Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/16.0GTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ELENCO FACTOLÓGICO PROVADO;
FACTOS CONCLUSIVOS;
CONCEITOS JURÍDICOS;
ACIDENTE DE VIAÇÃO;
CONDUTA CONSUBSTANCIADORA
EM SUMULTÂNEO
DE CRIME E CONTRAORDENAÇÃO;
PROIBIÇÃO/INIBIÇÃO DE CONDUZIR
Data do Acordão: 06/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CASTELO BRANCO (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA COVILHÃ)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART. 69.º DO CP
Sumário:
I – Os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum.
II – Não merece qualquer reparo a inclusão das expressões “de forma muito violenta” e “por imperícia e falta de cautela” no elenco dos factos dados como provados na sentença recorrida, porquanto as mesmas foram utilizadas no seu sentido corrente, com o propósito de ajudar a descrever a dinâmica de acidente de viação ocorrido.
III – Já o segmento textual “a culpa do acidente foi em exclusivo do arguido”, por que contém um juízo de valor sobre a culpabilidade do arguido, ou seja, uma verdadeira valoração jurídica de factos, tem de ser considerada como não escrita.
IV – Perante um comportamento que, em simultâneo, configura contraordenação e um dos crimes indicados no artigo 69.º, n.º 1, al. a), do CP, esgotando a prática do ilícito penal o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, de forma a poder entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir aplicável deve ser decretada só com base no referido dispositivo legal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, os Juízes que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório
No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) registados sob o n.º 13/16.0GTCTB, do tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco – Juízo Local Criminal da Covilhã, em 19/12/2017, foi proferida Sentença, cujo Dispositivo é o seguinte:
IV – DISPOSITIVO
Pelo exposto, o Tribunal decide:
a) Absolver o arguido A... pela prática, na forma consumada, de uma contraordenação, de acordo com o disposto no artigo 27º, nºs1, 3 2, nº4, alínea b), do Código da Estrada;
a) Condenar o arguido A..., pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de € 7,00 (sete euros), num total de € 1400,00 (mil e quatrocentos euros), fixando-se a prisão subsidiária em 133 (cento e trinta e três) dias;
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 (três) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
c) Condenar o arguido A... pela prática, na forma consumada, de uma contraordenação, na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria pelo período de 2 (dois) meses;
d) Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, bem como os encargos com o processo, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, e nas demais custas do processo, tudo nos termos do disposto nos artigos 513.° e 374.°, n.º 4, do Código de Processo Penal, artigo 8.º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
*
Notifique, sendo o arguido ainda para, no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito da presente sentença, proceder à entrega da sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial, que a remeterá àquela, sob pena de ser ordenada a apreensão da mesma (artigo 500.º do Código de Processo Penal) e de o arguido incorrer na prática de um crime de desobediência.
*
Após trânsito:
- Remeta boletins ao registo criminal, ex vi artigo 374.º, n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal e artigo 5.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 do Decreto-lei n.º 57/98, de 18 de Agosto;
- remeta cópia certificada desta sentença à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 4 do Código Penal e artigo 500.º, n.º 1 do Código de Processo Penal;
- informe a entidade policial competente da área de residência do arguido.
*
Proceda-se nesta data ao depósito da sentença (artigo 372.º, n.º 5, do Código de Processo Penal).”
****
O arguido, não se conformando com a citada Decisão, veio, em 5/2/2018, interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
(…)
Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se pede, deve a sentença aqui em crise ser substituída por outra que contemple tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo Justiça.
****
O recurso, em 12/2/2018, foi admitido.
****
O Ministério Público, em 27/3/2018, respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência e contra-alegando, em resumo, o seguinte:
(…)
****
Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 19/4/2018, emitiu douto parecer, no sentido do recurso merecer parcial provimento.
****
Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o direito de resposta.
****
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.
****
II - Decisão Recorrida:
(…).
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Factos Provados
Discutida a causa, resultaram provados com interesse para a decisão a proferir os factos seguintes:
(…)
Factos não provados:
Não ficaram apurados quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que:
(…)
Fundamentação da Convicção do Tribunal
A audiência de julgamento decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância, que também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório das declarações e depoimento nela prestados.
O decidido funda-se na análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, livremente apreciada e valorada na sua globalidade de acordo com as regras da experiência comum.
(…)
**
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
(…).
*
Determinação da Medida da Sanção
(…).
*
Da pena acessória
(…)
*
Da inibição de conduzir pela prática das contraordenações
(…).
****
III – Cumpre apreciar e decidir:
De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 412.º, do CPP, e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).
As questões a conhecer são as seguintes:
1 - Saber se há violação do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), todos do CPP.
2 – Saber se há nulidade da sentença por esta conter, na enumeração dos factos provados, juízos de valor.
3 – Saber se os factos provados permitem concluir que o arguido praticou o crime a ele imputado, assim como a contraordenação aludida no artigo 24.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada.
4 - Saber se o arguido deve ser apenas ser condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
****
1 - Da violação do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), todos do CPP:
O recorrente alega, em primeiro lugar, que consta expressamente da acusação deduzida pelo Ministério Público a seguinte circunstância de facto: “o qual seguia no sentido B.../C...” (artigo 2.º da acusação), sendo certo que, na sentença ora em crise, tal facto (essencial para a decisão a proferir) não surge nem como facto provado nem como facto não provado.
Por tal motivo, considera que estão violadas as normas que agora concentram a nossa atenção.
****
É verdade que o indicado facto que consta da acusação não surge na matéria provada/não provada.
Contudo, resulta claro, da conjugação dos pontos 1 e 2 dos Factos Provados, que o veículo conduzido pelo arguido seguia no sentido B…/C..., pois, no referido ponto 2, está escrito que “em sentido contrário, ou seja, C…/B...”.
Diga-se, aliás, que toda a sentença assenta nesse pressuposto, bem expresso em documentos juntos aos autos e nunca colocado em causa ao longo do processo, designadamente, em audiência de julgamento.
Por conseguinte, entendemos que estamos perante um mero lapso na transcrição dos factos apurados, cuja correção não importa modificação da decisão, nem mesmo alteração da matéria de facto provada.
Assim sendo determina-se, nos termos do artigo 380.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CPP, que seja acrescentado aos Factos Provados o ponto 1 – A, com a seguinte redação: “o qual seguia no sentido B.../C....
****
2 – Da nulidade da sentença por esta conter, na enumeração dos factos provados, juízos de valor:
O recorrente alega que os pontos 4, 11 e 12 dos factos provados contêm juízos de valor.
Por via disso, em resumo, defende que “a fundamentação de uma sentença, na parte da enumeração dos factos provados e não provados, apenas pode conter factos; não juízos de valor ou conceitos, que são matéria de direito; e os factos provados têm que ser precisos, não sujeitos a graduações valorativas”, motivo pelo qual deve ser declarada a nulidade da sentença recorrida.
****
Devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante suscetível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.
Dito isto, como é consabido, importa reter que não é linear traçar uma linha divisória entre facto e direito, impondo-se agir, nesta matéria, com cautela e circunspeção.
Como nos ensina o Prof. Anselmo de Castro - Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, página 270 -, “…a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes.
Como se salienta no Ac. do STJ, de 13.11.2007, in www.dgsi.pt, pese embora no âmbito do processo civil, mas que, naturalmente, se estende ao processo penal, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo inteleto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas”.
No seguimento do exposto, defendemos que os factos conclusivos são ainda matéria de facto quando constituem uma consequência lógica retirada de factos simples e apreensíveis, apenas devendo considerar-se não escritos se integrarem matéria de direito que constitua o thema decidendum.
No caso em apreço, entendemos que as expressões “de forma muito violenta” e “por imperícia e falta de cautela” foram utilizadas no seu sentido corrente, com o intuito de ajudar a descrever a dinâmica do acidente.
Por essa razão, embora se reconheça que não corresponde à melhor técnica jurídica a inclusão de tais expressões nos factos provados, entendemos que constituem meras análises da condução do arguido resultante da descrição da forma como ocorreu o embate, não contendo porém matéria de direito que constitua o “thema decidendum”.
Nessa justa medida, não merece reparo a sua utilização.
Já no que tange à expressão “a culpa do acidente foi em exclusivo do arguido”, consideramos que contém, na verdade, um juízo de valor da culpabilidade do arguido, ou seja, uma verdadeira valoração jurídica de factos.
Por isso mesmo, não temos dúvida que se trata efetivamente de uma conclusão jurídica, que só por si encerra um juízo sobre a responsabilidade pela ocorrência do embate (ou seja, só por si, decide a questão relativa ao facto ilícito e à culpa) que, em bom rigor, apenas deverá constar do enquadramento jurídico dos factos efetuado na sentença recorrida, pelo que se tem de considerar como não escrita, sendo esta a única consequência jurídica a retirar do exposto.
Na verdade, a circunstância de uma sentença conter factos conclusivos, em sede de factos provados, não é causa de nulidade da sentença, face ao disposto no artigo 379.º, n.º 1, alíneas a), b) e c), do CPP.
****
3 – Dos factos provados permitirem concluir que o arguido praticou o crime a ele imputado, assim como a contraordenação aludida no artigo 24.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada:
O recorrente, no essencial, alega o seguinte:
Os factos considerados como provados na sentença aqui em análise não permitem, sem margem de dúvidas, concluir que o arguido foi imprevidente e não usou do cuidado a que estava obrigado; da mesma forma que tais factos não permitem concluir que o arguido não adequou, naquelas concretas circunstâncias de espaço e tempo, a velocidade do veículo por si conduzido às específicas condições da via.
(…) Tudo que conflui ainda no sentido de a mesma matéria de facto (dada como provada) não permitir, por maioria de razão, dar como provada a prática pelo arguido de uma contraordenação, designadamente por violação do disposto no artigo 24.º, n.ºs 1 e 3, do Código da estrada (…).
É salientado no recurso que não se deu sequer como provada a velocidade a que seguia o veículo conduzido pelo arguido no momento do acidente e que não se deram como provadas quaisquer condições da via que recomendavam especiais cautelas e velocidade moderada/reduzida.
****
No caso em apreço, dúvidas não subsistem de que existe um nexo de causalidade entre o resultado morte verificado e que se visa tutelar na norma que incrimina o homicídio por negligência e a atuação do arguido.
E chega-se a tal conclusão, quer se recorra à teoria da adequação (cf. artigo 10.°, do Código Penal) e, nessa decorrência, ao processo lógico de prognose póstuma implicado num juízo de idoneidade referido ao momento em que a ação se realiza, como se a produção do resultado ainda não se tivesse verificado, atendendo às regras gerais da experiência comum aplicadas às circunstâncias do caso, incluindo-se aí os especiais conhecimentos do agente e, tendo em vista que a adequação se há-de referir a todo o processo causal e não apenas ao evento; quer se adote a moderna teoria da imputação objetiva, propugnada por Roxin e, entre nós, defendida por Teresa Beleza e Rui Pereira entre outros, que apela para a esfera de proteção da norma como critério de imputação, que se verificará sempre que a ação cria, aumenta ou não diminui um perigo proibido que se concretizou no resultado obtido, compreendido no âmbito de proteção da norma violada.
Vejamos.
Estando em causa um tipo negligente, importa ter em conta o que preceitua o artigo 15.°, do Código Penal, pelo que, na senda da construção de Wessels na determinação do facto negligente através do desvalor de resultado e do desvalor da conduta, temos, como fundamento de tal tipo de ilícito, não só a causação do resultado, nos termos do artigo 10.°, do Código Penal, mas ainda mais dois elementos, a saber: a lesão ao dever de cuidado objetivo e a imputação objetiva do resultado baseado no erro de conduta, orientada no sentido da finalidade de proteção das normas de cuidado. A negligência consiste na omissão de um dever objetivo de cuidado. Atua com negligência quem não procede “com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, para evitar a realização de um facto típico” (cf. artigo 15.°, do Código Penal).
A observância do dever objetivo de cuidado, a diligência devida, constitui o ponto de referência obrigatório do tipo de ilícito da infração negligente, ou, por outras palavras, o núcleo deste tipo de ilícito consiste na divergência entre o comportamento do agente e aquele que havia de ter sido observado em razão do dever objetivo de cuidado a que o agente estava obrigado.
O conceito de cuidado é sem dúvida, objetivo e normativo.
É objetivo, pois que, para o estabelecer importa ponderar do cuidado que é requerido numa perspetiva de interação social relativamente ao comportamento em causa; o que supõe um juízo normativo, que resulta da comparação entre a conduta que devia ter adotado um homem razoável e prudente na situação do autor e a conduta que foi observado. Este juízo normativo, conforme escreve Muñoz Conde, é integrado por dois elementos: um elemento intelectual, segundo o qual é necessária a consideração de todas as consequências da ação que, num juízo razoável (objetivo), eram de consideração previsível (previsibilidade objetiva); outro valorativo, segundo o qual só é contrária ao cuidado a conduta que vai além da medida socialmente adequada (risco permitido).
Todavia não se pode afirmar que não interessa averiguar se, na situação concreta, tal cuidado foi aplicado ou podia ser aplicado pelo agente.
Com efeito, a partir das contribuições de Engish, a doutrina tem distinguido entre o cuidado externo, objetivamente devido, e o cuidado interno, subjetivamente possível, ou seja, entre um dever objetivo de cuidado e outro subjetivo.
E tal construção foi irrefutavelmente acolhida pelo nosso legislador quando no já citado artigo 15.°, do Código Penal, se reporta às circunstâncias e à capacidade do agente.
Aí pretende trazer-se à colação as ideias de previsibilidade, capacidade e evitabilidade, fulcrais na compreensão e análise da categoria da negligência, como forma de culpa, enquanto defeito de atitude interna, objeto de censura penal. Há assim que concluir, como faz Figueiredo Dias, que nesta previsibilidade, como limite inferior, o mínimo necessário na demarcação da fronteira com o caso fortuito e o nullum crimen est in casu, “está (..) verdadeiramente em causa um critério subjetivo e concreto, ou individualizante, que deve partir do que seria razoável de esperar de um homem com as qualidades e capacidades do agente”. Pelo que, “se for de esperar que ele respondesse às exigências do cuidado objetivamente imposto e devido (...) é que, em concreto, se deverá afirmar o conteúdo da culpa próprio da negligência e fundamentar aqui a respetiva punição”. Advirta-se, porém, que, mesmo em geral, não podem formular-se exigências simplesmente exageradas, pois que nas atuais condições de desenvolvimento tecnológico uma certa dose de perigo faz parte das circunstâncias normais da vida diária. Assim, contrária ao cuidado é só a superação do risco permitido.
Neste particular, importa ter em conta que a circulação/condução rodoviária vem sendo considerada, desde há muito, doutrinal e jurisprudencialmente, designadamente pelo STJ, como atividade perigosa, do que se terão de extrair consequências, por um lado, jurídico-normativas, por outro lado, subjetivo-psicológicas, e que resultam num maior grau de atenção e na exigibilidade de um específico dever de prudência, no sentido de serem adotados os deveres de cuidado que resultem de obrigações legais ou regulamentares ou que sejam adequados a evitar certos resultados, associado à previsão da possibilidade da produção de mais do que um evento lesivo como consequência da sua não observância ou da sua observância defeituosa.
****
Feita esta breve incursão doutrinária ao conceito de negligência, estamos melhor habilitados a responder à questão de fundo essencial que se tem de afrontar neste domínio e que é a seguinte: como se pode reconhecer se a violação do dever de cuidado, acompanhada da causação da morte de outrem, fundamenta ou não um homicídio negligente? Do atrás exposto, resulta passar a resposta a esta pergunta pela indagação sobre se o agente com o seu comportamento criou ou aumentou um risco proibido, que se materializou no resultado.
Ora, o Código da Estrada, no seu artigo 24.º, sob a epígrafe “princípios gerais”, dispõe o seguinte:
“1 – O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às caraterísticas e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
2 – Salvo em caso de perigo iminente, o condutor não deve diminuir subitamente a velocidade do veículo sem previamente se certificar de que daí não resulta perigo para os outros utentes da via, nomeadamente para os condutores dos veículos que o sigam.
3 – Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.”
Por sua vez, o artigo 25.º, do Código da Estrada, para o que agora interessa, consagra o seguinte:
“1 – Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:
(…).
h) Nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida.
(…).”
Além disso, de acordo com o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código da Estrada, “a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.”
Pois bem, ficou provado que o arguido seguia desatento à sua condução, já que não adequou a velocidade a que circulava às condições da via (existência de uma curva), dando origem ao embate no veículo de matrícula E... que seguia a sua marcha, em sentido contrário, na sua faixa de rodagem, conduzida pela ofendida.
Na realidade, está provado nos autos que os órgãos de travagem, direção e suspensão do pesado de mercadorias foram alvo de peritagem e estavam em bom estado de funcionamento (ponto 10), o que significa que não foi uma causa mecânica, imprevista e incontrolável, a causa da invasão da faixa de rodagem contrária.
E, também, está provado, que, no local do acidente, a estrada tinha o piso em boa conservação, estava seca e limpa, sem obstáculos na mesma (ponto8), e, ainda, que, na altura do acidente, era de dia e o clima estava bom (ponto 9).
Acresce que não existe qualquer facto provado que indique a contribuição, por mínima que seja, da condutora do veículo de matrícula E..., na causa do acidente.
Note-se, até, que só a conduta do arguido surge como causa do infeliz acontecimento descrito nos autos, de acordo com as conclusões do relatório de fls. 444/450, cujo teor é o seguinte:
(Apreciação sobre a causa principal ou eficiente do acidente):
- Analisado o acidente de viação que vitimou a condutora do ligeiro de passageiros é parecer do investigador que o mesmo tenha tido como causa principal ou eficiente a saída da via de trânsito do veículo trator de mercadorias/semi-reboque que lhe estava especialmente destinada e a consequente invasão daquela que estava destinada à condutora do veículo ligeiro de passageiros.
Tendo em conta os vestígios no local do acidente e depois de devidamente analisados, nomeadamente as marcas de travagem imprimidas no pavimento pelo veículo trator de mercadorias/semi-reboque, apurou-se que o condutor do mesmo só reagiu ao perigo quando o despiste já era inevitável.
O condutor do veículo 2, sem qualquer motivo, saiu da via de trânsito do sentido de marcha em que seguia, colidiu com a parte frontal esquerda na parte frontal do veículo 1 na via de trânsito C.../D... e imobilizou-se na margem esquerda da faixa de rodagem derrubando ainda um poste EDP.”
Temos, portanto, que concluir que o arguido travou, mas pela forma desatenta como conduzia, com a velocidade a que seguia (ainda que não determinada em concreto, revelou-se inadequada às caraterísticas da via) apenas acionou os mecanismos de travagem, mas não logrou evitar invadir o espaço em que seguia a vítima e parar antes de embater no respetivo veículo.
Embate que veio a provocar lesões na vítima que seriam a causa direta e necessária que lhe determinou a morte.
****
Assim sendo, da matéria de facto provada, resulta claro que o arguido não prestou a atenção que podia e devia à via e à condução, seguindo desatento, de tal maneira que, ao aproximar-se de uma curva, não adaptou a velocidade à via, invadiu a faixa de rodagem contrária, onde circulava a vítima, e, acionando os mecanismos de travagem do veículo que conduzia, em dado momento, não logrou parar a tempo de evitar o embate.
Agiu livre e conscientemente, não tomando assim as necessárias cautelas ao conduzir num local onde sabia ser maior o risco de colisão (curva), não tendo previsto, como podia, as consequências de tal ato, pois que se seguisse atento à via e à condução que efetuava, poderia e deveria ter abrandado a velocidade do veículo que conduzia, de modo a não invadir a faixa contrária, o que lhe permitiria ter evitado o embate, quer parando a tempo, quer efetuando adequada manobra de fuga para a direita, como podia e devia ter feito.Assim, desde logo, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 24.° e 25.°, do Código da Estrada, era obrigação legal do arguido, em geral, como a qualquer cidadão que atua de modo a poder afetar a vida de outras pessoas e, especialmente, no exercício de uma atividade perigosa, como é a condução, fazê-lo com atenção e cuidado, e, num segundo plano, adequando a velocidade às circunstâncias que o rodeavam e assim também à atenção que disponibilizava à atividade que exercia, devendo essa velocidade ser tanto menor quanto menor fosse a sua atenção.
E, na verdade, nada se provou que impedisse o arguido de ter agido com atenção à via e à condução e adequando a sua velocidade às circunstâncias que não podia deixar de conhecer, visto que, como impõe a lei, o condutor deve, numa curva, moderar especialmente a velocidade.
Não atuou, pois, o arguido em conformidade com o dever de cuidado ou com a atenção que lhe era imposta legalmente e de que era capaz, sendo previsível para um condutor com a capacidade de diligência de um cidadão médio que, naquele local e a conduzir assim, poderia deparar-se-lhe um condutor, para mais na faixa contrária, como sucedeu, e que, então, não lograria deter a marcha do seu veículo no espaço livre e visível à sua frente por forma a evitar o embate, antes o provocaria, conduta que lhe estava vedada. Verifica-se assim a violação do cuidado externo, objetivamente devido, e do cuidado interno, subjetivamente possível, sendo que o normal dos cidadãos poderia prever, segundo as regras da experiência geral, que assim atuando, daí poderia resultar um acidente, designadamente uma colisão com um veículo que circulasse na sua faixa de rodagem, como ocorreu, e desta, poderiam resultar lesões físicas no respetivo condutor que, pelas suas características em oposição com as da viatura conduzida pelo próprio arguido, lhe poderiam causar a morte.
Por conseguinte, a matéria de facto provada permite concluir que o arguido praticou um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal, assim como a contraordenação p. e p. pelo artigo 24.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada.
****
4 – Da pena acessória de proibição de conduzir veículo com motor, p. e p. pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal/violação do princípio ne bis in idem:
O recorrente defende que a inibição de conduzir deve ser decretada apenas com base no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem.
A lei admite a aplicação de penas acessórias – artigos 65.º e seguintes do Código Penal.
Neste âmbito e na parte que aqui interessa, o artigo 69.º, na sua redação atual, no seu n.º 1, alínea a), decorrente da entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, e vigente à data dos factos a que se reportam os presentes autos, estabelece que é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º.
Tal pena acessória não se confunde com a sanção acessória que visa sancionar, acessoriamente, a prática de contraordenações graves e muito graves, nos termos enunciados no Código da Estrada.
Não está em discussão que o comportamento do arguido configura a prática da contraordenação descrita nos autos (artigo 24.º, n.ºs 1 e 3, do Código da Estrada)).
Tal prática é sancionada com coima e com sanção acessória, nos termos previstos no Código da Estrada, sendo certo que este, no seu artigo 134.º, n.º 1, sob a epígrafe “concurso de infrações”, estabelece que, se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contraordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contraordenação.
Todavia, a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode interpretar-se no sentido de permitir uma dupla sanção.
Na verdade, há situações, como a que está agora em causa, em que o mesmo facto constitui simultaneamente crime e contraordenação, por violação de regras de condução e normas que definem o respetivo quadro legal.
Ora, perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de qualquer um dos crimes antes referidos, esgotando a prática do crime o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada só com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem, dado que a aplicação concomitante da pena acessória de proibição de conduzir prevista na legislação penal e da(s) sanção(ões) acessória(s) de inibição de conduzir prevista(s) no Código da Estrada se traduziria em dupla sanção pela mesma conduta – ver, neste sentido, Acórdãos do TRC, de 7/11/2012, Processo n.º 30/11.7GAMIR.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Correia Pinto, e de 10/1/2018, Processo n.º 1/16.7PTCTB.C1, relatado pela Exma. Desembargadora Alice Santos
Logo, assiste razão, nesta parte, ao recorrente.
****
IV. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes em conceder parcial provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, pelo período de dois meses, confirmando-se, no mais, a decisão da 1ª instância.
Sem custas.
****
(Texto processado e integralmente revisto pelo signatário – artigo 94.º,n.º 2, do CPP.)
Coimbra, 20 de junho de 2018

José Eduardo Martins (relator)

Maria José Nogueira (adjunta)