Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1896/19.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: EQUIDADE
BALIZAS
CONDENAÇÃO NO QUE VIER A SER LIQUIDADO EM EXECUÇÃO
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 609º, Nº 2 DO NCPC.
Sumário: Quando não estão determinadas as “balizas” dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil.
Decisão Texto Integral:




Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

1 – RELATÓRIO

U...”, pessoa coletiva número ..., com capital social de €5.737.522,00, e com sede em ... (Espanha), deduziu ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra “M... - CONSTRUÇÕES LDA”, pessoa coletiva número ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... sob o mesmo número, com capital social de €150.000,00 e com sede em ..., pedindo que, na procedência da ação, fosse a Ré condenada ao pagamento à A. do montante de €60.986,26 (sessenta mil, novecentos e oitenta e seis euros e vinte e seis cêntimos), acrescido de juros moratórios vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.

Para tanto alegou, muito em síntese, que celebrou com a Ré um contrato de sub-empreitada que a Ré não cumpriu, tendo abandonado a obra, sendo que a conduta da Ré lhe causou os danos correspondentes às quantias pedidas.

A Ré contestou admitindo o abandono da obra por parte do seu sub-contratado mas que pretendeu resolver tal situação e que foi a Autora que não quis, pelo que não incumpriu o contratado.

Mais alega que a Autora não lhe pagou trabalhos efetuados, comunicados à Autora que não apresentou qualquer objeção, com base no que deduziu o seguinte pedido reconvencional: «(…) a Autora condenada a pagar à Ré a importância de €8.468,66 (oito mil, quatrocentos e sessenta e oito euros e sessenta e seis cêntimos) mais IVA, quantia esta acrescida de juros de mora vincendos, até integral pagamento, tudo com as legais consequências».

                                                                          *

Em resposta a Autora, em súmula, refutou o alegado pela Ré na contestação, pugnando no sentido de o pedido reconvencional ser julgado totalmente improcedente.

Realizada a tentativa de conciliação a mesma não obteve êxito. Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

Foi realizada a audiência de julgamento, com a produção da prova requerida pelas partes, como consta das Atas.

Na sentença considerou-se, em suma, que resultando apurado um abandono da obra, a Ré incumpriu definitivamente o contrato a que estava sujeita, devendo indemnizar a Autora pelos danos que tal conduta, ilícita e culposa, tenha causado; contudo, a Autora não logrou demonstrar a existência do dano, o qual não se presume, face ao que a ação improcedia por falta de demonstração do dano; já quanto ao pedido reconvencional, tal pedido apenas procedia no respeitante aos trabalhos descritos no auto de medição nº 2, relativamente ao que era de proferir condenação da Autora no pagamento à Ré da quantia de €7.314,93, acrescida de IVA, nos termos definidos no contrato, sendo também devidos os pedidos juros desde a data da notificação da reconvenção.

Nestes termos, concluiu-se com o seguinte concreto “dispositivo”:

«III- DECISÃO

Pelo exposto,

A. julgo totalmente improcedente a ação e absolvo a ré de todo o pedido formulado; e

B. Julgo parcialmente procedente a reconvenção e condeno a autora a pagar à ré a quantia de 7.314,93 €, acrescida de IVA e dos juros moratórios a contar desde a notificação da reconvenção até integral pagamento;

C. absolvo a autora do restante pedido contra si formulados.

Custas pela autora e ré na proporção dos respetivos decaimentos.

Registe e notifique.» 

                                                                          *

               Inconformada com essa sentença, apresentou a A. recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

...

NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE OS VENERANDOS DESEMBARGADORES DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ SER JULGADA PROCEDENTE A PRESENTE APELAÇÃO, DE FACTO E DE DIREITO, REVOGANDO-SE, CONSEQUENTEMENTE, A SENTENÇA RECORRIDA, QUE JULGOU A AÇÃO TOTALMENTE IMPROCEDENTE E O PEDIDO RECONVENCIONAL APRESENTADO PELA ORA RECORRIDA PARCIALMENTE PROCEDENTE:

A. JULGANDO-SE A AÇÃO TOTALMENTE PROCEDENTE E CONDENANDO-SE:

i. A título principal, ser a Recorrida condenada no pagamento do montante de EUR 60.986,26 (sessenta mil, novecentos e oitenta e seis euros e vinte e seis cêntimos) à Recorrente, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos;

ii. Subsidiariamente, ser a Recorrida condenada no pagamento de uma indemnização, de valor a definir em incidente de liquidação, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.

B. E JULGANDO O PEDIDO RECONVENCIONAL APRESENTADO PELA RECORRIDA TOTALMENTE IMPROCEDENTE, ABSOLVENDO-SE A ORA RECORRENTE DO PEDIDO.»                                                                      

                                                                                         *

               Por sua vez, apresentou a Ré contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

               ...

               Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

               2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela Autora nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4, 636º, nº2 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

               - impugnação da matéria de facto, invocando o incorreto julgamento da matéria de facto quanto ao facto dado como “provado” sob o ponto “18.” [relativamente ao qual entende que o mesmo devia ser dado como “não provado”] e quanto aos factos dados como “não provados” sob as alíneas “a.”, “b.” e “c.” [os quais deviam figurar entre os “provados”];

- incorreto julgamento de direito [porquanto devia ser proferida condenação da Ré, “A título principal”, no pagamento do montante de € 60.986,26 (acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos) e, “Subsidiariamente”, ser a Ré condenada no pagamento de uma indemnização, de valor a definir em incidente de liquidação (acrescida de juros de mora vencidos e vincendos), e sendo o pedido reconvencional julgado totalmente improcedente].

               3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1 – Como ponto de partida, e tendo em vista o conhecimento dos factos, cumpre começar desde logo por enunciar o elenco factual que foi considerado fixado/provado pelo tribunal a quo, ao que se seguirá o elenco dos factos que o mesmo tribunal considerou/decidiu que “não se provou”, sem olvidar que tal enunciação terá um carácter “provisório”, na medida em que o recurso tem em vista a alteração parcial dessa factualidade.   

               Tendo presente esta circunstância, consignou-se o seguinte na 1ª instância em termos de Factos Provados:

               ...           

E o seguinte em termos de factos Não Provados:

               ...

              

3.2 – A A./recorrente deduz impugnação da matéria de facto, invocando o incorreto julgamento da matéria de facto quanto ao facto dado como “provado” sob o ponto “18.” [relativamente ao qual entende que o mesmo devia ser dado como “não provado”] e quanto aos factos dados como “não provados” sob as alíneas “a.”, “b.” e “c.” [os quais deviam figurar entre os “provados”].

               Que dizer?

               Apreciemos com o necessário pormenor e detalhe cada um dos pontos de facto questionados.

Sem prejuízo de esta apreciação ser feita conjuntamente, quando justificada in casu.

Começando, naturalmente, pela apreciação do ponto de facto dado como “provado” sob o ponto “18.” [relativamente ao qual a A./recorrente entende que o mesmo devia ser dado como “não provado”], rememoremos, antes de mais, o seu teor literal, a saber:

«18. A ré reparou as desconformidades descritos em 9.»

Fundamenta, em síntese, a A./recorrente a sua pretensão de que este ponto de facto devia ser dado como “não provado” «Face à prova documental e testemunhal produzida», mais concretamente, que a referência, na “motivação” da sentença recorrida, aos «doc. 4 e doc 9, junto com a petição» só se pode compreender como fruto de mero lapso, pelo que só resta – como suporte positivo da convicção, tendo em conta a referência constante da “motivação” da sentença recorrida – o depoimento da testemunha ...

Que dizer?

Em nosso entender, compulsada toda a prova produzida com relevância para este particular, resulta ser determinante e decisivo o teor do doc. nº 6 junto com a contestação: trata-se de um e-mail, datado de 15 de Dezembro de 2017, enviado pela referenciada testemunha ... [que sabemos ser Engº Civil e, ao tempo, trabalhar para a Ré, tendo funções de “responsável de obra”] para a também testemunha ... [que sabemos ser “gestora da Autora”], sendo que nesse e-mail o dito ... dava nota de que «Registo que estive na obra esta manhã e informo que a não conformidade está a ser resolvida neste momento.».

De referir que esse mesmo dito ..., ao ser inquirido na audiência de julgamento, confirmou essa mesma resolução dos problemas, como flui do seguinte segmento da gravação áudio do seu depoimento:

«Advogado: Entretanto, houve, um certo momento, está aqui no processo, a indicação, que terá havido algumas desconformidades, na execução dos trabalhos. O senhor engenheiro teve conhecimento dessas desconformidades?

Testemunha: Sim, sim, sim.

Advogado: E essas desconformidades foram resolvidas?

Testemunha: Foram resolvidas na hora. No próprio dia ou logo no dia a seguir, em que nós recebemos esse email, dessas não conformidades, imediatamente solucionamos essas não conformidades.»

Sucede que em complemento deste depoimento igualmente ressalta o depoimento da testemunha ... [que sabemos ser “diretor comercial da ré”], mais concretamente no seguinte segmento da gravação áudio do seu depoimento:

«Advogado: Olhe, voltando um pouco atrás fala-se em desconformidades da obra e há aqui um email da S... de catorze de dezembro que é o documento número seis junto com a petição inicial que fala aqui, de não conformidade levantada pela fiscalização da obra. Aquilo que eu lhe pergunto é se em dezembro esta não conformidade foi resolvida pela M...?

Testemunha: Foi, foi resolvida pelo ... que ainda lá estava em obra, foi resolvida. Essa situação foi com o ... em obra. Ou seja, tem a ver efetivamente com a fixação do isolamento ou uma coisa assim do género, que percebeu-se que não estava bem e resolveu-se, sim.

Advogado: E depois de esta data, ou depois de dezembro ou de janeiro de dois mil e dezoito receberam, da parte da U..., alguma outra comunicação de não conformidades?

Testemunha: Não, aliás nós nunca tivemos nenhuma comunicação da parte da U..., nem telefonemas, nem nada. Quer dizer, nunca mais soubemos nada.»

Aliás, ao invés do que a A./recorrente intenta afirmar nas suas alegações recursivas, da leitura/interpretação do doc.14 (junto com a petição inicial), não resulta de todo que a testemunha ... tivesse indicado (muito menos “expressamente”) que existiam «valores em aberto devido às correcções que tiveram de ser feitas ao trabalho realizado pela subcontratada ...»… 

 Acrescendo que ficou igualmente por demonstrar que as reparações em causa tivessem um tal grau de “gravidade” que não pudessem ser executadas nos 4/5 dias em que o subcontratado “...” ainda permaneceu em obra.

O que tudo serve para dizer que não se vislumbra qualquer erro de julgamento na apreciação da prova quanto a este particular, donde improceder a impugnação quanto a este dito ponto de facto “provado” sob “18.”.

                                                                          ¨¨ 

Passemos então ao segundo grupo de pontos de facto submetidos à sindicação, a saber, o que corresponde aos pontos de facto dados como “não provados” sob as alíneas “a.”, “b.” e “c.”, sendo certo que nestes estão em causa muito diretamente os alegados danos sobrevindos à Autora com o incumprimento contratual da Ré, e bem assim com o correspondente valor indemnizatório tendente à sua reparação.

Para fundamentar a resposta negativa em que se traduziu estes pontos de facto figurarem no elenco dos factos “não provados”, a sentença recorrida consignou o seguinte em termos de “motivação”: «Os factos não provados descritos em a., b. e c. resultaram da manifesta insuficiência da prova produzida. As testemunhas apenas se referem a tal matéria de forma genérica e os documentos juntos (melhor a sua ausência) não permite a sua prova: o doc. junto pela autora como n. 13 foi impugnado pela ré e o mesmo consiste num documento síntese, elaborado pela ré, sem que as parcelas que dele constam – no que respeita a novos custos - estejam suportados por outros elementos probatórios suficientes. Tal documento mais não é que uma declaração da própria autora em seu interesse. Cabia-lhe juntar aos autos documentos donde resultassem os indicados valores (como p. ex. 9 o referido orçamento, faturas e/ou recibos…). Não o tendo feito tal documento (declaração do próprio) é manifestamente insuficiente.»

Nas alegações recursivas a A./recorrente contrapõe, no essencial, com a afirmação de que «foi produzida prova suficiente e cabal quanto aos danos sofridos pela Recorrente em virtude do incumprimento da Recorrida, o que resulta não só dos documentos 8, 11, 13 e 15 juntos com a petição inicial, mas também dos depoimentos de todas as testemunhas que depuseram sobre esta matéria.»

Vejamos.

O “doc. 8” consiste numa mensagem de e-mail enviado pela Ré à Autora, em 21 de Dezembro de 2017, subscrito pelo Engº ... (já supra identificado), o qual dava nota de que a própria Ré havia sido surpreendida pelo “abandono” de obra por parte da “...”, sendo que apenas tinham como solução a intervenção de uma outra empresa, de cujos custos (novos preços) logo informavam.

Já o “doc. 11” consiste numa outra mensagem de e-mail, esta enviada pela Autora à Ré, no mesmo dia 21 de Dezembro de 2017, subscrito por ... (que, segundo dito pelo próprio aquando da prestação de depoimento na audiência “aos costumes”, se apura que “trabalha para a autora desde 1997 como responsável comercial de Espanha”), através da qual aquele manifesta o seu descontentamento com a situação, designadamente informando que não podem aceitar os novos preços em causa, e apelando ao cumprimento contratual pela Ré.

Quanto ao “doc. 13”, constata-se que constitui um documento síntese, elaborado pela Autora, no qual esta faz constar o preço/valor acrescido a que ascendeu a finalização da obra em causa.

Finalmente, o “doc. 15” constitui a fatura oportunamente elaborada pela Autora e emitida em nome da Ré, fatura essa correspondente ao alegado custo adicional total suportado em virtude do incumprimento da Ré.

Passando à prova testemunhal invocada nas mesmas alegações recursivas da Autora, constata-se que consiste nos depoimentos das testemunhas ..., relativamente aos quais alguns (maiores ou menores) segmentos da gravação áudio correspondente se reproduzem.

Será então que face a estes elementos de prova se podia e devia passar os ditos pontos de facto dados como “não provados” sob as alíneas “a.”, “b.” e “c.” para o elenco dos factos “provados”?

Salvo o devido respeito, a resposta é clara e convictamente de sentido negativo.

Na verdade, fundamental, senão decisivo, para que tal pudesse ter lugar era a exibição e comprovação de que a Autora teve efetivamente tais danos com os custos acrescidos para a finalização da obra no particular em causa, através da nova empresa que contratou para o efeito, mais concretamente com o que teria tido de pagar a esta última.

Naturalmente que a prova consistente e concludente de que assim teria sucedido seria feita através da junção de um orçamento dado por essa nova empresa e bem assim pelas faturas e/ou recibos correspondentes ao trabalho que tivesse sido prestado por esta última.

Sucede que nenhum elemento de prova documental desta natureza se mostra junto aos autos.

Desconhece-se a identidade dessa nova empresa, e/ou dos preços real e materialmente cobrados pela prestação do serviço.

Sendo intuitiva esta linha de argumentação em termos de prova quanto a este particular, não se compreende o porquê da não junção de qualquer prova documental dessa natureza, o que nos remete para a dúvida legítima sobre a Autora ter efetivamente despendido os valores que invoca.

Sendo certo que não há nenhuma presunção, nem sequer judicial (em termos de regras da experiência e da normalidade das situações) de que esse custo acrescido tivesse efetivamente que ter tido lugar.

Repare-se que o terem as testemunhas referido que a obra era trabalhosa/complexa (caso das testemunhas ...), que era difícil arranjar quem efetuasse essa obra pelos mesmos custos anteriormente contratados (caso da testemunha ...), ou uma mera descrição abstrata e conclusiva sobre a prestação de serviços e cálculo dos custos em que importou (caso das testemunhas ---), não descarta nem afasta a hipótese alternativa – que não será necessariamente especulativa ou ficcional! – de na circunstância apenas terem sido “utilizados” pela Autora trabalhadores cedidos por uma outra empresa[2], isto é, sem esta terceira empresa ter sido diretamente contratada, o que teria importado em custos muito mais “controlados”, e daí que não apareçam quaisquer “documentos” relativos ao serviço que foi efetivamente executado e modo como o foi…

Donde, operando o confronto com o teor literal dos ditos documentos 8, 11, 13 e 15 juntos com a petição inicial, não se impõe[3] uma conclusão diversa, em termos de convicção probatória, da que se apresentou supra (e que também foi a da sentença recorrida!).

O que tudo serve para dizer que também não se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova quanto a este particular, donde igualmente improceder a impugnação quanto a estes ditos pontos de facto dados como “não provados” sob as alíneas “a.”, “b.” e “c.”, os quais assim se mantêm nos mesmos termos.

                                                                          *

               4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre agora entrar na apreciação da questão neste particular supra enunciada, esta já directamente reportada ao mérito da sentença, na vertente da fundamentação de direito da mesma, a saber, que ocorreu incorreto julgamento de direito [porquanto devia ser proferida condenação da Ré, “A título principal”, no pagamento do montante de € 60.986,26 (acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos) e, “Subsidiariamente”, ser a Ré condenada no pagamento de uma indemnização, de valor a definir em incidente de liquidação (acrescida de juros de mora vencidos e vincendos), e sendo o pedido reconvencional julgado totalmente improcedente].

Que dizer?

Desde logo que, tendo em conta a decisão vinda de proferir relativamente à impugnação quanto à decisão sobre a matéria de facto, que a A./recorrente não logrou qualquer ganho de causa, pelo que a decisão de improcedência, no que à ação diz respeito, se nos afigura apodítica e incontornável.

Atente-se que a sentença recorrida se fundamentou, muito decisivamente quanto a este particular, na circunstância de não terem resultado provados os danos invocados, pelo que, por não se verificar esse pressuposto da obrigação de indemnizar, não podia esta proceder, como mais concretamente flui do seu seguinte segmento:

«Perante os factos provados podemos considerar que, pelo abandono da obra, a ré incumpriu definitivamente o contrato a que estava sujeita. Devendo indemnizar a autora pelos danos que tal conduta, ilícita e culposa, tenha causado. Sendo indiferente à autora que o incumprimento resultasse de terceiro, contratado pela ré. Ou que a autora não tivesse aceite um outro terceiro para a realização/finalização da obra. O que vincula autora e ré é, unicamente, o contrato que ambas celebraram entre si.

No caso concreto, contudo, a autora não logrou demonstrar a existência do dano (cf. factos não provados e descritos em a. a c.).

O dano não se presume:

“Na responsabilidade contratual há uma presunção legal “tantum juris” da culpa do contraente faltoso, mas é sobre o contraente cumpridor que recai o ónus da prova dos restantes pressupostos: violação contratual, dano e nexo causal”4.

No caso, não é, sequer inverosímil pensar que o dano inexistiu: caso em que os trabalhos não realizados pela ré o foram a custo inferior ao orçamentado.

Assim, apesar da prova do incumprimento contratual por parte da ré, a ação improcede por falta de demonstração do dano

4 Cf. ente muitos, o Ac STJ de 2.11.2010 (Rel. Cons. Sebastião póvoas) e disponível in http://www.dgsi.pt/jstj».

Face ao conspecto fáctico dos autos, concordamos inteiramente com uma tal linha de raciocínio e conclusão, donde soçobrar inapelavelmente o recurso no que à improcedência da ação diz respeito.

Já o mesmo se não diga no tocante ao pedido reconvencional – ainda que o acolhimento do recurso nessa parte não tenha propriamente lugar nos termos clamados pela A./recorrente.

Senão vejamos.

Recorde-se que a A./recorrente pugnava pela total improcedência do pedido reconvencional com a argumentação, muito em síntese, de que da factualidade “provada” quanto a este particular [cf. facto provado “17.”[4]], apenas resultava apurado a elaboração do auto de medição pela Recorrida e o envio do mesmo pela Recorrida ao Recorrente.

Ademais, que a decisão nem sequer se mostrava sustentada do ponto de vista da prova produzida:

-  quer porque a Ré/recorrida não realizou, em concreto, os trabalhos visados no auto de medição n.º 2 [tendo inclusivamente a sua subcontratada abandonado a obra no período relevante];

- quer porque no período visado no auto de medição n.º 2, foram identificadas desconformidades [que não foram corrigidas pela Recorrida e que vieram a ser posteriormente inteiramente suportadas pela Recorrente];

- quer porque a Recorrente não aprovou o conteúdo do auto de medição n.º 2 [sendo que as partes haviam acordado que os autos de medição emitidos pela Recorrida sempre teriam de ser aprovados pela Recorrente];

- quer ainda porque a Recorrida não emitiu qualquer fatura respeitante aos trabalhos alegadamente realizados e referidos nesse auto de medição n.º 2.

Que dizer?

Quanto a nós que efetivamente logra em parte acolhimento esta linha de argumentação.

Sem embargo do vindo de dizer, parece-nos menos fundada a argumentação de que não se mostrava provada a realização dos trabalhos em causa no auto de medição n.º 2 – isto porque o ponto de facto provado “17.” é “complexo”, integrando para além da afirmação da elaboração e envio do auto de medição em referência, também a afirmação da realização dos trabalhos em causa.

Em abono desta linha de interpretação e conclusão, temos que o Exmo. Juiz de 1ª instância, após a prova produzida, formou convicção positiva sobre a efetivação dos trabalhos constantes do mesmo, e daí, adivinha-se, ter concluído pela procedência integral do pedido reconvencional.

S.m.j., é esse o sentido do que se deu como "provado" sob "17.", como flui inequivocamente da "motivação" constante da sentença, a saber, «Quanto à elaboração do auto n. 2, e da realização dos trabalhos, teve-se em consideração o depoimento da testemunha ... que o elaborou e confirmou, de forma convincente, em audiência de julgamento.» [sublinhado nosso].

De referir que a Autora/recorrente não impugnou a decisão sobre a matéria de facto relativamente a este facto "provado" sob "17."

O que ela diz é que esse facto “não foi devidamente considerado na sentença" - o que não é uma impugnação para efeitos de apreciação no quadro do art. 640º do n.C.P.Civil [daí não se ter englobado, nem apreciado, o facto "provado" sob "17." no contexto da impugnação sobre a matéria de facto].

Temos presente que das alegações de recurso se extrai que a Autora/Recorrente  não considera ou interpreta que do facto "provado" sob "17." resulte a efetivação dos trabalhos.

Mas, como já se disse anteriormente, o Exmo. Juiz de 1ª instância concluiu – e em termos de convicção probatória – pela sua efetivação, deixando isso expresso na "motivação".

Donde, salvo o devido respeito, a interpretação supra consignada do facto ”provado” sob “17.” – no sentido de dele constar e resultar a positiva efetivação dos trabalhos constantes do auto de medição nº 2 – parece-nos perfeitamente lógica e fundamentada, para além de suportada no texto da própria sentença.

Isto sem prejuízo de esses trabalhos poderem estar incompletos e apresentarem desconformidades…

Não obstante o vindo de dizer, afigura-se-nos decisivo e determinante que foi a própria Ré que juntou com a sua contestação/reconvenção o Contrato de Subempreitada celebrado com a Autora relativamente aos trabalhos ajuizados, do qual resulta que se encontrava efetivamente acordado entre as partes que os autos de medição tinham de ser aprovados[5], só depois de tal sendo emitida a correspondente fatura.

Assim sendo, já não nos parece legítimo nem fundado que se tenha dado cobertura integral à obrigação de um montante/valor monetário constante de um auto de medição, quando nem resulta que o mesmo tivesse sido aprovado, acrescendo que não tendo sido emitida fatura, nem sequer se nos afigura correto considerar-se existir uma dívida já vencida.

Nesta linha de entendimento, o que será então devido pela Autora?

O art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil estipula que «Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida».

A aplicação desta norma depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos; mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo, deverá ocorrer a prova de existência de danos; este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação.[6]

Concretizando.

Ao abrigo do disposto no art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil, porque nos parece ser possível vir a apurar os elementos de que depende a liquidação, importa proferir condenação, neste particular, no que se vier a liquidar como devido pelos trabalhos constantes do auto de medição em causa efetivamente realizados [melhor descritos e identificados no facto “provado” sob “17.”], embora com o limite máximo global de €7.314,93, mais IVA (constante desse dito facto “provado” sob “17.”), por respeito ao princípio do dispositivo.

Sendo certo que a liquidação terá em vista só e verdadeiramente apurar o valor devido pelos trabalhos efetivados (as quantidades destes já não estão em causa).

Nestes termos e limites procedendo o recurso quanto ao pedido reconvencional..

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

Quando não estão determinadas as “balizas” dentro das quais vai funcionar o juízo de equidade – os “limites mínimo e máximo” – deve optar-se pela condenação «no que vier a ser liquidado», no quadro previsto no art. 609º, nº 2 do n.C.P.Civil.

               6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, no provimento do recurso e parcial revogação da sentença da 1ª instância, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação deduzida pela Autora “U...”, em consequência do que, revogando-se a condenação da mesma no pedido reconvencional deduzido pela Ré “M... - CONSTRUÇÕES LDA.”, se substitui a sentença proferida nessa parte pela seguinte:

«B. Julgo parcialmente procedente a reconvenção e condeno a autora a pagar à ré a quantia que se vier a liquidar como devida pelos trabalhos constantes do Auto de Medição nº 2, de 21-12-2017 [referente à aplicação de 101,94 m2 de fachada e 169,96 ml de isolamento, melhor descritos e identificados no facto “provado” sob “17.”] efetivamente realizados, embora com o limite máximo global de € 7.314,93, mais IVA (constante desse facto “provado” sob “17.”)»;

– No demais, mantém-se a absolvição da Ré e Autora quanto aos pedidos contra si formulados na ação.

Custas: em ambas as instâncias, por A. e R., na proporção de 2/3 para a primeira e 1/3 para a segunda, sendo, quanto à parte ilíquida ora determinada, provisória e antecipadamente.

                                                                                                       Coimbra, 22 de Setembro de 2021

                                                        Luís Filipe Cravo

                                                        Fernando Monteiro

              Carlos Moreira (com voto de vencido)

Proc. nº1896/19.8T8LRA.C1

Vencido quanto ao pedido reconvencional.

Entendo que a recorrente impugnou a matéria de facto para além do factualismo neste particular apreciado no acordão, designadamente o ponto 17 dos factos provados, impugnação esta no sentido da sua não prova - cfr. als. d) e u) a aa) das conclusões.

Assim, ao não se emitir pronúncia, vg. quanto a esta impugnação do ponto 17, cometeu-se nulidade por omissão.

Mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e em termos jurídicos de pura exegese interpretativa, considero que do teor do ponto 17 não se pode concluir que a ré executou, ademais com adequação e sem defeitos, como era seu dever, os trabalhos relativos ao auto de medição nº2.

Efetivamente, do seu teor, a saber: «17. Foi elaborado pela ré e enviado à autora o Auto de Medição nº 2, de 21-12-2017, referente à aplicação de 101,94 m2 de fachada e 169,96 ml de isolamento, no valor de € 7.314,93, mais IVA.», não se pode concluir que os trabalhos foram realizados pela ré, e muito menos que foram realizados adequadamente e sem defeitos, como lhe era exigível.

Inexiste, pois, um mínimo de suporte e correspondência literal em tal ponto que permita tal conclusão - cfr. artº 9º, nº 2 do CC mutatis mutandis.

Ademais, o auto de medição não foi subscrito e muito menos aprovado pela autora, como exigido pelo contrato, nem foi emitida fatura de tais putativos bons trabalhos. Logo, a esta não pode, válida e eficazmente, ser oposto.

No máximo, e concedendo, existe uma dúvida quanto à realização, adequada e sem defeitos, dos trabalhos do auto de medição aludido, a qual, porém, queda ínsita para além da margem de alea em direito probatório permitida, pelo que, sendo o facto respetivo constitutivo do direito da ré, contra esta se resolve - artº 414º do CPC.

Termos em que julgaria o pedido reconvencional improcedente.

Carlos António Moreira


***


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carlos Moreira

[2] Neste sentido parece apontar indiretamente o depoimento da testemunha ... no seguinte segmento, com sublinhado nosso: «No final do ano, não recordo o dia exacto, mas era final de ano, falámos com outra empresa que trabalhava connosco em Espanha, mas que era Portuguesa, e que nos fez o favor de entrar com alguns recursos, e para podermos avançar com os trabalhos, (…)» [cf. minuto 15:45 a 16:07 da gravação áudio]
[3] Tendo-se presente que constando do art. 640º, nº1, al.b) do n.C.P.Civil o dever (melhor, ónus) para o recorrente de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa, ter ele que ser conjugado com o artº 607, nº5 do mesmo n.C.P.Civil – que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto – pelo que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa, sendo por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”...
[4] O qual, relembre-se, tem o seguinte concreto teor literal:
«17. Foi elaborado pela ré e enviado à autora o Auto de Medição nº 2, de 21-12-2017, referente à aplicação de 101,94 m2 de fachada e 169,96 ml de isolamento, no valor de € 7.314,93, mais IVA.»
[5] Nesse sentido, vide em particular as alíneas “a)”, “b)” e “c)” da Cláusula 7ª do “Contrato de Subempreitada” [que é o doc. nº1 do seu articulado], com a epígrafe de “Medição e Factura”:
«a) Durante a obra e no dia 20 de cada mês será elaborado um Auto de medição dos trabalhos executados, em conjunto entre o subempreiteiro e o Cliente.
b) O Auto de Medição, após aprovado e assinado por ambas as partes, seguirá em anexo à factura para a morada do Cliente e por via electrónica para a pessoa responsável pela sua provação, até ao final do respectivo mês..
c) O Cliente terá 5 dias, após a recepção do auto de Medição, para analisar e aprovar o mesmo. Caso não haja qualquer resposta por parte do Cliente nesse prazo, o Subemepreiteiro parte do princípio que o auto está aprovado e procede à emissão da factura de imediato.»
 
[6] cfr. ALBERTO DOS REIS, in “Código de Processo Civil Anotado”, vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71; VAZ SERRA, in “RLJ”, ano 114.º, pág. 309 e RODRIGUES BASTOS, in “Notas ao C.P.C”, vol. III, pág. 233.