Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
777/08.5TTAVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
JUSTIFICAÇÃO DA FALTA
ATESTADO MÉDICO
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 10/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 119º, Nº1, 121º, ALS. A) A E) E G), DO CÓDIGO DE TRABALHO
Sumário: I – Não podem haver-se, sem mais, como “falsas declarações relativas à justificação de faltas”, prestadas pelo trabalhador, enquanto comportamento constitutivo de justa causa de despedimento, as declarações médicas (atestado, justificação de presença em hospital ou acto médico), apresentadas à entidade empregadora pelo trabalhador faltoso, com vista à pretendida justificação.

II – Infringe o dever de lealdade – corolário do princípio geral da boa fé na execução dos contratos, lembrado no artº 119º, nº 1, do Código do Trabalho – o trabalhador que, faltando às suas obrigações contratuais, não comparece no local de trabalho, a coberto do atestado de estado de doença, e frequenta, no mesmo período, uma actividade afim em entidade terceira.

III – Esse comportamento, porque abala irreparavelmente a relação de confiança pressuposta na relação de trabalho, é grave em si e nas suas consequências, constituindo justa causa para despedimento.

Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                    I –

1.

RELATÓRIO

A.... , cidadã chinesa, com os demais sinais dos Autos  instaurou contra B... a presente acção, com processo comum, pedindo se condenação  da ré a pagar-lhe indemnização de antiguidade, férias não gozadas e subsídio de férias de 2007, proporcionais de férias, subsídios de férias e Natal pelo trabalho prestado em 2008, vencimentos que deixou de auferir desde Setembro de 2008 até integral pagamento, reconstituição de toda a carreira contributiva da autora junto da Segurança Social desde 1999 até data de trânsito em julgado em sentença, montante contra-ordenacional nos termos do nº 1 do art. 680.º do CT.

Alegou para tanto, em síntese, que foi admitida por contrato de trabalho em 1999, como violinista, e a ré instaurou-lhe procedimento disciplinar no qual, em Julho de 2008, foi aplicada sanção de despedimento com justa causa.

 Mas não existe fundamento para despedimento, além de que foi violado o disposto no nº 1 do art. 372.º do Código do Trabalho, sendo a sanção abusiva, ao que acresce que a ré não fez os descontos devidos para a Segurança Social.

2.

Realizada a Audiência de partes frustrou-se a tentativa de conciliação.

Notificada para o efeito, contestou a ré reafirmando, em resumo, que os factos invocados no procedimento disciplinar se verificaram, existindo justa causa para despedimento, acrescentando que a autora litiga de má-fé, pois peticiona valores que foram pagos, deduzindo pretensão com falta de fundamento.

Conclui, assim, pela improcedência da acção e condenação da autora como litigante de má-fé em multa e indemnização no valor de € 10.000,00 a favor da ré.

3.

A autora apresentou pedido de redução do pedido e de rectificação de lapso no pedido (fls. 246), deduzindo ainda “resposta”, por um lado, e pronunciando-se sobre o pedido de litigância de má-fé, e, por outro lado, alegando ser nulo o procedimento disciplinar por violação do disposto nos arts. 372.º, nº 1, 396.º e 412.º do Código do Trabalho.

A ré apresentou requerimento pronunciando-se sobre a redução do pedido e sobre a não admissibilidade da resposta no seu todo (fls. 285).

4.

Saneou-se o processo e marcou-se data para julgamento, a que se procedeu, proferindo-se sentença em que se julgou a acção improcedente, com a absolvição da R. dos pedidos contra si formulados.

5.

Irresignada, a A. veio apelar.

Alegando, concluiu assim:

· A entidade empregadora não respeitou os prazos peremptórios dos arts. 372.º e/ou 412.º do Código do Trabalho;

· Não houve prova para qualificar as faltas de Março de 2007 como faltas sobre as quais a arguida teria prestado falsas declarações e, portanto, (não) havia ‘justa causa’ para a despedir;

· Com base nestes pressupostos, a entidade empregadora teria violado direitos da A. que acarretariam abuso do direito, pelo que deveria ser condenada em coima a indicar pelo Sr. Juiz ‘a quo’;

· Não tendo decidido nestes termos e não aplicando o direito do ‘favor laboratoris’, o Sr. Juiz ‘a quo’ não julgou da melhor maneira, em nosso entender, a impugnação introduzida pela A., pelo que deve esta decisão ser anulada e substituída por outra que dê razão à A.

 6.

Respondeu a recorrida, concluindo, por seu turno, em resumo, que o maestro não tem qualquer poder disciplinar, poder que está atribuído à Direcção da R., a quem aquele só comunicou os factos ocorridos através de carta que foi enviada à Direcção no dia 21 de Dezembro de 2007, uma 6.ª feira, sendo que a R. só teve conhecimento disso na melhor das hipóteses no dia 26-12-2007, uma vez que 24 e 25 foram feriados.

A recorrente recusou a notificação da nota de culpa no dia 18 de Fevereiro, alegando que não residia no local em que reside, acabando por ser notificada pessoalmente no dia 20-2-2008, apesar de se ter recusado a assinar a notificação.

As faltas dadas são consideradas injustificadas por no atestado não haver qualquer referência ao facto de a recorrente não poder comparecer no local de trabalho, por nesse período ter estado a desempenhar exactamente as mesmas funções de violinista na Casa da Música.

Houve quebra de confiança entre as partes e a recorrida teve graves prejuízos com o comportamento da A./recorrente, não havendo possibilidade prática da subsistência da relação de trabalho, por via disso.

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais devidos – com o M.º P.º a emitir douto Parecer no sentido de que o despedimento cominado foi ilícito, posição a que a recorrida reagiu, conforme fls. 381-383 – cumpre decidir.

                                                    _____

                                                 II –

                           DOS FUNDAMENTOS.

A – DE FACTO.

Vem seleccionada a seguinte factualidade, que assim se fixa:

1. A ré é uma Associação de direito privado, sem fins lucrativos, criada para durar por tempo indeterminado, constituída por entidades públicas e privadas.

2. No seio da sua actividade, a ré criou uma orquestra, que denominou de “Orquestra Filarmónica das Beiras”, a qual resultou da prossecução dos fins estatutários da ré, tendo ainda por fim o desenvolvimento da divulgação musical.

3. A ré foi desenvolvendo actividades para sensibilização para o gosto e educação musical junto, entre outros, dos jovens, indo designadamente a Escolas e promovendo actividades destinadas a este e outros públicos específicos.

4. A ré sempre teve dificuldades económicas, dependendo a sua subsistência económica de outras entidades públicas.

5. A autora é violinista de profissão.

6. A autora começou a prestar o seu serviço à ré em 1999; no início de Outubro de 2004 a ré cessou a actividade, a qual reiniciou em 2005, celebrando então com a autora “contrato de trabalho a termo certo” – como consta de fls. 15-17, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido –, o qual foi renovado, sendo a autora trabalhadora efectiva.

7. A ré instaurou à autora procedimento disciplinar, que se encontra junto por cópia e «por linha» – cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido – tendo a «Nota de Culpa» sido remetida por carta registada e depois notificada pessoalmente à autora, em 20.02.2008, e a decisão final a aplicar a sanção disciplinar de “despedimento com justa causa” foi notificada por carta recebida pela autora em 29.07.2008.

8. No dia 22 ou 23 de Janeiro de 2007, quando a “Orquestra Filarmonia das Beiras” estava a realizar concertos em Leiria, a autora perguntou ao Maestro titular da Orquestra se estava agendado trabalho para os dias 6 e 11 de Março de 2007, pois queria pedir dispensa desse trabalho uma vez que iria ter a possibilidade de participar numa actividade na Casa da Música no Porto, nesse período.

9. Pelo Maestro foi dito à autora que durante o mês de Março iria realizar-se o programa “Música na Escola”, mas que as datas exactas ainda não estavam definidas, e que o plano definitivo dos trabalhos iria ser afixado dentro dos prazos previstos (com um mês de antecedência), lembrando à autora que, caso se confirmasse trabalho para esse período, deveria entregar pedido de dispensa por escrito para ser analisado, como previsto no Regulamento da Orquestra Filarmonia das Beiras.

10. As tabelas de serviços para o mês de Março de 2007 foram afixadas nos últimos dias de Janeiro (entre 26 e 31), confirmando sessões para as Escolas, no âmbito do programa “Música na Escola”, para os dias 7, 8 e 9 de manhã e um concerto no dia 11 às 16 horas.

11. No dia 4 de Março, no fim do concerto realizado no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, a autora pediu ao Maestro dispensa para os dias 7 a 11 de Março, o qual foi recusado, sendo referido à autora que além do pedido não ser feito por escrito no prazo previsto no Regulamento da Orquestra Filarmonia das Beiras, não era costume autorizar dispensas ou licenças a concertos ou a meio de programas que já estão a decorrer, como era o caso.

12. No dia 7 de Março a autora faltou ao serviço que se realizou da parte da manhã, tendo a mesma telefonado comunicando que estava doente; nos dias 8, 9 e 11 a autora faltou novamente ao serviço.

13. Para justificar as faltas a autora apresentou no dia 8 uma justificação de presença no Hospital D. Pedro, por volta das 2h do dia 7 de Março, por doença súbita; apresentou uma declaração médica justificando a falta do dia 8 de Março de 2007 para fazer tratamento dentário, e no dia 9 de Março apresentou um atestado médico, atestando doença, com impossibilidade de se apresentar no local de trabalho durante o período de 5 a 11 de Março de 2007.

14. Por comunicação de 19.07.2007 a ré insistiu junto do Serviço Educativo da Casa da Música para que informasse se a autora realizou alguma actividade na Casa da Música durante o período que esteve com atestado médico na Orquestra Filarmonia das Beiras, em Março de 2007.

15. Por comunicação de 25.06.2007 e assinada pelo Coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música – Prof. Doutor C... – foi respondido à ré que “excepto se for interpelado judicialmente para o fazer, não poderei confirmar a ausência ou participação de quaisquer pessoas singulares ou colectivas nas actividades promovidas pelo Serviço Educativo”.

16. Perante esta informação o Maestro nada comunicou à Direcção da ré.

17. Em meados de Dezembro de 2007, em conversa informal, o músico D...disse ao Maestro que a autora, na altura, lhe referira que esteve a trabalhar na Casa da Música, no período de 7 a 11 de Março.

18. Nesse período a autora não foi substituída porque os ensaios já tinham decorrido, tendo o programa de então sido executado com dois violinos quando devê-lo-ia ter sido com três violinos, com a inerente perda de qualidade artística.

19. No dia 5 de Janeiro de 2008, depois do ensaio de colocação da orquestra para o concerto de Ano Novo e Reis, que se realizou nesse dia no Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria – ensaio que serve para a Orquestra se ambientar ao espaço onde vai decorrer a actuação – a autora mostrou ao Secretário da Orquestra desagrado quanto à sua posição, uma vez que se encontrava perto da percussão.

20. Pelo Secretário da Orquestra foi tentado corrigir a posição da cadeira mas a autora não quis, e depois alegou não poder tocar por estar mal disposta, passando todo o concerto na lateral do palco.

21. No dia 1 de Fevereiro de 2008, durante o último ensaio do programa “Dois Portos” – efectuado por E... , F... e Orquestra Filarmonia das Beiras –, que decorreu no Teatro Aveirense, em Aveiro, o músico G... queixou-se ao secretário da Orquestra que a autora tentava acertar-lhe com o instrumento e como tal pretendia tocar numa estante individual.

22. A autora em regra não chegava antes da hora dos ensaios, tendo em 7.12.2007 chegado atrasada 15 minutos ao ensaio e em 29 e 30 de Dezembro 4 minutos.

23. Em 29.09.2008 a ré depositou na conta bancária da autora a quantia de € 2.031,01, relativa a proporcionais de subsídio de férias, férias e subsídio de Natal.

24. A ré pagou à autora os subsídios de férias e de Natal de 2007.

25. A autora não tem dificuldades de entendimento da língua portuguesa.

                                                    ___

B – CONHECENDO.

Conferido o acervo conclusivo – por onde se afere e delimita o objecto e âmbito da impugnação, como é sabido, excluídos os temas que sejam de conhecimento oficioso – constatamos que são questões em discussão, que importa por isso dilucidar e resolver, as atinentes à invocada caducidade do exercício da acção disciplinar, por pretensa violação dos arts. 372.º e/ou 412.º do Código do Trabalho, e à inexistência de justa causa para o despedimento por não haver prova de que são falsas as declarações sobre as faltas dadas pela A. em Março de 2007.

- Da caducidade do procedimento disciplinar.

O procedimento disciplinar deve exercer-se nos 60 dias subsequentes àquele em que o empregador, ou superior hierárquico com competência disciplinar, teve conhecimento da infracção – art. 372.º/1 do Código do Trabalho/2003.

A infracção disciplinar, essa, deve ser perseguida no prazo de um ano a contar do momento em que foi praticada, por regra, sob pena de prescrição, como se previne no n.º2 da mesma norma.

Aquele prazo apenas se interrompe, como se sabe, com a comunicação da nota de culpa ao trabalhador, o mesmo efeito sendo reconhecido à instauração do procedimento prévio de inquérito, desde que, mostrando-se necessário para fundamentar a nota de culpa (e sê-lo-á sempre que os factos sindicáveis não estejam minimamente esclarecidos ou haja fundadas dúvidas sobre a sua autoria), seja iniciado e conduzido de forma diligente, não mediando mais de trinta dias entre a suspeita de existência de comportamentos irregulares e o início do inquérito, nem entre a sua conclusão e a notificação da nota de culpa – n.º4 do art. 411.º e art. 412.º da identificada Codificação.

Não sendo tais perspectivas aqui controvertidas, sempre se dirá, não obstante, que o prazo em causa é pacificamente entendido como um prazo de caducidade, impendendo sobre o trabalhador o ónus da prova dos factos a ela relativos.

Assim se vem sustentando nesta Relação, na consideração de que se trata de facto constitutivo da pretendida declaração da ilicitude do despedimento, entendimento com respaldo, entre outros, nos Arestos do S.T.J. de 28.1.1998 e de 17.10.2007, respectivamente in CJ/S.T.J., Tomo I/258 e www.dgsi.pt, Proc. 07S2314, citados a propósito no muito recente Acórdão, tirado na Secção, na Apelação n.º335/07.1TTLRA.C1, em que também interviemos.

‘In casu’:

Desde cedo a A. invocou que a entidade empregadora não respeitou os prazos peremptórios de caducidade disciplinar – vide, v.g., resposta à nota de culpa no PD, em apenso.

Fê-lo sempre todavia no (inverificado) pressuposto de que a prática da infracção sujeita (ou, no mínimo, a sua suspeita) fôra, desde logo, do conhecimento da entidade empregadora, que por aí se quedou sem sequer ter instaurado um qualquer procedimento prévio de inquérito…

Não é todavia isso que resultou afinal demonstrado, em bom rigor.

Concretamente não se apurou que o conhecimento da ‘suspeita’ sobre a sindicada actuação da A. tenha então passado da esfera de conhecimento do Maestro da orquestra…e chegado a quem de direito, em termos da devida legitimidade/competência para decidir sobre o exercício da acção disciplinar, seja directamente o empregador (órgãos da administração, maxime a Direcção da pessoa colectiva em causa, a Associação/R.), ou um qualquer superior hierárquico com competência disciplinar…

…Convindo que, em momento algum, a A. sequer invoque ou reconheça naquele Maestro tal competência, que realmente não tinha, não obstante deter, por definição, poderes de orientação e disciplina enquanto regente de orquestra.

 

Na verdade, vem elencado na matéria de facto seleccionada – decisão que não foi posta em causa em nenhum momento, maxime nos termos do previsto no art. 685.º-B do C.P.C. – que a primeira abordagem da A. relativamente à pretendida dispensa do trabalho (…com vista à possibilidade de participar numa actividade na Casa da Música, no Porto…), no período de 6 a 11 de Março de 2007, foi directamente feita ao Maestro titular da Orquestra, no dia 22 ou 23 de Janeiro de 2007, que a remeteu para o plano de actividades que iria ser afixado dentro dos prazos estatutariamente previstos, sempre lhe lembrando que durante esse mês de Março se realizaria o programa ‘Música na Escola’ e que, caso se confirmasse trabalho para as datas em causa, deveria entregar pedido de dispensa por escrito, conforme se prevê no Regulamento da OFB.

O plano/tabela de serviços para o mês de Março de 2007 foi afixado nos últimos dias de Janeiro, confirmando sessões para as Escolas nos dias 7, 8, 9 de manhã e um concerto no dia 11, às 16:00 horas.

No dia 4 de Março, no fim do concerto realizado no Centro Cultural da Gafanha da Nazaré, a A. voltou a pedir dispensa ao Maestro para os dias 7 a 11 de Março, o qual foi recusado, sendo-lhe referido que, além do pedido dever ser feito por escrito, como já lhe fora dito, não era costume autorizar dispensas ou licenças a concertos ou a meio de programas já em curso, como era o caso.

Não obstante, a A. faltou nos dias 7, 8, 9 e 11, apresentando, para justificar as faltas, sucessivamente uma ‘justificação de presença’ no Hospital D. Pedro, por volta das 2:00 horas do dia 7 de Março, uma ‘declaração médica’ justificando a falta do dia 8 de Março (sempre de 2007), para fazer ‘tratamento dentário’ e, por fim, no dia 9, apresentou um ‘atestado médico’, atestando doença com impossibilidade de se apresentar no local de trabalho durante o período de 5 a 11 de Março – factos sob os números 8 a 14, na decisão respectiva, a fls. 308v.º e 309.

Procurou saber-se junto da ‘Casa da Música’ se a A. aí realizou alguma actividade durante o período em que esteve com atestado médico.

A resposta, por comunicação de 25.6.2007, foi evasiva.

Perante esta informação, o Maestro nada comunicou à Direcção da R. – cfr. pontos 14 a 16.

Só depois de, na sequência de uma conversa com o músico D..., em meados de Dezembro de 2007, este lhe ter sido referido que a A. estivera a trabalhar na Casa da Música no período de 7 a 11 de Março, é que o Maestro faz participação formal dos factos ao Presidente da direcção da R., datada de 21 de Dezembro de 2007, (como se vê de fls. 97 do PD apenso), que logo após, nos primeiros dias de Janeiro de 2008, decide instaurar procedimento disciplinar contra a arguida, de cuja nota de culpa foi a mesma pessoalmente notificada a 20.2.2008 – cfr. pontos 7. e 17 da decisão de facto.

Assim, face a estes elementos, não se nos oferecem dúvidas relevantes de que o empregador exerceu a acção disciplinar em conformidade com as regras legais estabelecidas.

Acertadamente se concluiu, pois, que, tendo sido exercido o poder disciplinar no prazo a que alude o art. 372.º/1, conjugado com o n.º4 do art. 411.º, ambos do Código do Trabalho, não se verificou a pretensa caducidade.

Soçobra consequentemente a correspondente conclusão 1.ª.

                                                    ______

- Da justa causa para despedimento.

Como deflui da nota de culpa/decisão no processo disciplinar, a conduta que foi disciplinarmente imputada à arguida/A./recorrente foi havida pela entidade empregadora/R. como uma ofensa grave aos deveres de lealdade, fidelidade, zelo, respeito, urbanidade e obediência, expressos nas alíneas a) a e) e g) do art. 121.º do Código do Trabalho.

Na decisão ‘sub judicio’ considerou-se que as condutas reportadas nos pontos 19), 21) e 22) não revestem em si gravidade bastante, seja porque se traduzem, as primeiras, em situações isoladas/desgarradas, seja porque, quanto à ultima, se mostra pouco circunstanciada.

A questão essencial põe-se, sim, quanto à situação a que se referem os pontos 8) a 13) e 17) do alinhamento de facto…que poderá configurar a alínea acima citada (a alínea f) do n.º3 do art. 396.º do Código do Trabalho): ‘falsas declarações relativas à  justificação de faltas’.

E desenvolveu o seu raciocínio como segue, no essencial, assim fundamentando juridicamente a solução que elegeu (citamos):

“É manifesto que houve faltas da A. ao serviço, justificando-as a A. com documentos médicos, a saber: ‘justificação de presença’ no Hospital de Aveiro em 7.3.3007, às 2 horas, por ‘doença súbita’ – fls. 87 do PD; declaração médica atestando a permanência da A. na manhã do dia 8.3.2007 em ‘tratamento dentário’ – fls. 89 do PD; ‘atestado médico datado de 7.3.2007 relativo a doença que impossibilita a comparência no local de trabalho de 7 a 11 de Março de 2007 – fls. 91 do PD.

Da análise destes documentos não se compreende que a doença (súbita) que impossibilita a comparência no local de trabalho a partir do dia 7 não impossibilite a deslocação no dia seguinte (8) a tratamento dentário, que não está atestado que fosse tratamento urgente.

Não houve comprovação por parte da Casa da Música de que a A. no período das referidas faltas ali tivesse estado a participar em actividade (…), baseando a R. a falsidade do impedimento para trabalhar em palavras da A. para um dos seus músicos no sentido de que prestou serviço na Casa da Música…

Pergunta-se: será isto bastante para afirmar a existência de ’falsas declarações relativas à justificação de faltas’?

A resposta a esta questão não é fácil, na medida em que não se trata de uma ‘confissão’ da A. perante a R. (a situação seria então claramente diferente, levando a dizer haver falsidade do impedimento invocado caso estivesse demonstrado que a A. esteve efectivamente na Casa da Música a exercer actividade).

O atestado médico não concretiza a doença que impossibilitou a comparência, o que dificulta o controlo.

Dir-se-á que a A. podia ter junto declaração de não presença na Casa da Música…

…De todo o modo, temos sempre uma divergência entre o declarado pela A. à R. e o declarado pela A. a ‘colega de trabalho’.

E tal divergência afigura-se-nos bastante para dizer que o declarado pela A. não é correcto, porque a mesma confirmou a terceiro não ter havido um impedimento absoluto para o exercício da actividade, ou seja, a A. podia e devia ter actuado de outra forma…e a gravidade da situação leva a que não seja razoável exigir à R. a subsistência da relação contratual, pois seguramente foi quebrada a relação de confiança que existia (a confiança de que, salvo impossibilidade, não deixaria de actuar depois de estar no ensaio com a orquestra.

…O mesmo é dizer: verificou-se justa causa para despedimento, que como tal não foi ilícito…”.   

Concordando embora com a solução, que vamos ratificar, a final, diremos – com o devido respeito – que não acompanhamos os seus fundamentos.

Explicitamos de seguida o nosso pensamento e juízo.

Se bem analisámos e ponderamos, não poderá concluir-se, em bom rigor lógico-formal, no mínimo, que sejam falsas as declarações relativas à justificação das faltas.

Com efeito:

Não temos elementos seguros que nos permitam asseverar a inverosimilhança/inverdade do teor dos documentos médicos.

Não é aprioristicamente improvável que a A. tenha estado no Hospital de Aveiro em 7.3.2007, debitando subjectivos dolorosos (…sérios ou simulados), que, à míngua de uma causa objectiva, o médico tenha qualificado por ‘doença súbita’.

É estranho, mas não é de todo absurdo, que na/durante a manhã do dia seguinte a A. tenha estado em ‘tratamento dentário’, sendo mais difícil de aceitar, sem outra mais circunstanciada motivação, que se ateste medicamente, (a avaliar pelo carimbo aposto tratar-se-á de um médico especialista de Medicina Familiar e de Medicina do Trabalho… - fls. 91 do PD), com data de 7.3.2007, que a A. se encontrasse doente e impossibilitada de comparecer no seu local de trabalho a partir do dia 7.3.2007 inclusive até ao dia 11.3.2007, com duração provável de 5 dias.

A declaração é da responsabilidade de quem a emitiu e subscreveu…e vale o que vale.

Esta não é, porém, como as demais, uma declaração da arguida disciplinar, a aqui recorrente.

Não sendo um comportamento seu (n.º3, f), do art. 396.º do Código do Trabalho), não pode ser-lhe imputado como constituindo uma falsa declaração, da sua autoria, relativa à justificação de faltas … – independentemente de se poder pensar o que se imagina sobre a (ir)realidade subjacente.

Assim:

A A. apresentou esses documentos para justificar as faltas, é certo.

Mas certo é também que tais documentos não são declarações suas, por um lado, deles não podendo concluir-se, sem mais, por outro, que constituam declarações falsas.

Se bem vimos as coisas – no esforço maior de sermos, como almejamos, absolutamente equânimes – a A. não merecerá o ápodo da apontada divergência de declarações, dizendo uma coisa à R. e declarando outra a um ‘colega de trabalho’.

É que a A. pode ter estado realmente doente (como invocou perante a R., juntando as declarações médicas para justificar as faltas), mas, não obstante, ter actuado/’ter estado a trabalhar’ na Casa da Música, como disse ao colega D..., nesse período de 7 a 11 de Março de 2007!

Essa referência do músico Hugo, na conversa informal havida com o Maestro, em meados de Dezembro de 2007 – matéria especificada no ponto 17 dos factos provados – é de todo credível …apesar de ninguém ter invocado a circunstância que lhe confere afinal esta ora reconhecida credibilidade.

É que é a própria A. que, na resposta à Nota de Culpa, o assume expressamente.

Aí se consignou nos pontos 14. a 16. (e citamos de fls. 69-70 do PD apenso, para onde nos remete o ponto 7. do alinhamento de facto): …’a arguida referencia ter estado efectivamente doente em tal período temporal, de acordo com os relatórios médicos que atempadamente fez chegar à sua entidade patronal.

Porém, perante o convite e insistência da entidade Casa da Música, e apesar de combalida e visivelmente limitada, acedeu, e pela realização pessoal e profissional que sentiria, fez, então, o esforço de participar na acção formativa promovida por aquela entidade…e tocar no final da mesma.

…Tal circunstância é por deveras conhecida…nunca tendo a trabalhadora arguida procurado esconder esse facto, ou sequer prestado falsas declarações, antes o comentando à vista e perante todos…os demais colegas sabiam desde então que a mesma tinha tocado para aquela entidade’.  

Ora, perante isto, é lícito admitir que a A., (faltando ao serviço, com o fundamento invocado, apoiado nas referidas declarações médicas que apresentou para justificar a sua ausência), participou realmente na acção formativa promovida pela Casa da Música, no referido período, honrando aliás o alegado convite…apesar de combalida e visivelmente limitada’.

Não vemos que possa concluir-se que tenha usado de falsas declarações relativas à justificação de faltas, contrariamente ao sustentado – com o devido respeito, repete-se.

O impedimento invocado para as justificar, junto do empregador, é que pode não ter sido tão autêntico assim!

Este é o ponto nevrálgico.

É que – mesmo achando estranha a coincidência, aceitando que a A. esteve doente no referido período e que são fidedignas as declarações médicas que apresentou para justificar as faltas – o seu comportamento não deixa de ser menos censurável, em termos disciplinares, como nos parece evidente.

Ponderando, tudo se analisa num processo psicológico menos leal para com o seu empregador – processo esse que se desencadeia no momento em que a A. vê inviabilizada a pretensão de lhe ser concedida dispensa do trabalho nesse período, no dia 22 ou 23 de Janeiro de 2007, passa pela nova recusa do Maestro quando é de novo questionado pela A. no dia 4 de Março, e termina pela sua decisão de, mesmo doente (…’combalida e visivelmente limitada’), ir participar na acção formativa promovida pela Casa da Música, no Porto…

…Como aliás estava determinada a participar, pelo menos desde 23 de Janeiro de 2007.

Ora, se estava doente, como se admite que estivesse, não é aceitável – aos olhos de qualquer pessoa avisada e minimamente prudente e sensata – que a doença de que tenha padecido a impossibilitasse de cumprir as suas obrigações contratuais, ou seja, de se apresentar no seu local de trabalho durante o período de 5 a 11 de Março de 2007, e não a impedisse de participar na actividade que a Casa da Música promoveu…’e de tocar no final da mesma’.

A doença invocada seria assim igualmente impediente para as duas situações, não sendo plausível que deixasse de o ser quando optou por satisfazer o seu desígnio antigo, oportunamente anunciado.

A justa causa para despedimento corresponde a um incumprimento grave de deveres contratuais que, violados, constituem um comportamento ilícito, grave em si e nas suas consequências, susceptível de romper irremediavelmente a relação de confiança pressuposta no convénio juslaboral.

Mesmo desvalorizando as demais condutas factualizadas – nisso acompanhando o juízo constante da sentença em crise quando pondera as situações a que se reportam os pontos 19) a 22) da materialidade seleccionada, apesar de o comportamento descrito nos pontos 19/20 não ser de todo abonatório de uma postura muito saudável/recomendável… – o comportamento acima identificado constitui um afrontoso incumprimento dos deveres de lealdade, de zelo e diligência.

A lealdade é – enquanto corolário do princípio geral da boa-fé na execução dos contratos, expressamente estampado no art. 119.º/1 do Código do Trabalho – como já se escreveu algures com absoluta propriedade, a pedra angular do contrato de trabalho, de sua natureza eminentemente fiduciário, aqui posta  em causa quando a A. usa a atestada doença para faltar ao trabalho e, contornando a não concessão da pretendida dispensa do serviço, a coberto disso cumpre o seu objectivo, já firmado uns tempos antes, participando numa outra actividade, pelos dias e nas circunstâncias conhecidas.

Seguindo a reflexão e ensinamento de A. Monteiro Fernandes (‘Direito do Trabalho’, 13.ª Edição, pg. 236), com ele dizemos que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes.

Uma vez abalada tal confiança, de modo a poder criar no espírito do empregador a dúvida futura sobre a idoneidade da conduta do trabalhador – como se nos prefigura ser o caso apreciando – deixa de subsistir o suporte psicológico mínimo que legitime impor àquele a subsistência do vínculo.

Ponderados todos os factores relevantes na qualificação casuística da justa causa disciplinar, concluímos pela licitude do despedimento cominado na decisão patronal.

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- Quanto ao mais:

Balizando-se o objecto da impugnação pelo teor das ‘conclusões’ da motivação, ficou necessariamente ultrapassada a abordagem e tratamento das alegadas irregularidades formais do Processo Disciplinar, reduzidas, as letais, ao elenco constante do art. 429.º/2 do Código do Trabalho.

A asserção conclusiva n.º3 faz apelo a um pretenso abuso de direito, por banda da R., ainda assim formulado no condicional: …a entidade patronal teria violado direitos da A. que acarretariam abuso de direito…

Sem fundamento válido, diga-se, sumariamente.

Como resulta patente de tudo o atrás expendido, a R. não violou qualquer direito da A., não sendo esse sequer o escopo do instituto do abuso do direito.

Este prefigurar-se-á, sendo ilegítimo o seu exercício – art. 334.º do C.C. – ‘quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito’, sendo menos compreensível pretender-se que o Decisor ‘a quo’, ‘sponte sua, ’condenasse a R. em coima, por via disso, como aliás bem denuncia o Exm.º P.G.A. na sua douta intervenção.

Não é disso que se trataria.

Inconsistente é também – porque sem qualquer outro suporte – o simples apelo ao programático princípio do ‘favor laboratoris’, apenas invocado porque se discorda do juízo alcançado na decisão impugnada…e se pretendia, com base nisso, solução favorável.

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Sumariando – art. 713.º, n.º7, do CPC :

- Não podem haver-se, sem mais, como ‘falsas declarações relativas à justificação de faltas’, prestadas pelo trabalhador, enquanto comportamento constitutivo de justa causa de despedimento, as declarações médicas (atestado, justificação de presença em Hospital ou acto médico), apresentadas à entidade empregadora pelo trabalhador faltoso, com vista à pretendida justificação;

- Infringe o dever de lealdade – corolário do princípio geral da boa-fé na execução dos contratos, lembrado no art. 119.º/1 do Código do Trabalho – o trabalhador que, faltando às suas obrigações contratuais, não comparece no local de trabalho, a coberto do atestado estado de doença, e frequenta, no mesmo período, uma actividade afim em entidade terceira.

- Esse comportamento, porque abala irreparavelmente a relação de confiança pressuposta na relação de trabalho, é grave em si e nas suas consequências, constituindo justa causa para despedimento.

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                                                    III – 

                                            DECISÃO

Nos termos expostos, delibera-se julgar improcedente a Apelação, confirmando, embora com diversa fundamentação, a sentença impugnada.

Custas pela recorrente.