Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2270/04
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
Data do Acordão: 12/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA COVILHÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 913.º; 914.º E 921.º, N.º 1 DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: O vendedor de veículo usado, com garantia de bom funcionamento durante um ano, responde pela sua reparação ou substituição em consequência de um incêndio por curto circuito ocorrido durante esse período, se não provar que tal se deveu a qualquer causa estranha ao bom funcionamento do veículo e respectivos componentes.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... demandou, na comarca da Covilhã, B... e C..., pedindo a condenação da ré B... a proceder à substituição, a expensas suas, do veiculo que lhe vendeu por um outro do mesmo ano de fabrico e com características em tudo iguais ou semelhantes àquele. Ou, subsidiariamente, e apenas no caso de improceder aquele pedido, a condenação da ré C... a proceder, ou a mandar proceder, a expensas suas, às necessárias e indispensáveis reparações do veículo do autor, de modo a assegurar o seu bom funcionamento, devendo, nesse caso e também a expensas suas, disponibilizar ao autor um veiculo de substituição durante o tempo que durar a execução de tais reparações e ainda a condenação de ambas as rés a pagar-lhe, solidariamente, a quantia de 500.000$00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a citação.
Alega, em síntese, o autor que adquiriu à 1ª ré um automóvel, usado, com garantia de bom funcionamento e que, por deficiente funcionamento, terá ocorrido um sobreaquecimento do colector de escape, originado por obstrução do catalisador, em consequência do que veio a deflagrar um incêndio, que afectou a parte dianteira do veículo.
A 2.ª ré terá assumido a responsabilidade de cumprir a garantia de bom funcionamento.

2. As rés contestaram. Houve réplica e a acção prosseguiu até julgamento, posto o que veio a ser proferida sentença que a julgou improcedente e absolveu as rés dos pedidos. O autor não se conforma e apela da decisão, concluindo:
1ª. O artigo 921°, n° 1 do Código Civil consagra a responsabilidade objectiva do vendedor nos casos em que este se obriga, por convenção, a garantir, por um determinado período, o bom funcionamento da coisa vendida;
2ª. O vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento inerente à coisa e dentro do uso normal da mesma;
3ª. Ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de provar a sua existência no momento da entrega;
4ª. A razão não assiste ao Mmo, Juiz a quo quando sustenta que impendia sobre o autor o ónus de alegação e prova do defeito, a sua gravidade, de molde a afectar o uso da coisa ou a acarretar a sua desvalorização, bem como do nexo de causalidade entre o defeito e a ocorrência dos danos;
5ª. Resultou provado que nove dias depois de o chefe da oficina e um dos sócios da primeira ré terem afiançado ao autor que o automóvel podia circular em perfeitas condições de segurança e de bom funcionamento, este incendiou-se quando transitava pelo IP 5, incêndio esse que teve na sua origem um curto-circuito ao nível da cablagem do sistema eléctrico, dele resultando a destruição de toda a parte frontal do Renault;
6ª. Não se demonstrou que a causa do evento fosse imputável ao autor, a terceiro ou devida a caso fortuito
7ª. A matéria de facto julgada provada no caso sub specie, conjugada com as regras da experiência comum, é de molde a permitir concluir que no caso em apreço o sinistro ficou a dever-se a uma anomalia inerente ao próprio funcionamento do veículo do autor, anomalia essa que se manifestou durante a utilização normal do mesmo e dentro do prazo da garantia que havia sido convencionado;
8ª. No caso vertente a responsabilidade por eventuais reparações no veículo durante o período de garantia havia sido transferida para a segunda ré, C...;
9ª. A sentença recorrida violou, designadamente, o disposto no artigo 921°, n° 1 do Código Civil.



3. Não foram apresentadas contra-alegações. Estão colhidos os vistos legais. Cumpre conhecer e decidir. Por não ter sido objecto de qualquer oposição a decisão sobre a matéria de facto, têm-se como provados os que se seguem e outros de que já daremos conta:
A. Com base nos factos assentes:
1) A 1ª ré dedica-se à comercialização de automóveis novos e usados e é concessionária da marca de automóveis "Renault" na cidade e concelho da Covilhã.
2) Em 19.10.1999 o autor comprou à 1ª ré, pelo preço de 2.900.000$00, o veículo automóvel usado, ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo Laguna Break RT 1.8, de matrícula 87-25-GH, fabricado em 1996 e com 74.516 kms.
3) A aquisição foi feita com reserva de propriedade a favor de "Renault Gest, Sociedade Financeira para Aquisições a Crédito, S.A.", a qual interveio no negócio na qualidade de entidade financiadora.
4) Foi vendido pela 1ª ré com garantia de bom funcionamento pelo período de 12 meses, no âmbito do denominado "Usado Aprovado Renault" e veio a ser entregue pela 1ª ré ao autor em 24 de Outubro de 1999.
5) Em 20.12.1999, quando o veículo marcava 79.718 kms o autor solicitou aos serviços da 1ª ré a substituição do óleo do motor.

B. Resultantes da base instrutória
6) Em dia indeterminado de Novembro de 1999, o autor não conseguiu ligar a ignição, facto que foi constatado pela 1ª ré e por ela solucionado.
7) A 1ª ré não averbou no livro de registo de revisões e assistência, a operação que realizou.
8) Posteriormente, o autor começou a ouvir um barulho, proveniente da traseira do veículo, sempre que era accionado o sistema de travagem.
9) Deslocou-se novamente às oficinas da 1ª ré, tendo, na ocasião, os serviços desta substituído as pastilhas dos travões traseiros, que o autor pagou, no valor de 9.000$00.
10) Não tendo sido feito qualquer averbamento no livro de registo de revisão e assistência.
11) Antes do momento referido em 8. e posteriormente ao momento referido em 6., a 1ª ré substitui, a expensas suas, a bomba da gasolina.
12) Não tendo, de novo, feito qualquer averbamento no aludido livro.
13) No dia 6.7.2000, o automóvel começou outra vez a emitir um ruidoso e estranho barulho, o que obrigou o autor a levá-lo de imediato às oficinas da 1ª ré.
14) Na ocasião, foi dito ao autor, pelo chefe da oficina e por um dos sócios da 1ª ré, que tal barulho tinha a sua origem no catalisador, mas que o veículo podia circular em perfeitas condições de segurança e de bom funcionamento.
15) No dia 15 de Julho de 2000, cerca das 22 horas no IP 5, perto da placa que indica Sever de Vouga, o autor circulava com o Renault, proveniente da Póvoa do Varzim, com destino à Covilhã, tendo o motor deixado de funcionar.
16) O veículo ficou imobilizado em plena faixa de rodagem e deflagrou um incêndio no interior do compartimento do motor, que se propagou por toda a parte da frente da viatura.
17) Toda a parte da frente do "Renault" ficou destruída, ardendo o para-choques dianteiro, o radiador da água, o sistema de ar condicionado, os motoventiladores, todas as peças em plástico e em borracha, todos os elementos electrónicos, o "capot" dianteiro ficou vergado.
18) Em 1.8.2000 o autor comunicou a ocorrência à 2ª ré, através de carta registada com a/r por ela recebida em 2.8.2000.
19) O autor utilizava, diariamente o referido veículo, para se deslocar entre a sua residência e o local de trabalho e vice versa.
20) Os colectores de escape do automóvel são peças metálicas, preparadas para suportarem altas temperaturas chegando a atingir 600º C.
21) Na viatura em causa, o catalisador encontra-se sensivelmente a meio do carro por baixo do habitáculo.
22) O incêndio deflagrou na frente, lado direito, junto ao para-choques, do veículo, não atingindo o catalisador.
23) Na origem do incêndio esteve um curto-circuito ao nível da cablagem, do sistema eléctrico do veículo, localizado na frente direita do mesmo.
24) O valor comercial do veículo rondava os 2 000 000$00.
25) O custo da reparação, ao tempo, rondava os 800 000$00.

Na petição inicial (vide ponto 28) alega-se que a ré B...transferiu para a ré C... a responsabilidade pelas eventuais reparações (peças e mão de obra) do veículo durante o período da garantia, remetendo-se para o documento n.º 2 junto com esse articulado.
No ponto 12 da sua contestação a ré C... confirma que celebrou com o autor e a primeira ré o contrato de garantia junto aos autos com a petição inicial como documento n.º 2.
Por isso deve figurar como facto provado que a 2.ª ré garantiu contratualmente as eventuais reparações do veículo garantido (peças e mão de obra) necessárias à sua reposição no estado em que foi vendido, nos termos constantes desse contrato.


4. Com estes factos o sr. juiz entendeu não estarem verificados os pressupostos legais que permitem a reparação de danos originados pela venda de coisa defeituosa, sendo que competiria ao autor a alegação e prova dos factos que os configurariam.
O apelante é que não está de acordo e põe em crise a decisão que não atendeu aos direitos decorrentes da relação de garantia de bom funcionamento e dos correlativos deveres da ré vendedora, em violação do disposto no artigo 921.º, n.º 1 do Código Civil, que reza assim: “se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substitui-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.”
Parece evidente que nesta norma se estabelece algo mais que no regime regra de venda de coisas defeituosas definido nos artigos 913.º e 914.º do Código Civil, pela simples razão de que, para além do princípio elementar de que quem vende tem de assegurar a qualidade da coisa vendida, aqui o vendedor garante durante certo tempo o bom funcionamento da coisa vendida independentemente de culpa sua ou de erro do comprador, que condicionam o regime regra.
Ao abrigo deste normativo o vendedor assume uma “garantia de duração” ( cfr. P. Lima e A. Varela, in Código Civil anotado, Vol. II, 3.ª edição, págs. 221.) que importa para o vendedor a obrigação de reparar a coisa vendida, ou substitui-la se a reparação não for possível e a coisa for fungível. Não se exige a culpa do vendedor, porque se trata do cumprimento de uma obrigação assumida no contrato, ou imposta pelos usos. São estes os traços excepcionais do regime fixado.
Ora, se o vendedor responde sem culpa (responsabilidade objectiva) o ónus da prova de que a causa do irregular funcionamento da coisa vendida é posterior ao contrato ou é imputável ao comprador, pertence ao vendedor - artigo 342.º , n.º 2 do Código Civil ( Cfr. J. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. IV, 1995, pág. 105. ).
A este propósito escreveu o Prof. Calvão da Silva ( in "Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança", Almedina, 2002, pág. 62 a 65): “o escopo da garantia de bom funcionamento consiste em fixar um período de provação (temps d’épreuve) ou de “rodagem” da coisa, durante o qual o vendedor se responsabiliza por que na sua utilização normal e correcta nenhum defeito de funcionamento aparecerá.
Vale isto por dizer que o vendedor assegura por certo período um determinado resultado, a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa, sendo responsável por todas as anomalias, avarias, falta ou deficiente funcionamento inerente à coisa e dentro do uso normal da mesma. Este facto, o facto de o vendedor assumir a garantia de um resultado, tem importância no domínio do ónus probandi: ao comprador basta fazer a prova do mau funcionamento da coisa no período de duração da garantia, sem necessidade de identificar ou individualizar a causa concreta impeditiva do resultado prometido e assegurado nem de provar a sua existência no momento da entrega; ao vendedor que queira ilibar-se da responsabilidade é que cabe a prova de que a causa concreta do mau funcionamento é posterior à entrega (...) e imputável ao comprador (v.g má utilização), a terceiro, ou devida a caso fortuito.”
Sumariou-se num acórdão da Relação do Porto que: “a garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado na medida em que durante a sua vigência, o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida; para o exercício dos direitos cobertos pela garantia o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa durante o prazo de garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega.”
E neste sentido vai a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.( Acórdãos do STJ, em www.dgsi.pt ; busca feita pelo descritor “garantia de bom funcionamento” – v.g. acórdão de 23/10/2002, proc. n.º 03B809; de 16/10/2001, n.º convencional JSTJ000041923; e de 13/03/1990, n.º convencional JSTJ000008744; da RL, no mesmo site, de 18/04/1996, n.º convencional JTRL00005488. ) Realmente não faz sentido que alguém compre um veículo com garantia de bom funcionamento durante um ano e depois tenha de provar os vícios e a sua relação com o mau funcionamento no decurso do prazo da garantia.
Como no caso vertente, se o autor comprou o veículo à ré B...com garantia de bom funcionamento durante um ano, tal significa que a B... assumiu a obrigação de reparar todos os prejuízos resultantes do mau funcionamento ocorridos nesse espaço de tempo. Resultando os danos de um incêndio provocado por um “curto circuito ao nível da cablagem do sistema eléctrico do veículo, localizado na frente direita do mesmo” parece evidente que, à falta de demonstração da ocorrência de qualquer outra causa do curto circuito na cablagem do sistema eléctrico, este ocorreu por mau funcionamento desses componentes; se tais componentes tivessem funcionado bem, se não tivesse ocorrido qualquer anomalia a esse nível, certamente que não teria havido o curto circuito.
Foi precisamente isso (entre outras coisas) que a vendedora garantiu que não ocorreria durante um ano; garantiu a qualidade do produto; logo, se algo de anormal ocorreu, terá de responder por isso, já que não provou que o curto circuito ocorreu por qualquer causa imputada ao autor (comprador) ou mesmo a terceiro ou a causa de força maior. Não se impõe que o autor prove que o veículo se incendiou por excessivo aquecimento do catalisador, como alegou, ou que prove por que é que ocorreu um curto circuito na cablagem. A ré é que tinha de provar que o curto circuito ocorreu por qualquer causa estranha à qualidade e bom funcionamento.
Nessa conformidade terá de proceder à reparação ou, se esta não for possível, à substituição da viatura por outra com as mesmas características. Como está provado, in casu, que a reparação é possível, terá a viatura de ser reparada pela ré vendedora Auto Jardim. Como também a ré C... assumiu, por contrato, a mesma obrigação e não existe qualquer norma que, neste caso, limite a responsabilidade a esta ré, como acontece, por exemplo, no seguro obrigatório, só resta concluir que a obrigação é solidária (artigo 507.º, n.º 1 do Código Civil) já que estamos no domínio da responsabilidade objectiva (o vendedor responde independentemente de culpa- artigo 921.º, n.º 1).
Concluindo: o vendedor de veículo usado, com garantia de bom funcionamento durante um ano, responde pela sua reparação ou substituição em consequência de um incêndio por curto circuito ocorrido durante esse período, se não provar que tal se deveu a qualquer causa estranha ao bom funcionamento do veículo e respectivos componentes.
A sentença recorrida tratou o caso sem curar dos efeitos da assunção da garantia de bom funcionamento e por isso violou o disposto no artigo 921.º, n.º 1 do Código Civil, pelo que deverá revogada, nessa parte.
Em relação aos restantes pedidos – de disponibilizar outro veículo até à reparação deste e de indemnizar por danos não patrimoniais – não existem elementos que possam conduzir a uma condenação nesse sentido. Seguramente que não cabem na responsabilidade assumida pela ré NSA. Relativamente à ré B... também não parece que possam proceder tais pedidos. O primeiro, que é em tudo um pedido de indemnização, não cabe na hipótese considerada do regime específico da venda com garantia de bom funcionamento, previsto no artigo 921.º do Código Civil. Só o regime geral da venda de coisas defeituosas (artigos 913.º a 915.º do Código Civil) prevê a indemnização ( Da reparação e substituição já tratámos a propósito da aplicação do regime específico.) e esta só seria devida se o vendedor conhecesse ou devesse conhecer o vício ou a falta de qualidade de que o veículo padecia (cfr. artigo 915.º). Mas do quadro factual nada resulta sobre esta matéria, pelo que tal pedido tem de improceder.
Também improcede o da condenação por danos não patrimoniais, não só por estes mesmos fundamentos, mas também porque se nos afigura que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como o exige o n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil.


5. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, em consequência do que revogam (também em parte) a sentença recorrida e, na parcial procedência da acção, condenam solidariamente as rés a repararem a viatura em causa, absolvendo-as dos restantes pedidos.
Custas em ambas as instâncias a cargo das rés.
Coimbra,