Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
317/05.8GBPBL.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOURAZ LOPES
Descritores: CRIME DE MAUS TRATOS
CAUSA DE EXCLUSÃO DE ILICITUDE
PODER CORRECTIVO DE EDUCAÇÃO
Data do Acordão: 10/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE POMBAL – 3º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 25º E 26º 68º N.º 1, 69º E 70º DA CRP, 143º CP
Sumário: 1. Os elementos típicos do crime de maus tratos mantiveram-se praticamente incólumes desde a reforma de 1995, a partir do momento em que incluíram como condutas típicas várias formas de violência, para além da violência física propriamente dita que decorrem de humilhações, vexames, insultos, ameaças e que constituem, para efeitos do crime os maus-tratos psíquicos.
2. Em 2007esse leque de condutas é alargado nomeadamente a ofensas sexuais.
3. O conjunto de direitos e deveres constitucionais, referentes tanto ao exercício das responsabilidades parentais como à infância e à juventude, que decorre dos artigos 68º n.º 1, 69º e 70º da CRP, conjugado com os princípios da tutela da integridade pessoal e dignidade humana que decorrem dos artigos 25º e 26º da CRP, proibe qualquer pseudo direito à agressão ou ofensa à integridade física e psíquica nomeadamente quando praticado a coberto de um dever de correcção.
Decisão Texto Integral: I. RELATÓRIO.
No processo Comum Singular n.º 317/05.8GBPBL, foram julgados e condenados, a arguida M... pela prática de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143º do Código Penal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 8€ e o arguido C... pela prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 e 2 do Código Penal na pena de dois anos e seis meses de prisão e pela prática de três crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 do Código Penal nas penas de respectivamente, dezasseis meses, catorze meses e um ano de prisão. Em cúmulo jurídico o arguido F... foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão. Tal pena foi suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, subordinada ao cumprimento do dever de entregar à “A.P.E.P.I., Associação de Pais e Educadores para a Infância”, no prazo de 4 meses a quantia de 500 €, a reverter a favor da Casa Abrigo de Vítimas de Violência Doméstica de Pombal e sujeita a regime de prova, segundo PIRS a elaborar pelo IRS. O arguido foi ainda condenado a pagar a M..., a quantia de 553,90€, a que acrescem juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação para contestar o pedido cível e vincendos até efectivo e integral pagamento, absolvendo-o do que, de mais, havia sido peticionado e condenado a suportar o pagamento restauração do dente 21 da demandante, mediante reconstrução através de coroa de revestimento total, relegando-se para execução de sentença a liquidação do respectivo montante. A arguida M... foi ainda a pagar a C... a quantia de 150€, a que acrescem juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data da notificação para contestar o pedido cível e vincendos até efectivo e integral pagamento. O arguido C...foi condenado a pagar ao Hospital Distrital de Pombal a quantia de 71,50€, acrescida de juros legais contados desde a notificação para a contestação do pedido cível até integral pagamento. Foram ambos os arguidos condenados nas custas criminais do processo, fixando-se em 3 Ucs a taxa de justiça devida por cada um, acrescida de 1% nos termos do artº 13º/3 do DL 423/91 de 30 de Outubro, sendo no mínimo a procuradoria e condenados nas custas dos pedidos de indemnização por ambos deduzidos, na proporção do respectivo decaimento. Finalmente o arguido C... foi condenado nas custas do pedido deduzido pelo HDP.
Não se conformando com a decisão, o arguido C...interpôs recurso para este Tribunal da Relação.
Nas suas alegações o recorrente conclui a sua motivação nos seguintes termos:

«I. Com o recurso ora interposto pretende o arguido impugnar a decisão proferida com base na insuficiência para o mesmo da matéria de facto provada.
II. Na verdade afirmações como “No âmbito das discussões, o arguido dirigindo-se à esposa chamava-lhe “puta”, “vaca”, “ordinária”, dizia-lhe que “não sabia fazer nada” e ameaçava-a de morte, o que ocorria periodicamente, em numero exacto de vezes não apurado mas em todo o caso com reiteração” – ponto 6 dos factos provados; “nessas ocasiões, por vezes, e também com alguma frequência dava-lhe empurrões” – ponto 7 dos factos provados; “(…) arguido passou também a, com periodicidade exacta não apurada, aquando das citadas discussões, por vezes o arguido, além de empurrar a sua mulher M...(…)- ponto 8 dos factos provados, bem como as expressões utilizadas “nessas ocasiões, por vezes e também com alguma frequência” (ponto 7 dos factos provados), “noutras ocasiões” (ponto 12 e 19 dos factos provados), “numa ocasião” (ponto 14 dos factos provados), “outras vezes” (ponto 15 dos factos provados), “frequentemente” (ponto 13 dos factos provados) não passam de afirmações genéricas e conclusivas dentro de um dado limite temporal, não traduzindo imputações concretas, circunstanciadas no tempo e no espaço, do número de agressões feitas, espécie, gravidade e respectivas consequências de modo a poder-se concluir por um tratamento de maus tratos físico-psiquicos.
III. Não basta fazerem-se afirmações genéricas e apenas concretizar duas agressões: uma ocorrida há mais de 20 anos (1989 – ponto 8 dos factos provados) e outra em Julho de 2005 (pontos 30 e 33 da matéria de facto provada).
IV. Pelo que os factos dados como provados não podem ser subsumidos no dispositivo legal por que o arguido vem condenado, uma vez que a época e a frequência, concretamente retirada dos factos provado, são imprescindíveis à subsunção do tipo legal de crime previsto e punido nos nº 1 e nº 2 do art. 152º do Código Penal.
V. Só assim se justifica a existência de uma norma jurídica autónoma com o seu próprio conteúdo de desvalor.
VI. Os factos provados não preenchem os elementos do tipo legal de crime de maus tratos a cônjuge ou de sobrecarga de menores, pelo que deverá ser absolvido da prática dos crimes por que veio acusado e condenado.
VII. O Tribunal recorrido procedeu a uma errónea interpretação e aplicação do artigo 152º n.º 1 e n.º 2 do CP, na redacção anterior à Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.
VIII. O Tribunal recorrido terá ainda incorrectamente julgado a matéria de facto, uma vez que em sede de audiência e julgamento não foi produzida prova bastante para tal – que o “arguido empurrava a sua mulher contra paredes e móveis de casa, deitava-a no chão, dava-lhe pontapés (…)” (ponto 8 dos factos provados) - ou a prova produzida impõe decisão diversa da recorrida – a arguida nunca exprimiu a expressão “qualquer dia” (dos pontos 11 e 12 dos factos provados), em verbalizações que vêm acolhidas na sentença como crime de ameaça.
IX. Na verdade, tais factos apreciados à luz da intimidade do lar, terão de colocar as pessoas ofendidas numa situação que se devam considerar vítimas, mais ou menos permanentes, de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade dentro do ambiente conjugal/familiar. O que in casu nunca se verificou.
X. A vida em comum dos cônjuges, sob o mesmo tecto e agindo como se de estranhos se tratassem, estaria já há muito completamente inviabilizada com acção de divórcio intentada pelo cônjuge mulher em Maio de 2002.
XI. A protecção dada pela norma contida no n.º 2 do artigo 152º, do C.P. (anterior redacção) não se pode bastar com um casamento existente apenas no papel.
XII. A actuação do arguido relativamente aos seus filhos deve ser entendido como exercício de um poder correctivo de educação, no âmbito de discussões geradas com o pai, em torno de questões para as quais já sabiam da sua não aprovação, em época em que já eram adolescentes crescidos ou jovens adultos.
XIII. A expulsão de casa da filha T... e do filho F... deu-se quando já seriam maiores de idade, a primeira maior de 19 anos e o segundo maior de 21 anos e ambos com autonomia económica.
XIV. Para aquilitar sobre a prática de crimes de maus tratos, é igualmente importante averiguar da personalidade das vítimas, uma vez que o arguido agia na sequência de discussão a provocação delas.
XV. Razões que justificam e apontam para a exclusão da ilicitude das condutas do arguido e impõem a sua absolvição.
XVI. Sem prescindir, sempre considera o arguido que foi alvo de uma excessiva condenação ao ser-lhe aplicada, em cúmulo jurídico, uma pena de 4 anos e seis meses de prisão suspensa por igual período sob condição de pagar €500,00 à APEPI, sendo que a referida suspensão será ainda sujeita a regime de prova.
XVII. O tribunal recorrido considerou, por lapso, que o máximo a atender para balizar o referido cúmulo seria de 7 anos e seis meses de prisão, quando na verdade a soma das penas parcelares aplicadas correspondem a 6 anos de prisão.
XVIII. Considerando que a maior das penas parcelares aplicadas foi de 2 anos e 6 meses de prisão, tal constituirá o limite mínimo de condenação.
XIX. Limite esse considerado suficiente em termos de pena a aplicar ao arguido, uma vez que coincidirá com o mínimo a considerar tendo em conta a defesa do ordenamento jurídico e consequentemente com as necessidades de exigências requeridas pela prevenção geral.
XX. Quanto ás exigências de prevenção especial, a faculdade apurada conduz a uma prognose favorável ao arguido e daí a suspensão da execução da pena.
XXI. A decisão recorrida, por aplicação do actual regime constante dos art. 53º n.º 1 e 3 do CPP (redacção dada pela Lei n.º 79/2007, de 4 de Setembro), sujeitou o arguido a regime de prova, por aplicação automática do referido n.º 3, dada a medida da pena ter ultrapassado os três anos de prisão.
XXII. Conforme supra alegado e atendendo a que não deve ser aplicada a ao arguido pena de prisão superior a 3 anos e o regime de prova não dever ser considerado um mal acrescido, só deve ser decretado se e na medida em que tiver por objectivo alcançar a ressocialização.
XXIII. O que in casu não se verifica – o arguido tem 54 anos de idade e não tem quaisquer antecedentes criminais, relacionados ou não com actos violentos contra pessoas, já está divorciado, cessou a co-habitação com a mulher há mais de 2 anos e meio, não havendo especiais razões para vigiar a sua readaptação social (art. 53 n.º 2do C.P.), pelo que a aplicação de tal regime poderá ter efeitos contrários aos pretendidos, ao prevenir causas que já não se justificam.
XXIV. Razão pela qual deverá ser revogado o regime de prova.
XXV. Nos termos do artigo 2º nº 4 do CPP “quando as disposições vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis penais posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente(…)”.
XXVI. A redacção actual do artigo 53º n.º 3 só permite a aplicação cumulativa de deveres com regras de conduta, sendo mais favorável ao arguido a sua aplicação, já que na redacção anterior se permitia também a cumulação com o regime de prova.
XXVII. Resulta daí que a decisão de que se recorre também enferma de invalidade ao aplicar cumulativamente o dever de entrega de €500,00 com sujeição a regime de prova.
XXVIII. A decisão recorrida violou o disposto nos arts. 50º n.º 2 e 3, n.º 1 e n.º 3, 71º, n.º 1 e n.º 2, 77º, n.º 1 e n.º 2, todos do CP.
XXIX. Discorda ainda o arguido da sua condenação em valor a liquidar em execução de sentença, quanto ao dano em dente diferente do que resulta provado no relatório clínico junto aos autos, não existindo prova do respectivo nexo causal imputável à conduta do arguido pela agressão ocorrida em 14.07.2005».
Na resposta ao recurso o Ministério Público pronunciou-se pelo não provimento do recurso devendo a decisão proferida ser mantida na integra, sendo tal posição sufragada pelo Exmo. Senhor Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal da Relação.
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II. FUNDAMENTAÇÂO
As questões que importa decidir, face às conclusões efectuadas pelo recorrente são as seguintes:
1. Suficiência da prova para sustentar a matéria de facto dada como provada que não permite concluir que tenham sido preenchidos os elementos do tipo legal de crime de maus tratos, por ter sido incorrectamente julgada;
2. A actuação do arguido consubstancia o exercício de um poder correctivo de educação que justifica a exclusão da ilicitude da sua conduta.
3. Excessiva pena concreta aplicada, não devendo ser aplicada pena superior a três anos de prisão nem ser-lhe aplicado qualquer regime de prova;
4. Cumulação do regime de prova com a condenação no dever de entrega 500€ a instituição.
5. Condenação no pedido de indemnização por inexistência de prova sobre o nexo causa.
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Vejamos cada uma das questões, sendo certo que importa, num primeiro momento, atentar na sentença recorrida e na factualidade dada como provada pelo Tribunal, bem como na sua fundamentação.
São os seguintes os factos dados como provados:
«1. Em 25/07/1981, o arguido C... e a arguida M... s casaram um com o outro;
2. Do referido matrimónio nasceram três filhos: T…, nascida em 02/07/1982, F..., nascido em 27/08/1983 e D..., nascida em 09/08/1986;
3. Desde o início do casamento e até 21/12/2005, os mesmos têm residido na Rua …, V…, Pombal;
4. Logo após o casamento, o casal começou a ter desentendimentos motivados com gestão do dinheiro, arranjo da casa e, mais tarde com o trato dos filhos, considerando o arguido que sua esposa não desempenhava tais funções, que entendia como da sua exclusiva responsabilidade, adequadamente e que os filhos tinham comportamentos libertinos, ligações a drogas, álcool e a pessoas pouco recomendáveis, o que entendia ser fomentado pela esposa.
5. O facto de o arguido permanecer fora de casa até horas tardias, sozinho, sem a esposa e os filhos e apresentar quanto a estes exigências completamente diversas era também foco de inúmeros conflitos familiares.
6. Por isso, no âmbito das discussões por tais motivos, o arguido, dirigindo-se à esposa chamava-lhe “puta”, “porca”, “vaca”, “ordinária”, dizia-lhe que “não sabia fazer nada” e ameaçava-a de morte, o que ocorria periodicamente, em número exacto de vezes não apurado, mas em todo o caso, com reiteração.
7. Nessas ocasiões, por vezes, e também com alguma frequência, dava-lhe empurrões;
8. Logo após o nascimento da sua filha D..., em 09/08/86, a relação piorou, sendo que o arguido, passou também a, com periodicidade exacta não apurada, aquando das citadas discussões, por vezes o arguido, além de empurrar a sua mulher, M...de encontro às paredes e móveis da casa, deitava-a ao chão, dava-lhe pontapés, bofetadas e chegando a bater-lhe com uma colher de pau;
9. Em data não concretamente determinada, quando M...estava a dar de mamar à sua filha D..., o arguido disse-lhe para lhe ir arranjar o pequeno-almoço, ao que a mesma respondeu que tinha que esperar porque estava a dar de mamar;
10. Então, o mesmo puxou-a por um braço, arrastou-a para a cozinha e deu-lhe bofetadas e pauladas com uma colher de pau, atingindo-a indiscriminadamente por todo o corpo, donde resultaram hematomas;
11. E, quando a M...não lhe satisfazia a sua vontade, o arguido dizia que ia buscar uma caçadeira e afirmava que “qualquer dia a matava”;
12. Noutras ocasiões na presença dos filhos dizia “qualquer dia mato-vos a todos, meto fogo à casa e mato-me também”, “qualquer dia dou cabo de vocês todos, vou para a prisão mas não se hão-de rir de mim”;
13. Frequentemente o arguido face a qualquer contrariedade dizia à mulher e aos filhos que caso não satisfizessem o que dizia punha termo à vida, tendo chegado a apresentar-se com uma corda enrolada ao pescoço;
14. Numa ocasião, sem qualquer motivo, o arguido munido de uma faca que utilizava na sua actividade profissional de abate de animais de raça suína, caprina e bovina, disse à sua filha T..., encostando-lhe a faca ao peito e ao pescoço que a matava;
15. Outras vezes o arguido ia buscar a arma de caça e dizia “está aqui, se eu quisesse matava-vos, só não mato porque não quero”;
16 Desde o final do ano de 2001, contudo, que a relação entre o casal se degradou ainda mais, tendo em 20 de Maio de 2002, a M...proposto acção de divórcio litigioso, que deu origem ao processo nº 384/2002, do 2º juízo do Tribunal Judicial de Pombal, tendo com autora M... e réu C...;
17. Não obstante tal acção, embora fazendo economias separadas, ambos continuaram a residir na casa de morada da família, conjuntamente com os filhos.
18. Em data não concretamente determinada, há cerca de quatro/cinco anos contados de 21.12.05 numa altura em que a filha do casal T... estava a estudar na cidade de Tomar, o arguido apareceu na sua residência, por volta das duas horas da madrugada e completamente descontrolado dizia que se ia matar, tendo a T... de o acalmar e acabou por conduzir o veículo em que o mesmo se fazia transportar até Pombal;
19. Noutras ocasiões o arguido dizia à mulher M...e aos filhos que havia de pôr fogo à casa, tendo chegado a ir buscar um bidon de gasolina que tinha guardado no sótão da casa;
20. Em data não determinada, há cerca de quatro anos, contados da mesma data, o arguido puxou os cabelos à filha T..., empurrando-a pela escada a baixo e proibiu-a de voltar a entrar em casa, tendo-a expulsado de casa;
21. Fê-lo porque dias antes tinha intervindo numa conversa desta com o irmão e, apercebendo-se que a mesma se havia recusado a coser um botão em roupa deste, embora dispondo-se a ensinar o outro a fazê-lo, o que o arguido não achou correcto, e dirigiu palavras a que a filha replicou de modo que achou indelicado.
22. A partir de então, o arguido passou a exigir que a filha lhe pedisse desculpas, o que a mesma não fez e a tal recusa, o arguido reagiu da forma mencionada em 18;
23. A partir desse dia o F... frequentemente prestava auxílio à sua irmã T..., levando-lhe comida e roupa lavada à cidade de Tomar;
24. O arguido ao ter conhecimento da situação disse-lhe que se voltasse a Tomar, dormindo fora de casa evitava de voltar à mesma;
25. Face à recusa do F... em acatar a ordem do pai, o mesmo disse-lhe que não permitia que voltasse a entrar em casa e tentou agredi-lo fisicamente, tendo o F... fugido para a rua;
26. Decorridos alguns dias, no mês de Janeiro de 2004, o F... voltou a casa e tentou dialogar com o arguido, seu pai, acerca do sucedido, porém o mesmo disse-lhe que não tinha nada que conversar, voltou-lhe as costas e saiu de casa;
27. Neste mesmo dia o arguido ao chegar a casa, cerca da 1 hora da manhã dirigiu-se ao quarto do seu filho F... e ao vê-lo deitado na cama, destapou-o, acordou-o e disse-lhe que se fosse embora que não o queria mais em casa;
28. A partir deste dia o F... não voltou a entrar em casa dos pais, vivendo de favor em casa de um vizinho, A...;
29. Há cerca de um ano numa altura em que a filha D... pediu ao pai a pensão de alimentos, por a sua mãe não ter capacidade para fazer face a todas as despesas da casa e pagamento dos seus estudos superiores, que efectuava na cidade de Braga, o arguido disse-lhe que não tinha que contribuir com qualquer quantia e a partir desse dia nunca mais lhe dirigiu a palavra;
30. No dia 14 de Julho de 2005, entre as 20h30m e as 21 horas, ambos os arguidos se encontravam na cozinha da habitação ainda usada por ambos, quando o arguido ali entrou e ao destapar o tacho que se encontrava no fogão proferiu a seguinte expressão: “é a segunda vez que me fazes este trabalho”, porque considerou que a mesma lhe havia estragado a comida que estava no dito tacho.
31. De seguida agarrou o tacho e atirou o arroz contra a cara da mulher.
32. Após tal actuação, do arguido, a arguida atirou na direcção do mesmo, um tacho de barro que estava a lavar, com o qual o atingiu na cabeça.
33. Após ser atingido, o arguido, que mantinha na mão o tacho do arroz, atirou o mesmo contra a M..., atingindo-a na cabeça e clavícula esquerda.
34. Como consequência directa e necessária da conduta descrita, resultaram para M..., “traumatismo da região frontal esquerda com a consequente ferida incisa” e “fractura do dente inciso superior esquerdo” e “cicatriz linear na região frontal, medindo depois de rectificada 6 centímetros de comprimento”, as quais foram causa directa e necessária de um período de doença de 15 dias, com igual período de incapacidade para o trabalho geral e com 3 dias de incapacidade para o trabalho profissional;
35. Por seu lado, para o C..., resultaram, como consequência directa e necessária da conduta descrita ferimentos, que o forçaram a receber tratamento médico nos serviços de Urgência do Hospital Distrital de Pombal, tendo demandado para cura um período de 8 dias de doença, sem afectação para o trabalho geral e profissional.
36. Quando submetido a exame médico no Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz, apresentava “cicatriz de aspecto operatório de 4 cm de comprimento na região frontal direita e vestígios cicatriciais no lábio inferior”
37. Durante o período de tempo acima referido, em que durou o casamento de ambos e viveram na mesma casa, ao actuar da forma como fica supra descrita, C...provocou na M...sofrimento físico e emocional e nos seus filhos, T…, F... e D..., sofrimento emocional, em virtude das expressões que lhes dirigiu de forma continuada e reiterada e das agressões perpetradas e acima descritas;
38. O arguido visou ofender a honra e a dignidade da sua mulher, tendo actuado com o objectivo concretizado de provocar à mesma e seus filhos medo e aniquilar-lhes a sua liberdade de autodeterminação, impondo-lhes o cumprimento pelas suas opiniões, independentemente da vontade dos mesmos e das suas opiniões e posições pessoais;
39. Pretendia, com a sua actuação, atingir a sua mulher M...na sua saúde física e psíquica e os seus filhos na sua saúde psíquica, o que veio a conseguir, e causar-lhes receio pela sua integridade física e vida;
40. O mesmo sabia que a M...era sua mulher e os restantes seus filhos os quais se encontravam à sua guarda e cuidados, sendo o responsável pela sua educação, actuando com o propósito de os maltratar física e psiquicamente, o que fez de modo reiterado, de molde a atingir a sua dignidade humana bem como a sua integridade física e saúde psíquica;
41. Agiu o dito arguido de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente;
42. Com a sua conduta supra descrita, no dia 14.7.05, a arguida M...agiu com o propósito concretizado de molestar fisicamente o F... .
43. Actuou de modo voluntário, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
44. Em virtude das lesões que sofreram, tanto a M...como o C...sofreram dores e ficaram tristes e incomodados.
45. A M...suportou despesas de duas deslocações ao IML da Figueira da Foz, duas taxas moderadoras de episódios de urgência e despesas na restauração do dente 11, respectivamente nos montantes de 40€, 7,80€, 6,10€ e 40€.
46. A restauração do seu dente 21, ainda não concretizada, deverá ser feita mediante reconstrução através de coroa de revestimento total.
47. No dia 14/07/2005, M...foi assistida no Hospital Distrital de Pombal nesse mesmo dia e no dia seguinte, tendo os tratamentos importado em 71,50€.
48. Tal valor permanece por pagar à referida instituição.
49. Actualmente os arguidos já se encontram divorciados.
50. O arguido é respeitado socialmente e considerado uma pessoa calma e pacata por aqueles que o conhecem.
51. Vive sozinho desde 27/05/2006, convivendo embora actualmente de forma mais íntima com outra pessoa.
52. Está de relações cortadas com todos os filhos.
53. A arguida vive com os filhos na casa de família.
54. O arguido confessou parcialmente os factos».
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Para esta matéria de facto o Tribunal efectuou uma fundamentação da prova extensa que, dada a relevância para efeitos do conhecimento, se transcreve:
«O Tribunal formou a sua convicção conjugando os vários meios de prova, designadamente as declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelos arguidos, os depoimentos das testemunhas ouvidas na medida em que as mesmas revelaram possuir conhecimento pessoal e directo e quando os seus testemunhos se afiguraram credíveis e ainda na prova pericial e documental junta aos autos. Todos estes elementos de prova, exceptuada a prova pericial, foram apreciados à luz do preceituado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o que vale por dizer mutatis mutandis, que o foram segundo a livre convicção do julgador, de acordo com as regras davida e da experiência comum. Como é sabido, a livre apreciação da prova não é uma tarefa puramente emocional, subjectiva. Pelo contrário, o julgador, procurando alcançar a verdade material, actua observando as regras da experiência comum e critérios objectivos, de modo a que a conclusão a que chega, mas também o percurso que trilhou, sejam susceptíveis de controlo. Como é aliás jurisprudência constitucional assente, a livre apreciação da prova há-de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão (Vide, sobre o tema, Acórdãos do TC nº 1165/96 e 464/97 in www.tribunalconstitucional.pt). Concretizando. No que respeita à celebração do casamento entre os arguidos e respectiva data, o Tribunal socorreu-se da certidão de assento de casamento junta aos autos a fls. 68 e confirmada por ambos os arguidos. Quanto ao nascimento dos três filhos do casal e respectivas idades, foram suficientes as declarações dos arguidos e dos próprios, para que se considerassem assentes tais factos. Igualmente no que concerne à circunstância de desde o início do casamento, o casal ter residido na R…., V…, Pombal, data da separação de facto mesmo vivendo na mesma casa, divórcio posterior, vivência apartada a partir de determinada altura afiguraram-se bastantes as declarações de ambos os arguidos. Relativamente ao facto de em 20 de Maio de 2002, a M...ter proposto acção de divórcio litigioso que originou o processo nº 384/2002, do 2º juízo do Tribunal Judicial dePombal em que a mesma é autora e o arguido F... é Réu, atendeu-se à certidão de fls. 32 a 46 dos autos. No mais, o arguido C...admitiu parcialmente os factos, em termos tais que embora não vistos pelo próprio como confissão, acabaram por, atento o tipo de raciocínio que se constatou, analisados à luz das regras de experiência comum, confirmar os factos relatados pelas testemunhas inquiridas e os factos da acusação que se deram como provados. Com efeito, o arguido relatou um episódio passado entre si e a esposa: numa dada ocasião, à noite, o arguido chegou a casa vindo do café, tendo a esposa reclamado pela sua ausência fora de casa, pelo que o arguido lhe disse que já que a mesma não trabalhava, nem tinha a casa limpa e organizada, devia levantar-se diariamente com o arguido, pelas 4 ou 5 da manhã, para lhe preparar o pequeno-almoço, como uma esposa dedicada. Mais relatou o arguido que no dia seguinte de manhã, acordou a esposa para que lhe fosse preparar o pequeno-almoço, o que esta recusou pelo que a destapou e fê-la sair da cama e ir para a cozinha. Ali chegados, a mesma reiterou a sua recusa, motivo pela qual o arguido lhe desferiu uma bofetada e a agrediu com uma colher de pau de fazer os refogados, a qual se partiu no corpo da mulher. O arguido, negando outras agressões na esposa ou que alguma vez lhe tivesse chamado nomes, acabou por revelar, contudo, a visão que tem do papel da mulher da sua própria e de qualquer uma: uma figura diminuída, subserviente, sem vontade própria, vergada à do chefe da família: ele próprio. Disse que a esposa era pouco higiénica, que não obstante não trabalhar fora de casa não tinha a mesma limpa e arrumada, não cuidando adequadamente dos filhos e, quando questionado sobre o seu papel em tais tarefasdomésticas e parentais acabou por dizer que o mesmo se esgotava no trabalho que tinha fora de casa, angariador de sustento. Questionado como passou a ser quando a esposa, há muitos anos, havia passado a trabalhar fora, acabou por revelar que tudo se tinha mantido, incluindo a sua postura, deitando por terra a própria visão apresentada anteriormente de pura e simples divisão das responsabilidades. O arguido referiu ainda ter, de facto, duas armas em casa, mas fechadas em sacos e guardadas na dispensa, as quais nunca teria mencionado ou exibido. No mais, e no que respeita à pessoa da sua mulher, negou o arguido frontalmente a prática dos demais factos constantes do despacho de pronúncia, não logrando convencer o tribunal quanto ao relato que prestou. Senão vejamos. O arguido negou alguma vez ter insultado ou ameaçado a ofendida, sua mulher, descrevendo antes um quadro de uma vida familiar, uma ou outra vez pautada por alguns desentendimentos, mas até certo ponto normais uma vez que, como referiu, não eram factos suficientemente graves que o levassem a considerar a hipótese de divórcio. Ante factos dotados de inegável gravidade e que o implicam, o arguido assumiu assim uma postura insensível, como se de circunstâncias normais se tratassem. Não convenceu o tribunal, todavia, de que fosse essa a realidade do seu casamento. Apesar de o arguido ter negado apelidar a mulher de “puta”, “porca”, “vaca”, “ordinária”, o mesmo afirmou que por vezes a “chamava à atenção” porque a mesma, embora não tivesse qualquer emprego, não era a dona-de-casa e mãe que o arguido considerava que ela devia ser, não correspondendo às suas expectativas. Com base nesta circunstância justificou o arguido a existência de atritos entre o casal. Porém, o arguido acabou por revelar que a esposa só não trabalhou fora de casa nos primeiros dez anos de casamento, ficando entãopor perceber, à luz da tese defendida pelo arguido, porque razão as discussões continuaram mesmo após aquela ter começado a trabalhar fora de casa. Acresce que por um lado, o arguido assumiu em tribunal a sua insatisfação com a esposa e o facto de se ver forçado a repreendê-la constantemente mercê da incapacidade daquela para as tarefas maternais e domésticas, mas por outro lado só reconhece tê-la ofendido física e psicologicamente naqueles episódios isolados supra referidos. Ora, de acordo com as regras da experiência e vida comuns e em termos de normalidade, não é plausível que durante um casamento de tantos anos e marcado por tamanhas divergências, clivagem de posturas e modos de estar na vida e na relação marital, geradoras de incontáveis conflitos entre os cônjuges, o arguido se mantivesse numa posição passiva, explodindo abruptamente com tamanha gravidade em dois actos isolados e temporalmente muito distanciados entre si. As declarações que o arguido prestou mostram-se, pois, pautadas por esta patente incongruência. Ao que se pode ainda somar que, sendo a prova analisada como um todo, tal não é compatível com os depoimentos prestados pela ofendida e três filhos do casal, como oportunamente se verá. Por outro lado ainda, levantando a suspeita de que tudo se tratou de uma conluio engendrado contra si pela ofendida, com a conivência dos filhos, assim procurando justificação para negar os restantes factos constantes do despacho de pronuncia, o depoimento do arguido foi perdendo consistência e credibilidade à medida que se foi desenrolando. Pese embora o arguido tenha afirmado em sede de audiência de discussão e julgamento que os factos constantes da acusação tinham sido “arranjados” pela arguida M...para o pôr fora da casa, a verdade é que, entrecruzando os diversos depoimentos obtidos e restante prova, forçoso é concluir que tal não é verosímil. Procurou o arguido sustentar a versão que, em seu entender, seria mais susceptível de o favorecer ou pelo menos aquela que à luz da sua própria perspectiva o faz aparecercomum uma vítima e não como o verdadeiro agressor, sem contudo cuidar de explicar cabalmente as supra apontadas contradições. Não mereceu, por essa razão, total credibilidade, tendo aliás enveredado por uma postura desadequada – a de vítima nas mãos da esposa e filhos. Filhos esses que descreveu como jovens perturbados, com vivências de risco, inadaptados com comportamentos ligados ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas, de drogas e que deambulam, noite fora, com companhias pouco adequadas, encetando vivências íntimas promíscuas. Tal visão, já de si estranha num progenitor, revela-se completamente insensível aos afectos e pouco consentânea com a visão dada no seu discurso: a de pai preocupado com o adequado desenvolvimento dos filhos e cujo único propósito era transformá-los em adultos adaptados e capazes. Mas, acima de tudo, tal visão apresenta-se completamente desadequada face aos jovens adultos que o Tribunal viu e ouviu: académica e profissionalmente encaminhados, com discurso responsável e coerente, magoados, mas com um raciocínio e postura escorreitos e adequados. Importa esclarecer que, se em regra um depoimento surge perante o julgador de forma una e coesa, merecedor ou não de credibilidade como um todo, a verdade é que, dada a dinâmica da factualidade a apreciar e a envolvência ou o contexto específico em que os factos tiveram lugar, casos existem em que um dado depoimento pode revelar-se apenas credível em parte. Ao que acresce ser possível ao tribunal, conjugando um depoimento deste tipo com os outros meios de prova disponíveis, formular um juízo de fidedignidade apenas quanto a uma determinada parte do dito depoimento. É precisamente o que sucede no caso dos autos com o depoimento do arguido, o qual, acrescente-se, atenta a sua específica posição processual, não está sequer obrigado a depor com verdade. Quanto aos demais factos constantes do despacho de pronúncia relativos à sua esposa, o arguido, negando-os frontalmente, não logrou convencer o tribunal quanto ao relato que prestou, atenta a ausência de coerência na versão que apresentou. Ressalta-se aqui que, embora nada haja sido dito por si a esse respeito, foi o próprio, através de advogada quem, na acção de divórcio admitiu um outro acto de violência física sobre a esposa, passado no dia 13.1.2002, ao qual agora nem sequer fez referência, o que nos reforça ainda mais a ideia que reiteração das condutas, nos termos dados como provados, negando a visão que o próprio deu de as mesmas terem um carácter esporádico e quiçá justificado. Tudo isso, incluindo a sua própria versão das ocorrências que relatou e postura em audiência, nos levou a ver o arguido como foi descrito pela esposa e pelos filhos: uma pessoa autoritária, que não admitia ser contrariada, que recorria frequentemente à violência física e verbal quando algo não corria da forma como ele entendia ser adequado e apresentando uma dualidade de critérios, por exemplo no que concerne à sua própria vivência familiar e social e à dos demais membros do agregado, que, obviamente gerava e gerou sentimentos de injustiça, humilhação e sofrimento nos demais. No que concerne aos seus filhos, o arguido confirmou ter colocado fora de casa a T... e o F..., em virtude de os mesmos lhe terem faltado ao respeito, incentivados pela mãe. Relativamente à filha T..., o arguido confirmou os factos do despacho de pronúncia na parte em que se refere ao episódio em que o arguido expulsou a T... de casa, tendo relatado que lhe deu o tempo estritamente necessário para que ela se retratasse pela forma mal educada como se lhe dirigia, o que não ocorreu, pelo que a puxou, para a pôr na rua. Uma vez que ela se libertou fez nova investida e expulsou-a de casa, puxando-a pelos cabelos para a arrastar até à rua e empurrando-a nas escadas. Este relato foi confirmado pela T..., tendo esta acrescentado que tal sucedeu há cerca de sete anos. Já no que ao filho F... diz respeito, o arguido referiu que o mesmo ia ter com a irmã T... a Tomar para com ela partilhar as vidas deploráveis que agora a juventude tem e da qual discorda, tendo uma namorada nessa cidade e fazendo uma vida vagabunda, de bebedeira e estupefacientes. Nessa altura o filho tinha 20 anos. O arguido, disse-lhe então que se o F... não dormisse uma noite em casa, o expulsaria do lar, o que acabou por concretizar. Como se disse, estes episódios foram confirmados, grosso modo, pelas partes neles envolvidas, designadamente pelos filhos T... e F..., pelo que a sua descrição mereceu a credibilidade do tribunal, deste modo se considerando provados atinentes. No que respeita à ofendida e simultaneamente arguida, M..., a mesma relatou ao tribunal o modo como decorreu o seu casamento com o arguido, tendo versado o seu depoimento sobre a globalidade dos factos vertidos no despacho de pronúncia. Prestou um relato que se afigurou genuíno, credível, coerente e dotado de inequívoca lógica e, acima de tudo, compatível com a personalidade do arguido nos termos supra expostos e com alguns dos factos que o próprio relatou, analisados, como se referiu, à luz das regras de experiência comum. Pese embora a sua particular posição em relação ao arguido, relatou da forma mais clara e precisa que lhe foi possível os factos que a envolveram, nomeadamente, os insultos, ameaças e agressões físicas que o arguido lhe dirigiu e perpetrou ao longo do casamento, denotando, em vários momentos do seu depoimento, a mágoa natural de descrever episódios humilhantes da sua vivência com o arguido, à data seu marido.No seu discurso, não se denotou qualquer pretensão de retaliação em relação ao arguido, pelo contrário procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspectos da sua vida pessoal e familiar mencionados na pronúncia. Não se logrou descortinar que procurasse ampliar os factos sobre que depôs, nem que pretendesse prejudicar o arguido, como seria até tentador, atenta a natureza humana e considerado o contexto e a gravidade das situações que se apreciam. Manifestou sobretudo tristeza e desilusão face àquela que foi sua vivência ao longo de tantos anos. Assim, a sua abordagem não se revelou de maneira alguma hostil, chegando ao ponto de não confirmar alguns dos factos constantes da acusação – o que é perfeitamente coerente com uma vivência prolongada - o que contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da veracidade do seu relato. Note-se que, atendendo ao muito que contou, teria – quase que inevitavelmente – resvalado em contradições, não correspondesse o seu depoimento aos factos, tais quais ocorridos. Ao que acresce que no essencial, o conteúdo do seu depoimento foi corroborado pelas declarações dos filhos e da vizinha G..., como adiante se verá. O tribunal fundou ainda a sua convicção no depoimento prestado pelos três filhos do casal, os quais de forma muito sincera afastaram por sua iniciativa os factos sobre os quais não tinham conhecimento directo, referindo por diversas vezes não estarem presentes em dadas ocasiões ou não se recordarem de certos factos. Por assim ser, foi patente que não tinham qualquer intenção de prejudicar o arguido, nem de favorecer a ofendida, antes se movendo em termos de esclarecimento da verdade, contribuindo com os seus depoimentos também para a confirmação do depoimento da progenitora, mais longo, mais extenso, mais pessoal relativamente à esmagadora maioria do que relatou. A D..., depôs de forma crível, tendo manifestado alguma dificuldade emocional e inibição em reviver os factos que descreveu, o que só veio trazer maior credibilidade às suas palavras, credibilidade também reforçada pelo facto de o próprio arguido ter referido que sempre foi com ela que entabulou uma relação mais próxima. O depoimento desta contribuiu, também para negar credibilidade aos factos relatados pelo arguido, na parte que lhe diz respeito, tendo relatado o seu “distanciamento” do pai de forma diametralmente oposta à que o mesmo relatou. Foi ainda relevante para a formação da convicção do tribunal, o depoimento de T…, filha dos arguidos/assistentes, que prestou depoimento de forma tranquila e credível, manifestando ter conhecimento pessoal e directo sobre os factos e sendo o seu relato consentâneo com aquele prestado pela sua mãe e irmã D.... Foi igualmente dotado de relevância o depoimento de F..., filho do casal, que depôs de forma objectiva, espontânea, natural e verdadeira. Pese embora denotando alguma mágoa, não revelou animosidade para com o arguido que o impedisse de falar com verdade, sendo que o seu depoimento se afigurou muito credível e sério, logrando convencer o tribunal da correspondência com a realidade. Manifestando que preferia esquecer os episódios que ia relatando e afirmando ser complicado estar a contá-los em tribunal, dotou o seu depoimento de uma sinceridade inabalável. Assim, pela arguida e ofendida foi relatado que embora a sua relação com o arguido tenha piorado desde que propôs acção de divórcio litigioso em 2002, foi cedo, logo no início do casamento, que começou a ser vítima de ofensas verbais e empurrões “sem mais nem menos” por parte do marido, sendo que quando voltaram de lua-de-mel já vinham zangados porque tinha que ser tudo como o arguido desejava, não tendo a esposa direito a uma opinião. Acrescentou que por vezes estava a dormir e quando o marido chegava a casa “à hora que queria”, acordava-a a fim de terem relações sexuais. Quando recusava, o arguido pontapeava-a, chegando a atirá-la da cama abaixo. Por outro lado, referiu que o marido frequentemente a apelidava de “porca” e “vaca”, dirigindo-se-lhe ainda habitualmente dizendo “não sabes fazer nada”. Por via destas declarações conjugadas com os depoimentos dos filhos do casal, D... (que ouviu o pai apelidar a mãe de “porca” e que por vezes acordava de noite ouvindo o pai gritar com a mãe usando estas expressões), T... (que assistiu às agressões que o pai perpetrava na sua mãe através de bofetadas, empurrões, e utilizando uma colher de pau e esclareceu ter estado presente em vários momentos em que o arguido apelidava a sua mãe de “porca”, “estúpida”, “cabra” e “vaca”) e F... (que viu o pai dar bofetadas na mãe), bem como pela testemunha G..., o tribunal entendeu estarem suficientemente provados os factos referentes a tal circunstancialismo. Afirmou igualmente ao tribunal que o marido lhe apontou facas ao pescoço, bem como à sua filha T..., dizendo que as matava, tendo esta confirmado ao tribunal que, numa ocasião, o pai lhe apontou uma faca ao peito, dizendo-lhe que a matava. Tinha na altura perto de 18 anos. Também o irmão F... se referiu a este episódio. Em relação aos filhos, a M...acrescentou que assistiu ao desentendimento ocorrido entre a T... e o pai, tendo o arguido arrastado a filha pelos cabelos, expulsando-a de casa. Mais referiu que o arguido por vezes lhe dizia que a matava e os matava a todos, na presença dos filhos, como foi confirmado pelos mesmos. Relatou ainda ao tribunal que numa ocasião, na presença dos filhos, o arguido foi buscar uma caçadeira e disse que se matava e que os matava a todos, episódio este que foi também referido pela filha D.... Num outro momento em data não concretamente apurada, o arguido disse que tinha gasolina no sótão e que a ia buscar e queimava tudo. Este facto foi ainda presenciado pelas filhas T... e D..., esta última o localizando temporalmente como ocorrido antes de instaurada a acção de divórcio de seus pais. Mais referiu a M...que caso a própria e os filhos não fizessem as vontades ao arguido, o mesmo dizia-lhes que se ia matar. Neste contexto, o arguido tinha cordas no carro e também em casa, pondo por vezes a corda ao pescoço e dizendo que se ia enforcar na varanda. Igualmente numa ocasião dirigiu-se a Tomar, junto da filha T..., dizendo que se ia matar, o que foi confirmado por esta e num outro momento, quando a M...e a filha D... iam à praia, telefonou-lhes manifestando o mesmo propósito. Já quanto ao episódio de expulsão do filho F..., afirmou não possuir conhecimento directo dos factos mas esclareceu que quando tal ocorreu, o filho trabalhava apenas esporadicamente, não estando sequer inscrito no Instituto de Segurança Social. Quanto à filha D..., referiu que quando a mesma iniciou os estudos na faculdade, em Braga, pediu dinheiro ao pai, o que este recusou, o que foi confirmado pela própria que acrescentou que tal ocorreu em 2004, deixando o pai de lhe falar desde então. A partir daí, apenas sobreviveu e pode estudar com o auxílio de uma bolsa de acção social e a ajuda da mãe. A conjugação destes depoimentos levou à prova dos factos atinentes dados como provados. Referiu ainda a M...que em data não concretamente determinada, quando estava a dar de mamar à sua filha D..., o arguido ordenou que lhe fosse arranjar o pequeno almoço, ao que a mesma respondeu que tinha que esperar porque estava a dar de mamar. Então, o marido puxou-a por um braço, arrastou-a para a cozinha e deu-lhe bofetadas e pauladas com uma colher de pau, atingindo-a por todo o corpo e provocando-lhe hematomas. Estes factos haviam já sido parcialmente admitidos pelo arguido e conduziram à prova dos factos atinentes. Importa acrescentar que contribuíram para a prova da dependência dos filhos do casal relativamente aos progenitores as declarações prestadas pela T... referindo que aquando dos factos que lhe dizem respeito ainda dependia economicamente dos pais mas que aquando do episódio da expulsão se sustentava a si própria em virtude de ter começado a trabalhar em regime de part-time tempos antes por a mãe não lhe conseguir prestar o auxílio necessário a todos os filhos e não puder contar com o pai. Quanto ao irmão F..., e reportando-se ao momento em que foi expulso de casa, afirmou que nessa altura o mesmo fazia uns biscates, não tendo emprego certo. Mais referiu a ofendida T... que em virtude dos comportamentos do pai se sentia mal, bem como os irmãos, nunca estando descansados e temendo pela sua integridade física, já que o pai era, nas suas palavras “como uma bomba relógio”, nunca se sabendo o que ia suceder a seguir. Quanto ao ofendido F..., é de salientar que o mesmo disse ser vítima do pai desde criança e que desde então andava sob pressão e com medo. Acrescentou que não podia emitir opiniões, andando “domesticado”. Admitiu que levava a sério as ameaças de morte que o pai lhes proferia. Mais esclareceu que quando foi expulso de casa pelo pai, trabalhava em tectos falsos mas ainda vivia na dependência económica do seu pai porque o patrão só pagava “quando se lembrava”, não tendo a sua situação profissional definida. O tribunal atendeu ainda ao depoimento da testemunha G..., vizinha do arguidos e ofendidos que, de forma isenta, objectiva e verosímil, esclareceu que desde que reside junto daqueles desde 1993, sendo vizinha “de porta com porta”, pelo que ouvia frequentemente discussões conjugais, o que se mostra consentâneo com os retratos traçados pelas pessoas anteriormente identificadas. Assim, afirmou que as discussões sempre existiram e eram muito frequentes, por vezes durando até às cinco da manhã, tendo-se agravado para o final, em virtude da acçãode divórcio. Mais relatou que as mesmas, ao que percebia, se ficavam a dever a assuntos relacionados com dinheiro ou trabalho, tendo percebido numa ocasião que o motivo de discussão era o facto de a M...não querer ter relações sexuais com o marido. A circunstância de a testemunha se ter apercebido do conteúdo das discussões é perfeitamente plausível já que, como esclareceu, a sua cozinha correspondia à cozinha dos arguidos e a sua sala ao quarto do casal, divisões estas separadas apenas por uma parede. Esta testemunha afirmou ainda ter ouvido o arguido dizer: “dou cabo de vocês todos e depois mato-me”. O seu depoimento revelou-se assim, essencial na corroboração das declarações dos ofendidos M..., D..., T... e F..., uma vez que se trata de uma pessoa estranha à família, sem qualquer conflito com o arguido, desprovida de qualquer interesse na causa e, como tal, absolutamente isenta e imparcial. Esta testemunha relatou também um episódio em que o arguido procurou a esposa no café e discutiu com ela questionando o porquê de tomar o pequeno almoço no estabelecimento quando o devia fazer em casa, sendo certo que nessa altura a M...já trabalhava e era a dita testemunha quem a transportava para o local de trabalho porque o uso da viatura não lhe era permitido pelo marido. Foi ainda inquirido A..., vizinho dos arguidos/ofendidos, com quem o F... foi viver quando o pai o expulsou de casa, não tendo no entanto conhecimento dos restantes factos constantes do despacho de pronúncia. Tal testemunha que acolheu o filho do casal durante longo tempo, descreveu-o como um rapaz educado, maduro, responsável, que nunca causou qualquer problema em casa, não tendo nunca visto sinais de embriaguez, drogas ou qualquer indício de comportamentos sociais que entendesse desadequados. Pela testemunha H... foi referido que tanto o F... como a M...lhe fizeram queixas, embora nunca tenha assistido a discussões, pelo que o seu depoimento pouco contribuiu para a convicção do tribunal. Prestaram ainda declarações as testemunhas I..., K..., L..., N... e O..., conhecidos e amigos do arguido as quais, na medida em que a nada assistiram, não contribuíram para o esclarecimento dos factos, excepção feita à parte em que caracterizaram o arguido como pessoa de bom relacionamento, calmo e pacato. Assim e quanto aos aspectos atinentes à personalidade do arguido, atendeu-se ao depoimento destas testemunhas que, sendo seus amigos e com aquele conviventes, depuseram de modo que se afigurou sincero e convincente. No que respeita à ausência de antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal baseou-se nos certificados de registo criminal juntos os autos. Já no que tange à situação pessoal, familiar e profissional dos arguidos, foram valoradas as suas próprias declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento as quais se afiguraram credíveis. Considerou-se, também, a informação clínica, remetida pelo Hospital Distrital de Pombal, a fls. 70 e 201, quanto às lesões que foi possível a esta unidade hospitalar observar nos ofendidos, quando aí receberam tratamento. Igualmente se atendeu, quanto à extensão das lesões sofridas, aos relatórios do Gabinete Médico-Legal da Figueira da Foz de fls. 4 a 6, 7 a 9 e 89 a 91. Tais documentos foram conjugados com as declarações dos arguidos/ofendidos e com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas. No que tange ao incidente do dia 14 de Julho de 2005, o arguido referiu que na cozinha da residência do casal se apercebeu que o tacho que continha o seu arroz estava estragado com água, como já tinha acontecido antes, pelo que se dirigiu à arguida dizendo “é a segunda vez que me fazes isto”, tendo a mesma respondido que o arroz estava estragado. De seguida o arguido, estando aborrecido, atirou o arroz para a cara da M..., pelo que ela o atingiu na cabeça com o tacho de barro que tinha nas mãos, tendo de seguida o arguido atingido a mesma, igualmente na cabeça e com o tacho em que tinha preparado o arroz. Quanto ao episódio do dia 14 de Julho de 2005, não existe outra prova que não os elementos médicos e periciais constantes dos autos, as declarações dos arguidos/assistentes e ofendidos e os depoimentos de várias testemunhas que viram ambos, após os factos, tendo visto que tanto um como outro se encontravam feridos, muito embora não tenham assistido aos factos propriamente ditos. Ora, quanto a tal episódio, a arguida M...admitiu que se encontrava na cozinha a lavar um tacho de barro quando o arguido destapou o seu tacho de arroz. Porém, contrariando a versão do arguido, afirma que o arroz que se encontrava no seu interior estava azedo (já que estava desde o dia anterior em cima do fogão) e que o arguido de imediato o atirou para cima de si, atingindo-a no rosto, pelo que acto contínuo, deixou cair o tacho de barro que segurava ao chão, o qual de imediato de estilhaçou, afirmando, peremptoriamente, no entanto, que sem atingir o arguido. De seguida o arguido atirou-lhe com o tacho que ele próprio agarrava, atingindo-a no rosto e causando-lhe ferimentos que a obrigaram a receber assistência hospitalar. É assim patente que a versão da arguida M...quanto a estes factos ocorridos no dia 14 de Julho de 2005 diverge do relato que o assistente F... fez dos mesmos. Com efeito, o arguido relatou ao tribunal que naquelas circunstâncias de tempo e local se dirigiu à cozinha, pretendendo jantar um arroz que havia confeccionado na véspera. Nessa ocasião,a arguida estava também no interior da cozinha, a lavar um tacho de barro, tendo-se afastado para o centro daquela divisão, mantendo o dito tacho na mão. O arguido apercebeu-se então que o tacho que continha o seu arroz estava estragado com água, como já tinha acontecido antes, pelo que se dirigiu à arguida dizendo “é a segunda vez que me fazes isto”, tendo a mesma respondido que o arroz estava estragado. De seguida o arguido, estando aborrecido, atirou o arroz para a cara da M..., pelo que ela o atingiu na cabeça com o tacho de barro que tinha nas mãos, tendo de seguida o arguido atingido a mesma, igualmente na cabeça e com o tacho em que tinha preparado o arroz. Nasce assim a questão de saber se a arguida atingiu ou não o assistente com o tacho de barro que tinha nas mãos, sendo certo que o assistente postula que sim, tal como consta do despacho de pronúncia, enquanto a arguida nega, dizendo que o tacho lhe caiu ao chão, de imediato se quebrando. Não obstante a ausência de qualquer outros relatos presenciais, resulta claro, a nosso ver, que a versão do arguido, neste particular é a mais consentânea com os demais elementos de prova e com as regras de experiência comum, posto que a arguida não explica, de forma minimamente credível, por que forma o arguido contraiu as lesões que lhe foram constatadas pela perícia e as quais apresentava, imediatamente após terem estado, os dois sozinhos na cozinha da casa. Tal explicação é-nos dada, precisamente, pela versão do arguido, que aceitando que agrediu, refere que também foi agredido em termos tais que são confirmados, pelo depoimento das pessoas que o viram logo após o facto, “escorrendo” sangue da cabeça e pelos elementos médicos constantes dos autos que relatam lesões compatíveis com os factos que o mesmo relatou. De resto, essa versão é perfeitamente compatível com as regras de experiência comum e, por isso, foi consignada. Quanto às consequências dos factos resultaram dos depoimentos das testemunhas que sobre os mesmos depuseram, dos elementos clínicos e documentais juntos aos autos e das regras de experiência comum, que nos fazem ver claramente que lesões do tipo das enunciadas provocam dores e, manifestamente, pessoas normais e de sensibilidade mediana ficam tristes e humilhadas com ocorrências do género, o que, de resto, resultou provado, aconteceu com ambos os envolvidos. Por último, no que respeita aos factos não provados, não foi produzida qualquer prova que os permitisse considerar como provados, em virtude de as pessoas inquiridas quanto a eles não terem logrado convencer o Tribunal da sua veracidade ou de as mesmas não revelarem ter conhecimento pessoal e directo ou mesmo de os terem negado».
*
1. Suficiência da prova para sustentar a matéria de facto dada como provada que não permite concluir que tenha sido preenchidos os elementos do tipo legal de crime de maus tratos, por ter sido incorrectamente julgada.

Os Tribunais da Relação conhecem de facto e direito, segundo o artigo 428º do CPP, dentro das limitações decorrentes das conclusões expostas na motivação de quem recorre e, quando efectuada a documentação da prova produzida em audiência, podendo reapreciar amplamente a prova produzida, de acordo com os artigos 412º n.º 2 e 431º do CPP.
São duas as formas pelas quais é possível sindicar a matéria de facto.
De um lado, de acordo com o artigo 410º n.º 2 do CPP, quando os vícios da decisão, resultantes do seu próprio texto, por si ou conjugados com as regras de experiência evidenciam a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. «Vícios da decisão, não do julgamento», como refere Maria João Antunes in «Conhecimento dos vícios previstos no artigo 410º n.º 2 do CPP, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março,1994, p. 121.
De outro lado o erro de julgamento, ou seja quando o tribunal considera provados determinados factos, sem que tivesse havido prova dos mesmos ou quando se dá como não provados factos que, contrariamente à prova produzida, deveriam ter sido dados como provados devendo.
Os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP
Neste último caso, a impugnação alargada da matéria de facto, de acordo nos termos do artigo 412º n.º 3 e 4 não se restringe ao texto da decisão alargando-se, igualmente, à prova documentada e produzida na audiência, sempre dentro dos limites que constam nas alegações do recorrente e que devem cumprir o estabelecido no artigo citado.
Como tem sido amplamente decidido pelos Tribunais superiores, o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que estes considera imporem solução diversa (cf., neste sentido, os Ac. TR Coimbra, de 26 de Maio de 2009, proc. N.º 59/07.0PBCVL.CI, Ac. STJ de 14.3.2007, Proc. 07P21 e Ac. STJ 23 de Maio de 2007, Proc. Nº 07P1498).
Efectuadas estas considerações, importa, face ao alegado pelo recorrente, que não foi muito claro na distinção referida, efectuar uma análise sobre a verificação dos dois vícios referidos.
a) Insuficiência da matéria de facto provada.
O recorrente começa por invocar a insuficiência da matéria de facto provada por virtude de as afirmações que constam como factos provados (pontos 6,7, 8,12, 13,14, 15 e 19) «não passarem de afirmações genéricas e conclusivas dentro de um dado limite temporal, não traduzindo imputações concretas, circunstanciadas no tempo e no espaço, do número de agressões feitas, espécie, gravidade e respectivas consequências de modo a poder-se concluir por um tratamento de maus tratos físico-psiquicos». Ainda segundo o recorrente não basta «fazerem-se afirmações genéricas e apenas concretizar duas agressões: uma ocorrida há mais de 20 anos (1989) – ponto 8 dos factos provados) e outra em Julho de 2005 (pontos 30 e 33 da matéria de facto provada)».
O Tribunal condenou o recorrente como autor de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 e 2 do Código Penal (cometido na pessoa da sua ex mulher) e três crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 do Código Penal (cometidos nas pessoas dos seus três filhos).
No que respeita aos factos referentes ao crime cometido na pessoa da sua ex mulher os factos em causa são os factos dados como provados nos pontos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 19, 30 e 37 da matéria de facto.
Sintetizando o que decorre de tais factos o que aí se diz é que logo após o casamento (25.07.1981), o casal começou a ter desentendimentos motivados com gestão do dinheiro, arranjo da casa e, mais tarde com o trato dos filhos, considerando o arguido que sua esposa não desempenhava tais funções, que entendia como da sua exclusiva responsabilidade, adequadamente e que os filhos tinham comportamentos libertinos, ligações a drogas, álcool e a pessoas pouco recomendáveis, o que entendia ser fomentado pela esposa. O facto de o arguido permanecer fora de casa até horas tardias, sozinho, sem a esposa e os filhos e apresentar quanto a estes exigências completamente diversas era também foco de inúmeros conflitos familiares. Por isso, no âmbito das discussões por tais motivos, o arguido, dirigindo-se à esposa chamava-lhe “puta”, “porca”, “vaca”, “ordinária”, dizia-lhe que “não sabia fazer nada” e ameaçava-a de morte, o que ocorria periodicamente, em número exacto de vezes não apurado, mas em todo o caso, com reiteração. Nessas ocasiões, por vezes, e também com alguma frequência, dava-lhe empurrões. Logo após o nascimento da sua filha D... ., em 09/08/86, a relação piorou, sendo que o arguido, passou também a, com periodicidade exacta não apurada, aquando das citadas discussões, por vezes o arguido, além de empurrar a sua mulher, M...de encontro às paredes e móveis da casa, deitava-a ao chão, dava-lhe pontapés, bofetadas e chegando a bater-lhe com uma colher de pau. Em data não concretamente determinada, quando M...estava a dar de mamar à sua filha D... [que nasceu em 9.6.1986] o arguido disse-lhe para lhe ir arranjar o pequeno-almoço, ao que a mesma respondeu que tinha que esperar porque estava a dar de mamar. Então, o mesmo puxou-a por um braço, arrastou-a para a cozinha e deu-lhe bofetadas e pauladas com uma colher de pau, atingindo-a indiscriminadamente por todo o corpo, donde resultaram hematomas. Quando a M...não lhe satisfazia a sua vontade, o arguido dizia que ia buscar uma caçadeira e afirmava que “qualquer dia a matava”. Noutras ocasiões na presença dos filhos dizia “qualquer dia mato-vos a todos, meto fogo à casa e mato-me também”, “qualquer dia dou cabo de vocês todos, vou para a prisão mas não se hão-de rir de mim”. Frequentemente o arguido face a qualquer contrariedade dizia à mulher e aos filhos que caso não satisfizessem o que dizia punha termo à vida, tendo chegado a apresentar-se com uma corda enrolada ao pescoço. Desde o final do ano de 2001, contudo, que a relação entre o casal se degradou ainda mais, tendo em 20 de Maio de 2002, a M...proposto acção de divórcio litigioso, que deu origem ao processo nº 384/2002, do 2º juízo do Tribunal Judicial de Pombal, tendo com autora M... . e réu C...; não obstante tal acção, embora fazendo economias separadas, ambos continuaram a residir na casa de morada da família, conjuntamente com os filhos. No dia 14 de Julho de 2005, entre as 20h30m e as 21 horas, ambos os arguidos se encontravam na cozinha da habitação ainda usada por ambos, quando o arguido ali entrou e ao destapar o tacho que se encontrava no fogão proferiu a seguinte expressão: “é a segunda vez que me fazes este trabalho”, porque considerou que a mesma lhe havia estragado a comida que estava no dito tacho. De seguida agarrou o tacho e atirou o arroz contra a cara da mulher. Após tal actuação, do arguido, a arguida atirou na direcção do mesmo, um tacho de barro que estava a lavar, com o qual o atingiu na cabeça. Após ser atingido, o arguido, que mantinha na mão o tacho do arroz, atirou o mesmo contra a M..., atingindo-a na cabeça e clavícula esquerda. Como consequência directa e necessária da conduta descrita, resultaram para M..., “traumatismo da região frontal esquerda com a consequente ferida incisa” e “fractura do dente inciso superior esquerdo” e “cicatriz linear na região frontal, medindo depois de rectificada 6 centímetros de comprimento”, as quais foram causa directa e necessária de um período de doença de 15 dias, com igual período de incapacidade para o trabalho geral e com 3 dias de incapacidade para o trabalho profissional. Durante o período de tempo acima referido, em que durou o casamento de ambos e viveram na mesma casa, ao actuar da forma como fica supra descrita, C...provocou na M...sofrimento físico e sofrimento emocional, em virtude das expressões que lhes dirigiu de forma continuada e reiterada e das agressões perpetradas e acima descritas.
Efectivamente, com excepção do facto referido em 30, que se encontra precisamente datado (os factos ocorreram em 14.7.2005), todos os restantes factos dados como provados não estão precisa e minuciosamente concretizados numa data precisamente identificada. Mas poderiam estar? Ou dito de outro modo, o facto de não se ter identificado precisamente a data da ocorrência precisa dos factos relatados é indicativo de uma insuficiência da matéria de facto para consubstanciar o crime de que o arguido foi acusado, julgado e agora condenado?
A resposta a esta questão pressupõe desde logo uma análise, ainda que breve, ao crime de maus tratos previsto e punido no artigo 152º do C. Penal (crime que actualmente se denomina violência doméstica, após a reforma do Código Penal decorrente da Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro).
O crime de maus tratos previsto actualmente no artigo 152º foi introduzido no C. Penal no artigo 153º, então sobre a epígrafe de «maus tratos ou sobrecarga de menores e de subordinados ou entre cônjuges» consubstanciando desde então, pela sua pouco clara formulação, um tipo criminal de grande conflito dogmático e jurisprudencial.
A redacção do primitivo artigo, na versão original do Código penal de 1982, aprovado pelo Decreto lei n.º 400/82 de 23 e Setembro, estabelecia no artigo 153º n.º 1 que «O pai, mãe ou tutor de menor de 16 anos ou todo aquele que o tenha a seu cuidado ou à sua guarda ou a quem caiba a responsabilidade da sua direcção ou educação será punido com prisão de 6 meses a 3 anos e multa até 100 dias quando, devido a malvadez ou egoísmo: a) Lhe inflingir maus tratos físicos, o tratar cruelmente ou não lhe prestar os cuidados ou assistência à saúde que os deveres decorrentes das suas funções lhe impõem; b) o empregar em actividades perigosas, proibidas ou desumanas, ou sobrecarregar, física ou intelectualmente, com trabalhos excessivos ou inadequados de forma a ofender a sua saúde, ou o seu desenvolvimento intelectual, ou a expô-lo a grave perigo». No n.º 3 do artigo estabelecia-se então que «da mesma forma será ainda punido quem inflingir ao seu cônjuge o tratamento descrito na alínea a) do n.º 1 deste artigo».
Até 1995, após a reforma introduzida pelo Dec. Lei n.º 48/95, discutia-se e julgava-se nos tribunais a questão de saber se só as condutas cometidas com «malvadez ou egoísmo» consubstanciavam o crime de maus-tratos entre cônjuges. Com aquela reforma o legislador introduziu várias modificações no tipo de crime nomeadamente previndo a partir de então os maus-tratos psíquicos, eliminando a questão da malvadez e egoísmo, mas tornando o procedimento criminal dependente de queixa.
Em 1998, através da Lei n.º 65/98 de 2 de Setembro, o legislador veio novamente alterar o dispositivo legal que envolvia o tipo de crime e mantendo o tipo de crime dependente de queixa atribuiu ao Ministério Público a possibilidade de «dar inicio ao procedimento se o interesse da vítima o impuser e não houver oposição do ofendido antes de ser deduzida a acusação».
Em 2000, com a Lei n.º 7/2000 de 27 de Maio, nova alteração legislativa ao tipo de crime retirando a dependência da queixa e criando a pena acessória de proibição de contacto com a vítima e criando ainda um conjunto de normas processuais sobre a possibilidade de aplicação da suspensão provisória do processo.
Finalmente em 2007, com a Lei nº 59/2007 a autonomização do crime de maus tratos conjugais em crime de violência doméstica, com natureza pública e um quadro típico diferenciado em relação às anteriores redacções.
Desta brevíssima análise pode concluir-se que as oscilações legislativas referentes ao crime não sendo muito lineares exigem algumas explicitações que mesmo assim não omitem algumas perplexidades interpretativas.
Quanto aos elementos típicos do crime vale a pena sublinhar que se mantiveram praticamente incólumes desde a reforma de 1995, a partir do momento em que incluíram como condutas típicas várias formas de violência, para além da violência física propriamente dita que decorrem de humilhações, vexames, insultos, ameaças e que constituem, para efeitos do crime os maus-tratos psíquicos. Em 2007, (que para o caso não tem relevância, diga-se) esse leque de condutas é alargado nomeadamente a ofensas sexuais.
Ao que nos importa e porque estão em causa nestes autos factos que ocorreram ao longo de um tempo muito longo nomeadamente entre 1981 e 14.7.2005 é sublinhar que pelo menos desde 2000 que o crime em causa tem a natureza pública e, consequentemente os actos que constituem o tipo de crime não podem deixar de ser visto dessa forma, nomeadamente em sede de relevância dos actos concretos que possam constituir os elementos do crime, em termos de prescrição.
Uma outra decorrência das oscilações normativas do tipo de crime decorre do próprio conceito de «maus tratos» (físicos ou psíquicos), nomeadamente, da ocorrência pontual das condutas que consubstanciam os maus tratos terem que ser reiteradas ou bastarem-se na sua concretização ocasional.
Foi entendido por alguma doutrina e jurisprudência (sobretudo até reforma de 2007) que a reiteração de condutas é um dos elementos exigidos para configuração do tipo criminal – assim, Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, 1999, p. 334.
Se é certo que o legislador de 2007 veio expressamente referir que a conduta que configura o crime não tem que ser necessariamente reiterada - «Quem, de modo reiterado ou não…», artigo 152º do CP - entendemos que já assim era antes da explicitação legislativa de 2007, conforme é sublinhado, também, pela jurisprudência – cf. o Acordão desta Relação de Coimbra de 25.03.2009, proc. 624/07.
A reiteração de uma conduta pode ser um elemento fundamental para a caracterização do próprio elemento do crime, mas não é só por si exigência da conduta – basta pensar numa agressão física violenta mesmo efectuada uma única vez que deixe a vitima absolutamente mal tratada.
Questão diferente é a ocorrência de várias condutas reiteradas no tempo, diferenciadas no grau e no tipo de conduta, que por si só não assumam uma especial gravidade mas que quando interpretadas e vistas no enquadramento de uma relação conjugal assumem ou podem assumir claramente uma conformação de maus tratos. Ou seja, ao longo de um determinado período de tempo, no âmbito da relação conjugal, um dos cônjuges, agride, humilha, ameaça, injuria ou pratica outros actos que põem em causa a saúde do cônjuge, mesmo que não revista cada um deles de per si uma gravidade significativa.
Tendo em conta a natureza humana da relação conjugal e sobretudo não omitindo que essa relação conjugal assenta em deveres específicos de respeito mútuo pelos direitos de cada um dos seus elementos, não se pode omitir que simultaneamente se trata de uma relação intima que decorre num círculo de privacidade (e não de publicidade) não sendo nem tendo que ser visível muito do que aí se passa e, por isso, conhecido de outros que não dos próprios elementos que a constituem.
Tudo o que vem de ser dito releva directamente no caso sub judice tendo em conta as objecções suscitadas pelo recorrente.
Efectivamente se olhado o último acto provado ocorrido entre os cônjuges, em 14.7.2005 (não questionado pelo arguido) que claramente consubstancia uma violação da integridade física da arguida/ofendida por parte do arguido [não se está a apreciar, nesta decisão os factos pelos quais a arguida foi julgada, refira-se], o que se evidencia notoriamente de toda a factualidade é que este foi o último dos actos praticados pelo arguido na pessoa do seu cônjuge. Ou seja de toda a matéria de facto provada – e alguma dela necessariamente ocorrida em momentos em que o crime de maus tratos entre cônjuge (hoje violência doméstica) tinha outras características típicas – resulta evidente que o arguido, durante vários anos cometeu praticou factos que constituem condutas que integram o conceito de maus tratos para efeitos do artigo 152º do CP.
Não pode haver outro entendimento quando se dá por provado na sentença, que «Quando a M...não lhe satisfazia a sua vontade, o arguido dizia que ia buscar uma caçadeira e afirmava que “qualquer dia a matava”. Noutras ocasiões na presença dos filhos dizia “qualquer dia mato-vos a todos, meto fogo à casa e mato-me também”, “qualquer dia dou cabo de vocês todos, vou para a prisão mas não se hão-de rir de mim”. Frequentemente o arguido face a qualquer contrariedade dizia à mulher e aos filhos que caso não satisfizessem o que dizia punha termo à vida, tendo chegado a apresentar-se com uma corda enrolada ao pescoço».
Factos estes que conforme decorre da sentença ocorreram antes de 2001, na medida em que «Desde o final do ano de 2001, contudo, que a relação entre o casal se degradou ainda mais, tendo em 20 de Maio de 2002 a M...proposto acção de divórcio litigioso, que deu origem ao processo nº 384/2002, do 2º juízo do Tribunal Judicial de Pombal, tendo com autora M... . e réu C...; não obstante tal acção, embora fazendo economias separadas, ambos continuaram a residir na casa de morada da família, conjuntamente com os filhos».
E igualmente se dá como provado que «Durante o período de tempo acima referido, em que durou o casamento de ambos e viveram na mesma casa, ao actuar da forma como fica supra descrita, C...provocou na M...sofrimento físico e sofrimento emocional, em virtude das expressões que lhes dirigiu de forma continuada e reiterada e das agressões perpetradas e acima descritas».
Ou seja o que se diz na sentença não são meras afirmações genéricas mas antes factos que demonstram não só a ocorrência de condutas que integram o conceito de maus tratos físicos – como é o caso dos factos referidos nos pontos 30 e 33 referentes às condutas de Julho de 2005 – factos que demonstram a ocorrência de maus tratos psicológicos, vexames e humilhações ao longo do tempo que decorreu o casamento e se agravaram depois de 2001.
Não se verifica assim qualquer insuficiência da matéria de facto relativa à conduta que constitui o crime de maus-tratos entre cônjuge atribuído ao arguido, cometido na pessoa da sua ex-mulher.
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b) Matéria de facto incorrectamente julgada
Num segundo conjunto de razões, o recorrente alega que o tribunal terá ainda incorrectamente julgado a matéria de facto, uma vez que em sede de audiência e julgamento não foi produzida prova bastante para tal. Concretamente, refere o recorrente, a propósito do ponto 8 dos factos provados onde se diz que «o arguido empurrava a sua mulher contra as paredes e móveis da casa, deitava-a no chão, dava-lhe pontapés», segundo o mesmo recorrente, tal não é suportado em prova produzida. Por outro lado o arguido nunca terá proferido a expressão “qualquer dia” referida nos pontos 11 e 12 dos factos provados «em verbalizações que vêm acolhidas na sentença recorrida como crime de ameaças».
Importa antes de mais sublinhar e tecer algumas considerações sobre a fundamentação da matéria de facto provada que consta na sentença
Conhecendo-se o princípio fundamental da fundamentação das sentenças que decorre do artigo 205º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que aqui está em causa é concretizar a exigência de duas finalidades. De um lado as finalidades endoprocessuais, cuja dimensão mais visível será a possibilidade de controlo da sentença por um Tribunal superior, evitando decisões arbitrárias mas que, além disso, pretendem concretizar uma garantia de defesa do arguido (na medida em que apenas com a fundamentação pode ser concretizado o direito constitucional ao recurso) e finalmente assumir um mecanismo de autocontrolo do próprio Tribunal.
De outro lado as finalidades extraprocessuais que assumem uma especial relevância no domínio da legitimação da jurisdição, na concretização do princípio da transparência do órgão decisor mas também como garantia de uma efectiva responsabilização e prestação contas de quem julga.
Ou seja e em síntese, o dever de dar razões do modo como se decide é hoje, provavelmente, a questão central no domínio do processo penal de um Estado de Direito democrático, assumindo este princípio, no entanto, um conjunto de requisitos que, no caso do CPP, se retiram do quadro normativo dos artigos 374º e 379º.
Assim, na concretização do que deve ser uma fundamentação vinculadamente constitucional sustentado no princípio de que todas as questões suscitadas e decididas devem ser objecto de fundamentação (o chamado princípio da completude), as normas processuais referidas impõem que a fundamentação obedeça ao princípio da concisão. Nesse sentido e concretizando essa concisão, a fundamentação deva sempre ser suficiente, coerente e a razoável, de modo a permitir cumprir as finalidades que lhes estão subjacentes (endo e extra processuais).
Na concretização da fundamentação da sentença, no domínio do CPP, trata-se, assim, de concretizar uma narração argumentativa efectuada pelo juiz que exponha, de modo claro e conciso, a justificação das opções tomadas na decisão, em função da prova produzida de modo a que seja permitido entender como decidiu, nomeadamente porque decidiu desta ou daquela forma a hipótese acusatória em que se sustentava o objecto do processo, levando em consideração, se isso for o caso as contra-hipóteses que consubstanciam a defesa.
No caso sub judice, diga-se desde já que se alguma critica padece a fundamentação da sentença relativa à matéria de facto, essa critica é de não ter sido respeitado, de algum modo, o princípio da concisão que decorre da lei, conforme se referiu na medida em que, em alguns momentos, o Tribunal poderá ter extravasado o que seria exigido num processo de fundamentação racional da decisão (como é o caso de alguns considerandos efectuados, nomeadamente referentes à acção de divórcio a fls 574). Recorde-se que a concisão é um imperativo modelador ao modo de fundamentar a sentença no processo penal, conforme decorre do artigo 374º n.º 2 do CPP. Daí que qualquer outra crítica ao modo de fundamentação da matéria de facto não deve ser apontada. Ou seja, o Tribunal justificou de uma forma abundante, explicita e adequada o modo como chegou à decisão da matéria de facto provada num tipo de processo onde as dificuldades de prova são evidentes e onde o cumprimento do dever fundamental de justificar o decidido também exige alguns cuidados, tendo em conta o tipo de testemunhos que podem conhecer os factos.
Refira-se que neste tipo de processos estão em causa factos ocorridos num universo fechado, de restrito acesso onde os depoimentos dos intervenientes são fundamentais para chegar à descoberta da verdade. De igual modo a intensidade emocional que envolve, em regra, a prática dos factos pode fazer desvirtuar a racionalidade exigida a quem depõe sobre eles – porque esteve envolvido nos próprios factos e tem muitas vezes «a sua própria versão e justificação» para tal comportamento. Daí que a valoração de um ou outro depoimento deve ser contrabalançada pela ponderada não valoração do depoimento do outro contendor.
Na sentença sub judice, em termos globais, o trabalho argumentativo e justificador do Tribunal possibilita de uma forma inequívoca o cumprimento de todas as finalidades exigidas na fundamentação. Todos os factos provados estão justificados e bem justificados, sendo de salientar o processo de valoração negativa efectuado sobre as declarações prestadas pelo arguido efectuado pelo Tribunal, que só demonstra o cuidado que teve na valoração e na fundamentação de um caso com esta natureza.
No que respeita aos ponto concretos que o recorrente refere sublinhe-se que na fundamentação da sentença tais factos decorrem da conjugação dos depoimentos da arguida/ofendida – que referiu concretamente que o arguido a pontapeou - e das testemunhas D... e T… (filhas do casal), que pese embora não terem afirmado terem visto esse facto concreto – o ou os pontapés – afirmaram ter visto outras agressões físicas e também confirmadas bem como ouvido insultos.
Ouvida a prova produzida, do depoimento da arguida/ofendia M... . decorre que, segundo ela o marido a pontapeou. Já dos depoimentos das testemunhas D..., T… e F... decorre de todos eles a afirmação de que viram o arguido agredir a ofendida «com as mãos, à bofetada, empurrões» (depoimento de T…), «puxar os cabelos, empurrá-la, apertar-lhe o pescoço, dar-lhe estalos» (depoimento de D...) e «com a mão, bofetada», tendo chegado a «separá-los». A afirmação peremptória da agressão a pontapé apenas é efectuada pela ofendida.
Importa, no entanto, referir que os depoimentos que se ouviram nomeadamente dos filhos, a propósito de agressões, insultos e outros comportamentos humilhantes que sofreram, são todos eles envoltos numa grande carga dramática onde são visíveis os bloqueios de depoimento e sobretudo onde não é possível exigir muita precisão no teor do próprio depoimento. É sintomática a afirmação da testemunha D..., no decurso do seu depoimento e a instâncias do Tribunal para ser mais clara que, a certa altura refere «não gosto de relembrar; quero é esquecer», referindo-se aos passado em que esteve envolvida.
No que respeita ao facto alegado pelo recorrente de que nunca terá proferido a expressão “qualquer dia” referida nos pontos 11 e 12 dos factos provados «em verbalizações que vêm acolhidas na sentença recorrida como crime de ameaças», importa começar por referir-se que em momento algum da sentença é efectuada a autonomização das expressões que são dadas como provadas nos pontos 11 e 12 em termos de configurarem a ocorrência de um crime de ameaças.
Quanto à fundamentação de tal factualidade, também da audição dos depoimentos referidos, nomeadamente nas testemunhas D..., T… (o pai ameaçava a mãe «com facas», «apontou-me uma faca ao peito») e F... ( «chegou a ameaçar [a mãe] com a espingarda» e disse-lhe «eu mato-te») decorre que todos eles são claros ao referir factos ameaçadores praticados pelo arguido e que consubstanciam aquela factualidade demonstra que os visados por tais afirmações claramente as entendiam como incompatíveis ao tratamento exigido à sua dignidade e à liberdade que lhes era devida no ambiente familiar.
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2. A actuação do arguido no exercício de um poder correctivo de educação que justificam a exclusão da ilicitude da sua conduta.
Alude o arguido/recorrente, nas suas alegações que a sua actuação «relativamente aos seus filhos deve ser entendida como exercício de um poder correctivo de educação, no âmbito de discussões geradas com o pai, em torno de questões para as quais já sabiam da sua não aprovação, em época em que eram adolescentes crescidos ou jovens adultos», razões que por isso «justificam e apontam para a exclusão da ilicitude das condutas do arguido e impõem a sua absolvição».
O regime legal dos direitos e deveres que competem aos pais no exercício das suas responsabilidades paternais encontra-se fixado nas disposições legais do Código Civil, num enquadramento e imposição constitucional decorrente de uma visão actualmente indiscutível que consagra um leque de direitos atribuídos às crianças cuja tutela inequívoca refere que as crianças têm o direito a ser defendidas contra o exercício abusivo de autoridade na família – artigo 69º n.º 2.
A lei estabelece, sem qualquer dúvida, que o exercício das responsabilidades parentais atribui um conjunto de direitos e deveres aos pais para educarem os filhos que tem que enquadrar-se no âmbito do respeito dos direitos das crianças e não é compatível com qualquer forma de exercício de violência física ou psíquica.
O conjunto de direitos e deveres constitucionais, referentes tanto ao exercício das responsabilidades parentais como à infância e à juventude, que decorre dos artigos 68º n.º 1, 69º e 70º da CRP, conjugado com os princípios da tutela da integridade pessoal e dignidade humana que decorrem dos artigos 25º e 26º da CRP, proibe qualquer pseudo direito à agressão ou ofensa à integridade física e psíquica nomeadamente quando praticado a coberto de um dever de correcção.
O poder de correcção (e não direito de correcção) deve ser entendido como inserido no direito à educação nunca abrangendo o direito de agredir e de ofender a integridade física e psíquica dos filhos – neste sentido, inequivocamente Cristina Dias, «A Criança como sujeito de direitos e o poder de correcção», revista JULGAR, n.º 4, 2008, p. 95 e 101.
O direito à educação por parte dos filhos e o dever de educação, por parte dos pais não permite qualquer entendimento que passe pela admissibilidade de qualquer comportamento violento dos pais ou de quem exerce as responsabilidades parentais.
Educar não significa punir mas sim ensinar e corrigir sem violência física ou psíquica.
Por outro lado é preciso diferenciar o que será um eventual e legítimo poder correctivo em determinadas fases de crescimento, nomeadamente na infância ou em fases precoces da adolescência e a difícil compreensibilidade (senão mesmo inadmissibilidade) desse poder nas fases tardias da adolescência ou na juventude.
Efectuado este breve registo sobre o a compreensibilidade da dimensão do poder correctivo de quem exerce as responsabilidades parentais, importa verificar que, na sentença sub judice, de acordo com a factualidade provada o comportamento do arguido, no que respeita aos filhos, não se insere, de todo, num quadro normativo que admite a «correcção» como uma das dimensões do dever de educar os filhos.
Senão vejamos.
Está demonstrado que o arguido «numa ocasião, sem qualquer motivo, o arguido munido de uma faca que utilizava na sua actividade profissional de abate de animais de raça suína, caprina e bovina, disse à sua filha T..., encostando-lhe a faca ao peito e ao pescoço que a matava; Outras vezes o arguido ia buscar a arma de caça e dizia “está aqui, se eu quisesse matava-vos, [aos filhos e mulher] só não mato porque não quero; Igualmente está provado que, referindo-se à filha T..., «Em data não determinada, há cerca de quatro anos, contados da mesma data, o arguido puxou os cabelos à filha T..., empurrando-a pela escada a baixo e proibiu-a de voltar a entrar em casa, tendo-a expulsado de casa; fê-lo porque dias antes tinha intervindo numa conversa desta com o irmão e, apercebendo-se que a mesma se havia recusado a coser um botão em roupa deste, embora dispondo-se a ensinar o outro a fazê-lo, o que o arguido não achou correcto, e dirigiu palavras a que a filha replicou de modo que achou indelicado»; A partir de então, o arguido passou a exigir que a filha lhe pedisse desculpas, o que a mesma não fez e a tal recusa, e há cerca de quatro/cinco anos contados de 21.12.05 numa altura em que a filha do casal T... estava a estudar na cidade de Tomar, o arguido apareceu na sua residência, por volta das duas horas da madrugada e completamente descontrolado dizia que se ia matar, tendo a T... de o acalmar e acabou por conduzir o veículo em que o mesmo se fazia transportar até Pombal. A partir desse dia o F... frequentemente prestava auxílio à sua irmã T..., levando-lhe comida e roupa lavada à cidade de Tomar; O arguido ao ter conhecimento da situação disse-lhe que se voltasse a Tomar, dormindo fora de casa evitava de voltar à mesma; Face à recusa do F... em acatar a ordem do pai, o mesmo disse-lhe que não permitia que voltasse a entrar em casa e tentou agredi-lo fisicamente, tendo o F... fugido para a rua; Decorridos alguns dias, no mês de Janeiro de 2004, o F... voltou a casa e tentou dialogar com o arguido, seu pai, acerca do sucedido, porém o mesmo disse-lhe que não tinha nada que conversar, voltou-lhe as costas e saiu de casa; Neste mesmo dia o arguido ao chegar a casa, cerca da 1 hora da manhã dirigiu-se ao quarto do seu filho F... e ao vê-lo deitado na cama, destapou-o, acordou-o e disse-lhe que se fosse embora que não o queria mais em casa; A partir deste dia o F... não voltou a entrar em casa dos pais, vivendo de favor em casa de um vizinho, A.... No que respeita à filha D..., «há cerca de um ano numa altura em que a filha D... pediu ao pai a pensão de alimentos, por a sua mãe não ter capacidade para fazer face a todas as despesas da casa e pagamento dos seus estudos superiores, que efectuava na cidade de Braga, o arguido disse-lhe que não tinha que contribuir com qualquer quantia e a partir desse dia nunca mais lhe dirigiu a palavra.
É muito clara a factualidade provada, pese embora decorrer de todo o envolvimento que muito do que se passou ao longo da vida de criança e adolescente dos depoentes não está reflectido nos factos, o que aliás se compreende face à natureza intrinsecamente privada e intima de muita da factualidade com a consequente dificuldade de fazê-la reflectir numa sala de audiências – recorde-se o que se ouviu na gravação, no depoimento da filha D..., «quero é esquecer».
E de todo pode decorrer dos factos atribuídos ao arguido, independentemente da sua gravidade concreta, que os mesmos decorram do modo como pretendia exercer o poder de correcção na educação dos filhos, nomeadamente num período da sua vida e idade onde é questionável (senão mesmo inadmissível) a própria configuração de um poder de correcção (a T... teria cerca de 18 anos quando ocorreram os factos referentes à expulsão de casa, conforme decorre do seu depoimentos ouvido e encontravam ainda a viver sob a sua tutela). De igual forma dos depoimentos ouvidos decorre que o filho F... quando foi expulso era também um jovem adulto e encontrava-se, na altura, na dependência do pai, vivendo sob a sua alçada. Quanto à D..., sendo mais jovem, quando da ocorrência do último facto estava ainda a estuda em Braga, igualmente sob a tutela do arguido.
Não se omite a clara divergência entre aquilo que o arguido porventura poderia pensar ser para si uma educação adequada a dar aos seus filhos – segundo os factos provados, para o arguido, «os filhos tinham comportamentos libertinos, ligações a drogas, álcool e a pessoas pouco recomendáveis, o que entendia ser fomentado pela esposa - e os parâmetros de uma educação que obedeça a princípios e regras que respeitem os canônes do papel dos pais na educação dos filhos num Estado de direito, nomeadamente o respeito pela diferença de pensamento (sobretudo em fases tardias da adolescência ou quando jovens, como é o caso).
Certo é que, mesmo assumindo como válidas esse modo diferente de ver as coisas, são intoleráveis comportamentos como os que foram descritos para justificar qualquer modo de exercer as responsabilidades parentais. Ameaças de morte, agressões com facas, tentativas de agressões, puxar os cabelos à filha, empurrões pela escada abaixo, coacção decorrente da proibição de voltar a entrar em casa, sem qualquer motivo, nada tem que ver com a eventual (repete-se, eventual) contraditoriedade a um modo diverso de encarar a educação e que o recorrente funda as suas alegações.
Nesse sentido e em conclusão não é de todo passível de concluir que os factos atribuídos ao arguido sejam entendidos como consubstanciadores do exercício do poder de correcção decorrente do exercício das suas responsabilidades parentais.
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3. Excessiva pena concreta aplicada e não aplicação do regime de prova.
O arguido F... foi condenado pela prática de um crime de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1 e 2 do Código Penal, cometido na pessoa do seu ex-cônjuge, na pena de dois anos e seis meses de prisão e pela prática de três crimes de maus tratos p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, do Código Penal, cometido nas pessoas dos seus filhos, nas penas de respectivamente, dezasseis meses, catorze meses e um ano de prisão. Em cúmulo jurídico o arguido F... foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão. Tal pena foi suspensa na sua execução por quatro anos e seis meses, subordinada ao cumprimento do dever de entregar à “A.P.E.P.I., Associação de Pais e Educadores para a Infância”, no prazo de 4 meses a quantia de 500 €, a reverter a favor da Casa Abrigo de Vítimas de Violência Doméstica de Pombal e sujeita a regime de prova, segundo PIRS a elaborar pelo IRS.
Na fundamentação das penas concretas – que o arguido não coloca em causa – o Tribunal justificou a sua decisão fazendo uma análise global da situação nos seguintes termos: «valorando as circunstâncias presentes no caso sub judice, a favor do arguido militam a sua confissão, embora apenas parcial, as suas condições pessoais já que este se encontra socialmente integrado, tendo emprego certo e ainda o facto de actualmente já viver separado da ex-mulher e filhos, tendo inclusivamente encetado novo relacionamento, ao que tudo indica começando uma vida nova. Relevante é ainda a ausência de antecedentes criminais. Contra o arguido jogam o elevado grau de ilicitude (face à natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos violados), a intensidade do dolo, que reveste a modalidade de dolo directo, uma vez que o arguido representou os factos e agiu com intenção de os realizar, as consequências psicológicas para a sua esposa e filhos resultantes do seu comportamento, as consequências físicas sofridas pela esposa, a forma como o arguido a agredia (murros, pontapés e bofetadas), o decurso temporal em que tal sucedeu (durante largos anos). Tudo ponderado, julga-se ser adequado e proporcional aplicar ao arguido C... a pena de 2 anos e seis meses de prisão pelo crime de maus tratos relativo à ofendida M...(justificando-se a pena mais gravosa pelo número e gravidade das agressões, bem como pelas suas consequências), a pena de dezasseis meses pelo crime de maus tratos relativo à filha T... ., a pena de catorze meses pelo crime de maus tratos relativo ao filho C...e a pena de um ano pelo crime de maus tratos relativo à filha D... . (justificando-se a diferença entre estas penas pela diferente gravidade da conduta do arguido em relação a cada um dos três filhos).
No que respeita ao cúmulo jurídico das penas, que o arguido coloca em causa, o Tribunal refere, para fundamentar a sua decisão, o seguinte: «nos termos do art. 77º, nº 1 e 3 do Código Penal, “quando o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”. De acordo com os critérios enunciados no nº 2 do citado art. 77º, a pena a aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sendo que, no caso concreto, este limite será de sete anos e seis meses; tendo como limite mínimo a pena mais grave aplicada, que, no caso decidendo, é de dois anos e seis meses. Assim, considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, fixa-se em quatro anos e seis meses de prisão a pena única a aplicar ao arguido.
Antes de mais cumpre verificar que na sentença, certamente por lapso, se refere que no cúmulo jurídico a pena é sete anos e seis meses de prisão quando, efectivamente, como bem refere o arguido, o limite máximo do cúmulo jurídico será seis anos de prisão. Trata-se de um lapso não parece ter influenciado o decidido, mas que deve ser corrigido.
Efectuada esta correcção temos por isso, na fixação da pena única a aplicar, a moldura penal que vai entre os dois anos e seis meses de prisão e a pena de seis anos de prisão.
Na fixação da pena concreta, no âmbito da punição de concurso de crime, estabelece o artigo 77º do CP, como critérios guia que devem ser considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Trata-se, na fixação desta pena de uma operação autónoma e independente da fixação das penas concretas fixadas para cada um dos crimes que, por isso mesmo deve ser objecto de um processo de justificação diferenciado e autónomo em relação às restantes penas. Mas que não pode deixar de ser efectuado.
No caso dos autos o Tribunal embora formalmente tenha efectuado esta distinção (entre fundamentação das penas concretas e fundamentação da pena única) não justifica de modo suficientemente preciso e claro a autónoma operação nomeadamente não fundamenta a aplicação da pena concreta de 4 anos e seis meses de prisão que aplicou. Ao referir, para justificar a pena, «considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, fixa-se em quatro anos e seis meses de prisão a pena única a aplicar ao arguido, o Tribunal nada diz e justifica sobre as razões concretas que o levaram a fixar a pena.
A fundamentação das decisões e concretamente a fundamentação da pena no âmbito das sentenças penais tem um conteúdo que possibilita concretizar as finalidades endo e extraprocessuais da fundamentação, acima referidas.
Ora segundo o artigo 375º n.º 1 do CPP «a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e medida da sanção aplicada(…)», normativo que obviamente também se aplica à pena aplicada num cúmulo decorrente de uma situação de concurso.
Aqui, na fundamentação da pena aplicada no concurso exige-se que o tribunal explicite as operações lógico-dedutivas que empreendeu para reapreciar os factos em conjunto com a personalidade do arguido, só assim se permitindo percepcionar se existiu alguma conexão entre a prática dos vários crimes, qual a concreta e objectiva gravidade de cada um, quais os fins e motivos das diversas condutas, se os crimes têm ou não relação com particulares e/ou ocasionais condições pessoais do arguido ou se entroncam e porquê em alguma propensão para a delinquência de modo a aferir-se depois, o grau de ilicitude e da culpa global.
No caso sub judice, como se referiu, nada foi dito sobre esses conteúdos e por isso estamos em presença de uma situação de inexistência de fundamentação da pena concreta ou conjunta.
Daí que, nesta parte, a sentença consubstancia uma total e absoluta ausência de fundamentação, o que, portanto a torna nula – cf., neste sentido, Ac. STJ de 16 de Novembro de 2005, in CJ STJ, 2005, Tomo III, proc. 2155/04 e Ac. STJ de 14.1.2009 in CJ Tomo I, 2009, p. 198..
As nulidades da sentença são de conhecimento oficioso - artigo 379°, n° 2-, razão pela qual há que declarar a nulidade da sentença recorrida, nesta parte - artigo 122° do CPP.
Assim sendo não pode deixar de se anular a decisão, nesta parte, para que seja proferida outra sentença em sua substituição, extirpando-se a nulidade de que enferma.
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A procedência da nulidade prejudica o conhecimento das duas questões suscitadas pelo recorrente, nomeadamente em sede de medida da pena e regime de prova. No entanto, nada obsta que se conheça desde já a questão suscitada relativamente ao pedido de indemnização civil suscitada, o que se fará.
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4. Condenação no pedido de indemnização por inexistência de prova sobre o nexo causa.
Insurge-se o recorrente, nas suas alegações, contra a condenação em valor a liquidar em execução de sentença, quanto ao dano em dente diferente do que resulta provado no relatório clínico junto aos autos, não existindo prova do respectivo nexo causal imputável à conduta do arguido pela agressão ocorrida em 14.07.2005.
O que está em causa neste ponto é a dimensão da condenação em que o arguido é «condenado a suportar o pagamento restauração do dente 21 da demandante, mediante reconstrução através de coroa de revestimento total, relegando-se para execução de sentença a liquidação do respectivo montante».
Sobre esta matéria do pedido cível importa referir que ficou provado que da agressão que ocorreu no dia 14 de Julho de 2005, «como consequência directa e necessária da conduta descrita, resultaram para M..., “traumatismo da região frontal esquerda com a consequente ferida incisa” e “fractura do dente inciso superior esquerdo” e “cicatriz linear na região frontal, medindo depois de rectificada 6 centímetros de comprimento”, as quais foram causa directa e necessária de um período de doença de 15 dias, com igual período de incapacidade para o trabalho geral e com 3 dias de incapacidade para o trabalho profissional (…). A M...suportou despesas de duas deslocações ao IML da Figueira da Foz, duas taxas moderadoras de episódios de urgência e despesas na restauração do dente 11, respectivamente nos montantes de 40€, 7,80€, 6,10€ e 40€ (…). A restauração do seu dente 21, ainda não concretizada, deverá ser feita mediante reconstrução através de coroa de revestimento total» (sublinhado nosso).
Nos termos do artigo 483º do Código Civil, os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual, que no caso se aplicam, assentam na ocorrência de um facto ilícito, culposo, na existência de um dano e na verificação de um nexo causal entre este e o facto (artigo 483º do CC).
Face à matéria de facto dada como provada é evidente que do facto ilícito (que no caso foi uma agressão do arguido consubstanciador da ocorrência de um crime) resultaram danos na pessoa da arguida/ofendida M..., nomeadamente (no que interessa) a “fractura do dente inciso superior esquerdo”.
A ofendida teve despesas na restauração do dente (11) que, segundo a matéria de facto, terão sido no valor de 40€.
Ora dos factos provados resulta também que «a restauração do seu dente 21, ainda não concretizada, deverá ser feita mediante reconstrução através de coroa de revestimento total».
Compulsada a decisão, o que decorre da sua fundamentação de facto é que sempre esteve em causa na agressão, como sua consequência, o dano no dente n.º 11. Isso decorre directamente da sentença e da sua fundamentação, que nesta parte nada acrescente à pronúncia e à acusação e que se sustenta na documentação junta, nomeadamente no documento de fls. 70 (relatório clínico do Hospital Distrital de Pombal) que refere apenas «fractura do dente inciso superior esquerdo», como consequência da agressão.
É certo que no pedido de indemnização civil o requerente expressamente faz um pedido sobre o direito de ser ressarcido «da importância que vier a pagar pela restauração do dente incisivo superior, dente 21, por ora indeterminável(…)». E o requerente invoca e apresenta um relatório de um clínico dentário sobre a existência dessa necessidade de restauração do dente 21. Desta parcela do pedido ficou provado que «a restauração do seu dente 21, ainda não concretizada, deverá ser feita mediante reconstrução através de coroa de revestimento total». No entanto não ficou provado que a lesão do dente 21 tenha sido consequência da agressão efectuada pelo arguido.
Assim sendo não pode o arguido ser responsabilizado pelo pagamento da referida quantia que diz respeito a um dente que não foi aquele que resultou danificado na agressão.
Assim a condenação em indemnização cível deve ser reduzida, nesta parte.
Nestes termos o recurso interposto, nesta parte, merece provimento.

III. DISPOSITIVO.
Nesta conformidade acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, por razões diversas das que alegou e em consequência, decide-se declarar nula a sentença por falta de fundamentação da pena única aplicada no concurso das penas e ordenar que se efectue uma nova sentença que efectue a fundamentação da pena aplicada nos termos referidos, restringindo igualmente a condenação do pedido cível termos referidos, eliminando a condenação quanto à liquidação em execução de sentença quanto ao dano em dente diferente do que resulta provado.
Sem tributação.
Notifique.
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (artº 94º nº 2 CPP).
Coimbra, 7 de Outubro de 2009

Mouraz Lopes


Ribeiro Martins