Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2986/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE
ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 01/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DEC. LEI N.º 39/95, DE15/02; ARTIGOS 201.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 503.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. É extemporânea a arguição da nulidade da insuficiência de gravação da prova com a apresentação de alegações no âmbito do recurso interposto da sentença final, sempre que a parte não demonstre o respeito pelo prazo resultante do regime geral
2. A responsabilidade objectiva ou pelo risco é sempre daquele que “tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse...” (artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil). Logo, condição sine qua non da existência de responsabilidade pelo risco é que o dano tenha sido provocado por um qualquer veículo de circulação terrestre.
3. Não estando provado que o acidente foi causado por um determinado veículo que, por não identificado, implicaria a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, nem mesmo por qualquer outro veículo que, por também não identificado, obrigasse a mesma entidade a responder pelo dano, não pode concluir-se que esta entidade sempre deveria responder pelo risco.
Decisão Texto Integral: 7

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demandou, na comarca de Castelo Branco, o Fundo de Garantia Automóvel, para dele obter a condenação no pagamento da quantia de 8.370.000$00 e respectivos juros, quantia essa depois ampliada em mais 48.546,06 €, para reparação de danos emergentes de acidente de viação ocorrido na E.N. n.º 3 entre as localidades de Fratel e Barragem de Fratel e alegadamente provocado pela ultrapassagem de um camião a outro, que circulavam em sentido oposto ao seu e que essa manobra obrigou ao despiste do auto ligeiro que conduzia, dado que o camião ultrapassante ocupou a faixa de rodagem por onde a autora circulava. Esse camião não foi identificado e daí o pedido contra o Fundo de Garantia Automóvel.

2. O réu contestou e o Hospital de Castelo Branco interveio no processo para obter pagamento de gastos nele efectuado pela autora, aí assistida em consequência do acidente.
No decurso da acção foi deferido o requerimento de ampliação do pedido e o réu agravou, alegando, em síntese, que se tratava de um articulado superveniente deduzido fora de prazo. Agravo que foi recebido para subir a final.
Após audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido.
A autora não se conforma e apela a esta Relação, concluindo:
1) A cassete em que foi gravado o depoimento da testemunha Manuel João Matos Vítor enferma de irregularidades várias, dado que não está reproduzido todo o interrogatório efectuado pelo Meretíssimo Juiz do Tribunal a quo, existindo falhas e cortes nessa parte do interrogatório e não se encontra reproduzido todo o contra interrogatório dos mandatários das partes;
2) A deficiente gravação de prova impossibilita a Recorrente de impugnar a decisão sobre a matéria de facto, na sua totalidade, em violação do disposto no artigo 690º -A do Código de Processo Civil;
3) Tal constitui nulidade, invocável em sede de recurso, nos termos nomeadamente do artigo 201º do Código de Processo civil;
4) As respostas aos quesitos 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 19 º e 20º da base instrutória, tendo em conta a parte disponível do depoimento da mencionada testemunha, determinam uma resposta diferente, no sentido de que esses quesitos sejam dados como provados;
5) Pois que a testemunha em causa confirmou a ultrapassagem de um veículo pesado ao outro, o que conduziu à necessidade de a Recorrente recorrer a uma manobra de recurso para evitar o embate;
6) O Meretíssimo Juiz do Tribunal a quo não respondeu aos quesitos 11º, 14º, 15º, 16º, 24º e 26º;
7) Essa motivação é obrigatória, em função do preceituado no artigo 653º n.º2 do Código de Processo Civil;
8) Em face da alteração da matéria de facto, verifica-se existirem condições para a responsabilização da Recorrida, Fundo de Garantia Automóvel, pela obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483º do Código civil, devendo a indemnização ser fixada em face do pedido formulado pela Recorrente;
9) Caso se entenda de modo diferente, existe em última instância possibilidade de a Recorrida ser condenada de acordo com as regras do risco, tendo em conta o preceituado nos artigos 499º e segs., devendo nesse caso a indemnização ser fixada em função dos parâmetros legais em vigor à data da ocorrência do sinistro;
10) Demonstram-se violados os preceitos contidos nos artigos 690º - A, 712º e 653º n.º2 do Código de Processo Civil e 483º, 487º e 499º do Código Civil.

3. O réu contra-alegou no sentido da confirmação do julgado, opondo a intempestividade da arguição da nulidade do depoimento de testemunha, por insuficiência de registo magnético. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir.
Antes vejamos os factos provados em 1.ª instância, relevantes em matéria de culpa ou risco.
1) A estrada nacional n.º 3 estabelece a ligação entre a localidade de Fratel e a Barragem do Fratel, no concelho de Vila Velha de Ródão, distrito de Castelo Branco.
2) No sentido do Fratel para a Barragem do Fratel localiza--se um cruzamento ao chegar próximo da localidade de Vermum.
3) A aproximação desse cruzamento encontra-se cravado um sinal de perigo B9), do lado esquerdo no sentido Barragem do Fratel/Fratel.
4) A via no local apresenta a largura de 7,40 metros.
5) Possuindo bermas de ambos os lados, em terra batida com a largura não inferior a 1,90 metros.
6) No local a via apresenta-se em recta no sentido descendente.
7) Recta essa com o comprimento não inferior a 100 metros.
8) No dia 3 de Julho de 1996, pelas 11.30 horas a autora por tal via seguia.
9) Tripulando o veículo ligeiro de passageiros de serviço particular, matrícula PH-66-22, propriedade de Manuel Augusto Gaspar Maia.
10) Em sentido contrário ao da Autora, isto é, de Barragem do Fratel para o Fratel, seguiam dois veículos pesados e que a Autora perdeu o controlo do veículo indo o mesmo cair numa ravina ali existente.
11) Onde ficou imobilizado.
12) A parte traseira do veículo PH, após a imobilização ficou a distar 97,70 metros do referido sina1 de perigo B9).
13) E da berma da estrada à parte da frente do veículo PH ficou a distar 17 metros.


4. Foi com estes factos que na 1.ª instância se decidiu não se ter provado a culpa do condutor do camião não identificado e que alegadamente teria efectuado a ultrapassagem que provocou o despiste da autora, pelo que o Fundo de Garantia Automóvel não tem que responder, nem mesmo pelo risco. Na verdade, não ficou provado que qualquer camião tivesse efectuado uma manobra de ultrapassagem no momento em que a autora ali se despistou, o que fez concluir pela inexistência de qualquer nexo de causalidade entre o despiste da autora (e consequentes danos) e o movimento dos dois camiões que circulavam em sentido oposto ao da autora.
A autora é que não se conforma, por entender que devia ter sido dado como provada a ultrapassagem e consequente ocupação ilegítima da meia faixa de rodagem por onde circulava. Por isso propunha-se demonstrar, com o registo magnético da prova testemunhal, que houve erro de julgamento de facto nessa matéria. Só que encontrou uma gravação deficiente e argui (em recurso) a respectiva nulidade.
Entende, no entanto, que a parte audível do depoimento da testemunha Manuel João Matos Vítor (depoimento que alegadamente confirmaria a tese da ultrapassagem) é bastante para dar como provados os quesitos que o tribunal deu por não provados (12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 19 º e 20º).
E entende também que se não puder ser alterada a matéria de facto no sentido que propõe, então deverá ser considerada responsabilidade pelo risco e nessa medida condenado o réu.
Temos, assim, quatro questões delineadas pelas conclusões da alegação da apelante e a que urge dar resposta: i) a nulidade; ii) a suficiência de prova para alterar a decisão de facto; iii) a falta de resposta aos quesitos 11º, 14º, 15º, 16º, 24º e 26º; iv) e o erro de direito.

5. Tendo subido o agravo com a apelação, não há que conhecer daquele, porquanto entendemos que é de confirmar a sentença recorrida (artigo 710.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
A ora arguida nulidade implicaria a anulação do depoimento deficientemente gravado e a consequente repetição do julgamento sobre essa matéria ( Cfr. Acórdão da RP, de 12/10/2004, Processo 0422727, disponível em www.dgsi.pt). Só que a nulidade acabou por ser deduzida a destempo, uma vez que só na alegação de recurso a apelante o fez. Na verdade, esta não é uma nulidade da sentença e só relativamente a estas se encontra prevista a possibilidade de serem inseridas nas alegações do recurso de apelação, nos termos do art. 668º, nº 4, do Código de Processo Civil. Já no que concerne às restantes nulidades processuais, como a que resulta da verificação de relevantes deficiências na gravação, na falta de uma norma semelhante ou de outra que preveja um regime específico de arguição, ficam submetidas ao regime geral sobre nulidades processuais, designadamente ao que dispõem os artigos 205.º, 1, 2 e 3 e 206.º, 1 e 3 do Código de Processo Civil.
A apurar-se a veracidade da arguição das deficiências invocadas, tal corresponderia à omissão de uma formalidade que a secretaria deveria ter assegurado, nos termos da regulamentação constante do Dec. Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro (cfr. artigo 201.º do Código de Processo Civil). Porém, com excepção das nulidades da sentença, o sistema está construído de modo a onerar a parte interessada com a prévia arguição, sujeitando a questão à apreciação judicial para, então, em caso de improcedência, interpor recurso da respectiva decisão. ( Cfr. o Ac. do STJ, de 11-4-02, in CJSTJ, tomo II, pág. 21) ( Acórdão da RL, de 21/01/2003, Processo 6340/2002-7, disponível em www.dgsi.pt) ( Cfr. citado acórdão de 12/10/2004)
É, por isso, extemporânea a arguição da nulidade da insuficiência de gravação da prova com a apresentação de alegações no âmbito do recurso interposto da sentença final, sempre que a parte não demonstre, como aqui ocorre, o respeito pelo prazo resultante do regime geral. Mantém-se nesta sede perfeitamente actual a jurisprudência a que já Alberto dos Reis aludia quando citava o seguinte postulado "dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se".( In Comentário ao CPC, vol. II, pág. 507.
)
É esta a solução mais razoável e que permite conjugar melhor os diversos interesses em confronto (a segurança jurídica, a par da celeridade), fazendo recair sobre a autora o ónus (correspondendo a um verdadeiro dever de diligência de quem foi notificado duma sentença recorrível em sede de matéria de facto) de averiguar da existência de alguma deficiência relevante na gravação, submetendo a questão a imediata decisão judicial, a fim de garantir a pretendida impugnação ( Neste sentido cfr. o Ac. do STJ, de 29-10-02, sumariado em www.stj.pt e o Ac. da Relação de Lx, de 29-5-01, sumariado em www.dgsi.pt)

6. Não havendo então lugar à repetição forçosa do julgamento, resta apreciar o que se aproveita do questionado depoimento que, segundo a apelante, é bastante para se concluir no sentido proposto na apelação (e oposto ao decidido).
Com o devido respeito, não estamos de acordo que resulte do depoimento da testemunha Manuel João Matos Vítor (transcrito pela apelante) que a autora se despistou por causa da ultrapassagem dos camiões, que diz ter visto, mas sem qualquer nexo com a circulação do veículo conduzido pela autora. É aqui que está o cerne da questão de facto. O tribunal recorrido limitou-se a dar como provado o despiste da autora e a circulação dos camiões em sentido oposto. Não deu como provada a ultrapassagem, porque o depoimento da testemunha, apesar de pouco esclarecedor nessa matéria, não conseguiu relacioná-la com o despiste da autora. A fundamentação da decisão de facto é bastante esclarecedora quanto à relação (falta dela) da ultrapassagem dos camiões com o despiste da autora.
Por isso que, mesmo dando por provado esse facto (a ultrapassagem dos camiões), a resposta aos quesitos 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 19 º e 20º não teria que ser diferente da que lhes foi dada em conjunto, nos termos que constam do supra ponto 3. 10). O depoimento da citada testemunha, cujo sentido, no essencial, parece perceptível, não tem a virtualidade de alterar a decisão de facto, tanto mais que esta foi tomada com total imediação.

7. Sobre a falta de resposta aos quesitos 11º, 14º, 15º, 16º, 24º e 26º, parece não haver qualquer dificuldade. A resposta foi negativa, como está bem expresso no despacho de fls.299. O que a apelante parece querer dizer é que não há fundamentação das respostas negativas. Mas não é verdade. É que com esses quesitos visava-se precisamente indagar da ocorrência da tese do despiste e sua relação com a ultrapassagem dos pesados. Logo, a fundamentação do que foi dado por provado é também a fundamentação do que foi dado por não provado, sendo que se trata de duas faces da mesma realidade. Não foi violado o disposto no artigo 712.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

8. Finalmente sobre o erro de direito. Entende a apelante que, não estando provada a culpa, deveria condenar-se o réu com base na responsabilidade objectiva. Na sentença recorrida entendeu-se que não, e bem. Na verdade, a responsabilidade objectiva ou pelo risco é sempre daquele que “tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse...” (artigo 503.º, n.º 1 do Código Civil). Logo, condição sine qua non da existência de responsabilidade pelo risco é que o dano tenha sido provocado por um qualquer veículo de circulação terrestre.
Ora, nem está provado, no caso vertente, que o acidente tenha sido causado pelo tal camião que, por não identificado, implicaria a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, nem mesmo por qualquer outro veículo que, por também não identificado, obrigasse a mesma entidade a responder pelo dano. E sendo à autora que competia alegar e provar o risco (artigo 487.º, n.º 1, ex vi do artigo 499.º do Código Civil), a consequência será a de não proceder esta sua pretensão.

9. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, em consequência do que confirmam a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante, sem prejuízo do apoio judiciário.
Coimbra, 18 de Janeiro de 2005
Relator: Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros