Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
78/05.0TAAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: PAGAMENTO
RETRIBUIÇÃO
MEIOS DE PROVA
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 03/05/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 267º, Nº 5, DO CÓDIGO DO TRABALHO; 655º, Nº 1, CPC; E 392º DO C.CIV.
Sumário: I – Não se exige qualquer formalidade especial, em termos legais, para prova do facto jurídico “pagamento de retribuição”, pelo que, quanto a tal prova, funciona a regra geral da liberdade de julgamento – artº 655º, nº 1, do CPC.

II – O documento/recibo a entregar ao trabalhador no acto do pagamento da retribuição (antigo artº 94º da LCT e agora artº 267º, nº 5, do Código do Trabalho), não é exigível enquanto específico meio de prova.

III – Como sempre foi entendimento pacífico, tal previsão normativa não contém qualquer regra de direito probatório que afaste o princípio geral da livre apreciação das provas, cabendo ao Tribunal decidir, neste aspecto, segundo a sua prudente convicção acerca dos factos e face aos meios probatórios disponíveis – artº 392º C.Civ..

Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –


A... , residente na Rua X..., em Mortágua, instaurou a presente acção emergente de acidente de trabalho contra «Companhia de Seguros B...» e «C...», com sede na Rua Y... Avelãs de Cima.
Alegou, em síntese útil, que no dia 23/02/2004, quando trabalhava por conta e sob a direcção da segunda ré – cuja responsabilidade infortunística se encontrava transferida para a primeira, mas não pela totalidade da retribuição – foi atingido por um eucalipto, o que lhe provocou lesões que o tornaram portador de incapacidade temporária e determinaram que ficasse afectado com IPP.
Foi indemnizado pela seguradora relativamente aos períodos de ITA, com base na retribuição transferida.
Pedia a condenação das co-rés a pagarem-lhe:
1. A ré seguradora:
a) A pensão anual e vitalícia de €1.881,12, a partir de 16/3/2005;
b) Juros de mora por cada uma das prestações e desde o seu vencimento.
2. A ré “C..., L.da”:
a) O montante de €5.007,50 da diferença da ITA proporcional à parte retributiva não transferida, desde 23/02/2004 e até 15/3/2005;
b) A pensão anual e vitalícia de €794,08, a partir de 16/3/2005;
c) Juros de mora.

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No despacho de fls. 165 foi fixada a pensão provisória a cargo da ré seguradora, com o valor anual de €1.881,12.
Na sua contestação, a ré “C..., L.da” invocou que a responsabilidade infortunística se encontrava transferida pela totalidade da retribuição.
A seguradora discordou da incapacidade invocada pelo autor.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância e ordenou-se o desdobramento do processo.
No apenso para fixação de incapacidade foi decidido que o autor se encontra afectado com uma IPP de 28%.

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Instruída e discutida a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção procedente, condenando ambas as RR. no pagamento ao A. das importâncias discriminadas no dispositivo, a fls. 315-316, a que no reportamos.

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Mas, inconformada, veio apelar a co-R. patronal, «C..., Ld.ª».
Alegando, concluiu assim:
· A sentença recorrida foi proferida com base em incorrecto julgamento da matéria de facto;
· O Tribunal 'a quo' devia ter respondido ‘não provado’ ao quesito 1.º e ‘provado’ ao quesito 2.º;
· Tal era imposto pela prova documental junta aos Autos – recibos;
· A prova testemunhal produzida em Audiência não logrou pôr em crise a realidade atestada pelos recibos;
· Com efeito, nenhuma das testemunhas referiu ter visto o A. receber da R., ora recorrente, €660,00 ou sequer tê-lo visto em casa a contar tal quantitativo;
· As testemunhas em cujo depoimento se fundamenta a decisão de facto que ora se ataca também não juntaram qualquer documento relativamente à sua situação laboral, que atestasse que recebiam da R. quantia superior à que constava dos recibos;
· O Tribunal 'a quo' deu prevalência aos depoimentos ‘tout court’, sem que estes fossem comprovados por qualquer facto exterior objectivo, como sejam um extracto bancário relativo à conta onde o vencimento fosse depositado, cheque, etc., em detrimento dos recibos, devidamente assinados pelo A., e até pelas testemunhas;
· As testemunhas em questão eram todas brasileiras e familiares;
· Nesta conformidade, o Tribunal 'a quo' só podia ter considerado que o A. não logrou fazer prova do montante do vencimento que dizia auferir;
· O princípio da livre apreciação da prova tem de revestir-se de alguma objectividade, sob pena de tal significar livre arbítrio;
· O Tribunal 'a quo', ao decidir como decidiu, violou o disposto nos arts. 653.º/2 e 655.º/1 do C.P.C. e ainda o disposto no art.342.º/1 do Cód. Civil ao julgar erradamente que o A. fez prova dos factos que lhe competiam, designadamente da retribuição de € 660,00 e € 4,50 de almoço por cada dia de trabalho.

Nestes termos, deve anular-se a decisão recorrida e substitui-la por outra que absolva a R. de todos os pedidos contra si formulados.

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O A. contra-alegou, concluindo, em resumo, que a matéria de facto não pode ser alterada porque a prova produzida não foi gravada, sendo que o Tribunal respondeu correctamente à matéria controvertida.
O valor probatório do único ‘recibo’ apresentado pela recorrente não impunha, só por si, decisão diversa na resposta aos quesitos, pelo que não foi violada qualquer disposição legal, devendo manter-se o julgado.

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Recebido o recurso e colhidos os vistos legais devidos – com o Exm.º P.G.A. a emitir proficiente Parecer no sentido da improvimento da impugnação, a que não se reagiu – cumpre decidir.
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II –

A – DOS FACTOS.
Vem seleccionada a seguinte factualidade:
- No dia 23 de Fevereiro de 2004, pelas 10 horas, em Águeda, quando trabalhava por conta e sob a autoridade, direcção e fiscalização da ré “C..., L.da”, mediante retribuição, o autor foi atingido por um eucalipto quando procediam ao seu abate, e caiu ao solo;
- O que lhe provocou as lesões descritas nos autos, nomeadamente traumatismo vertebro-medular, com fractura D5/D6, traumatismo crâneo-encefálico com fractura biparietal com afundamento e traumatismo da bacia;
- As quais o tornaram portador de ITA desde aquela data e até 15/3/2005, data da alta;
- A responsabilidade emergente dos acidentes de trabalho sofridos pelo autor ao serviço da ré “C..., L.da” encontrava-se transferida para a ré seguradora pela retribuição mensal de 441,00€ x14 + 99,00€ x11;
- O autor foi indemnizado pela seguradora relativamente ao período de ITA, com base na retribuição transferida;
- A ré “C..., L.da” nada pagou ao autor a título de indemnização pelo período de ITA.
II - Da base instrutória:
- Ao serviço da ré “C..., L.da” o A. auferia a retribuição mensal líquida de 660,00 euros;
- Esta sociedade fornecia o almoço, no valor de €4,50, em cada dia que o autor trabalhasse (resposta ao quesito 1º).
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B – O DIREITO.
A questão em que se analisa objecto da impugnação – como de afere pelo acervo conclusivo – é de manifesta singeleza.
A recorrente insurge-se apenas contra a decisão da matéria de facto, fazendo-o nos termos lineares estampados, a final, na sua conclusão B): ‘O Tribunal 'a quo' devia ter respondido ‘não provado’ ao quesito 1.º e ‘provado’ ao quesito 2.º’.
E porquê assim?
Porque, em seu entendimento, tal era imposto pela prova documental junta aos Autos, os recibos!
Salvo o devido respeito, não tem razão, como se deixa sucintamente demonstrado na sequência… e certamente se convirá, a final.

Não vindo impugnada a decisão da matéria de facto em sentido próprio, tecnicamente falando, (cfr. art. 690.º-A do C.P.C.), sempre ficaria liminarmente excluída a possibilidade de intervenção censória desta Instância, a esse nível, no âmbito da modificabilidade da decisão prevista no art. 712.º, n.º1, a), 1.ª parte, e n.º2, (sempre do C.P.C.), já que do processo não constam todos os elementos de prova que serviram de base à decisão dos dois únicos quesitos que integram a Base Instrutória, não sendo obviamente caso de censura oficiosa, reservada, como se sabe, para as situações prefiguradas no n.º 4 da norma adjectiva.

Resta saber, quando muito, se estamos perante um qualquer erro sobre as regras de direito probatório material.
E, não sendo caso disso – como não é, antes se mostrando observadas as disposições legais que adrede dispõem – deixa de ter qualquer fundamento consistente a reacção da Apelante, que mais não terá que conformar-se com a solução encontrada.

Contextualizando:
Discutia-se, no caso, qual a real retribuição paga pela co-R. patronal ao sinistrado A..., no pressuposto de que a retribuição declarada à co-R. Seguradora foi inferior à efectivamente paga ao A., com natural repercussão na determinação da quota-parte de cada uma das co-responsáveis na reparação devida.

Como se constata pela compulsação da Acta respectiva, as testemunhas Nivaldo Costa e Sebastião Silva exibiram durante o depoimento um recibo do seu vencimento na R., que ele, Senhor Juiz, ordenou se juntasse aos Autos, por cópia – fls. 306/307.
Note-se que – dissipando assim qualquer dúvida subsistente… – os recibos a que se refere a Apelante, como fundamento maior da sua reacção, não são sequer respeitantes ao vencimento/retribuição que se discutia, o do A. A...!
De resto, percebe-se perfeitamente por que motivo o Exm.º Decisor entendeu dever aproveitar a sua exibição, mandando juntar cópia.
(Na economia da fundamentação da decisão de facto tal circunstância foi aproveitada para sublinhar que, mesmo em relação aos trabalhadores então depoentes, a R. não inscrevia nos recibos a retribuição real… - ‘nos recibos emitidos pela R. constava um vencimento inferior’…).

No mais, está fora de dúvida que, não se exigindo legalmente, para prova do facto jurídico/pagamento da retribuição, qualquer formalidade especial, funciona a regra geral da liberdade de julgamento – art. 655.º/1 do C.P.C. – apreciando o Tribunal livremente as provas oferecidas e decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.
Na verdade, o documento/recibo a entregar ao trabalhador no acto do pagamento da retribuição, (antigo art. 94.º da LCT/agora art. 267.º, n.º5, do Cód. do Trabalho), não é exigível enquanto específico meio de prova.
Constituindo um dever contratual do empregador, o seu objectivo primordial é o de funcionar como quitação por banda do credor, servindo igualmente para o trabalhador poder verificar se lhe foi pago tudo quanto esperava receber/lhe era devido, permitindo-lhe usá-lo para fazer prova da falta de uma parte da retribuição acordada...

Como sempre foi sendo entendido pacificamente, tal previsão normativa não contém qualquer regra de direito probatório que afaste o princípio geral de que falámos – cfr., v.g., entre outros, Acórdão da Relação de Lisboa, de 13.11.1985, in BTE, 2.ª Série, n.º 10/87, de 10/11, e Acs. do S.T.J. de 14.11.1986, in AD n.º 302, pg. 308, e de 12.1.2006, relatado pelo Cons. Fernandes Cadilha, in Sumários Internos de Jurisprudência do S.T.J., Secção Social, 2006.

Assim, nada obstava, pois, a que sobre tal matéria fosse produzida e valorada prova testemunhal, prova que é admitida em todos os casos em que não seja directa ou indirectamente afastada (art. 392.º do Cód. Civil).
(No mesmo sentido, v.g. o Acórdão da Relação de Lisboa, de 7.12.1999, in C.J., Ano XXIV, Tomo V, pg. 165).

São por isso despiciendas as considerações que a Apelante expende sobre o livre arbítrio do Exm.º Julgador, que se determinou de forma consentânea e devidamente fundamentada.
Não foram violadas as disposições legais identificadas, ou outras.
Soçobram as razões que enformam as asserções conclusivas.
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III –

DECISÃO
Nos termos e com a fundamentação exposta, delibera-se julgar improcedente a Apelação, confirmando inteiramente a sentença impugnada.
Custas pela Recorrente.