Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5868/19.4T8CBR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL
EXERCÍCIO DE DIREITOS SOCIAIS
MEDIDA CAUTELAR DE SUSPENSÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
Data do Acordão: 01/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 1055 Nº2 CPC, 257 Nº4 CSC
Sumário: Nos termos em que está legalmente prevista, a medida cautelar de suspensão do cargo de titulares de órgãos sociais prevista no art. 1055º, nº 2, do CPC não exige a prévia audiência do requerido.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

C (…), residente (…) (...), veio instaurar acção, ao abrigo do disposto no art.1055º conjugado com os arts. 362º e ss. do Código do Processo Civil, contra L (…), residente (…) (...), pedindo que seja decretada a destituição do Requerido do cargo de gerente da sociedade por quotas S (…)Ld.ª e que, sem a sua audiência prévia, seja decretada, a titulo antecipatório e com natureza urgente e cautelar, a suspensão imediata dessas funções.

Alegou, em resumo: que o Requerente e o Requerido são os únicos sócios e gerentes da sociedade identificada; que, pretendendo vender a sua quota e não tendo chegado a acordo com o Requerente no que toca ao preço a pagar, o Requerido descurou por completo a gestão da empresa e negligenciou os seus deveres de gerente, passando a praticar actos de forma unilateral e sem qualquer concertação de gerência e recusando a sua assinatura na formalização de projectos de financiamento no âmbito dos Fundos Europeus que a empresa havia desenvolvido e para os quais já havia obtido a respectiva aprovação com recurso a garantias prestadas por terceiros; que tais projectos são vitais para o bom funcionamento da empresa e acabaram por ser suspensos em virtude de o Requerido ter recusado a sua assinatura; que uma parte desse financiamento (34.312,20€) era necessário para pagamento de maquinaria que já havia sido adquirida e por falta desse pagamento a fornecedora recusa-se a prestar a necessária manutenção; que está para breve a abertura de um concurso público para adjudicação de determinadas obras ao qual a empresa tem interesse em candidatar-se e que representa uma facturação na ordem de 30.000,00€, antevendo-se a impossibilidade de obter essa adjudicação por falta de colaboração do Requerido; que a atitude do Requerido coloca a empresa em risco, temendo o Requerente que o Requerido mantenha a sua postura e crie mais prejuízos para a empresa, tornando-se inviável que a gerência continue a ser exercida em conjunto pelo Requerente e pelo Requerido.

No sentido de justificar a dispensa de audiência prévia do Requerido, alega que, nos termos da lei, a decisão deve ser proferida imediatamente e que a audiência prévia do Requerido pode vir a determinar um agravamento dos danos dada a circunstância de o mesmo continuar com acesso ao email da empresa, à conta bancária e cartões bancários e de manter em seu poder um veículo da empresa que desde sempre lhe esteve confiado.

Por despacho proferido em 28/10/2019 e com vista à decisão do incidente de suspensão cautelar de órgão social, designou-se data para a inquirição das testemunhas arroladas, dispensando-se a audiência do Requerido com a seguinte fundamentação:

O requerente alegou factos dos quais decorre que a prévia audição do requerido poderá impedir a sociedade de concorrer a concurso público a que se pretende candidatar em breve, e implicar ainda a perda definitiva dos projetos desenvolvidos durante os últimos dois anos, bem como de outros concursos ou ajustes diretos que possam surgir. Estando invocados factos que demonstram a existência de um risco sério para o fim ou eficácia da suspensão, e visto o disposto no art. 366.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, haverá que dispensar a audiência do requerido”.

 

Produzida a prova apresentada pelo Requerente, foi proferida decisão que determinou a suspensão imediata das funções do Requerido L (…) de gerente da sociedade S (…), Ld.ª, prosseguindo os autos pata apreciação do pedido de destituição.

Notificado dessa decisão, o Requerido veio interpor recurso formulando as seguintes conclusões:

1ª - O despacho sentença contra o qual o recorrente aqui se insurge, tendo em vista a sua revogação, desconsiderou indevidamente a sua audição, ao abrigo do princípio do contraditório, pelo que está ferido de nulidade, nos termos do disposto no art.º 195.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;

2ª - Por outro lado, o despacho posto em crise, revela-se extremamente formalista, ao ponto de com isso afastar meios de prova que manifestamente lhe permitiriam alcançar a justa composição do litígio e assim prosseguir devidamente o interesse público subjacente à (boa) administração da justiça;

3ª - O tribunal a quo entrou, pois, em contradição na sua linha de raciocínio, tomando uma verdadeira decisão surpresa;

4ª - O tribunal a quo não respeitou, pois, o princípio do inquisitório, consagrado no art.º 411.º do CPC, segundo o qual “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”;

5ª - Com efeito, por força de tal princípio os meios de prova previstos na lei não são meros poderes discricionários ou arbitrários, mas antes poderes-deveres, que só poderão deixar de ser exercidos no caso de se mostrarem de todo desnecessários ou inúteis para a descoberta da verdade e, como vimos, neste caso não era de todo possível inferir isso (v., nesse sentido, o Ac. do TRP de 26-11-2013, P. 309/07.2TBLMG.P1 – RODRIGUES PIRES e NUNO LEMOS JORGE, Os poderes instrutórios do juiz: alguns problemas, Julgar, n.º 3, Set./Dez. 2007, Coimbra Editora, p. 65). Aliás, o art.º 466.º do CPC, sendo uma norma fechada, nem deixava ao juiz qualquer margem para tal juízo conducente à rejeição;

6ª - Ora, não compreendemos como é que num processo que, embora num primeiro momento se assuma como um procedimento cautelar, que recai sobre uma micro empresa, com apenas dois sócios, com sede em (...), não pudesse o Tribunal, com as facilidades que a era moderna proporciona, ter ouvido o ora recorrente e coligido meios de prova que, estamos em crer, infirmariam – com elevada dose de segurança – a posição muito parcial trazida aos autos pelo requerente;

7ª - Neste mesmo sentido, importa atentar no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 392-A/95 de 12 de dezembro que reformou o Código de Processo Civil de 1961, em que o legislador afirmou que o objetivo da introdução do preceito foi realizar uma adequação entre o Código de Processo Civil e o Código das Sociedades Comerciais;

8ª - Foi, assim, criado um processo de jurisdição voluntária onde o legislador regulou o direito dos sócios a pedir a destituição dos titulares dos órgãos sociais;

9ª - Ao mesmo tempo e em paralelo, dado que o pedido de destituição deixou de seguir o processo comum, veio possibilitar que, no âmbito do processo de jurisdição voluntária, o Tribunal decretasse, através de uma “resolução”, a suspensão do membro de um órgão social, em relação ao qual era dirigido o pedido de destituição;

10ª - Esta solução (possibilidade de ser tomada a “resolução” de suspensão) visou substituir a providência cautelar não especificada a que o autor da ação poderia recorrer, sempre que se verificassem os pressupostos para a mesma, como antecipatória destinada a assegurar a efetividade do direito que era exercido na ação de destituição;

11ª - O art.º 1055.º do atual Código de Processo Civil reproduz “ipsis verbis” o art.º 1484.º-B do Código de Processo Civil de 1961, na redação dada pela reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 392-A/95, de 12 de dezembro;

12ª - Assim, o intérprete e aplicador da norma tem de atentar nas orientações e indicações dadas pelo legislador e que se elencam nas presentes alegações;

13ª - O legislador, pelas razões acabadas de explicitar, quis vincar que a intervenção judicial nas sociedades se deve revestir de um especial cuidado, de modo a evitar decisões surpresa que, pela falta de recolha da informação necessária e indispensável à decisão, possam prejudicar a sociedade e em particular a empresa que a primeira constitui a estrutura jurídica;

14ª - E isto porque o interesse da sociedade não é exclusivo dos seus sócios, mas de todas as demais pessoas singulares e coletivas, fornecedores, parceiros financeiros, Estado e a comunidade em geral, a quem a preservação da mesma assegura emprego, criação de riqueza para o país e receitas para o Estado;

15ª - Por conseguinte, o despacho sob recurso enferma de uma violação aos princípios da igualdade e do contraditório pleno, por não ter permitido, que as partes pudessem gozar das mesmas faculdades em ordem à descoberta da verdade, ainda que e de forma necessariamente indiciária, tendo em conta que se trata de um procedimento cautelar de suspensão de gerente (v. artºs. 4.º e 7.º do CPC);

16ª - Acrescente-se ainda que a contradição em que o tribunal a quo incorre é tanto mais grave porquanto chega a fazer uma interpretação da lei que nem sequer tem qualquer acolhimento na sua letra e, assim, com base numa interpretação inadmissível, acaba por ser mais restritivo do que a própria lei – vide MIGUEL MESQUITA, A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC, RLJ, ano 143.º, N.º 3983, Nov.-Dez. 2013, Coimbra Editora, pp. 141 e 145);

17ª - É que resulta manifesto para todos quantos lerem a decisão proferida pelo tribunal a quo, que o mesmo não ficou devidamente convencido daquilo que o requerente alega no seu articulado ou, certamente, não faria o seguinte reparo na decisão: “Contudo, a nosso ver, esta violação do dever de cuidado não assume gravidade suficiente para tornar impossível, ou inexigível, a manutenção da relação de gerente. Desde logo, porque é resultado evidente do desentendimento entre os sócios e gerentes, podendo ter explicação razoável que a ausência de contraditório não permitiu esclarecer. Por outro, e sobretudo, porque não existem indícios de que tenha causado distúrbios, pelo menos significativos, na atividade da sociedade, ou que dela tenham decorrido quaisquer prejuízos para esta”.

18ª - Todavia, ainda assim, deu vencimento de causa ao requerente, sobretudo numa era em que se sabe que é possível, ao abrigo do princípio da gestão processual, o juiz, poderia realizar todas as diligências probatórias com a abrangência que uma situação deste tipo convocaria;

19ª - Note-se, assim que, por todo o exposto, terá de se concluir que o tribunal a quo, violou o princípio do inquisitório, do qual se infere um verdadeiro poder-dever e não um poder discricionário para o juiz, que só poderá deixar de ser exercido no caso de se mostrar de todo desnecessário ou inútil para a descoberta da verdade o que, como vimos à saciedade, não era de todo o caso e nem o art.º 466.º lhe dava qualquer “margem” para essa rejeição (v. art.º 411.º do CPC, Ac. do TRP de 26-11-2013, P. 309/07.2TBLMG.P1 – RODRIGUES PIRES e NUNO LEMOS J ORGE, Os poderes instrutórios…, p. 65);

20ª - Pelas razões supra expendidas, a observância do contraditório teria permitido que o Tribunal não tivesse tomado a decisão com base em pressupostos não verdadeiros, até porque a audiência do recorrente não punha minimamente em risco o fim ou a eficácia da providência;

21ª - O despacho recorrido ao suspender o recorrente fez, assim, uma errónea interpretação e aplicação do n.º 2 do art.º 1055.º do Código de Processo Civil e também da alínea b) do n.º 1 do art.º 64.º do CSC. O Tribunal, sem ouvir a prova, sem ter elementos que lhe pudessem permitir analisar o que constava da pseudo ata, em si mesma nula, e sem fazer as indagações que se impunham, decretou uma espécie de “suspensão de preceito do requerido ”;

22ª - Tudo, em clara violação dos art.ºs 3.º n.º 2 e 1055.º do Código de Processo Civil e 20.º da Constituição da República Portuguesa, proferindo, por essa razão, ao inobservar o princípio do contraditório, um despacho ferido de nulidade, nos termos do disposto no art.º 195.º n.º 1 do Código de Processo Civil;

23ª - Por conseguinte, forçoso é concluir pela necessidade de revogação do despacho que decretou a sua suspensão como gerente.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser revogado o despacho proferido pelo Juízo de Comércio de Coimbra, com a subsequente observância do princípio do contraditório, para que seja feita a pretendida JUSTIÇA!

O Requerente apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. Diga-se que, o princípio do inquisitório é consensualmente entendido pela doutrina e jurisprudência como o poder que o juíz tem quanto à iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade.

2. A questão a esgrimir nos autos – e que constitui, no essencial, boa parte do objeto de recurso- prende-se com a interpretação jurídica do nº 2 do art.1055º do C.P.C. que dispõe o seguinte: “se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias”.

3. Aquele normativo sob a cúpula de um processo de jurisdição voluntária, enxerta em si uma providência cautelar que prime facie deve respeitar os princípios que subjazem à natureza da providência cautelar em questão, no caso, uma providência cautelar antecipatória.

4. Ora, é precisamente esta caraterística que a doutrina tem qualificado como medida cautelar antecipatória – pois que antecipa, provisoriamente, o conteúdo da sentença que hipoteticamente virá a ser proferida.

5. O decretamento da suspensão corresponde a uma medida de natureza provisória, subordinada aos princípios gerais que governam a tutela cautelar, mas que fundamentalmente visa antecipar e garantir o efeito útil da ulterior decisão (que tardará ainda) que venha a dar provimento ao pedido de destituição.

6. Para que a imediata suspensão se concretize há que preencher, como em qualquer outra providência cautelar, dois requisitos: - a probabilidade séria da existência do direito invocado: fumus boni iuris; - e o periculum in mora.

7. Como decidido e referido expressamente na douta sentença, a gravidade dos factos alegados, que integraram o conceito de justa causa de destituição de gerente fundamentaram a exigida aparência séria do direito, que por si só, justificaram, o outro requisito exigível - o efetivo periculum in mora.

8. A respeito da imediata suspensão sem audição prévia do requerido, a maioria da jurisprudência entende por decidir “imediatamente, o pedido de suspensão, após a realização das diligências necessárias” que a interpretação encontra acolhimento …no espírito e ratio do sistema”- vide Acordão desta Relação de 12/04/2018, proferido no processo 556/18.1T8VIS. –“terá querido dispensar, por princípio, a citação prévia do requerido (…)

….“Aliás, do teor deste normativo parece resultar com alguma evidência que o legislador quis que fosse tomada decisão célere quanto ao pedido de suspensão, após a realização de diligências estritamente necessárias, o que não se compadece com a eventual audição prévia do requerido, sob pena de aquela não poder ter aquela celeridade”. Vide Solange Jesus, In IDET, Miscelâneas, n.º 7, pág 194 e ss.

9. Daqui decorre a singularidade e a celeridade processual que o legislador pretendeu conferir ao aludido incidente em razão das necessidades de adaptação do regime societário ao regime processual civil (afastando, assim, em caso de suspensão dos gerentes a aplicação do procedimento cautelar comum).

10. E este propósito defende o Prof. Raúl Ventura relativamente à razão do incidente cautelar de suspensão, em anotação ao art. 257º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais, que «o legislador reparou em que o sistema por ele criado [ação de destituição do gerente] tinha um grave inconveniente: a manutenção do gerente, apesar da justa causa, até ao trânsito em julgado da sentença que o destitua e que produz efeito ex nunc.»

11. Sustenta ainda o mesmo Professor que não faria qualquer sentido que, perante a invocação da mencionada justa causa, o gerente continuasse a exercer as respetivas funções, em detrimento da sociedade, sócios e credores daquela.

12. Assim do teor daquele normativo resulta com evidência que o legislador quis que fosse tomada decisão célere, após realização de diligências estritamente necessárias, sob pena de aquela não poder ter a celeridade e eficácia pretendida face ao perigo existente.

13. É certo que, do caráter expedito e célere do incidente não decorre, sem mais, que seja suposto ou exigido suprimir o estruturante (e com expressão constitucional) princípio do contraditório e/ ou inquisitório da parte da visada na providência.

14. Daí que, torna-se necessária a constatação de que existe efetivo sério risco para o fim ou a eficácia da providência poder prevalecer sobre aqueles princípios.

15. Dos factos alegados pelo requerente deve deduzir –se que, face aos elementos constantes do processo, analisados à luz da experiência comum, permitem concluir pela primazia da eficácia da providência sem audição prévia, sem que, e simultaneamente, não se desrespeitem os princípios basilares do direito civil.

16. Quer isto dizer que, o preceito não é inconstitucional já que os direitos do requerido estão salvaguardados pelo uso do contraditório em sede de recurso ou de oposição aquando da citação.

17. Como assim, dado ao efetivo risco sério na manutenção do requerido como gerente, mormente, o risco de perda de adjudicação de concurso público e a perda dos projetos de financiamento, foi decretada de imediato a suspensão.

18. É precisamente para este tipo de enquadramento fáctico, como o dos autos, que foi prevista esta providência cautelar especial.

19. Isto é, a urgência de prazos (no caso prazos de concurso público, financiamento bancário) e a violação dos deveres de gerente que fundamentaram o receio de lesão grave e irreparável para a empresa sobrepõem –se a qualquer audição prévia, relegando –se tão só, o direito do requerido, sem no entanto, o violar.

20. Cremos e concluímos assim que, não enferma de nulidade a douta sentença ora recorrida, muito menos de inconstitucionalidade por violação de princípios: inquisitório e/ou contraditório que subjazem ao Direito Civil, pois assegurada estará a defesa do requerido no âmbito deste processo especial.

21. O que de resto faz o recorrente por via deste mesmo recurso.

22. Pelo que, salvaguardados estão os princípios previstos nos art.4º a 7º do C.P.C. bem como o princípio do inquisitório e do contraditório.

23. Pelo que, pugna-se pela manutenção da douta sentença que decretou a suspensão imediata das funções de gerente ao sócio.


/////

II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste, no essencial, em saber se, em observância do contraditório, o Apelante deveria ter sido ouvido antes de decretada a sua suspensão das funções de gerente.


/////

III.

Na 1ª instância, julgou-se indiciariamente demonstrada a seguinte matéria de facto:

1. Em 19.07.2007, Requerente e Requerido constituíram a sociedade comercial por quotas que adoptou o nome de S (…), Lda., com NIPC: (…) e sede (…), em (...).

2. A sociedade tem o capital social de €5.000,00 que corresponde à soma de duas quotas iguais de €2.500,00 cada uma pertencente a cada um dos sócios.

3. E por objecto social a prestação de serviços na área das artes gráficas, design gráfico, comércio e importação e exportação de material e equipamento informático software, hardware, e assistência técnica, produção de conteúdos áudio visuais, multimédia, publicidade, digitalização e web.

4. A gerência cabe aos dois sócios, obrigando-se a sociedade com a assinatura de um dos gerentes.

5. Além dos dois gerentes, que são remunerados, tem ao serviço três funcionários com contrato de trabalho a tempo inteiro.

6. Enquanto gerente, o Requerido tinha como funções, entre outras, sobretudo a partir de Março do corrente ano, as de visitar clientes, angariar outros e efectuar cobranças junto dos mesmos.

7. O Requerente trabalha a par com os funcionários, orientando e conduzindo a produção diária: orçamentação, facturação, pagamentos, recebimentos, encomenda a fornecedores, no armazém que é sede da empresa.

8. Em 27.03.2019 foi realizada uma assembleia geral de sócios da sociedade com a seguinte ordem de trabalhos: convivência no local de trabalho, gerência, projectos e outros.

9. Nessa assembleia, o Requerido propôs ao Requerente a venda da sua quota pelo valor de €50.000,00 acrescido de um conjunto de exigências e manifestou a intenção de mudar de vida com vista num novo projecto.

10. Proposta essa, que o Requerente recusou e contrapôs adquirir a quota pelo seu valor nominal de €2.500,00, que também não foi aceite.

11. O Requerido propôs também a venda da sua quota aos funcionários.

12. A partir dessa data, as ausências prolongadas do Requerido tornaram-se frequentes.

13. Em 01.07.2019, por decisão unilateral, sem qualquer concertação de gerência, o Requerido pagou os salários do mês de Junho de todos os funcionários através da conta bancária da empresa.

14. Estes salários já haviam sido pagos pelo Requerente, como vinha sendo habitual desde 27.03.2019, pelo que a empresa ficou com um saldo inferior a €1.000,00 para fazer face a despesas correntes e o Requerente pediu a reposição dos valores.

15. Em Agosto, período de férias do Requerido, sem comunicar ao sócio, efetuou pagamentos a fornecedores, bem como o subsídio de férias dos trabalhadores.

16. A partir do dia 24 de Setembro o Requerido não mais regressou à empresa.

17. A empresa tem desenvolvido projectos no âmbito dos Fundos Europeus, nomeadamente, ao último Quadro Comunitário Portugal 2020 (Centro 2020), sempre aprovados.

18. Projectos de financiamento que permitem a entrada de capital que de outro modo só alcançaria através de financiamento directo na banca, em condições mais onerosas e com taxas de juros mais elevadas.

19. Os últimos projectos no âmbito do Quadro Portugal 2020-SI2E, concretamente, de apoio a aquisição de equipamento e à criação de 4 postos de trabalho foram aprovados em 08.04.2019 após um percurso de dois anos, com recurso a garantias junto da G (…).

20. Estes projectos previam um financiamento de cerca de €130.000,00, com 30% a fundo perdido, e condições de garantias com períodos de carência.

21. Para finalizar a operação dos projectos e de acordo com os termos de aceitação das candidaturas que ambos os sócios assinaram, restava formalizar os contratos com a assinatura das cartas de aprovação junto da G (…) e na C (…)

22. Em 25.09.2019, o Requerido recusou-se a assinar as cartas que permitiriam aquele financiamento no âmbito dos projectos aprovados.

23. No seguimento desta tomada de posição, em 27.09.2019, o gestor comercial ao balcão da C (…), em (...), pediu a presença do Requerido no sentido resolver a questão.

24. O Requerido recusou-se a assinar e justificou que pretendia vender a quota e sair da empresa.

25. Estes projectos são necessários para a concretização do plano de negócios delineado nos últimos anos em termos económico-financeiros.

26. Até à data, à exceção de emails, onde mantém a intenção de vender a quota, o Requerido nada mais disse sobre o sucedido.

27. No dia 15 de Outubro, a C (…) solicitou, mais uma vez, a assinatura presencial de ambos os sócios e gerentes e suas mulheres de modo a formalizar os contratos.

28. O Requerido não acedeu a tal pedido, o que determinou a suspensão dos referidos projectos de financiamento.

29. Daquele financiamento, o valor de €34.312,20 a fundo perdido encontrava-se já consignado ao pagamento de maquinaria adquirida, nomeadamente, uma factura no valor de €92.500,00 que integrou o dito projecto de apoio a equipamento.

30. O fornecedor do equipamento recusou-se a prestar a necessária manutenção enquanto não fosse pago o valor desta factura.

31. A maquinaria em causa passa dias inteiros a produzir e a manutenção é essencial para a continuidade da produção.

32. A breve trecho, a sociedade comercial terá de fazer prova do recibo de pagamento daquela factura que integrou o dito projecto, com prazo de apresentação de 30 dias após solicitação.

33. Este impasse junto das instituições G (…) e C (…)que outrora garantiam financiamento, retira a credibilidade de que a empresa sempre gozou.

34. Constitui prática corrente da banca, e nomeadamente na C (…) a exigência da responsabilidade conjunta e solidária dos sócios e gerentes para fins de financiamento.

35. Foi aberto um concurso público por parte da Universidade de (...) com adjudicação de 29 obras, ao qual a empresa se candidatou.

36. A empresa venceu este concurso em anos anteriores e neste ano.

37. Para a adjudicação do contrato é necessário um conjunto de documentação, entre eles, o registo criminal dos sócios e gerentes

38. A sociedade tem responsabilidades bancárias mensais.


*

Não se julgaram provados os seguintes factos:

a) - Que a partir do dia 27.03.2019 o Requerido passou a ausentar-se por dias inteiros, quase diariamente.

b) - Que depois do regresso de férias do Requerente, em 19 de Agosto, o Requerido continuou a pressioná-lo para a aquisição da quota, ao mesmo tempo que ignorava questões atinentes à prática dos actos necessários à prossecução da sua actividade social: encomendas a cumprir, facturas a cobrar, clientes a visitar, aquisição de matérias- prima e manutenção da maquinaria.

c) - Que o concurso aberto pela UC representa uma facturação na ordem de €30.000,00.

d) - Que a sociedade paga de renda do armazém o valor de €1.000,00

e) - Que o Requerido continua com acesso ao email da empresa, à conta bancária e cartões bancários, e mantém em seu poder um veículo da empresa que desde sempre lhe esteve confiado.


/////

IV.

A questão suscitada no recurso prende-se apenas com a circunstância de ter sido dispensada a audiência prévia do Requerido e com a alegada violação do princípio do contraditório que daí teria resultado.

Na verdade, o Apelante não invoca a existência de erro na apreciação da prova que foi produzida e em função da qual se fixou a matéria de facto provada e não invoca – pelo menos de forma expressa e clara – qualquer erro na interpretação e aplicação do direito aos factos que se julgaram provados; o Apelante sustenta apenas – é esse, no essencial, o fundamento do recurso – que a decisão recorrida não podia ter determinado a suspensão das suas funções de gerente sem proceder à sua audição e baseando-se apenas nas provas oferecidas pelo Requerente sem que tivesse dado ao Requerido/Apelante a oportunidade de apresentar outros meios de prova que teriam permitido alcançar, ao contrário do que aconteceu, a justa composição do litígio e a prossecução do interesse público subjacente à boa administração da justiça.

Ainda que aluda também à violação do princípio do inquisitório, a verdade é que as razões invocadas para fundamentar essa alegação acabam por se reconduzir ao facto de ter sido dispensada a audiência prévia do Requerido e à violação do princípio do contraditório, uma vez que, na perspectiva do Apelante, a violação do princípio do inquisitório teria resultado – se bem percebemos – da circunstância de, ao dispensar a sua audiência prévia, ter sido inviabilizada ou dispensada a prova que poderia ter apresentado e que teria contribuído para o apuramento da verdade e para a justa composição do litígio.

Analisemos, portanto, essas questões.

É indiscutível que o princípio do contraditório é um princípio fundamental do nosso sistema processual civil que, além de ser aflorado em diversas disposições legais, está expressamente consagrado no art. 3º do CPC, onde se determina que “só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida” e que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Mas, não obstante a importância desse princípio – que é essencial para assegurar a igualdade das partes no processo e para alcançar a justa decisão do litigio – ele comporta excepções e restrições que foram estabelecidas pelo legislador no sentido de assegurar a realização de outros interesses que, em determinadas circunstâncias, se assumem como prevalecentes. É isso que acontece, designadamente, no âmbito dos procedimentos e medidas cautelares onde aquele princípio sofre algumas restrições no sentido de evitar a lesão grave e irreparável de direitos e de prevenir o efeito útil da acção a instaurar com vista à defesa ou satisfação desses direitos, determinando o legislador que em determinados procedimentos cautelares especificados não há lugar à audiência prévia do requerido (cfr. restituição provisória de posse e arresto) e facultando ao juiz, no âmbito do procedimento cautelar comum, a possibilidade de dispensar aquela audiência quando tenha razões para concluir que ela põe em risco sério o fim ou a eficácia da providência. É importante notar que, nos casos referidos, está em causa uma decisão provisória cujos efeitos apenas se mantêm até à decisão que regule o litigio ou defina os direitos e em qualquer caso é assegurado o contraditório após o decretamento da providência, circunstâncias que eliminam ou reduzem significativamente o risco de prejuízos emergentes de decisões injustas. Nessas circunstâncias, a cedência do contraditório prévio surge plenamente justificada em nome dos interesses que se pretendem proteger (evitar a lesão grave e irreparável de direitos e de prevenir o efeito útil da acção a instaurar com vista à defesa ou satisfação desses direitos) e que só poderão ser protegidos por via da cedência daquele princípio.

Vejamos agora como e em que termos pode e deve ceder o aludido princípio no âmbito da medida cautelar – que está em causa nos presentes autos – de suspensão das funções de gerente ao abrigo do disposto no art. 1055º do CPC.

O citado art. 1055º dispõe, nos seus nºs 1 a 3, o seguinte:

1 - O interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais, ou de representantes comuns de contitulares de participação social, nos casos em que a lei o admite, indica no requerimento os factos que justificam o pedido.

2 - Se for requerida a suspensão do cargo, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão, após realização das diligências necessárias.

3 - O requerido é citado para contestar, devendo o juiz ouvir, sempre que possível, os restantes sócios ou os administradores da sociedade.

(…)”.

Tal disposição legal está em perfeita conformidade com o art. 257º, nº 4, do CSC onde se dispõe – relativamente às sociedades por quotas, como é o caso da sociedade em causa nos autos – que “Existindo justa causa, pode qualquer sócio requerer a suspensão e a destituição do gerente, em acção intentada contra a sociedade”.

Conforme resulta da lei, o processo para destituição de titulares de órgãos sociais configura-se como um processo de jurisdição voluntária que inclui dois procedimentos processuais: o procedimento principal que tem em vista a destituição do cargo e um procedimento de natureza cautelar que tem em vista a suspensão do cargo como forma de garantir a eficácia e efeito útil da destituição que venha a ser decretada. Sendo evidente a natureza cautelar da suspensão prevista no nº 2 do citado art. 1055º, é também indiscutível que o respectivo procedimento não está directamente submetido às normas que regulam os procedimentos cautelares (sem prejuízo da aplicação subsidiária dessas normas, quando tal se revele necessário); está aqui em causa um procedimento cautelar que está “enxertado” no próprio processo principal onde se pretende ver decretada a destituição.

Nessas circunstâncias, coloca-se a questão de saber se – e em que termos – deve ser dispensada a audiência prévia do requerido com vista ao decretamento da aludida providência de suspensão do cargo e tal questão não tem merecido resposta uniforme da nossa jurisprudência. Na verdade, há quem entenda que não há lugar a tal audiência na medida em que, segundo dispõe o art. 1005º, nº 2, o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão após realização das diligências necessárias, não sendo, por isso, aplicável a regra geral prevista no art. 366º do CPC[1]. Mas também há quem perfilhe o entendimento de que a expressão “imediatamente” empregue pelo legislador na norma supracitada não traduz uma vontade inequívoca no sentido do estabelecimento da regra absoluta de exclusão da audiência prévia do requerido em procedimento de suspensão de funções de gerente e que o juiz apenas pode afastar a audiência prévia do requerido se a sua audição colocar «em risco sério o fim ou a eficácia da providência», nos termos consignados no art. 366º, n.º 1 do CPC[2].

À primeira vista, até poderíamos concordar com a afirmação de que a expressão “imediatamente” empregue pelo legislador na norma supracitada não traduz uma vontade inequívoca no sentido do estabelecimento da regra absoluta de exclusão da audiência prévia do requerido em procedimento de suspensão de funções de gerente e que com essa expressão o legislador apenas teria pretendido afirmar que essa questão devia ser apreciada e decidida com carácter de urgência. No entanto, a natureza e os trâmites processuais do processo em questão apontam noutro sentido.

Vejamos.

O processo em questão – para destituição de titulares de cargos sociais – é um processo de jurisdição voluntária cuja tramitação é, por regra, simples e célere, sendo certo que, conforme resulta dos arts. 1055º, 986º e 292º a 295º do CPC, existem apenas dois articulados, o prazo da oposição é de dez dias, as provas são oferecidas nos articulados e, após a produção de prova, a sentença é proferida no prazo de 15 dias. Ora, a entender-se que a decisão de suspensão do cargo teria que ser precedida de audiência do requerido e porque nenhuma razão existiria para que os termos do processo com vista à destituição ficassem suspensos até à decisão a proferir sobre a suspensão, tal significaria que a notificação do requerido para se pronunciar sobre o pedido de suspensão seria efectuada em simultâneo com a notificação para deduzir oposição ao pedido de destituição (nenhuma razão encontramos para que fosse de outro modo); porque o prazo para essa oposição seria idêntico (dez dias), porque a lei não prevê outros articulados e porque a prova a produzir sobre o pedido de suspensão e sobre o pedido de destituição será, por via de regra, a mesma (correspondendo à prova indicada nos articulados sem prejuízo de outras que o juiz entenda necessárias), tal significaria, na prática e pelo menos na maioria das situações, que, quando o juiz estivesse em condições de apreciar o pedido de suspensão também já estariam reunidas as condições necessárias para apreciar o pedido de destituição e, portanto, já não teria qualquer utilidade a decisão referente à suspensão do cargo. Poderão existir, naturalmente, situações em que a decisão definitiva (referente à destituição) exige uma investigação mais alargada e morosa relativamente àquela que é necessária para a decisão provisória (referente à suspensão) mas essa não será a regra.

Nessas circunstâncias, pensamos que, ao determinar que o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão após realização das diligências necessárias, o que o legislador tinha em mente era dispensar a audiência prévia do requerido. É certo que o legislador não disse expressamente que a decisão era proferida sem prévia audiência do requerido (e poderia tê-lo feito, como fez a propósito de outros procedimentos cautelares especificados), mas também não disse que tal decisão era precedida de tal audiência (como também poderia ter feito até por remissão para as normas do procedimento cautelar comum onde se regula essa matéria e as situações em que tal audiência deve ser dispensada). Pensamos, portanto, que, ao determinar que o juiz decide imediatamente o pedido de suspensão após realização das diligências necessárias, o que o legislador pretendeu foi determinar que tal decisão (provisória e cautelar) apenas exigia a realização das diligências que se mostrassem necessárias para fundar a decisão a tomar sobre essa matéria e não dependia nem tinha que ser antecedida de qualquer outra formalidade ou outro acto processual, nomeadamente a audiência do requerido. O legislador pretendeu, portanto, afirmar que, uma vez realizadas as diligências necessárias, o pedido de suspensão seria imediatamente decidido sem aguardar qualquer outro acto processual e, portanto, sem aguardar a citação do requerido.

E não se diga que tal interpretação da norma em questão padece de inconstitucionalidade, como parece sustentar o Apelante ao alegar que a inobservância do contraditório viola a Constituição. Na verdade, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a constitucionalidade dessa interpretação, tendo decidido – no Acórdão nº 131/02 de  14/03/2002[3] - que não existia qualquer inconstitucionalidade. Considerou, para o efeito, que, ainda que o princípio do contraditório seja um dos princípios fundamentais do Processo Civil com tutela constitucional, tal não significa que não existam situações em que ele tem de ceder face à necessidade de eficácia de determinadas medidas judiciais, inoperantes se precedidas de audiência da parte contra quem são requeridas, como sucede em geral com a justiça cautelar e que, nessas situações, a constitucionalidade da norma em causa apenas poderá ser posta em crise se for manifestamente desproporcionado o sacrifício do contraditório. No que toca especificamente à norma que no anterior CPC correspondia àquela que está em causa nos presentes autos, escreveu-se no citado Acórdão: “Também aqui, repita-se, ocorre o perigo de ineficácia se o requerido for ouvido antes de decretada a sua suspensão; também aqui se não prevê um sacrifício desproporcionado do contraditório, até porque o processo de destituição tem uma tramitação simplificada e célere, podendo o requerido contestar logo após a decisão sobre a suspensão; e também aqui se verifica que a suspensão só pode ser deferida se a prova produzida para o efeito a justificar (…) Não ocorre, pois, a inconstitucionalidade por violação do princípio do contraditório que o recorrente aponta à norma impugnada”.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que, nos termos em que está legalmente previsto, o procedimento com vista à suspensão do cargo de titular de órgãos sociais dispensa a audiência prévia do requerido e, portanto, não assiste razão ao Apelante quando vem atacar, com esse fundamento, a decisão recorrida que decretou a sua suspensão.

Registe-se, além do mais, que o Tribunal recorrido, adoptando – aparentemente – a posição segundo a qual a audiência prévia do requerido apenas pode ser dispensada nas situações previstas no art. 366º, proferiu despacho onde decidiu dispensar tal audiência com a seguinte fundamentação:

O requerente alegou factos dos quais decorre que a prévia audição do requerido poderá impedir a sociedade de concorrer a concurso público a que se pretende candidatar em breve, e implicar ainda a perda definitiva dos projetos desenvolvidos durante os últimos dois anos, bem como de outros concursos ou ajustes diretos que possam surgir. Estando invocados factos que demonstram a existência de um risco sério para o fim ou eficácia da suspensão, e visto o disposto no art. 366.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, haverá que dispensar a audiência do requerido”.

Ora, o Requerente nem sequer faz qualquer apreciação crítica dessa argumentação e nada diz de concreto no sentido de contrariar o juízo que ali foi formulado a propósito do risco sério para o fim ou eficácia da providência que se entendeu existir em face da matéria de facto que havia sido alegada.

Em face do exposto e sendo certo que o Apelante não invocou – pelo menos de forma expressa e clara – qualquer outra questão para fundamentar o seu recurso, impõe-se confirmar a decisão recorrida. Na verdade, conforme se referiu supra, o Apelante não invoca a existência de erro na apreciação da prova que foi produzida e em função da qual se fixou a matéria de facto provada e não invoca – pelo menos de forma expressa e clara – qualquer erro na interpretação e aplicação do direito aos factos que se julgaram provados. Não obstante atacar, de algum modo, o “mérito” da decisão – dizendo que a suspensão não deveria ter sido decretada e dizendo ou sugerindo que tal decisão não alcançou a justa composição do litígio, tendo sido tomada com base em pressupostos de facto que não se verificavam ou não eram verdadeiros –, fá-lo sempre com base na circunstância de não ter sido ouvido antes de proferida a decisão e não por entender ter ocorrido qualquer outro erro (de interpretação ou aplicação das normas legais) por parte da decisão recorrida. Na verdade, o Apelante diz que a suspensão não deveria ter sido decretada e que a decisão não alcançou a justa composição do litígio, tendo sido tomada com base em pressupostos de facto que não se verificavam ou não eram verdadeiros porque tal decisão se baseou apenas na versão e nas provas oferecidas pelo Requerente sem que tivesse sido ouvido o Apelante (que era pessoa com conhecimento direto de factos importantes para a boa decisão do procedimento) e sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de apresentar outros meios de prova que infirmariam – com elevada dose de segurança – a posição muito parcial trazida aos autos pelo Requerente e que teriam permitido alcançar a justa composição do litígio. É certo, portanto, que toda a argumentação utilizada pelo Apelante para fundamentar o recurso se reconduz ao facto de não ter sido ouvido antes de decretada a suspensão em alegada violação do princípio do contraditório.

Assim e porque, na nossa perspectiva e pelas razões supra apontadas, o Apelante não tinha que ser ouvido antes de proferida a decisão sobre a suspensão, impõe-se julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida. 


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

Nos termos em que está legalmente prevista, a medida cautelar de suspensão do cargo de titulares de órgãos sociais prevista no art. 1055º, nº 2, do CPC não exige a prévia audiência do requerido.


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do Apelante sem prejuízo do apoio judiciário que lhe venha a ser concedido.
Notifique.

                              Coimbra, 28/01/2020

Tarina Gonçalves ( Relatora)

Maria João Areias

Ferreira Lopes


[1] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 28/11/2018, proferido no processo nº 4039/17.9T8LRA-A.C1 e Acórdãos da Relação do Porto de 05/04/2001 e de 12/05/2008, proferidos nos processos nºs 0130120 e 0850755, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 26/10/2017, proferido no processo nº 2894/16.9T8STS-A.P1 e Acórdão da Relação de Évora de 23/03/2017, proferido no processo nº 837/16.9T8OLH.E1, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[3] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt.