Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
411/04.2
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: AUTO-ESTRADA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
MEIOS DE PROVA
RESPONSABILIDADE CIVIL
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/20/2007
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 342º, Nº1 E 344º; 493º, Nº1 DO CÓDIGO CIVIL; DECRETO-LEI N.º 335-A/99
Sumário: 1. Os factos atestados por agente de autoridade (Brigada de Trânsito da GNR), no exercício das suas funções e com base na sua percepção, relevam para a formação da convicção do julgador, ainda que não constem do “auto de participação de acidente de viação” elaborado após a ocorrência do evento.
2. A responsabilidade da empresa concessionária da exploração da auto-estrada perante o utente dessa via é de natureza extra contratual, impendendo sobre a concessionária a presunção legal de culpa a que alude o art. 493º, nº1 do C.C., tendo por base uma concepção de “coisa imóvel” como abrangendo a auto-estrada no seu conjunto, ou seja, incluindo não só o piso (faixas de rodagem), como todos os equipamentos envolventes e que se relacionam com a mesma, assegurando a concretização do fim a que se destina (vedações, placas de sinalização, rails de protecção, equipamentos de drenagem de águas), uma vez que impende sobre si o dever de manter a auto-estrada em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização;
3. Justifica-se, ainda, em termos de direito probatório, fazer impender o ónus da prova da ausência de culpa sobre a única entidade que, verdadeiramente, tem o domínio da coisa e que tem os conhecimentos e meios técnicos e humanos para controlar a fonte de perigo.
4. Constatando-se a existência de um lençol de água na via, devido a um deficiente escoamento das águas pluviais (motivado pelo entupimento de uma “caixa sumidouro” aí existente) e provando-se que esse facto determinou o despiste do veículo, que entrou em fenómeno de “aquaplanig”, com o consequente embate – e na ausência de elementos que apontem que o condutor, de alguma forma, contribuiu para a produção do acidente –, a empresa concessionária é responsável pela indemnização a atribuir ao lesado, verificados que estejam os demais elementos de responsabilidade.
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra

I-RELATÓRIO
A..., residente em Av.ª Monsenhor Mendes Carmo, Bloco B, n.º 27, 3.º Dt.º, Guarda intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra Sctuvias-Auto Estradas da Beira Interior, S.A., com sede na Praça de Alvalade, n.º6, 7.º, Lisboa, sendo interveniente, do lado passivo, a Companhia de Seguros, S.A., com sede em Largo do Calhariz, n.º30, Lisboa, pedindo a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de 6.425,00 Euros, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alega que:
No dia 1 de Outubro de 2003, na A-23, sentido Covilhã – Castelo Branco, numa altura em que chovia, o Autor conduzia o seu veículo ligeiro de matrícula 44-66-LN, a cerca de 90 ou 100 K/hora quando, nas proximidades do Km 160,450, perdeu o domínio do Seat que entrou em “aquaplaning”, em virtude de um “lençol” de água que abrangia a faixa de rodagem, indo embater no separador central de cimento da A-23, que separa as faixas de rodagem de ambos os sentidos, após o que o Seat rodou sobre si mesmo e bateu ainda com a parte traseira no mesmo muro separador, imobilizando-se. Algum tempo depois chegou ao local uma viatura da Scutvias, tendo um elemento desta empresa procedido à desobstrução de uma caixa de águas pluviais existente nas imediações, caixa da qual foi retirado entulho que obstruía o normal escoamento de água.
Do acidente resultaram danos no veículo, no valor de €7.226,00. Tendo o Seat o valor de €7.500,00 antes do acidente, o autor preferiu vender a viatura como salvado, pelo valor de €2.500,00, sofrendo o Autor um prejuízo de €5.000,00. Acrescem os prejuízos decorrentes do período de tempo em que o Autor esteve impossibilitado de utilizar veículo automóvel nas suas deslocações profissionais e familiares, prejuízos que não podem deixar de ser indemnizados pela Ré, no valor de €1.425,00, à razão de €25,00 por dia.
Por fim, fundamenta a responsabilidade da 1.ª R por o acidente ter ocorrido na A-23, auto-estrada sem portagens, cuja concessão de exploração foi atribuída à Scutvias, que está obrigada a assegurar permanentemente as boas condições de segurança e comodidade dessa via, nomeadamente praticando os actos de vigilância destinados a eliminar e/ou prontamente assinalar quaisquer anomalias que diminuam a referida segurança ou comodidade.
A Ré Sctuvias-Auto Estradas da Beira Interior, S.A. contestou, impugnando a factualidade constante da P.I. e invocando, em síntese, que:
Celebrou com a Companhia de Seguros Fidelidade, S.A., uma apólice de seguro de responsabilidade civil, para pagamento de indemnizações devidas a terceiros na sua qualidade de concessionária.
Actuou com zelo e diligência no cumprimento das obrigações contratuais que lhe competem porquanto, alertada pelas previsões meteorológicas, instruiu as suas equipas para verificarem e limparem as caixas sumidouras, o que foi feito e ainda procedeu à afixação de painéis alfanuméricos advertindo “piso molhado, modere a velocidade”.
Foi o Autor a dar causa ao acidente, não actuando com a diligência devida, porquanto não avistou o eventual lençol de água e não reduziu a velocidade, adequando a marcha do veículo às condições concretas em que a mesma se processava.
A chamada Companhia de Seguros Fidelidade S.A. apresentou contestação, argumentando em termos similares à Ré Sctuvias-Autoestradas da Beira Interior, S.A.
Elaborou-se base instrutória, objecto de reclamação, parcialmente deferida.
Procedeu-se a julgamento e respondeu-se aos quesitos, sem reclamações.
Elaborou-se sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, condenando-se as “RR, solidariamente, a pagarem ao A a quantia de 5.360 Euros, mas descontando quanto à 2.ª R Companhia de Seguros Fidelidade 360 Euros (valor correspondente ao prejuízo pela paralisação do veículo) e descontando ainda os valores previstos na franquia referida no art.º10.º das condições especiais, isto é, 2.500 Euros, as quantias a pagar serão acrescidas dos montantes equivalentes aos juros de mora, à taxa legal, desde a citação, e até efectivo e integral pagamento”.
Inconformada, a Ré Scutvias SA interpôs recurso.
Apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
1ª Contrariamente ao pressuposto pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, não se encontram assentes nos autos – pois não foram sequer alegados – factos concretos e circunstanciados capazes de habilitar o tribunal a poder concluir, como concluiu, que o veículo “entrou em aquaplaning” (ponto 6 da Base Instrutória), que tal facto ocorreu em virtude de um lençol de águia” (ponto 7 da Base Instrutória), “não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas, daí” (ponto 9 da Base Instrutória).
2ª A ocorrência do designado “aquaplaning” ou “hidroplanagem”, depende necessariamente da verificação de um conjunto de factores, de entre os quais “a velocidade do carro”,“o estado do piso dos pneus” e a “profundidade da água” (cfr. http://vce.planetaclix.pt/InfoManual04a.htm), sendo certo que no caso dos autos apenas se sabe que havia água no pavimento, não tendo sido feita prova – nem se encontram dados por assentes – esses factores, não se sabendo sequer a que velocidade circulava o veículo.
3ª Dos meios de prova que fundamentam a decisão do tribunal, nomeadamente os depoimentos das testemunhas João Mateus Mendes (…), Luís Manuel Tomé Ribeiro (…) e José Manuel Garcia Gil Conde (…) e do que resulta assente no ponto av) dos factos provados, não pode resultar provada a verificação de uma situação de hidroplanagem (ponto 6 da Base Instrutória), por não ter sido feita qualquer prova alguns dos elementos (factos constitutivos) necessários para a verificação de tal fenómeno complexo, designadamente a velocidade a que circulava o veículo e o estado dos pneus.
4ª Os meios de prova que fundamentam a convicção do tribunal a quo, são os mesmos que impõem uma decisão diversa da proferida, até porque nenhuma das testemunhas ouvidas em sede de audiência de discussão e julgamento assistiu ao acidente sub judice e, por outro lado resulta assente no ponto av) dos factos provados que “nesse dia e naquele sublanço não se registou mais nenhum acidente de viação, tendo sido a viatura do A. a única que se despistou”.
5ª O que pode concluir-se de toda a prova produzida e apreciada em sede de audiência de discussão e julgamento é a não verificação do fenómeno da hidroplanagem, devendo dar-se como não provados os correspondentes pontos da matéria de facto assente (pontos 6, 7 e 9 da Base Instrutória), uma vez que o Autor não logrou provar – nem, aliás, alegou – todos os factos pertinentes para a existência deste fenómeno – tais como a velocidade e o estado dos pneus, sendo desta forma impossível estabelecer o nexo de causalidade entre a quantidade de água e o acidente.
6ª A existência de água no pavimento não constitui um elemento endógeno à via (tratando-se antes de uma realidade exógena à auto-estrada), pelo que a imputação de responsabilidade à Recorrente não pode ser aferida pelo regime previsto no art. 493º do Código Civil, não devendo assim a concessionária ser onerada com o ónus da prova (…).
7ª a 9ª Contrariamente ao decidido na sentença recorrida, a responsabilidade da concessionária é extra contratual, subsumindo-se ao regime revisto no art.483º do C.C., competindo ao Autor o ónus de prova dos factos constitutivos do direito por si alegado (Base XXXV/2 do Dec. Lei 335-A/99 de 20 de Agosto), não existindo inversão desse ónus, nem tão pouco presunção de culpa da concessionária; A imputação da responsabilidade à cessionária não é contratual, ,não se baseando nem em contrato inominado, nem contrato a favor de terceiro.
11ª O Tribunal a quo violou o disposto nos arts. 483º, 493º, e 799º do C.C., bem como a Base XXXV/2 referida e o Autor não logrou provar os factos constitutivos do seu direito, como resulta da matéria de facto provada.
12ª Ao contrário do pressuposto na decisão recorrida, no caso dos autos não foi feita prova pelo Autor da verificação de um nexo de causalidade entre o dano – provocado pelo acidente – e a sua origem – o lençol de água – não se podendo desta forma condenar a recorrente, ainda que se presuma a existência de culpa e se conclua pela sua existência, a menos que se entenda que sobre as concessionárias recai não só uma presunção de culpa como também a contraprova de ausência de todos os elementos da responsabilidade civil, o que não se concebe em termos de justiça material.
O recorrido apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1º instância deu por provada a seguinte factualidade, acrescentando-se neste tribunal da Relação a sua proveniência da base instrutória:
A) No dia 1 de Outubro de 2003, nas proximidades do Km 160,450 da A-23, sentido Covilhã – Castelo Branco, ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo ligeiro de mercadorias da marca Seat e matrícula 44-66-LN.
B) O local apresenta-se como uma recta.
C) À frente do Autor e na sua retaguarda, em qualquer dos casos dentro do seu campo de visão, não circulava nenhum outro veículo.
D) O tempo estava chuvoso e na altura chovia.
E) Após momentos iniciais de pânico o A conduziu o Seat para fora da faixa de rodagem.
F) Algum tempo depois do acidente chegou ao local uma viatura da Scutvias, que estacionou na traseira do carro do Autor, e pouco depois uma viatura da Brigada de Trânsito que tomou conta da ocorrência.
G) A viatura do Autor e a viatura da Scutvias continuavam fora da faixa de rodagem.
H) O embate do Seat no separador central em cimento originou vários danos no veículo do A.
I) A R. é a sociedade a quem foi adjudicada pelo Estado Português a concessão da concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, exploração e conservação, em regime de portagens sem cobrança aos utilizadores, de determinados lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados na Beira Interior, abreviadamente designada por CONCESSÃO SCUT DA BEIRA INTERIOR (cf. Bases da Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 335-A/99, de 20 de Agosto).
J) Nos termos da Base XXXV/2 do Decreto-Lei n.º 335-A/99 de 20 de Agosto, diploma que aprovou as Bases da citada concessão, “a Concessionária responderá perante terceiros, nos termos gerais da lei, por quaisquer danos emergentes ou lucros cessantes resultantes de deficiências ou omissões na concepção, no projecto, na execução das obras de construção ou duplicação e na conservação das Auto-Estradas, devendo esta responsabilidade ser coberta por seguro nos termos da base LXVII”.
L) A R. celebrou com um conjunto de companhias seguradoras, lideradas pela Companhia de Seguros Fidelidade S.A., uma apólice de seguro de responsabilidade civil (Apólice n.º 87/40067) transferindo para essa companhia a responsabilidade pelo pagamento de indemnizações devidas a terceiros na sua qualidade de concessionária.
M) Integra-se na citada concessão o Lanço A-23 Covilhã/Castelo Branco (cf. Base II/2a) das referidas Bases no citado Decreto-Lei n.º 335-A/99).
N) Por contrato titulado pela apólice n.º 87/40067 a Sctuvias transferiu para a Companhia de Seguros Fidelidade Mundial a responsabilidade extracontratual que ao abrigo da lei civil seja imputável à mesma Sctuvias, na qualidade ou no exercício das actividades expressamente referidas nas respectivas condições Especiais e Particulares, nos precisos termos que constam do doc. junto aos autos a fls. 95 e ss., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos.
1. O acidente referido ocorreu cerca das 9 horas (R.Q.1º).
2. O veículo de marca Seat era conduzido pelo seu proprietário A... (R.Q.2º).
3. O A conduzia o Seat na faixa da direita no sentido Covilhã-Castelo Branco da A 23 (R.Q.3º).
4. Nas proximidades do Km 160,450 o Autor perdeu o domínio do Seat que entrou em “aquaplaning” ou seja, hidroplanagem (R.Q.6º).
5. Tal facto ocorreu em virtude de lençol de água que abrangia a faixa de rodagem onde o A conduzia o Seat (R.Q.7º).
6. O Seat passou a circular sobre a água (R.Q.8º).
7. Não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas, daí (R.Q.9º).
8. O veículo acabou por embater antes de se imobilizar (R.Q.10º).
9. Após o acidente dos autos a Brigada de Trânsito orientava a circulação e fazia sinais às viaturas para abrandarem, atento o “lençol” de água existente (R.Q.12º).
10. Após o acidente dos autos o elemento da Scutvias procedia à tentativa de desobstrução de uma caixa de águas pluviais existente nas imediações (R.Q.13º).
11. Dessa caixa foi retirado entulho que obstruía o normal escoamento de água (R.Q.14º) .
12. O funcionário entrou em contacto com a Sctuvias via telemóvel (R.Q.15º).
13. Os danos no Seat foram orçamentados em 7.226,00 Euros pelo concessionário Seat na Região que fez deslocar um seu técnico à cidade da Guarda, onde se encontrava o veículo (R.Q.16º).
14. O valor atrás referido peca por defeito já que só desmontando várias peças se poderia avaliar de outras necessidades para a reparação (R.Q.17º).
15. O Seat do A antes do acidente tinha como valor de mercado 7.500,00 Euros (R.Q.18º).
16. Atento este valor e o estimado para a reparação, o Autor preferiu vender a viatura como salvado pelo valor de 2.500,00 Euros (R.Q.19º).
17. Entre a data do acidente e a comunicação da Scutvias em que não assumia a responsabilidade, decorreram 36 dias (R.Q.20º).
18. Neste espaço de tempo, o Autor esteve privado do veículo (R.Q.21º).
19. O A foi obrigado a utilizar outros meios de transporte, nomeadamente outros veículos a gasolina, mais dispendiosos porque mais gastadores e porque o preço deste combustível é mais caro (R.Q.23º).
20. Só em Dezembro o Autor conseguiu comprar nova viatura a diesel (R.Q.24º).
21. Sofreu vários incómodos (R.Q.25º).
22. Sofreu prejuízo diário de 10 Euros (R.Q.26º).
23. No dia 29 de Setembro de 2003, o Centro Distrital de Operações de Socorro de Castelo Branco do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil enviou o Fax n.º 705/2003 dando conta das previsões meteorológicas realizadas pelo Instituto de Meteorologia, que apontavam para condições adversas a partir da madrugada do dia seguinte, 30 de Setembro de 2003 mencionando-se, inclusivamente, a possibilidade de “formação de lençóis de água” (R.Q.27º).
24. Em face das citadas previsões a R colocou pelo menos desde as 4 horas da manhã do dia 1 de Outubro de 2003 nos painéis alfanuméricos existentes na concessão a indicação “Piso molhado, modere a velocidade”(R.Q.30º).
31. Tal indicação constava dos painéis sitos próximo do nó da Benespera (PK 201) e Pinhel (PK 210) (R.Q.31º).
32. O A circulava no sentido Covilhã – Castelo Branco (R.Q.34º).
33. A Concessionária habitualmente realiza patrulhamento regular feito pelos seus serviços de Vigilância e pela Brigada de Trânsito da GNR, em serviço na rede de estradas (R.Q.35º).
34. Nem os serviços de vigilância da concessionária, nem a Brigada de Trânsito da GNR detectaram a existência de qualquer “lençol de água” no local em causa, no dia 1 de Outubro de 2003 até ao acidente ter ocorrido (R.Q.36º).
35. Nesse mesmo dia 1 de Outubro de 2003, pelas 09h.00 o vigilante motorista da R., Sr. Aurélio Martins, verificou a existência de um veículo parado na berma da estrada ao Km 160,450 tendo colocado, de imediato, a mensagem de “Perigo Abrande”(R.Q. 37º).
36. A Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana de Castelo Branco chegou ao local cerca das 9 horas (R.Q.39º).
37. Nesse dia e naquele sublanço não se registou mais nenhum acidente de viação, tendo sido a viatura do A. a única que se “despistou” (R.Q.40º).
38. O A escreveu enviou uma carta à 1.ª R datada de 27 de Outubro de 2003, e recebida a 30.10.2003, nos precisos termos que constam de fls. 356, cujo teor aqui se tem por reproduzido para os legais efeitos (R.Q.41º).

III- FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do C.P.C., diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem – salientando-se, no entanto, que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 664.
Considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, assentamos que, no caso dos autos, está em causa apreciar, fundamentalmente:
- da impugnação da matéria de facto;
- do contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e o consórcio SCUTVIAS – Auto Estradas da Beira Interior, S. A.;
- da natureza da responsabilidade civil da Ré Scutvias SA;
- pressupostos da responsabilidade civil.

2. Antes de mais, impõe-se rectificar a matéria de facto provada enunciada na sentença, sendo certo que aí se passou, por lapso, do nº 24 para o nº31.
Nos nºs 7 e 8 da matéria de facto constante da decisão, consignou-se essa factualidade de uma forma que não tem sentido, alterando-se a formulação que resulta quer dos quesitos, quer da respectiva resposta. Assim:
Quesito 9º:
“Não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas, daí,?”
Provado.
Quesito 10º:
“O veículo ter saído do “lençol” de àgua descontrolado indo embater no separador central de cimento da A-23 que separa as duas faixas do sentido Covilhã-Castelo Branco das duas faixas existentes em sentido contrário?”
Provado apenas que o veículo acabou por embater antes de se imobilizar.
Ou seja, há um elemento de ligação entre ambos os quesitos, que resulta da utilização da expressão “daí” e da concreta pontuação utilizada, que desaparece na enunciação que consta da sentença.
Trata-se de lapso evidente, que deve ser corrigido nos termos do art. 667º, de sorte que a factualidade em causa passa a enunciar-se da seguinte forma:
7. e 8.: “Não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas, daí que o veículo acabou por embater antes de se imobilizar (R.Q.9º e 10º).

3. Está em causa apreciar a resposta do tribunal de 1ª instância aos quesitos 6º, 7º e 9º da Base instrutória, sustentando a apelante que os depoimentos de algumas testemunhas, apreciados na sua globalidade e em conjunto com a restante prova, justificaria decisão diferente, isto é, que se respondesse negativamente a tais quesitos, sendo que se procedeu à gravação da prova produzida em audiência de julgamento. Atente-se na redacção dos quesitos:
“6º: Nas proximidades do Km. 160,450 o Autor perdeu o domínio do Seat que entrou em “aquaplaning” ou seja, hidroplanagem?
7º: Tal facto aconteceu em virtude de um lençol de àgua que abrangia a faixa de rodagem, nomeadamente o local onde o Autor conduzia o Seat, ou seja, na faixa da direita mais junto à linha longitudinal separadora das duas faixas de rodagem?
8º: O Seat passou a circular sobre a água?
9º: Não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas, daí?”
A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos especificados no art. 712º, a saber:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas;
c) Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
Por outro lado, dispõe o art. 690º-A :
“1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”.
Vejamos, então, em que termos se deve processar a reapreciação da prova produzida.
Na sequência do alargamento dos poderes de sindicância da decisão sobre a matéria de facto, por parte da Relação, tem a jurisprudência convergido em determinados parâmetros de intervenção.
Desde logo, e fazendo apelo ao preâmbulo do Dec. Lei 39/95 de 15 de Fevereiro Refere-se no preâmbulo: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”
, o recurso não pode visar a obtenção de um segundo julgamento sobre a matéria de facto, mas tão só obviar a erros ou incorrecções eventualmente cometidas pelo julgador.
Depois, não pode o tribunal da Relação pôr em causa regras basilares do nosso sistema jurídico, o princípio da livre apreciação da prova – arts. 396º do C.C. e 655º, nº1 – e o princípio da imediação, sendo inequívoco que o tribunal de 1ª instância encontra-se em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, acessível in www.dgsi.pt, podendo ler-se, neste:«De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)».

O que não obsta, necessariamente, à apreciação crítica da fundamentação da decisão de 1.ª instância, não bastando uma argumentação alicerçada em mero poder de autoridade.
*
Depois de se proceder à audição dos depoimentos constantes do registo- audio, entendemos que não se justifica qualquer alteração à resposta aos quesitos aludidos pela apelante, sendo que, no caso em apreço, a Sra. Juiz até fundamentou devidamente essa resposta, conjugando os vários depoimentos e analisando-os com recurso a regras de experiência comum, em suma, valorando, criticamente a prova produzida, como impõe o art.653º, nº2 e explicando o seu percurso de avaliação. Pode ler-se no despacho de fundamentação:
“A convicção do tribunal resultou de uma apreciação global da prova, analisada de acordo com as regras de experiência comum.
Nesta se incluem todos os documentos juntos aos autos, a percepção directa dos factos, com a inspecção ao local, e ainda o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento. Quanto a estas, salientam-se apenas, e criticamente, alguns aspectos já que, de outro modo correr-se-ia o risco de transcrição integral das declarações ouvidas, o que não se pretende.
A 1ª testemunha João Mateus Mendes agente aposentado da GNR –Brigada de Trânsito chegou ao local pouco tempo depois do acidente se ter verificado, mesmo depois de sujeito a contraditório, manteve sempre coerência, lógica e objectividade no depoimento. Disse, desde logo que viu a água na via, o sentido desta, a quantidade e ainda que um funcionário da Sctuvias desentupia uma caixa de escoamento de água, daí tendo retirado lixo que colocou em sacos. Referiu ainda que o veículo em que seguia com o seu colega quando chegou ao local e que respeitava os limites de velocidade “ainda dançou”. Também falou dos vestígios na zona, estado do veículo e sítio onde este se encontrava quando chegou.
Este depoimento foi confirmado nos pontos essenciais pelo colega que o acompanhava, Luís Ribeiro.
Dos vários aspectos destes depoimentos associados ao local onde a caixa se encontrava, sítio onde o veículo do A estava imobilizado e danos neste, entende o tribunal ter-se provado que o acidente ocorreu devido ao fenómeno de hidroplanagem.
Não se ignora que se trata de um fenómeno complexo. (…) ”.

Vejamos, no entanto, com mais pormenor, os depoimentos das testemunhas a que a apelante alude, tendo por referência as questões que esta suscitou.
É verdade que, como a recorrente indica, nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento presenciou o acidente.
Mas também temos por seguro que as testemunhas João Mateus Mendes e Luís Manuel Tomé Ribeiro, agentes da Brigada de Trânsito (a inquirição desta última testemunha foi ordenada oficiosamente pelo tribunal, e a testemunha foi inquirida sobre a “dinâmica do acidente”, segundo referiu a Sra. Juiz), pelo depoimento que prestaram, evidenciaram um conhecimento pormenorizado de todo o circunstancialismo que envolveu o acidente – nomeadamente, as condições e características da via, equipamentos (caixa de águas pluviais) e estado do tempo.
Tais conhecimentos prendem-se com a actuação concreta de cada um dos agentes quando estes chegaram ao local, pouco depois do acidente ter ocorrido e ainda com a actuação de um elemento da Ré Sctuvias, que aqueles presenciaram.
A propósito dos factos concretamente percepcionados pelas testemunhas, após o acidente e no local onde o mesmo ocorreu, é particularmente sugestiva a resposta de um dos agentes a perguntas do mandatário da Ré. À pergunta “O senhor assistiu ao acidente?”, a testemunha João Mateus Mendes respondeu “Não vi o acidente acontecer”. E como a testemunha continuasse a resposta fazendo ligação imediata entre o “carro” e a “água” na via, o Sr. Advogado atalha nos seguintes termos:
A Sra. Testemunha testemunha aquilo que viu, não aquilo que não viu. O Sr., quando chegou ao local, viu o quê?, Viu, descreva-nos o que o Sr. viu, viu um carro na berma, foi isso?”
A resposta da testemunha começa assim:
Vi um carro acidentado e vi a água a escorrer” (…). O mesmo se diga relativamente à testemunha Luís Manuel Tomé Ribeiro. Refira-se que enquanto a 1ª testemunha (João Mendes) atendeu à ocorrência alusiva ao acidente dos autos, o Luís Ribeiro, no início, afastou-se uns metros do local tendo a preocupação de orientar a circulação de outros veículos – “a minha preocupação na altura foi vir cá mais para trás para fazer parar o trânsito” e “o meu colega é que ficou a tomar notas do acidente” . No entanto, a testemunha deu conta do que se passava e teve um depoimento perfeitamente similar ao seu colega, referindo por exemplo, quando inquirido pela Sra. Juiz, sobre “o que viram”, que “sei que chovia bastante, inclusivamente eu ia-me despistando a chegar ao local. Apanhámos água e eu andei ali a patinar», salientando que “havia muita água” e que “havia corrente de água”.
Efectivamente, as testemunhas aludidas não presenciaram o acidente, mas tiveram uma percepção nítida dos termos como o acidente ocorreu, apreenderam-no, e transmitiram exactamente isso em tribunal.
Salienta-se que estamos perante depoimentos pouco usuais, pela riqueza de elementos fornecidos pelas testemunhas sabido, como é, que na maioria dos casos os agentes de autoridade pouco acrescentam aos elementos que constam da participação, limitando-se muitas vezes a remeter para a mesma.
Aliás, os elementos carreados por tais testemunhas são muito mais abrangentes do que se podia inferir da participação elaborada, sendo que o mandatário da Ré foi particularmente incisivo nesse ponto. Ainda inquirindo a testemunha João Mateus Mendes o mandatário da Ré confronta a testemunha, por várias vezes, com o facto desta não ter consignado no auto qualquer referência à água no pavimento e à caixa entupida –“o senhor não assinalou nada disso no seu relatório! É porque não viu!” – mas a testemunha manteve o depoimento e “rematou”, de forma absolutamente peremptória, que “Mas que havia, havia, pronto, que havia grande quantidade de água no pavimento, vi que ela corria lá na caixa”, “mas não me recordo porque não pus no auto”. Atente-se ao diálogo subsequente:
Advogado: É pena, é pena, é pena é pena; Muito bem, outra coisa: estava a chover muito intensamente quando o senhor chegou ao local?
Testemunha: Estava a chover, estava, intensamente.
Advogado: Diga-me uma coisa, o senhor também passou sobre este sítio, porque é que não partiu o carro todo? Porque é que não bateu contra o separador central? Será que é porque os agentes da GNR reduzem a velocidade quando está mau tempo?
Testemunha: Talvez, talvez.
Advogado: Talvez seja isso (…) É que o senhor não bateu e passou no mesmo sítio, minutos depois!
Testemunha: Foi o meu companheiro que conseguiu dominar o carro (a testemunha alude a um episódio ocorrido com o carro patrulha, conduzido pelo colega, que afirmou que ao chegar ao local do acidente, “vinha a cerca de 80/90 Km/hora e ainda me assustei com a água”, referindo ainda que “o carro ia entrando em despiste, ia perdendo o controle do carro, mas a velocidade não era muita e conseguimos evitar o embate”). Ora, os factos atestados por agente de autoridade (Brigada de Trânsito da GNR), no exercício das suas funções e com base na sua percepção, relevam para a formação da convicção do julgador, ainda que não constem do “auto de participação de acidente de viação” elaborado após a ocorrência do evento.
Ou seja, a análise conjugada do depoimento destas testemunhas, no contexto dos demais elementos de prova – cfr., por exemplo, os elementos consignados em sede de inspecção ao local e com referência às declarações da testemunha João Mateus, nomeadamente que “o lençol de água prolongava-se desde a caixa sumidouro cerca de 72,70 metros no sentido Castelo Branco Covilhã”, quando o veículo circulava, exactamente, no sentido Covilhã/Castelo Branco Esta testemunha foi inicialmente inquirida por teleconferência e, novamente, agora já no tribunal a quo, após a diligência de inspecção ao local. –, à luz da experiência comum permitem que, com razoabilidade, se possa considerar que o acidente se deu nos moldes que decorrem da resposta dada aos quesitos 6º, 7º e 9º, isto é, que o Autor perdeu o domínio do veículo que entrou em “aquaplaning”, facto que ocorreu em virtude do lençol de água que abrangia a via por onde seguia, “passando o Seat a circular sobre a água”, não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas.
A este propósito a Sra. Juiz refere, no despacho de fundamentação da resposta aos quesitos o seguinte:
O autor provou um dos elementos sempre essencial à hidroplanagem: o lençol de água na via. Se não provou a velocidade a que seguia ou o estado dos pneus pode-se logicamente concluir que a água foi a causa”.
A questão, parece-nos, não é tanto de “conclusão” “lógica” mas, fundamentalmente, de integrar os elementos probatórios recolhidos à luz do que, na normalidade do nosso quotidiano, podemos ter como conhecimentos adquiridos em matérias que se prendem com a circulação rodoviária, de sorte que, mesmo sem informação sobre a concreta velocidade a que seguia o veículo, ou sobre o estado dos pneus, possamos chegar à conclusão que o acidente se explica por um fenómeno de “aquaplaning”, como o Autor havia alegado.
E parece-nos evidente que não obsta a essa conclusão a circunstância de, naquele sublanço, não se ter despistado qualquer veículo senão o do Autor, como se provou (R.Q. 37º) e até, porventura, de aí terem passado 500 veículos no período de hora e meia antes do acidente, como referiu a testemunha José Manuel Garcia Gil Conde. A testemunha José Manuel Conde é engenheiro civil e tem um vínculo contratual com uma empresa accionista da Ré Sctuvias e que “cedeu” o trabalhador à Ré, exercendo a testemunha funções como director geral e responsável pela área de exploração, trabalhando em Lisboa. A testemunha aludiu que “neste caso concreto verifiquei, soube que tinha havido o acidente e posteriormente tive conhecimento da reclamação do proprietário”.
Basta atentarmos que também se provou que a Ré Scutvias, habitualmente, realiza patrulhamento regular feito pelos seus serviços de Vigilância e pela Brigada de Trânsito da GNR, em serviço na rede de estradas (R.Q.33º) e que “nem os serviços de vigilância da concessionária, nem a Brigada de Trânsito da GNR detectaram a existência de qualquer “lençol de água” no local em causa, no dia 1 de Outubro de 2003 até ao acidente ter ocorrido (R.Q.34º). No entanto, é um dado perfeitamente adquirido e decorre da prova produzida, nomeadamente do depoimento dos dois agentes aludidos que, na altura do acidente, o pavimento se encontrava nas condições referidas, com um lençol de água que abrangia a faixa de rodagem onde o A conduzia o Seat.
A Ré sustenta ainda que, para se concluir pela ocorrência de um fenómeno de “aquaplaning”, seria necessário reunir elementos alusivos à velocidade a que o veículo circulava e estado dos pneus, porquanto só esses três factores (velocidade do carro, estado do piso dos pneus e profundidade da água) concorrem para a produção desse fenómeno. Assim, diz a Ré, não se provando qualquer facto alusivo a dois desses elementos, não podia a Sra. Juiz ter concluído pela verificação desse evento. Essa matéria foi expressamente abordada no despacho de fundamentação, acrescentando-se, apenas, o seguinte.
Seguindo o raciocínio da Ré e com base em informação colhida no site por si indicado, temos que quanto maior for a velocidade do veículo e pior o estado do piso dos pneus (os pneus “carecas” “são extremamente perigosos em situações de chuva, dado que a água funciona como lubrificante da borracha”, refere-se aí) mais facilmente pode ocorrer o fenómeno de “aquaplaning”.
Ora, é absolutamente evidente que não seria o Autor a articular os factos em causa, colocando-se a questão noutra sede.
Efectivamente, a Ré concluiu, na contestação, que e o Autor circulava com “velocidade excessiva”, que o acidente só se deu por imperícia do Autor, nomeadamente porque este, tendo condições para ver com antecedência o “eventual lençol de água”, não tomou as medidas necessárias para evitar o acidente, designadamente reduzindo a velocidade – cfr. os arts. 57º a 60º –, matéria que se prende com a apreciação jurídica da causa uma vez que, a nível factual, a Ré não indicou, em concreto, a velocidade a que o Autor seguia, nem qualquer outro elemento pertinente susceptível de ser levado à base instrutória.
Quanto à alusão que a Ré faz aos termos como o advogado do Autor “conduziu” o interrogatório da 1ª testemunha, alegando a recorrente que uma das respostas da testemunha “foi condicionada pelo modo como a questão foi formulada e que assenta em pressupostos de facto inexistentes”, a apelante não tem razão, o que ressalta do contexto em que as perguntas do mandatário do Autor foram formuladas e das respostas da testemunha. Anteriormente à pergunta indicada pelo apelante o mandatário do Autor inquiriu a testemunha ao quesito 6º, limitando-se a enunciar a pergunta consubstanciada no quesito e acrescentar “o que é que nos pode dizer sobre esta questão?” tendo a testemunha respondido: “Quanto a essa questão recorda-me na proximidade onde ocorreu o acidente havia um aqueduto de águas pluviais onde estava entupido e a água corria sobre a estrada, ou seja, corria da esquerda para a direita e havia grande quantidade de água no pavimento, fazia hidroplanagem”. Ou seja, não foi a pergunta do mandatário do Autor, indicada pela recorrente, que sugeriu a resposta da testemunha mas as respostas da testemunha que motivaram depois a aludida pergunta.

Por último, relativamente à resposta ao quesito 9º – “não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas daí”– para além do que já se deixou exposto, resta apenas salientar que se trata de mera especificação do fenómeno de “aquaplaning” aludido na resposta ao quesito 6º.
Em conclusão, não pode este Tribunal da Relação deixar de analisar criticamente, e numa perspectiva de razoabilidade, toda a prova produzida, nada havendo que apontar à ponderação feita na 1ª instância, relativamente aos termos em que apreciou os vários elementos probatórios.
Improcedem, pois, as conclusões de recurso.

4. O troço da via em que ocorreu o acidente – nas proximidades do Km 160,450 da A-23, – foi objecto de contrato de concessão celebrado entre o Estado Português e a Ré Scutvias (alusiva à concepção, projecto, construção, financiamento, exploração e conservação de lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, designada por Beira Interior), constando a respectiva regulamentação do anexo ao Dec. 335-A/99, publicado no DR nº 194/99 de 20 de Agosto, contrato em vigor à data do acidente (cfr. as Bases IX e LXXXIV).
Impõe-se, pois, breve referência ao regime que resulta do contrato de concessão, parecendo-nos evidente que algumas das estipulações se projectam muito para além da estrita relação estabelecida entre o Estado e a concessionária, assumindo “carácter normativo”. Pode ler-se no Ac. STJ de 22/06/2004 (Relator: Cons. Afonso Correia) acessível in www.dgsi.pt : “Ou seja: embora o contrato de concessão tenha como Partes Contratantes o Estado Concedente a Brisa Concessionária, não pode esquecer-se o carácter normativo de algumas das Bases da Concessão; essas Bases não são simples cláusulas contratuais que obriguem, apenas, os Contratantes. Quis o Legislador que tais Bases tivessem eficácia externa relativamente às partes no contrato. E por isso as integrou em Decreto Lei de que fazem parte integrante”. Salienta-se que no caso em análise se tratava de contrato regulado em anexo ao Dec. Lei 294/97 de 24/10, sendo no entanto notória a similitude entre as Bases aí fixadas e as que ora estão em causa.
Relevam, então, essencialmente, para apreciação da responsabilidade da Ré concessionária, as seguintes Bases:
Base XXXV (Responsabilidade da Concessionária pela qualidade das Auto-Estradas)
1 — A Concessionária garante ao Concedente a qualidade da concepção e do projecto, bem como da execução das obras de construção e conservação dos Lanços previstos no n.o 1 da base II, e duplicação e conservação dos Lanços referidos no nº 2 da base II, bem como a qualidade de conservação dos Lanços previstos no nº 3 da base II, responsabilizando-se pela sua durabilidade, em plenas condições de funcionamento e operacionalidade ao longo de todo o período da Concessão.
2 — A Concessionária responderá perante o Concedente e perante terceiros, nos termos gerais da lei, por quaisquer danos emergentes ou lucros cessantes resultants de deficiências ou omissões na concepção, no projecto, na execução das obras de construção ou duplicação e na conservação das Auto-Estradas, devendo esta responsabilidade ser coberta por seguro nos termos da base LXVII.
Base XLIII (Manutenção das Auto-Estradas)
1 — A Concessionária deverá manter as Auto-Estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam.
No Capítulo XIII, em sede de “Responsabilidade extracontratual perante terceiros”, dispõe a Base LXXI (Pela culpa e pelo risco):
A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito.
Base LXXIV (Força maior)
1 — Consideram-se unicamente casos de força maior, com as consequências fixadas nos números seguintes e sem prejuízo do disposto no nº. 3 da base LXXIV, os acontecimentos imprevisíveis e irresistíveis, exteriores à Concessionária e cujos efeitos se produzem independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da mesma.
2 — Constituem nomeadamente casos de força maior actos de guerra, hostilidades ou invasão, tumultos, rebelião ou terrorismo, epidemias, radiações atómicas, fogo, explosão, raio, graves inundações, ciclones, tremores de terra e outros cataclismos naturais que directamente afectem as actividades compreendidas na Concessão.
Salientam-se, ainda, as seguintes bases:
Quanto às condições específicas do tráfego nas vias objecto de concessão, com relevância quer na esfera do utente, da via quer na esfera da concessionária, temos:
Base LI (Manutenção e Disciplina de Tráfego)
1 — A circulação pelas Auto-Estradas obedecerá ao determinado no Código da Estrada e mais disposições legais ou regulamentares aplicáveis.
2 — A Concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente em boas condições de segurança e comodidade a circulação nas Auto-Estradas.
3 — A Concessionária deverá estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação de alerta ao utente, no âmbito da rede concessionada, em articulação com as acções a levar a cabo na restante rede nacional, designadamente com o projecto CIRPOR.
Base LII (Assistência aos Utentes)
1 — A Concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes das Auto-Estradas, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação, nomeadamente no que respeita à sua fiscalização e à prevenção do acidente.
2 — A assistência a prestar aos utentes nos termos do número antecedente consiste no auxílio sanitário e mecânico, devendo a Concessionária instalar para o efeito uma rede de telecomunicações ao longo de todo o traçado das Auto-Estradas, organizar um serviço destinado a chamar do exterior os meios de socorro sanitário em caso de acidente e a promover a prestação de assistência mecânica.
Em matérias que se prendem com a velocidade de circulação na via, releva a Base XXVIII (Critérios de projecto):
1 — Na elaboração dos projectos das Auto-Estradas devem respeitar-se as características técnicas definidas nas normas de projecto do IEP tendo em conta a velocidade base de 120 km/h sem prejuízo do disposto no número seguinte.
2 — Em zonas particularmente difíceis, por motivos de ordem topográfica ou urbanística, poderá ser adoptada velocidade base inferior e características técnicas inferiores às indicadas, mediante proposta da Concessionária devidamente fundamentada.

5. A sentença recorrida faz correcta enunciação das várias posições que se conhecem relativamente à “velha” querela sobre a natureza da responsabilidade das concessionárias, quando demandadas no âmbito de acções emergentes de acidente de viação ocorridos em vias concessionadas (auto-estradas com portagens, ou vias sem custos para os utilizadores, vulgo Scuts, como é o caso), pelo que nos abstemos de repetir a argumentação aí exposta. Aliás, para esse efeito, a Sra. Juiz socorreu-se da exposição feita no Acordão desta Relação de Coimbra de 10/01/2006, proferido no processo 2554/05, em que foi Relator o Sr. Des. Jorge Arcanjo, para o qual remetemos. Acessível in www.dgsi.pt. Na sentença refere-se “citando recente Ac. TRC” e alude-se ao local de consulta mas, certamente por lapso, não se identificou tal acordão, sendo no entanto evidente tratar-se desse aresto porquanto a Sra. Juiz o repetiu, ipsis verbis, desde a pág. 392, dos autos, in fine, desde “A pedra de toque, como se verá, situa-se sobretudo ao nível da culpa, (…)” até à pág. 397, in fine.
Sobre esta questão v.d. a anotação do Prof. Sinde Monteiro ao Ac. do STJ de 12/11/96, in RLJ, 131º/41 e ss e 132º/29 e ss e o estudo de Armando Triunfante, Responsabilidade Civil das Concessionárias das Auto Estradas, revista Direito e Justiça, vol. XV, t.1, pág, 45 e ss. Na jurisprudência, v.d. os Acs. do STJ de 14/10/2004, proferido no proc. 04B2885 (Relator: Oliveira Barros) e vasta jurisprudência aí indicada e de 20/05/2003, proferido no proc.03A1296, (Relator: Ponce de Leão), acessíveis www.dgsi.pt.

Como se considerou nesse acórdão, temos para nós como mais correcta a tese segundo a qual a responsabilidade da empresa concessionária da exploração da auto-estrada perante o utente dessa via é de natureza extra contratual, impendendo sobre a concessionária a presunção legal de culpa a que alude o art. 493º, nº1 do C.C., tendo por base uma concepção de “coisa imóvel”, em casos como os dos autos, como abrangendo a auto-estrada no seu conjunto, ou seja, incluindo não só o piso (faixas de rodagem), como todos os equipamentos envolventes e que se relacionam com a mesma, assegurando a concretização do fim a que se destina (vedações, placas de sinalização, rails de protecção, equipamentos de drenagem de águas …).
Impondo as bases da concessão que a concessionária mantenha “as Auto-Estradas em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam”, temos que se aplica, então, a presunção de culpa in vigilando estabelecida no art. 493º, nº1 do C.C., sendo que tem sentido, em termos de direito probatório, fazer impender o ónus da prova da ausência de culpa sobre a única entidade que, verdadeiramente, tem o domínio da coisa e que tem os conhecimentos e meios técnicos e humanos para controlar a fonte de perigo. Essa é, aliás, a solução que, maioritariamente, a jurisprudência do STA vem adoptando relativamente à responsabilidade civil extracontratual dos municípios por acto ilícito de gestão pública, em casos de acidente ocorridos em estradas municipais. Como se referiu no Ac. do STA de 1996.05.16, in AP.DR de 1998.1023, p. 3697, “(…) estas razões da inversão do ónus da prova perante danos causados por coisas, em qualquer das vertentes que justificam a presunção no direito civil, estão igualmente presentes quando se trata de tornar efectiva a responsabilidade da Administração por actos de gestão pública.
Com efeito, também relativamente a danos que radiquem em actividades de gestão pública, tanto ou mais do que aqueles que provêm de actividades de gestão privada, a tarefa de demonstração do incumprimento culposo dos deveres de organização e de actuação necessários para prevenir o dano por coisas se apresenta como excessivamente onerosa para o lesado. Trata-se de demonstrar factos negativos – a inobservância do dever de adequada, continuada e sistemática fiscalização técnica – que, por via de regra, não estão numa relação de simultaneidade com o evento e são relativos ao modo de organização ou disciplina de acção dos serviços e, portanto, sem a inerente visibilidade e acessibilidade de prova para o particular lesado. Por tudo isto, o lesado teria muita dificuldade em identificar e provar em juízo a conduta omissiva.
Ao invés, o regime da presunção de culpa nada tem de violento, injusto, ou desrazoavelmente oneroso para os entes públicos, uma vez que o serviço público obrigado a vigilância pode ilidir a presunção demonstrando quer a intercorrência de caso fortuito ou de força maior, quer a adopção das providências para uma adequada, continuada e sistemática fiscalização do estado e comportamento da coisa em ordem a evitar o evento danoso. Trata-se de factos positivos, estes últimos inerentes à organização e desenvolvimento da actividade do ente público, cuja demonstração em juízo está ao seu alcance em regra por meios probatórios extraídos dos seus próprios serviços”.
Neste sentido, estando em causa acidentes ocorridos em vias municipais, cfr os seguintes Acs. do STA, todos acessíveis in www.dgsi.pt:
- de 22/03/2007, 01161/06, Relator Adérito Santos: estava em causa uma camada de gelo que cobria a estrada, formado na sequência de água proveniente duma rotura numa conduta existente na estrada municipal;
- de 05/07/2007, 0408/07, Relator Madeira dos Santos: derrame de águas residuais, originado num seu colector de saneamento, acumulando-se as águas na estrada com consequente despiste do veículo;
- de 12/07/2006, 01240/05, Relator Pais Borges: omissão de sinalização de perigo, por inundação da via, na sequência do que o veículo ficou imobilizado devido à enorne quantidade de água que cobria a rua;
- de 15/03/2005, 036/04, Relator Políbio Henriques: veículo que se despistou por causa de lençol de água, não sinalizado, existente em estrada municipal;
- de 03/11/2004, 028/03, Relator Pais Borges: formação de lençol de água na via, proveniente do deficiente funcionamento dos borrifadores do sistema de rega do jardim municipal, e determinante do acidente;
- de 02/10/2003, 0135/03 Relator Freitas de Carvalho: lençol de água na via que veio a causar o acidente, não tendo a entidade pública provado que o estado da estrada em que ocorreu o acidente era vigiado regularmente e acompanhado pelos serviços e que só uma anormal e imprevisível chuvada ou qualquer outro facto estranho ao cumprimento dos seus deveres é que provocou a formação do lençol de água.

Sem prejuízo, admite-se que o lesado possa optar por demandar a concessionária com base em responsabilidade contratual, invocando estarmos, no caso das SCUTs, perante contrato com eficácia de protecção para terceiros, tendo em conta o disposto na Base XXXVI do contrato de concessão, valendo, então, a presunção de culpa a que alude o art. 799º do C.C.
Nessa perspectiva, tem-se considerado que, verificando-se o concurso cumulativo entre responsabilidade contratual e extra contratual, sempre o lesado podia escolher, livremente, o fundamento por que pretende fazer valer o direito de indemnização.
Concordamos, pois, com a posição assumida pelo tribunal de 1ª instância, que não merece reparo.

6. Por último, a apelante considera que o tribunal de 1ª instância se “conformou” com a simples existência de um lençol de água para considerar como provado que a hidroplanagem foi a causa do acidente, com o que a apelante discorda, referindo, ainda que “não foi feita prova, pelo Autor, da verificação do nexo de causalidade entre o dano – provocado pelo acidente – e a sua origem – o lençol de água – não se podendo desta forma condenar a recorrente, ainda que se presuma a existência de culpa e se conclua pela sua existência, a menos que se entenda que sobre as concessionárias recai não só uma presunção de culpa como também a contraprova de ausência de todos os elementos da responsabilidade civil, o que não se concebe em termos de justiça material”.
Em face da factualidade assente, parece-nos que a apelante não tem razão.
Não se discute que compete ao lesado a alegação e prova dos elementos alusivos aos pressupostos da responsabilidade civil – relativos ao facto, à ilicitude, à culpa, ao dano e nexo de causalidade – sendo que, se o lesado pretende fazer funcionar uma presunção de culpa, como é o caso, então compete-lhe alegar e provar os factos que constituem a base da presunção (art. 342º, nº1 e 344º do C.C.).
Tendo em conta o disposto no art. 493º, nº1 do C.C., em sede de culpa, impunha-se ao Autor provar que a Ré Scutvias tinha em seu poder a coisa imóvel (com o sentido amplo a que atrás aludimos), com a obrigação de a vigiar e que foi essa coisa que, dando azo ao acidente, provocou danos ao Autor.
Na hipótese em apreço, provou-se que o veículo do Autor, quando circulava na A-23, nas proximidades do Km. 160,450, entrou em hidroplanagem, facto que ocorreu em virtude de lençol de água que abrangia a faixa de rodagem por onde seguia, de sorte que o Seat passou a circular sobre a água, não tendo piso seguro sob nenhuma das rodas e que o veículo acabou por embater antes de se imobilizar, sendo que o embate se deu no separador central de cimento, originando vários danos no veículo (cfr. as respostas aos quesitos 3º, 6º, 7º, 8º, 9º e 10º, e a al) H)
Mais se provou que, na altura do acidente, chovia e, após o acidente, a Brigada de Trânsito orientava a circulação e fazia sinais às viaturas para abrandarem, atento o “lençol” de água existente e que o elemento da Scutvias procedia à tentativa de desobstrução de uma caixa de águas pluviais existente nas imediações, caixa de onde foi retirado entulho que obstruía o normal escoamento de água ( respostas aos quesitos 12º a 14º).
Perante esta factualidade não pode deixar de concluir-se que se verificam todos os pressupostos da responsabilidade civil supra indicados, incluindo o elemento alusivo à culpa da concessionária demandada.
Assim, parece-nos dever associar-se o “lençol de água” existente na via ao facto de, “nas imediações” – e com referência ao local do acidente, que, saliente-se, se verificou “nas proximidades do Km. 160,450” – se encontrar um equipamento que, afinal, não cumpria as funções a que se destinava, ou seja, o normal escoamento de águas pluviais. Ou seja, os elementos apurados permitem concluir, com razoabilidade, que a formação do lençol de água na via se ficou a dever a um deficiente escoamento de águas pluviais, em virtude do entupimento da caixa aludida e não, apenas, que a água naturalmente se acumulou na via, porque estava a chover. Aliás, o traçado e a inclinação da via, bem como as características do piso são estudados e concebidos para evitar, nomeadamente, a acumulação de água na faixa de rodagem.
Ora, competia à Ré assegurar a manutenção/limpeza desse equipamento, tanto assim que a Ré invocou que, face aos avisos do Centro Distrital de Operações de Socorro de Castelo Branco do Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, dando conta das previsões do Instituto de Metereologia (cfr. resposta positiva ao quesito 27º), “instruiu as suas equipas de vigilância no sentido de reforçarem a verificação da limpeza de caixas/sumidouros”, de tal sorte que, “nos casos em que se verificou que tais caixas/sumidouros se encontravam sujas ou obstruídas com detritos/lixos, foram as mesmas limpas”, factos estes que, levados aos quesitos 28º e 29º, mereceram resposta negativa.
Acrescente-se ainda que a Ré também não logrou provar a factualidade que invocou e que foi levada aos quesitos 32º a 34º, que mereceram resposta negativa (quesitos 32º e 33º) e restritiva (quesito 34º) – fundamentalmente, a Ré punha em causa que essa “caixa/sumidouro” estivesse relacionada com a formação do lençol de água. Tais quesitos têm a seguinte redacção:
32º: A caixa/sumidouro referida na p.i. e localizada ao Km. 160,350 dista cerca de 100 metros do local do embate do veículo do A e em plano inclinado descendente?
33º: Na verdade, a viatura do A embateu 100 m antes da caixa/sumidouro?
34º: O A circulava no sentido Covilhã –Castelo Branco e em plano inclinado descendente?
Relativamente ao requisito do nexo de causalidade entre o facto e o dano, verifica-se também esse elemento porquanto está provado que foi na sequência dos factos acima descritos que o autor perdeu o domínio do veículo, que entrou em “aquaplaning” e embateu no separador central, o que originou danos.
E quanto à actuação do autor, condutor do veículo e único interveniente no acidente?
É possível considerar, como a Ré pretende, que o autor agiu com culpa, dando causa ao acidente?
Ponderando o critério que decorre do disposto no art. 487º, nº2 do C.C. a culpa afere-se, em abstracto, ponderando o homem médio, colocado no estrito condicionalismo de tempo, modo e lugar em que se verificou o evento. Conclui-se por uma actuação culposa quando é possível formular um juízo de valoração negativa relativamente à actuação do condutor, ou seja, quando, nas circunstâncias concretas em que o acidente ocorreu, se considera que o condutor podia e devia agir de outro modo.
No caso em apreço, provou-se que na altura do acidente chovia, mas não se sabe com que intensidade. Aliás, a factualidade alusiva ao estado do tempo nem sequer foi levada à base instrutória, concordando as partes, tão só, que na altura do acidente chovia, como decorre da alínea D) dos factos assentes.
Também não se apurou a velocidade a que seguia o veículo. No entanto, considerando que a Ré não alegou qualquer facto alusivo à velocidade a que o veículo concretamente seguia, e que o próprio Autor invocou que circulava a cerca de 90 a 100 Km/hora, parece que podemos afirmar que pelo menos a essa velocidade seguiria (pese embora a resposta negativa ao quesito 5º, quesito correspondente a facto alegado pelo autor).
Sabe-se que a auto-estrada, no local, é uma recta e que na altura do acidente, no sentido em que circulava o Autor, não circulava qualquer outro veículo, nem à retaguarda nem à sua frente.
A Ré também não alegou nem provou a existência de qualquer tipo de sinalização indicadora de velocidade inferior à permitida nas auto-estradas (120 Km/hora).
Neste contexto, entendo que os elementos constantes do processo são insuficientes para se concluir que o autor agiu descuidadamente ou praticou uma condução desadequada. A situação é diferente, pois, da que foi objecto de análise no Ac. do STJ de 28/05/2002, proferido no processo 02A185, (Relator: Afonso de Melo), acessível in www.dgsi.pt., assim sumariado: “I - A derrapagem, porque não é causa estranha ao funcionamento do veículo - é inerente ao risco do seu funcionamento e circulação, não constitui caso de força maior.
II - Há culpa do condutor que ciente da perigosidade da sua condução atendendo às condições atmosféricas, chovendo intensamente e podendo prever e acumulação de água na via e o efeito do aquaplaning relacionado com a velocidade, não adequou a velocidade às circunstâncias”.



Concluindo, constatando-se a existência de um lençol de água na via, devido a um deficiente escoamento das águas pluviais (motivado pelo entupimento de uma “caixa sumidouro” aí existente) e provando-se que esse facto determinou o despiste do veículo, que entrou em fenómeno de “aquaplanig”, com o consequente embate – e na ausência de elementos que apontem que o condutor, de alguma forma, contribuiu para a produção do acidente –, a empresa concessionária é responsável pela indemnização a atribuir ao lesado, verificados que estejam os demais elementos de responsabilidade, como acontece. Em situação que nos parece perfeitamente similar à dos autos cfr. o Ac. desta R.C. de 25/01/2006, proferido no processo 2649/05, acessível in www.dgsi.pt. Pode aí ler-.se: “ (…) Delimitado o recurso pelas conclusões da alegação do recorrente (…) a questão essencial que se nos coloca é a de saber se o despiste ocorreu em consequência e numa relação de causa e efeito da água que cobria a estrada e se por isso a C... é responsável.
A sentença recorrida, partindo do pressuposto que a C... assume, como concessionária, deveres legais que lhe impõem manter as auto-estradas em condições técnicas de escoamento que impeçam a formação de lençóis de água, entende que, neste caso, não ocorreu uma relação de causa e efeito entre o despiste e o lençol de água que cobria a via, porque não ficou provado ter impedido que as rodas do veículo efectuassem a sua rotação normal e retirasse toda a aderência do veículo ao asfalto e ficou indiciada a condução com velocidade inadequada, uma vez que chovia e no despiste o veículo ainda percorreu 100 metros até se imobilizar contra uma árvore. E conclui este raciocínio com a afirmação da inexistência do nexo causal, por um lado, e pela elisão da culpa da ré C..., por outro.
A apelante, por seu turno, afirma que basta a presença do lençol de água na estrada e o sequente despiste para se concluir pelo nexo de causalidade. Como é então?
Os factos provados não nos revelam nem a quantidade de precipitação, nem a velocidade do veículo para que possamos ter uma ideia da inadequação desta às condições ambientais e da própria via, no momento, e a distância percorrida depois do despiste, inserida como está na dinâmica do acidente, não indicia só por si a inadequação da velocidade. De modo que apenas ficamos a saber que o veículo se despistou quando entrou no lençol de água. E chamamos “lençol de água” à realidade descrita no ponto 11 dos factos provados “água que cobria toda a faixa de rodagem”.
E se o veículo se despistou quando entrou no lençol de água, parece sensato admitir que se não despistaria se não tivesse entrado no lençol de água. Logo, o lençol de água foi causa adequada ao despiste. Há, por isso mesmo, nexo de causalidade.
Face às obrigações assumidas pela concessionária C..., competia-lhe ter alegado e provado que cumpriu as exigências técnicas de construção da via com vista ao escoamento perfeito das águas pluviais para evitar a formação de lençóis de água e que, não obstante isso, ele se formou, ou então ter alegado e provado que a causa do despiste não foi a presença do lençol de água, ou que o despiste ocorreria mesmo que não houvesse lençol de água”.
Vd. ainda, também, em casos similares e em que se decidiu da mesma forma, os Acs .R.C. de 05/11/2000, in C.J. Ano XXVII-2002, T.V, pág.14 e de 1/10/2002, C.J., T.IV, pág. 15.

Por último, não pode deixar de se estranhar a referência da apelante ao Ac. desta Relação de Coimbra de 13/01/2004, quando alude a que a jurisprudência tem entendido, conforme mencionado nesse aresto que “sempre que ocorra um acidente na auto-estrada originado por uma falha objectiva das específicas condições de segurança, a concessionária encarregada da vigilância e da permanente eficácia daquelas condições, responde pelos danos que estejam numa relação de causa e efeito com essa falha, salvo se se provar que não houve culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”, uma vez que não está minimamente em causa tal orientação. Acessível in www.dgsi.pt, sendo relator o Des. Coelho de Matos.

Improcedem, pois, as conclusões de recurso.
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Conclusões:
I- Os factos atestados por agente de autoridade (Brigada de Trânsito da GNR), no exercício das suas funções e com base na sua percepção, relevam para a formação da convicção do julgador, ainda que não constem do “auto de participação de acidente de viação” elaborado após a ocorrência do evento.
II- A responsabilidade da empresa concessionária da exploração da auto-estrada perante o utente dessa via é de natureza extra contratual, impendendo sobre a concessionária a presunção legal de culpa a que alude o art. 493º, nº1 do C.C., tendo por base uma concepção de “coisa imóvel” como abrangendo a auto-estrada no seu conjunto, ou seja, incluindo não só o piso (faixas de rodagem), como todos os equipamentos envolventes e que se relacionam com a mesma, assegurando a concretização do fim a que se destina (vedações, placas de sinalização, rails de protecção, equipamentos de drenagem de águas), uma vez que impende sobre si o dever de manter a auto-estrada em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização; Justifica-se, ainda, em termos de direito probatório, fazer impender o ónus da prova da ausência de culpa sobre a única entidade que, verdadeiramente, tem o domínio da coisa e que tem os conhecimentos e meios técnicos e humanos para controlar a fonte de perigo.
III- Constatando-se a existência de um lençol de água na via, devido a um deficiente escoamento das águas pluviais (motivado pelo entupimento de uma “caixa sumidouro” aí existente) e provando-se que esse facto determinou o despiste do veículo, que entrou em fenómeno de “aquaplanig”, com o consequente embate – e na ausência de elementos que apontem que o condutor, de alguma forma, contribuiu para a produção do acidente –, a empresa concessionária é responsável pela indemnização a atribuir ao lesado, verificados que estejam os demais elementos de responsabilidade.
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Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.