionais do IVA e do IRC referidas na alínea antecedente, com os fundamentos que constam de fls. 778/794, a qual foi indeferida por despacho do Senhor Director de Finanças de Coimbra, proferido em 3 de Junho de 2003 (cfr. fls. 814 dos presentes autos).
IV. Na sequência desse indeferimento, a sociedade “…, Lda.” impugnou as liquidações adicionais em causa, nos precisos termos de fls. 846 a 881, arguindo a existência de vícios conducentes à sua anulação.
V) Face a tais impugnações, a Magistrada do Ministério Público, por despacho proferido em 4 de Janeiro de 2007, ao abrigo do disposto no artigo 50.º do RJIFNA e do artigo 47.º do RGIT, declarou a suspensão do presente processo penal tributário (cfr. fls. 899).
VI. Por sentenças de 31 de Março de 2006, transitadas em julgado, a Mm.ª Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra julgou extintas as instâncias impugnatórias, por inutilidade superveniente da lide.
O suporte jurídico das decisões radica na verificada prescrição, pelo decurso do prazo de 10 anos, da obrigação tributária, ou seja, na extinção, pelo decurso do referido prazo, do direito do Estado à cobrança coerciva da dívida fiscal, na consideração de que, embora a prescrição não seja fundamento da impugnação, porque diz respeito à dívida, obrigação tributária, ela conduz, não obstante, a desnecessidade do prosseguimento da acção impugnatória porquanto, prescrita a dívida, deixa de ter interesse, para a impugnante, a obtenção da anulação do acto que a declara, por a Administração já não poder, mesmo sem essa anulação, exigir o cumprimento da obrigação.
VII. Em 26 de Outubro de 2007, como já foi referido, o Ministério Público deduziu acusação nos termos acima expostos.
VIII. Requerida a abertura de instrução, foi então proferido despacho de não pronúncia, donde se destacam os seguintes aspectos mais relevantes:
«Em anotação ao artigo 47.º do R.G.I.T. dizem Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos (“Regime Geral das Infracções Tributárias”, Anotado, 3.ª edição, 2008, páginas 399 a 407):
“Esta disposição tem de harmonizar-se com o princípio da suficiência do processo penal, consagrado no art. 7.º do CPP…
Neste art. 47.º do RGIT tem-se por assente que as questões que são objecto de apreciação no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução, nos termos do CPPT constituem questões não penais que não podem ser convenientemente resolvidas no processo penal.
Naturalmente, a suspensão só se justifica nos casos em que a existência de infracção criminal depende da resolução de uma questão de natureza fiscal…
Reconhece-se, nestes casos de estar pendente processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, a competência exclusiva da jurisdição fiscal para decidir essa matéria, o que tem justificação no carácter altamente especializado das questões desta natureza, que está subjacente à atribuição constitucional de competência para o seu conhecimento a essa jurisdição especializada (art. 212.º, n.º 3, da CRP). Por isso, nestes casos em que está já pendente um processo em que vai ser apreciada a questão prejudicial justifica-se plenamente que se aproveite essa situação, atribuindo-se aos tribunais fiscais competência exclusiva para decidir a questão.
Em face desta atribuição de competência exclusiva, nestes casos de pendência de processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal, não há fixação de prazo de suspensão, no processo penal tributário, pois ela durará até que transite em julgado a sentença a proferir no processo de impugnação judicial ou de oposição à execução fiscal.”.
No caso dos autos, após a suspensão do processo penal tributário ao longo de diversos anos, foram proferidas duas sentenças, já transitadas em julgado, sobre a matéria em causa no presente processo penal tributário.
Em ambos os casos foi decidido declarar a prescrição do direito à cobrança das obrigações tributárias constantes das liquidações adicionais e a extinção das instâncias impugnatórias por inutilidade superveniente da lide.
Deste modo, em nosso entender, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que no caso é todo, o art. 51.º do R.J.I.F.N.A. impõe a observância no processo penal tributário do decidido no Tribunal fiscal.
Isto é, ao ter declarado a prescrição do direito à cobrança das obrigações tributárias constantes das liquidações adicionais sob recurso e ao não ter proferido qualquer decisão sobre a validade de tais actos da administração tributária, o Tribunal tributário encerrou definitivamente a questão dizendo que mesmo que assistisse razão à administração tributária quanto às obrigações fiscais (matéria cujo conhecimento declara desnecessário e prejudicado), por força da prescrição do eventual direito à cobrança, não podem tais liquidações adicionais de imposto ter qualquer validade jurídica para efeitos de cumprimento das obrigações fiscais delas decorrentes.
Deste modo, à luz das normas legais “supra” transcritas» (artigos 50.º, n.º 1 e 51 do RJIFNA, e artigos 47.º e 48.º do RGIT), «deve concluir-se que as obrigações tributárias constantes das liquidações adicionais e objecto das impugnações judiciais nunca tiveram verdadeira eficácia jurídica.
A ser assim, como efectivamente julgamos que é, também no âmbito do processo penal tributário, para efeitos de apuramento da existência de crime fiscal, não podem ser apreciadas condutas tributárias que o próprio Estado já considerou (através do Tribunal fiscal) “prescritas” (no sentido “supra” referido da desnecessidade de conhecer da sua existência efectiva), o que impõe a prolação de uma decisão de não pronúncia».
3. Do mérito do recurso:
Como se vê do despacho de não pronúncia e da motivação de recurso, estão em confronto duas posições distintas sobre as consequências decorrentes, para o presente processo penal tributário, das duas decisões proferidas, pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, no âmbito dos processos relativos às impugnações das liquidações adicionais do IVA e IRC interpostas pela sociedade arguida “…, Lda.”.
Na posição partilhada pelo Sr. Juiz de Instrução, à luz dos artigos 51.º do RJIFNA e 48.º do RGIT, não podem ser consideradas para efeitos de apuramento da existência de crime fiscal condutas tributárias que o próprio Estado já considerou, através do tribunal com jurisdição para tanto, “prescritas” (no sentido da desnecessidade de conhecer da sua existência efectiva).
  Por seu turno, entende o recorrente que, tida por prejudicada a apreciação da conformidade legal das liquidações adicionais pelo tribunal materialmente competente, daí só é legítimo concluir-se pela impossibilidade dessa apreciação vir a fazer-se na jurisdição fiscal e inviabilidade de nesta jurisdição serem futuramente conhecidas quaisquer questões relacionadas com a exigência da prestação tributária, não ficando nem podendo ficar prejudicada a eficácia desses actos de liquidação e, designadamente, o conhecimento das questões que, conexionadas com tais actos ou a partir deles suscitadas, se coloquem no domínio do processo penal tributário.
Por força da afirmação do princípio da suficiência do processo penal (artigo 7.º do CPP), o processo deve prosseguir, nele se devendo resolver todas as questões que interessarem à boa decisão da causa.
A solução do dissídio tem resposta na adequada interpretação dos artigos 50.º, n.º 1, e 51.º do RJIFNA - cuja redacção inicial resultou do DL n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro a que sucederam outras, entre estas a do DL n.º 394/93, de 24 de Novembro -, a que correspondem os artigos 47.º, n.º 1, e 48.º do RGIT, respectivamente, à luz da concreta situação configurada nos autos, ou seja, perante o teor da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, acima referida no elenco dos factos tidos como relevantes.
Dispõe o n.º 1 do artigo 50.º (RJIFNA):
«Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição de executado, nos termos do Código de Processo Tributário, o processo penal fiscal suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças».
E o n.º 1 do artigo 47.º (RGIT):
«Se estiver a correr processo de impugnação judicial ou tiver lugar oposição à execução, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados, o processo penal tributário suspende-se até que transitem em julgado as respectivas sentenças».
Por sua vez, sob a epígrafe “Caso julgado das sentenças de impugnação e de oposição”, estatui o artigo 51.º (RJIFNA):
«A sentença proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Processo Tributário, uma vez transitadas constituem caso julgado para o processo penal fiscal apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram».
Idêntica redacção tem o artigo 48.º do RGIT, havendo apenas a destacar uma diferença de pormenor, não relevante, consubstanciada na alusão ao “Código de Procedimento e de Processo Tributário”.
Quer o artigo 50.º, n.º 1 (RJIFNA), quer o n.º 1 do artigo 47.º (RGIT) consagram um desvio ao princípio da suficiência do processo penal, consagrado no artigo 7.º do CPP, acentuando a competência exclusiva da jurisdição fiscal para decidir questões de natureza tributária - o que tem justificação no carácter altamente especializado das referidas matérias -, que está subjacente ao normativo do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa [[i]].
Assim, a suspensão do processo penal tributário em consequência de processo de impugnação judicial ou de oposição à execução é obrigatória e não facultativa como no processo penal comum se se mostrar absolutamente necessária para a decisão da questão prejudicada (verificação do crime fiscal tributário), de modo que se lhe apresente como um antecedente lógico-jurídico, com carácter autónomo e condicionante do conhecimento da questão principal, ou seja, nos casos em que a existência de infracção criminal e bem assim a natureza e quantum da pena dependem da resolução de uma questão fiscal [[ii]].
Posto isto, e sendo certo que, neste processo penal tributário, foi dado cumprimento ao disposto nos artigos 50.º, n. 1 (RJIFNA) e 47.º, n.º 1 (RGIT), importa enfrentar agora a concreta questão objecto do recurso, consistente em saber que influência assumem no processo as decisões proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra.
Os artigos já citados (51.º do RJIFNA e 48.º do RGIT) versam o caso julgado das sentenças de impugnação e de oposição que, nos termos dos artigos 50.º e 47.º (RJIFNA e RGIT, respectivamente), motivam a suspensão do processo penal tributário.
Quando se dispõem naqueles artigos que as ditas sentenças constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram, retoma-se o comando da primeira parte do artigo 673.º do Código de Processo Civil, que prescreve que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga [[iii]].
Os limites do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida pela sentença: os sujeitos, o objecto e a fonte ou título constitutivo.
Por outro lado, é preciso atender aos termos dessa definição (estatuída na sentença). Ela tem autoridade – faz lei – para qualquer processo futuro, mas só em exacta correspondência com o seu conteúdo. Não pode portanto impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesma não definiu [[iv]].
Assim, a configuração do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”) [[v]].
É, pois, pelo próprio teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado, estando compreendidos na expressão «precisos limites e termos em que se julga» todas as questões solucionadas na sentença, conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor.
Volvendo ao caso dos autos, relembra-se, as duas sentenças proferidas pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, através das duas sentenças de 31 de Março de 2006, declarou extintas as instâncias impugnatórias, por inutilidade superveniente da lide, fundamentando o decidido na prescrição da obrigação tributária, sem que tivesse emitido pronúncia sobre a nulidade dos actos impugnados (liquidações adicionais relativas a IVA e IRC do ano de 1998.
A prescrição, tal como o cumprimento, a dação em cumprimento, a confusão ou a compensação, constitui uma forma de extinção da obrigação fiscal.
A inércia do titular do Direito durante um certo período de tempo previsto na lei leva à extinção da dívida fiscal, tornando-a absolutamente inexigível [[vi]].
Como refere Saldanha Sanches, «a prescrição consiste num limite para o poder de cobrar um imposto em dívida»[[vii]].
Assim, o âmbito decisório das sentenças em causa reconduz-se apenas e tão só à impossibilidade legal de o Estado jamais poder exigir o cumprimento das dívidas fiscais, não estando, por conseguinte, dentro dos limites do caso julgado as concretas questões objecto das impugnações, nomeadamente as que se reportam aos actos simulatórios, consubstanciadores das condutas tipificadas nos artigos 23.º, n.º 2, alínea c) do RJIFNA e 103.º, n.º 1, alínea c) do Regime Geral das Infracções Tributárias [[viii]].
«No processo de impugnação judicial, sendo dada razão ao impugnante, transitada a decisão que dê como não provada a existência de simulação, falece a possibilidade de voltar o contribuinte a ser importunado, no domínio do processo penal tributário, com diligências que visem apurar a bondade do seu comportamento, uma vez que ela, para todos os efeitos, se deve ter por consolidada» [[ix]].
Contudo, se o processo de impugnação judicial vier a findar, como na situação dos autos, sem que nele sejam apreciadas as questões prejudiciais não penais, ou seja, o conhecimento das concretas questões correlacionadas com as liquidações adicionais de impostos (IVA e IRC), donde sobrai a problemática relativa à existência ou inexistência de actos simulados, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal (artigo 7.º do CPP), tais questões terão de ser decididas no processo penal [[x]].
Em síntese conclusiva:
- Perante impugnação judicial, devem os tribunais fiscais apreciar a pretensão do contribuinte e o comportamento da administração à luz dos critérios próprios das normas tributárias;
- Sendo dada razão ao impugnante, a sentença que dê como verificada a ilegalidade dos actos tributários (liquidações adicionais do IVA e IRC) e como não provada a existência de simulação constitui caso julgado para o processo penal tributário relativamente a estas questões, nos termos dos artigos 51.º (RJIFNA) e 48.º (RGIT);
- Todavia, se a sentença se limitou a julgar extinta a instância impugnatória, por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 287.º, alínea e) do CPC, ex vi do artigo 2.º, alínea e) do CPPT, por prescrição da obrigação tributária - não tendo, por isso, conhecido do objecto da impugnação -, em obediência ao princípio da suficiência do processo penal plasmado no artigo 7.º do CPP, as questões relevantes, maxime, as que se correlacionam com a simulação, devem ser decididas no domínio do processo penal.
Por todo o exposto, após a realização dos actos de instrução que considere relevantes, deve o Mm.º Juiz de Instrução apreciar as razões (de facto e de direito) de discordância dos arguidos …, … e “…, Lda.” relativamente à acusação deduzida pelo Ministério Público, proferindo a final decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia.
III. Dispositivo:
Posto o que precede, os Juízes que compõem a Secção Criminal da Relação de Coimbra concedem provimento ao recurso e, em consequência, revogam a decisão recorrida e determinam que o Mm.º Juiz de Instrução, tendo e conta o objecto do requerimento de instrução e após a realização das diligências instrutórias que tiver por adequadas e relevantes, profira a final decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia.






[i] Cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2008, pág. 399 a 405.
[ii] Neste sentido, cfr., v.g., o Acórdão da Relação do Porto de 01-02-2006, proc. 0515213, in www.dgsi.pt, e Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, idem, e, com diferenças de pormenor, Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais não Aduaneiras, 3.ª edição - anotada e actualizada -, 1998, pág. 218; António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo, Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra Editora 2002, pág. 173; e João Ricardo Catarino e Nuno Victorino, Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), 2.ª edição, 2004, anotação ao artigo 47.º.
[iii] Cfr. Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, ibidem, pág. 406.
[iv] Cfr. Professor Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1976, pág. 308.
[v] Cfr. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra Editora 2001, pág. 683.
[vi] Cfr. António Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, volume 1, 3.ª Edição, Almedina 1989, pág. 131, e Diogo Leite Campos e Mónica Horta Neves Leite de Campos, Direito Tributário, 2.ª Edição, Almedina 2003, pág. 435.
[vii] Manual de Direito Fiscal, 3.ª Edição, Coimbra 2007, pág. 262.
[viii] O crime de fraude fiscal é um crime que apela à existência de um evento material. A norma incriminadora não se limita a considerar puníveis as condutas que visem a obtenção de vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. Impõe que esse desiderato seja perseguido por um dos comportamentos constantes das três alíneas do n.º 2 do artigo 23.º do RJIFNA e do n.º 1 do artigo 103.º do RGIT: a ocultação de factos ou valores ou a celebração de negócios jurídicos simulados.
[ix] Cfr. Nuno Pombo, A fraude fiscal, A Norma Incriminadora, a Simulação e outras Reflexões, Almedina, pág. 175.
[x] Cfr. Jorge Lopes de Sousa, Manuel Simas Santos, ob. cit., pág. 402. Versando caso que com o presente apresenta alguma similitude, veja-se ainda Jorge dos Reis Bravo, Prescrição e Suspensão do Processo Penal Fiscal, Algumas Reflexões, Jorge dos Reis Bravo, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, fasc. 4.º, Outubro-Dezembro 1999, pág. 640 e ss.