Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
480/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDES DA SILVA
Descritores: SALÁRIOS EM ATRASO
LEI APLICÁVEL
CONTRATO DE TRABALHO
RESCISÃO UNILATERAL
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 3º DA LEI Nº 17/86, DE 14/06
Sumário: I – A teoria do abuso de direito serve de válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica ante a rígida estruturação, geral e abstracta, das normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado .
II – Não é de considerar como conduta em abuso de direito a simples circunstância de o trabalhador exercer o direito previsto na L.S.A. no período em que a sua empregadora se encontra em dificuldades financeiras, designadamente no decurso de um processo de recuperação de empresa .

III – A compreensão normativa e a teleologia da LSA não impõem ao trabalhador, com atraso na percepção do salário, a ponderação sobre a crise estrutural da economia, as dificuldades económico-financeiras de conjuntura, os problemas de mercado ou outros, ao ponto de ter de prescindir do pagamento pontual da retribuição para ajudar a obviar à travessia e eventual ultrapassagem da crise por parte da entidade empregadora .

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I –

1 – A..., com os demais sinais dos Autos, demandou no Tribunal do Trabalho da Covilhã, a R. «B...», pedindo, a final, a sua condenação no pagamento das quantias discriminadas a título de retribuições devidas e não pagas, de indemnização por antiguidade e proporcionais, tudo com juros legais desde o vencimento das importâncias peticionadas até integral pagamento.

Pretextou basicamente que foi admitido ao serviço da R. em 1964, para exercer as funções de técnico de contas, tendo rescindido o contrato de trabalho por carta enviada à R. em 9.7.2004, com fundamento no art. 3.º da LSA, rescisão que operou os seus efeitos em 22.7.2004, tudo conforme documento n.º2.

2 – Frustrada a tentativa de conciliação que a se procedeu na Audiência de Partes, a R. veio contestar adiantando que o A. não tem direito às quantias que reclama, já que lhe entregou as verbas que indica, a título de amortização, mais acrescentando que o mesmo não tem direito à reclamada indemnização pois a rescisão do contrato operou-se no decurso de um processo de recuperação de empresa, por esta instaurado no Tribunal Judicial da Covilhã em 19.12.2003, de que o A. teve perfeito conhecimento e no qual foram aprovadas diversas medidas de viabilização daquela deliberadas na assembleia de credores que se realizou nos dias 23.6.04 e 6.7.04.
O A. nem sequer reclamou o seu crédito no referido processo.
A rescisão teve exclusivamente em vista a peticionada indemnização de antiguidade, o que constitui um verdadeiro abuso de direito.

3 – Discutida a causa, proferiu-se sentença a julgar a acção parcialmente procedente, condenando a R. a pagar ao A. as quantias de € 10.510,48, € 1.607,88 e € 4.932,60, a título de retribuições, salário do mês de Julho de 2004, com subsídio de alimentação e proporcionais pelo trabalho prestado no ano da cessação do contrato, respectivamente, com juros legais, do mais a absolvendo.

4 – É o A. que, inconformado, vem apelar.
Alegou e concluiu assim:
1. Os créditos salariais peticionados pelo A. beneficiam de garantia real nos termos do disposto no art. 737.º, d), do Cód. Civil e art. 12.º, n.ºs 1, b) e n.º3, a) e b) da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho;

2. A medida proposta e aprovada em Assembleia de Credores, cuja amplitude se desconhece, apenas poderia afectar os créditos reclamados no processo;

3. Com efeito, as providências que envolvem a extinção ou modificação dos créditos são apenas aplicáveis aos créditos reclamados e de entre estes aos créditos comuns e aos créditos com garantia prestada por terceiro, salvo acordo dos titulares dos créditos afectados – 62.º do CPEREF;

4. Ademais, ainda que a medida aprovada pela empresa tenha sido de reestruturação financeira, a redução dos créditos ou as condições de amortização só são obrigatórias para os créditos privilegiados que, não renunciando embora à garantia real sobre os bens ao devedores que hajam dado o seu acordo expresso e dentro dos limites da medida da sua penhorabilidade – arts. 62.º/3 e 92.º/1 do CPEREF;

5. Logo, aos credores com garantia real que não tenham renunciado a ela nem aderido à medida aprovada que afecte os seus créditos, tal medida é ineficaz em relação a eles;

6. A ter existido alguma medida de redução de créditos dos trabalhadores (e os Autos nada esclarecem a esse respeito) sempre a mesma seria ineficaz quanto ao recorrente;

7. Assistindo ao recorrente o direito de rescindir o seu contrato de trabalho nos termos previstos na LSA, pautando o recorrente toda a sua conduta com os ditames da honestidade, correcção e lealdade, não seria com razoabilidade exigível ao recorrente outro comportamento, sob pena de após o despacho de admissibilidade do processo de recuperação as entidades patronais deixarem de cumprir a obrigação retributiva que têm para com os seus trabalhadores, sendo que estes, a ter acolhimento a decisão ora posta em crise, nada poderiam fazer para pôr termo a uma situação que muitos casos poderia ser arbitrária e sempre absurda;

8. Contudo, ainda que a Entidade Patronal se encontrasse em dificuldades financeiras e disso, de alguma forma o aqui recorrente tivesse conhecimento, esta circunstância não pode constituir um caso de abuso de direito, nos termos e para os efeitos em que é estabelecido no art. 334.º do Cód. Civil;

9. Violou assim a sentença recorrida o disposto nos arts. 12.º/1, b) e n.º3, a) e b), da Lei 17/86, de 14/6 e 334.º do Cód. Civil.
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5 – A recorrida contra-alegou, pugnando no sentido da manutenção do julgado.

Recebido o recurso e colhidos os vistos legais devidos – com o Exm.º P.G.A. a emitir o Parecer de fls. 188-89, em que propende para a procedência da impugnação – cumpre decidir.

II –
1 – DE FACTO
Vem assente a seguinte factualidade, que assim se fixa:
· A R. dedica-se à indústria e comércio de têxteis, designadamente acabamentos e tinturaria;
· Em 2.1.1964 o A. foi admitido ao serviço da R. por forma verbal e por prazo indeterminado para, sob a sua autoridade, direcção e fiscalização, exercer a categoria de técnico de contas mediante retribuição mensal que ultimamente se cifrava em € 2.800,00;
· Em 9.7.2004 o A. enviou à R. uma carta registada, com A/R, que consta de fls. 8 do processo e cujo teor se dá aqui por reproduzido, na qual comunicava a intenção de rescindir o seu contrato de trabalho com a R. com fundamento no art. 3.º da Lei 17/86, de 14 de Junho, conjugado com o D.L. n.º 402/91, de 16 de Outubro, rescisão que operou os seus efeitos em 22.7.2004;
· O A., em 9.7.04, deu conhecimento ao IDICT da carta enviada à R.;
· A R. não pagou atempadamente ao A. os salários e subsídios de alimentação referidos no art. 5.º da P.I.;
· A R., aquando da cessação do contrato, também não pagou ao A. o salário e subsídio de alimentação correspondentes a 22 dias do mês de Julho de 2004, as férias e subsídio de férias que se venceram no dia 1 de Janeiro desse ano, bem como os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal pelo trabalho prestado;
· Para amortização do seu débito, a R., em 2004, entregou ao A. € 500,00 no mês de Abril, € 550,00 no dia 14 de Maio e € 500,00 em 16 de Junho e mais € 500,00;
· Estas quantias foram deduzidas pelo A., sendo por este imputadas no salário do mês de Março de 2004 (€ 1.150,00) e no salário de 22 dias do mês de Julho de 2004 (€ 500,00);
· A rescisão do contrato de trabalho do A. operou-se no decurso de um processo de recuperação da empresa detida pela R., por esta instaurado no Tribunal Judicial da Covilhã em 19 de Dezembro de 2003 e que corre no 1.º Juízo com o n.º 2.738/03.1 TBCVL;
· Neste processo foram aprovadas diversas medidas de viabilização da R., propostas pelo gestor judicial, mediante deliberação tomada na Assembleia definitiva de credores que se realizou nos dias 23.6.04 e 6.7.04;
· As referidas medidas foram homologadas por sentença proferida em 12.7.2004 e já transitada em julgado;
· O A. não reclamou o seu crédito no processo de recuperação de empresa;
· O A. tinha e tem perfeito conhecimento da existência do processo referida acima, no ponto 10;
· A R. teve que recorrer a este processo em virtude das dificuldades económico-financeiras com que se debatia e debate e que tem afectado gravemente todo o sector de actividade;
· À data da propositura da presente acção, a R. tinha ao seu serviço 54 trabalhadores e quando se apresentou a Tribunal não devia nada ao seu pessoal;
· A partir de Março de 2004 e devido às dificuldades financeiras, a R. não pôde continuar a pagar a totalidade dos ordenados superiores a € 500,00, o que foi comunicado aos respectivos trabalhadores, os quais passaram a receber e têm recebido apenas essa quantia, tendo-lhes também sido comunicado que o restante seria liquidado pela R. logo que para tal tivesse disponibilidades, ou por quem viesse a adquirir a empresa, de acordo com o plano de recuperação a aprovar pelos credores;
· Mais ninguém, para além do A., rescindiu o seu contrato de trabalho.

Não se considerou provado que fosse do inteiro conhecimento do A. o teor da deliberação tomada pela Assembleia definitiva de credores, nem que com a rescisão do seu contrato o A. tivesse exclusivamente em vista a peticionada indemnização por antiguidade.
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2 – O DIREITO
Por expressa delimitação do apelante, o objecto do recurso cinge-se à questão de saber se, tendo aquele rescindido o contrato de trabalho que o ligava à R., ao abrigo da LSA, (Lei n.º 17/86, Lei dos Salários em Atraso), actuou com abuso do direito, e, por isso, sem direito à reclamada indemnização de/por antiguidade, como se decidiu na sentença ora sob protesto.

Para além dos factos oportunamente seleccionados, providenciou-se pela junção aos Autos de prova da falada intercorrência de um facto superveniente, com interesse para a melhor compreensão e decisão da problemática sujeita, a entretanto ocorrida declaração de falência da R. – cfr. fls. 158 e despacho de fls. 192 v.º.
A respectiva certidão, com nota de trânsito em julgado, consta ora de fls. 195-6, pelo que mais se considera aditado ao elenco factual que foi judicialmente decretada a falência da R., por decisão do Tribunal Judicial da Covilhã, de 26.9.2005, passada em julgado.

Tudo visto, pois.
O A. peticionou a condenação da R., além do mais, no pagamento da quantia de € 114.800,00, a título de indemnização por antiguidade em consequência da rescisão unilateral do contrato de trabalho, operada nos termos do art. 3.º da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho.
A decisão 'sub judicio' não lhe reconheceu esse direito com o fundamento de que o A., ao rescindir o seu contrato de trabalho no decurso do processo de recuperação de empresa a que estava sujeita a R., sua Entidade Patronal, (processo esse de que tinha perfeito conhecimento), excedeu os limites da boa fé, constituindo-se o caso num abuso de direito.

Ter-se-á ajuizado com acerto?
Vejamos.
Com efeito:
O A. foi admitido ao serviço da R. em 1964, exercendo, ao seu serviço, as funções correspondentes à categoria profissional de técnico de contas, mediante retribuição mensal que ultimamente se cifrava em € 2.800,00.
Em Julho de 2004 enviou uma carta registada à R. comunicando-lhe a sua intenção de rescindir o contrato de trabalho, com fundamento no art. 3.º da LSA, rescisão que operou os seus efeitos a partir de 22.7.2004.
A R. não pagou atempadamente ao A. os salários e subsídios de alimentação dos meses de Março, Abril e Maio de 1004, nem as férias e subsídio de férias de 2003, vencidos em 1.1.2004.
A rescisão do contrato de trabalho ocorreu no decurso de um processo de recuperação da empresa detida pela R., por esta instaurado no Tribunal Judicial da Covilhã em 19.12.2003, processo a que teve de recorrer em virtude das dificuldades económico-financeiras com que se debatia e que afectou gravemente todo o seu sector de actividade, de tal forma que veio a concluir-se pela inexistência de qualquer probabilidade séria da sua recuperação, decretando-se a mesma em estado de falência.
O A. tinha perfeito conhecimento da existência daquele processo de recuperação de empresa e não reclamou aí o seu crédito.

Depois de se ter concluído pela indubitável verificação dos declinados requisitos formais e substanciais exigidos pelo exercitado direito de rescisão do contrato de trabalho por salários em atraso – à luz do regime especial constante da Lei n.º 17/86, de 14 de Junho – considerou-se que o A., apenas por ter exercido o seu direito no decurso do processo de recuperação de empresa, a que sabia estar sujeita a R. empregadora, excedeu os limites da boa fé, agiu com abuso de direito, não tendo por isso direito à peticionada indemnização de antiguidade.
Apoiou-se para o efeito em conhecida Jurisprudência, cuja bondade, assente em pressupostos de facto próximos embora do caso sujeito, não concita a nossa adesão, apesar de reconhecermos o melindre da solução.
Com o respeito que nos merece quem pense diversamente, cremos que, no contexto de significação da normatividade da LSA, a opção do A. não constitui abuso de direito, nos termos e com o recorte da noção constante do art. 334.º do Cód. Civil.
Apenas é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Como é sabido, a teoria do abuso do direito serve de válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica ante a rígida estruturação, geral e abstracta, das normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado (Cfr. M. Andrade, RLJ, Ano 87, pg. 307 e Vaz Serra, BMJ 85/326).

Mantendo o entendimento constante, v.g., do referido Acórdão desta Relação e Secção, sumariado in BMJ 495/376, (de que, por coincidência, fomos Relator), tirado num contexto de contornos semelhantes, não pode concluir-se pela actuação com afronta desta regra pela simples circunstância de o trabalhador exercer o direito previsto na LSA no período em que a R./empregadora se encontra em dificuldades financeiras.
Tendo presente o escopo da Lei dos Salários em Atraso, (rege os efeitos jurídicos especiais produzidos pelo não pagamento pontual da retribuição devida aos trabalhadores por conta de outrem – art. 1.º, n.º1), e lembrando que se prescinde mesmo da culpa da Entidade Patronal no verificado incumprimento pontual da obrigação de pagamento, uma vez cumpridos os requisitos formais exigidos e não se pondo sequer a questão da falta ser de algum modo imputável ao trabalhador, parece-nos não haver qualquer obstáculo ao exercício do direito de rescindir o contrato.
No caso, tratando-se de um direito potestativo, apenas relevaria qualquer condicionamento que entroncasse numa qualquer conduta de sinal contrário, anteriormente assumida pelo próprio, e em que a outra parte tivesse confiado (situação objectiva de confiança), organizando-se e actuando em conformidade com a expectativa criada.
Só a frustração dessa confiança poderia relevar.
Não nos parece que a compreensão normativa e a teleologia da LSA imponha ao trabalhador, com atraso na percepção do salário, a ponderação sobre a crise estrutural da economia, as dificuldades económico-financeiras de conjuntura, os problemas de mercado ou outros, ao ponto de ter de prescindir do pagamento pontual da retribuição para ajudar a obviar à travessia e eventual ultrapassagem da crise por parte da entidade empregadora…
Ora, assim sendo, não é a mera circunstância de a falta de pagamento pontual da retribuição devida acontecer num período em que a Entidade Patronal lançou mão do falado processo de recuperação de empresa que torna, por si só, ilegítimo o uso do direito do trabalhador de rescindir o seu contrato…quando afinal se reúnem os pressupostos legalmente previstos para a perfectibilização desse seu direito.
E está visto que, independentemente desse exercício, a R. não evitou o decretamento da falência, que sempre aconteceria – como afinal veio a verificar-se – independentemente do efectivo direito e condenação na correspondente obrigação de pagamento.

Não se nos afigura, enfim, que a tutela do direito essencial à retribuição do trabalho, enquanto suporte da subsistência económica do trabalhador e dos que dele dependem, postulado pelo regime excepcional da LSA, deva ceder – no balanço axiológico dos interesses e sacrifícios, dos direitos e deveres em confronto – às razões de ordem empresarial, com o risco que lhes é inerente, numa economia com pendor globalizante, com todas as vantagens e inconvenientes que lhe estão fatalmente associadas.

Afigura-se-nos – tudo ponderado – que o A., actuando no referido contexto fáctico, fez uso normal do seu direito, dentro dos limites padronizados, sem frustrar ou contrariar expectativas que tivesse eventualmente criado ou procurando obter um ganho injustificado ou indevido, através da rescisão oportunista do contrato.
Explorando as consequências lógicas da premissa de que se partiu para alicerçar o juízo alcançado, teria de admitir-se (…) que, uma vez requerida pelo empregador a sujeição da empresa a um processo de recuperação, estaria legitimada a suspensão do pagamento (total ou parcial) da retribuição…e inviabilizado o exercício do direito conferido pela LSA… enquanto se mantivesse aquela situação…
...O que não é plausível!

No mais, nada de juridicamente válido e relevante se nos oferece contrapor, ante os contornos da equacionada questão que vimos de tratar.

Na procedência das conclusões atinentes, não pode deixar de reconhecer-se ao A./recorrente o direito à reclamada indemnização. ___

III – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento à Apelação e – revogando a sentença, na parte impugnadacondena-se a R. no pagamento ao A. da peticionada quantia de € 114.800,00, a título de indemnização por antiguidade.
Custas pela R.
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Coimbra,