Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
667/18.3PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: AMEAÇA AGRAVADA
CRIME PÚBLICO
Data do Acordão: 07/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE COIMBRA - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 153.º, N.º 1, E 155.º, DO CP
Sumário: O crime de ameaça agravado, previsto nos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º do CP, tem a natureza de crime público.
Decisão Texto Integral:





Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                                                                     
            A - Relatório:

1. Nos autos de Processo Comum (tribunal Singular) registados sob o n.º 667/18.3PCCBR, a correr termos na Comarca de Coimbra, Juízo Local Criminal de Coimbra - J3, foi, em 12/11/2019, proferida a seguinte Sentença:

            “O Tribunal, face à desistência do pedido de indemnização, por se tratarem de direitos disponíveis e estarem na disponibilidade do mesmo, homologa a desistência, por válida e juridicamente relevante.

No que diz respeito à desistência da queixa, o Tribunal também homologa a desistência no que diz respeito ao crime de injúrias, face à natureza particular do crime e reunidos que estão os pressupostos legais.

No que diz respeito ao crime de ameaça agravada, tem sido entendimento deste Tribunal que tal ilícito penal reveste de natureza semi-pública, o que significaria a admissibilidade da desistência da queixa ora apresentada com a consequente extinção do procedimento criminal.

Contudo, não se ignora que alguma jurisprudência dos Tribunais Superiores tem seguido no sentido de considerar que o referido ilícito reveste de natureza pública, entendimento este que é agora partilhado pelo Ministério Público nesta comarca.

No entanto, salvo devido respeito por opinião diversa, o Tribunal mantém o entendimento já plasmado em tantos outros processos de natureza criminal nesta comarca.

Efetivamente, alinhamos com os argumentos expressos no douto Ac. da RP de 13/11/2013 (in Proc.º N.º 335/11.7GCSTS.P1 – www.dgsi) que conclui que o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos art.ºs 153.º e 155.º do Código Penal reveste natureza semi-pública e que tal natureza se mantém inalterada após a revisão de 2007 (que, no fundo, se limitou a aglutinar no art.º 155.º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e de coação).

Na verdade, aí podemos ler que:

“1. O crime de ameaça possui natureza semi-pública desde a redacção originária do Código Penal de 1982;

2. Nenhuma das revisões intercalares do Código Penal alterou essa natureza;

3. Na versão actual do Código Penal, o crime de ameaça previsto no artigo 153.º continua a ter a mesma natureza semi-pública;

4. A alteração mais relevante que o crime de ameaça sofreu foi a redução da tipicidade (artigo 153.º, n.º 1) decorrente da revisão de 1995 mas manteve a aludida natureza;

5. O crime de coacção previsto no artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, teve natureza pública desde a versão originária do Código Penal até 1995, momento em que a viu alterada quando ocorrem as situações previstas no n.º 4 (semi-pública);

6. A inclusão da exigência de queixa não é um capricho mas obedece ou está fundada em razões de política-criminal;

7. A deslocação do anterior n.º 2 do artigo 153.º do Código Penal, para o novo artigo 155.º, n.º 1, alínea a), não modificou nada substancialmente;

8. Da Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal o mais que se infere é uma preocupação utilitarista que desprezou, por completo, as diferenças materiais que existiam e existem entre os crimes de ameaça, coacção e ofensa à integridade física;

9. O regime sancionatório vigente (2 anos de prisão ou multa até 240 dias) é congruente, até em termos comparativos, com atribuição de relevância à vontade da vítima;

10. Não se vislumbram quaisquer razões de política criminal para não atribuir qualquer relevância à vontade da vítima quando esteja em causa o crime de ameaça punível pela conjugação dos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, do Código Penal (a ameaça agravada);

11. O artigo 155.º, n.º 1, corpo, alíneas a) a d) e 2, do Código Penal vigente, contém uma arrumação sistemática de várias circunstâncias (novas e velha) que agravam a pena prevista no tipo do artigo 153.º para onde reenvia expressamente;

12. As circunstâncias agravantes contidas no artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, não alteram a natureza do crime de ameaça. […]

[…] O artigo 155.° do Código Penal, constitui, em relação ao crime de ameaça, previsto no artigo 153.° do Código Penal, um repositório de circunstâncias que agravam a pena a aplicar ao agente e que não prescinde, para a sua actuação concreta, da manifestação de vontade da vítima, independentemente da qualidade ou condição desta.

Desta sorte:

- Quando tal manifestação de vontade não se revele, não haverá lugar à instauração do processo.

- Quando tal manifestação de vontade se modifique, corporizando uma desistência, deve o procedimento em curso findar por falta de legitimidade do Ministério Público”.


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Em suma, em face do que ficou exposto, considero admissível a desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que o arguido se encontra acusado.

Como assim, ao abrigo do disposto nos art.ºs 113.º, n.º 1, 116.º, n.º 2, primeira parte, do Cód. Penal, e 51.º, n.º 2, in fine, do Cód. de Proc. Penal, julgo válida e relevante a desistência da queixa/acusação particular apresentada, a qual homologo, e, em consequência, declaro extinto o presente procedimento criminal contra o arguido.

Custas cíveis e criminais a cargo do demandante assistente, pelo mínimo legal, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia - art.º 515.º d), do Cód. de Processo Penal e art. 8º nº9 do RCJ e Tabela III.

Dou sem efeito o julgamento agendado nos autos.

Notifique e deposite e dê baixa no F 7.”


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            2. Inconformado com tal Sentença, dela recorreu, em 19/12/2019, o Ministério Público, pedindo a sua revogação parcial, no que diz respeito ao crime de ameaça agravada, e a sua substituição por outra decisão que determine, na respetiva parte, o prosseguimento dos autos, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

            1. O arguido foi pronunciado pela prática, além do mais, de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº1, al. a), ambos do CP;

2. No início da audiência de julgamento, o assistente desistiu a queixa apresentada contra o arguido e este, em sede de inquérito, havia já declarado que não se opunha à eventual desistência da queixa;

3. O Ministério Publico opôs-se à homologação da desistência da queixa, no que concerne ao crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. a), do CP;

4. Porém, o Tribunal a quo proferiu sentença que, considerando revestir tal crime natureza semipública, julgou a desistência válida e relevante, homologando-a.

5. Contudo, o Tribunal a quo não podia ter homologado a desistência de queixa no que concerne àquele ilícito criminal, por se tratar de um crime de natureza pública;

6. Com efeito, se até à Revisão de 2007 (DL nº 59/2007, de 04-09), o crime de ameaça, simples ou qualificada, tinha natureza de crime semipúblico, após aquela revisão o artº 153º passou a prever apenas o crime de ameaça simples, mantendo-se apenas quanto a este a natureza de crime semipúblico

7. O crime de ameaça agravada passou a estar previsto no artº 155º, nº 1, conjuntamente com o crime de coação agravada, que já anteriormente tinha a natureza de crime público;

8. Daqui decorre que o legislador criou um tipo legal autónomo, distinto do crime de ameaça, p.p. pelo artº 153º, nº 1, do CP (crime fundamental), pois a remissão, feita no artº 155º, nº 1 para o artº 153º, diz respeito apenas aos factos aí previstos;

9. Enquanto o nº 2 do artº 153º faz depender o procedimento criminal pelo crime de ameaça simples do exercício do direito de queixa, relativamente ao crime de ameaça agravada, o legislador nada disse a esse propósito, nem no artº 155º, nem em disposição legal autónoma.

10. Ora, da técnica legislativa utilizada no Código Penal, resulta que, se o legislador não diz - após a definição do ilícito típico ou (no caso de um conjunto de crimes que protegem o mesmo bem jurídico) numa disposição legal autónoma, situada no final do capítulo respetivo - que o procedimento criminal por um crime depende da queixa ou da acusação particular, isso significa que se trata de um crime público.

11. De facto, os crimes de ameaça simples e qualificada são estruturalmente distintos e, apesar de ambos os crimes tutelarem o mesmo bem jurídico – a liberdade de decisão e de ação – o artº 155º, nº 1 prevê circunstâncias agravantes (reveladoras de maior desvalor da ação), de funcionamento automático, estando em causa crimes qualificados ao nível do tipo de ilícito;

12. Do exposto resulta que o procedimento criminal pelo crime de ameaça agravada não está dependente da vontade do ofendido;

13. Assim, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o disposto nos artºs 48º, 49º e 51º, nº 1, todos do CPP e 153º e 155º, nº 1, al. a), ambos do CP.

Termos em que, deverão Vªs Exas., dando provimento ao presente recurso, revogar a sentença recorrida e substituí-la por outra que julgue inválida, irrelevante e juridicamente ineficaz a desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravada, p.p. pelos artºs 153º, nº 1 e 155º, nº 1, ambos do CP, imputado ao arguido no despacho de pronúncia e que determine, nesta parte, o prosseguimento dos autos, designando data para a realização da audiência de julgamento, assim se fazendo JUSTIÇA.


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            3. O recurso foi admitido por despacho de 6/1/2020.

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4. O arguido, em 23/1/2020, respondeu ao recurso, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso, concluindo do seguinte modo:

I. Na data designada para audiência de julgamento o Assistente desistiu do procedimento criminal contra o arguido/recorrido A., bem como, do Pedido de Indeminização civil deduzido.

II. O Recorrido aceitou a desistência criminal bem como a desistência cível.

III.  Contudo, o Ministério Público opôs-se à homologação da desistência de queixa quanto ao crime de ameaça agravada, por considerar se tratar de um crime de natureza pública;

IV.O Ministério Público interpôs recurso da sentença que homologou a desistência de queixa por parte do assistente em audiência de julgamento, relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º n.º 1 e 155.º n.º 1 alínea a) do Código Penal.

V. Contudo, não podemos perfilhar tal entendimento.

VI. Pese embora, seja chamado à colação a opinião dominante na jurisprudência e por alguma doutrina, não se poderá olvidar o entendimento nesta matéria desta Comarca.

VII. Acerca da eficácia dos Acórdãos do Pleno das Secções Criminais do STJ, proferidos no âmbito de recursos para fixação de jurisprudência, fora dos processos em que tem lugar a respectiva prolação, dispõe o nº 3 do art. 445º do CPP:

VIII. A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada.

IX. O regime contido na disposição legal agora transcrita procura estabelecer um ponto de equilíbrio entre a desejável uniformidade, segurança e previsibilidade do direito e o princípio da independência dos Tribunais e da sua vinculação exclusiva à lei, estatuído pelo art. 203º da CRP.

X. Ao contrário do antigo instituto dos Assentos, que se caracterizava pela sua obrigatoriedade para a generalidade dos Tribunais e cuja compatibilidade com o postulado constitucional da vinculação exclusiva destes à lei era, por isso, problemática, os actuais Acórdãos de fixação de jurisprudência revestem uma força vinculativa tendencial, ou seja, os Tribunais podem divergir da orientação neles consagrada, mas, fazendo-o, ficam sujeitos a um especial dever de justificar a divergência.

XI. Segundo a doutrina, nomeadamente, pelos Professores Eduardo Correia e Figueiredo Dias, entende-se que o tipo base de crime do art.º 153º não foi alterado na sua natureza e o legislador não quis alterar aquela natureza do crime base nuclear (semipúblico -como se refere no art.º 153º, n.º 2 do C. Penal).

XII. Aliás, este entendimento é seguido pela própria jurisprudência.

XIII. Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20II, Processo n." 379/09.9PCRGR.L1, em que foi decidido que "o crime de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º n.º 1, al. a) do CP, permite face à sua natureza semi-pública, a desistência do procedimento criminal",       XIV. Bem como, no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, n.º 335/11.7GCSTS.P1de l3-II-20I3, que referiu o seguinte: "O crime de ameaça agravado, p.p. pelos art.ºs 153º e 155º do C Penal, é de natureza semi-pública. Essa natureza mantém-se inalterada, após a revisão de 2007, que se limitou a aglutinar no art.º 155º as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção."

XV. Não se poderá deixar de concluir, que estão subjacentes razões de utilitarismo sistemático de forma a evitar a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas - que ditaram essas alterações.

XVI. Logo, não terá sido intenção do Legislador alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça (incluindo a sua - apenas ampliada - forma agravada), ou pública do crime de coacção (com as excepções previstas no n° 4 do art. 154°), decorrente do respectivo tipo-base.

XVII. Ou seja, de acordo com o elemento racional ou teleológico e à unidade do sistema jurídico-penal, a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger, conforme decorre da doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, em Noções Elementares de Direito Penal (Rei dos Livros, 3ª ed., 2009, P: 332-333): "a exigência de queixa e de acusação particular vão buscar o seu fundamento: - à diminuta gravidade da infracção - certas infracções (v.g., ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, que façam desencadear, por parte desta, uma reacção automática.

XVIII. Os bens jurídicos protegidos segundo o nosso entendimento, são a liberdade de decisão e de acção, enquanto bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada.

XIX. Deste modo, mesmo que estes se mostrem violados sob a agravada, não existem razões de ordem pública e colectiva que imponham ao assistente o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.

XX. Nesta conformidade, não merece qualquer reparo a douta sentença que homologou a queixa do assistente em audiência de julgamento e em consequência arquivar o processo, uma vez que o crime de ameaça agravada p.e p. pelo art.º 153.º n.º 1 e 155.º do CP é um crime semi-público.


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5. Instruídos os autos e remetidos a este Tribunal, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 28/2/2020, emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.

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6. Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.

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            7. Colhidos os vistos legais, foi o processo submetido à conferência.

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            B - Cumpre apreciar:

            Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1, e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal), uma questão vem colocada pelo recorrente à apreciação deste tribunal:

 - Saber se é válida a homologação da desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravada deve ser considerada válida, tendo em conta a natureza de tal ilícito penal.

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            Como bem é referido pelo Ministério Público, no seu recurso, “a questão relativa à natureza (semipública ou pública) do crime de ameaça agravada, p. p. pelo artigo 155.º, n.º 1, al. a), do CP, é controvertida, existindo, a este propósito, duas posições: a que defende a sua natureza de crime semipúblico e a que defende tratar-se de crime público.

            Não acompanhamos, salvo o devido respeito, a posição que consta da sentença ora em crise, na esteira, aliás, de anteriores decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

            Na vigência do Código Penal na versão original e posteriores alterações, mas antes da alteração operada pela Lei 59/2007, o crime de “ameaça” e o de “ameaça agravado” eram de natureza semipública (artigo 155 n.º 3 do CP na versão original e artigo 153 n.º 3 do CP na versão revista em 1995), o que significava que dependiam de queixa do respetivo ofendido/queixoso e poderiam ser objeto de desistência dessa mesma queixa até à publicação da sentença em 1.ª instância.

Antes da reforma aprovada pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, a forma qualificada do crime de ameaça (que consistia na circunstância de a ameaça ser com a prática de um crime punível com pena de prisão superior a 3 anos) estava prevista na mesma norma que previa a forma simples ou base do tipo legal.

A ratio da agravação consistia, como diz Taipa de Carvalho in anotação ao art. 153, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 345., “na razoável consideração legislativa de que há, no geral dos casos, uma proporção direta entre a gravidade do crime objeto de ameaça e a perturbação da paz individual e da liberdade de determinação: quanto mais grave aquele for maior será esta perturbação.”

Por isso, concluiu que essa agravação se traduzia num crime de ameaça qualificado pela gravidade do crime ameaçado.

Assim, o tipo base ou simples e o tipo qualificado do crime de ameaça (previstos na mesma norma) tinham natureza semipública antes da entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4/9.

Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, o legislador entendeu alterar a natureza do crime de ameaça agravado ou qualificado.

Com efeito, enquanto o crime base (previsto no artigo 153 do CP na versão de 2007) manteve a natureza semi-pública (ver n.º 2 do mesmo artigo), o mesmo já não sucedeu com o crime qualificado (previsto agora também no artigo 155.º, onde não se faz qualquer referência à dependência de queixa para o procedimento criminal).

Atualmente e, desde a reforma de 2007, no artigo 155.º prevêem-se as agravantes aplicáveis quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coação.

Tais circunstâncias (agravantes que, no caso do n.º 1, revelam “um maior desvalor da ação”, reportando-se quer ao crime de ameaça, quer ao crime de coação), traduzem um acréscimo da ilicitude em relação ao tipo base ou fundamental.

Nessa medida, verificando-se qualquer das circunstâncias agravantes previstas no artigo 155 do CP, após a reforma de 2007, o crime de ameaça (ou de coação) passa a ser qualificado.

Tratando-se de crime qualificado obviamente que é distinto, diferente do tipo fundamental, percebendo-se que o legislador lhe confira diferente natureza, à semelhança do que sucede com outros tipos legais (v.g. artigos 203.º e 204.º, 212.º e 213.º, 143.º e 144.º, do Código Penal).

O legislador quando confere natureza pública a determinado tipo de crimes, nomeadamente quando são qualificados, tem precisamente em vista acautelar interesses públicos que se prendem nomeadamente com a segurança da sociedade e com a paz pública (interesses esses que não podem depender da vontade de particulares apresentarem ou não queixa).

Este entendimento, como já referimos, tem sido seguido pelo Tribunal da Relação de Coimbra – ver, a título de exemplo, o Acórdão de 10/12/2013, Processo n.º 183/09.4GTVIS.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Alcina Ribeiro, o Acórdão de 3/2/2016, Processo n.º 164/11.8GAPNC.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Orlando Gonçalves, o Acórdão de 6/7/2016, Processo n.º 467/13.7GASEI-A.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Vasques Osório, o Acórdão de 8/5/2019, Processo n.º 62/17.1GBCNF.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Brízida Martins, em www.dgsi.pt.

Acolhendo os fundamentos desta corrente jurisprudencial, julgamos que o procedimento criminal do ilícito previsto no artigo 155.º, nº 1, al. a) não depende de queixa, ou de acusação particular e queixa, assumindo, por via disso, natureza pública.  Por conseguinte, entendemos que o Tribunal a quo não devia ter homologado a desistência de queixa relativamente ao crime de ameaça agravada, por ser inválida, irrelevante e juridicamente ineficaz.

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            C - Decisão:

            Nesta conformidade, os Juízes da 5.ª Secção deste Tribunal da Relação de Coimbra, concedendo provimento ao recurso, julga-se inválida, irrelevante e juridicamente ineficaz a desistência de queixa apresentada, no que diz respeito ao crime previsto e punido pelos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, determinando-se o prosseguimento dos autos, através da designação de data para a realização da audiência de julgamento.

Sem tributação.


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(Texto processado em computador e integralmente revisto e assinado – artigo 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP)
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Coimbra, 14 de julho de 2020

José Eduardo Martins (Relator)

Maria José Nogueira (Adjunta)