Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1369/19.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PER
PLANO DE RECUPERAÇÃO
CONTEÚDO DO PLANO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE CREDORES
Data do Acordão: 02/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 17, 194, 19607, 215 CIRE
Sumário: 1.- O princípio da igualdade dos credores, plasmado no art.194 CIRE, é um princípio estruturante na regulação do plano de revitalização ou do plano de insolvência, muito embora não tenha carácter absoluto, já que pode ser derrogado por “razões objectivas “, justificadas pelo princípio da proporcionalidade.

2.- São normas relativas ao conteúdo do plano, para efeitos do art. 216 nº1 a) CIRE, tanto as respeitantes à parte dispositiva do plano, como aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve apresentar.

3.- Verifica-se violação do princípio da igualdade de credores, por configurar um tratamento mais desfavorável e discriminatório, quando num plano de revitalização sobre a reestruturação do passivo da devedora os credores bancários recebem a totalidade dos seus créditos e os demais credores comuns têm os seus créditos reduzidos a 25%.

Decisão Texto Integral:








            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

B (…), Lda, instaurou o presente processo especial de revitalização, nos termos do disposto no art. 17º-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Foi nomeado administrador judicial provisório, nos termos do disposto no art. 17º-C nº3, al. a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

O Srº Administrador juntou a lista provisória de créditos.

A lista não foi impugnada.

Em 16.09.2019 veio o Sr. Administrador Judicial Provisório dar conta de que o plano de recuperação tinha sido aprovado com 61,391% de votos favoráveis e 38,609% de votos contra.

Votaram favoravelmente os seguintes credores:

- C (…), SA com um crédito no montante de €34.466,55;

- Banco (…), SA com um crédito no valor de €9.552,53;

- C (…), SA com um crédito no valor de €8.794,32;

- E (…), Lda com um crédito no valor de €17.351, 84;

- P (…) com um crédito no valor de €34.500,00;

- S (…), SA com um crédito no valor de €50.043,62.

*

Votaram desfavoravelmente os seguintes credores:

- Autoridade Tributária e Aduaneira com um crédito no valor de € 15.140,71;

- Instituto de Segurança Social – Centro Distrital de (...) com um crédito no valor de

€5.581,63;

- T (…), SA com um crédito no valor de €25.748,02;

- T (…), Lda com um crédito no valor de €26.136,86;

- U (…), SA com um crédito no valor de €24.689,42;

*

Dos sentidos de voto elencados pelo Administrador Judicial Provisório conjugado

com a lista definitiva de credores conclui-se que:

- votaram credores representando 89,98% (€252.005,50) dos credores relacionados com direito de voto;

- votaram favoravelmente o plano 61,391% (€154.708,86) dos credores com direito de voto;

- votaram desfavoravelmente 38,609% (€97.296,64) dos credores com direito de voto;

Ou seja, in casu, o plano foi votado favoravelmente por credores cujos créditos representam mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados.

Deste modo, não há dúvida que o plano se encontra aprovado.

Por despacho de fls. 224 foi a devedora notificada para se pronunciar sobre a possibilidade de o plano de recuperação poder não vir a ser homologado por violação do princípio da igualdade, por dele resultar, sem que para tal haja justificação, um tratamento manifestamente desproporcionado entre o crédito comum das instituições financeiras e os restantes créditos comuns.

A devedora veio pronunciar-se alegando:

-A generalidade dos seus fornecedores (excluindo, portanto, as entidades financeiras) beneficiavam de seguro de crédito e, por isso, já se encontravam ressarcidos da maior parte dos seus créditos, uma vez que as respetivas seguradoras haviam já suportado valores a rondar os 80% do crédito sobre a devedora.

Com base nos elementos recolhidos dos seus credores – mas, naturalmente, apenas daqueles que consideraram importante participar (passe o plebeísmo, aqueles que se deram ao trabalho de negociar com a devedora, afinal, na defesa dos seus próprios interesses) – a devedora apresentou, no processo, um plano com vista à sua recuperação, cujo texto enviou a todos os credores reclamantes (por intermédio do seu mandatário e também do Adm. Judicial Provisório).

- o princípio da igualdade pode ser derrogado, por razões objetivas.

-os credores materialmente não estavam todos nas mesmas circunstâncias, pois alguns (os fornecedores de equipamentos e matérias-primas, que são os chamados fornecedores

“comuns”), beneficiavam de seguro de crédito e, portanto, encontravam-se já ressarcidos de mais de três quartos do valor dos seus créditos – razão pela qual os valores reclamados estavam, digamos inflacionados e não correspondiam a prejuízos reais e efetivos.

- Enquanto outros – as entidades financeiras – estavam efectivamente desembolsados das quantias mutuadas e ainda não recebidas e os valores por eles reclamados estavam efetivamente, e na totalidade, por receber.

- Esta diferença real de situação entre estes credores (financeiros) e os fornecedores “comuns” explica o envolvimento intenso dos bancos e da G (…) (que assegurava garantias aos bancos) nas negociações – aliás árduas e detalhadas – em contraste com os credores fornecedores, que haviam tratado do assunto por outra via (seguro de crédito) e não sentiam tanta necessidade de negociar a recuperação do seu crédito pelos montantes reclamados, pois, na prática, a quantia ainda por receber era substancialmente inferior.

- O valor de pagamento aos restantes credores (ponto IV, pág. 14, do plano submetido a votação) – corresponde sensivelmente, em termos práticos, ao valor não reembolsado por estes ao abrigo dos seus seguros de crédito.

- Somando a percentagem de cerca de 80% recebida das seguradoras, com os 25% propostos, estes credores ficam, em termos práticos, reembolsados da totalidade e verdadeiramente equiparados às entidades financeiras.

- O que explica a não ida aos autos para votar, por parte da maioria deles, e que vários dos que se deram a esse trabalho, votaram favoravelmente o plano.

- E significa, igualmente, que, em termos práticos e independentemente da abordagem mais formal (os números constantes do plano), “feitas as contas” todos os credores serão ressarcidos de forma equivalente.

- A elaboração do plano de revitalização, pela devedora, teve uma outra condicionante, relacionada com a necessidade de não prejudicar, para o futuro o acesso ao crédito bancário.

- Efectivamente, a não satisfação integral das pretensões dos bancos, que não abdicavam de serem pagos na totalidade, prejudicaria – e os bancos fizeram-no saber – o acesso ao crédito, uma vez que, para os atuais bancos credores, seria “fechada a porta” do acesso ao crédito.

- Por outro lado, a parte do crédito que não fosse paga acabaria por ser do conhecimento de todo o setor bancário, o que significaria que, não apenas os bancos actuais credores, mas também os restantes, poderiam nunca mais financiar a devedora.

- A versão final do plano de revitalização, aliás, aprovada, resultou, assim, das diversas condicionantes que aqui ficam explicadas – que não dependiam da sua vontade - e a revitalizanda, apesar de o ter tentado, não conseguiu alcançar outro ponto de equilíbrio para a satisfação de todas as posições credoras.

- Ponderadas as circunstâncias da negociação, afigura-se agora à devedora, salvo o devido respeito, ser algo desproporcionada a decisão de não homologação do plano (se vier a ser tomada), uma vez que não tinha forma de forçar os bancos a receber menos, nem era sustentável o pagamento aos fornecedores de valores substancialmente acima dos que ficaram aprovados.

*

Notificados os credores, a credora O (…) SA e T (…), S.A vieram reiterar que o plano apresentado não deve ser aprovado, por violação, injustificada, do princípio da igualdade, ao beneficiar os créditos comuns das entidades financeiras, por cotejo com os demais créditos, igualmente, comuns.

Conclusos os autos à M.ma Juiz, foi proferida a decisão, aqui junta de fl.s 2 a 11 (aqui recorrida), na qual, a final, se recusou a homologação do pano apresentado pela requerente, ficando as custas a seu cargo, resumidamente, com fundamento em não se mostrar justificada e, por isso, violadora do princípio da igualdade, “a grande diferença de tratamento existente entre os credores comuns”, dado que “são pagos na totalidade os créditos do M (…), B (…) e C (…), enquanto que o crédito dos restantes credores comuns é reduzido a 25% do valor do capital reclamado, a pagar na proporção do crédito em 48 prestações, mensais, iguais e sucessivas, com início de pagamento 12 meses após a sentença de homologação do plano”.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso, a requerente “B (…)”, o qual foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 21), finalizando as suas alegações de recurso, com as seguintes conclusões:

1- Na tentativa da reestruturação do passivo de uma entidade devedora, no âmbito de um Processo Especial de Revitalização (PER), existem desigualdades de facto, entre credores, que não resultam de normas jurídicas;

2- Desigualdades essas que, portanto, não resultam da natureza jurídica dos créditos ou dos credores seus titulares, mas de razões de mercado;

3- As entidades bancárias detêm uma posição de especial importância, perante a entidade que procura reestruturar o seu crédito, adveniente da especial necessidade de financiamento da entidade devedora junto dessas entidades;

4- Bem como do sistema de informação vigente no setor financeiro em geral, e bancário

em especial, que afeta gravemente o acesso ao crédito a quem for alvo de registo de incumprimento, por pouco relevante que seja;

5- As particularidades da atividade bancária, consistentes na facilidade de acesso à informação e na indisponibilidade para assumir riscos no crédito (porventura compreensível), com a consequente recusa da sua concessão se for detetado algum risco de incumprimento, conjugadas com a absoluta necessidade de financiamento por parte dos agentes em frágil situação económica, conferem aos bancos uma força negocial que não tem comparação com qualquer outro credor comum;

6- Força essa que leva a que, com essas entidades, não existe verdadeira negociação, mas imposição unilateral de condições;

7- É por esta ordem de razões, de mercado, que, no âmbito dos PER’s, as propostas de amortização do passivo bancário surgem habitualmente em condições mais favoráveis (ou muito mais favoráveis) que as do pagamento aos credores comuns;

8- Não se tratando de uma questão de enquadramento jurídico, trata-se, contudo, de uma realidade do mercado, que se impõe objetivamente ao devedor, porque totalmente alheia à sua vontade;

9- Ora, esta realidade deve ser atendida pelo tribunal na sua ponderação de homologar, ou não, o plano de recuperação;

10- Devendo ser qualificada como razão objetiva, para efeitos da diferenciação admitida no art. 194, nº 1, do CIRE;

11- Andou mal, por isso, o tribunal a quo, ao não relevar esta questão, à luz do art. 194, nº 1, do CIRE, na sua ponderação que o conduziu à não homologação do plano de

recuperação;

12- Devendo, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, sendo substituída por outra no sentido da homologação do plano de recuperação apresento pela devedora, ora recorrente.

Desta forma fazendo V. Exas JUSTIÇA

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se o plano de revitalização apresentado pela requerente deve ser homologado, por não conter violação não negligenciável das normas aplicáveis, quanto ao seu conteúdo, designadamente, não violar o princípio da igualdade entre credores.

A factualidade a ter em consideração é a que consta do relatório que antecede, a que acresce a seguinte:

Consta do plano aprovado o seguinte (na parte que aqui releva):

(…)

3. Medidas a tomar para a recuperação da B (…), Lda

A empresa necessita essencialmente de satisfazer 2 condições para a retoma normal da sua atividade:

I) possuir instalações

II) contratar dois comerciais, para acompanhar o sócio nas vendas e assistência a clientes

A questão das instalações resolve-se pela cedência de parte de um armazém que está arrendado a outra sociedade do mesmo sócio, a T (…) Lda, localizado em (...) , nos arredores de (...) , o qual possui uma ampla dimensão que a sua arrendatária não necessita de ocupar na totalidade.

A questão dos funcionários a contratar para as funções de vendedor implica, por sua vez, a obtenção de liquidez imediata, a fim de suportar os encargos com os seus salários, mas o que é expectável é que o trabalho desse funcionário possa gerar de imediato tais meios.

Contudo, para que possam ser iniciados os pagamentos aos credores fornecedores – que acrescem aos pagamentos que estão em curso ao estado e aos bancos – deverá ser necessário que decorra um período de carência até que,

- a atividade da empresa se consolide no mercado;

- sejam cobradas, ao menos parcialmente, as quantias de que a empresa se considera credora, o que poderá implicar procedimentos judiciais de cobrança, pelo que se afigura que esse período não deverá ser inferior a um ano.

Por outro lado, a quase totalidade dos credores fornecedores beneficiavam de seguro de crédito, pelo que estarão já reembolsados em valor a rondar os 80% dos respetivos créditos.

(…)

6. Propostas de Reestruturação do Passivo e Serviços da Dívida Propostos.

Nestes termos, e em concreto, sugere-se o seguinte plano de reestruturação do passivo:

I) Autoridade Tributária:

Prosseguimento dos planos de pagamento em curso, nos termos celebrados entre a empresa e essa entidade.

Os planos prestacionais foram celebrados nos estritos termos e limites do que a lei permite e o número de prestações mensais acordadas oscila entre 6 (seis) e 36 (trinta e seis), conforme o processo fiscal, das quais falta ainda pagar entre 3 (três) e 31 (trinta e uma) prestações, consoante o processo.

II) Instituto da Segurança Social

Prosseguimento dos planos de pagamento em curso, nos termos celebrados entre a empresa e essa entidade.

Também aqui os planos prestacionais foram celebrados nos estritos termos e limites do que a lei permite, faltando apenas pagar a esta entidade, na data da apresentação deste

plano, o valor total de € 5.280,50.

III) Bancos ((…))

a) Pagamento do capital e juros vencidos e vincendos em 4 anos à taxa: EUR 6 meses (FLOOR 0%) + spread de 4% , de forma a aliviar o valor de cada prestação.

b) Manutenção das garantias prestadas.

c) Cláusula “Salvo regresso de melhor fortuna”.

d) Juros vencidos desde a data de reclamação de créditos até à data do trânsito em julgado da sentença homologatória do plano serão calculados à taxa referida na alínea a).

IV) Restantes credores:

a) Redução do capital em dívida para 25% do valor do capital reclamado.

b) pagamento do capital a cada credor, na proporção do seu credito, em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas.

c) início do pagamento 12 meses após a sentença de homologação do plano de recuperação.

D) perdão TOTAL de todos os juros vencidos e vincendos até à data de início dos pagamentos.

Credores de B (…), LDA

Credores Bancários

- C (…)8.152,83

- B (…)  20.752,53

- C (…) 34.466,55

Total Credores Bancários 63.371,91

Credores estatais €

- Autoridade Tributária e Aduaneira 15.361,22

- IGFSS 5.280,50

Total Credores Estatais 20.641,72

Fornecedores e Outros Credores

- E (…) Lda 17.351,84

- O (…) SA 15.667,00

- P (…) 34.500,00

- P (…) SA 7.204,58

- S (…) SA 4.855,18

- S (…) SA 50.043,62

- T (…) SA 25.748,02

- U (…) SA 24.689,42

- L (…), Lda 291,38

- M (…), SA 47,34

- T (…), Lda 26.136.86

- G (…)1.842,10

Total 208.377,34

(…)”

Se o plano de revitalização apresentado pela requerente deve ser homologado, por não conter violação não negligenciável das normas aplicáveis, quanto ao seu conteúdo, designadamente, não violar o princípio da igualdade entre credores.

É indubitável que, no âmbito de uma situação de insolvência ou pré-insolvência, nos termos do disposto no artigo 194.º do CIRE, se consagra o princípio da igualdade entre credores, ali se consagrando no seu n.º 1, a regra de que “O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”, acrescentando-se no seu n.º 2 que o tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, que se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.

Nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE refere-se que “O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza…”.

Assim, impõe-se uma abordagem do que se deve entender por “violação não negligenciável” (e, no reverso da situação, o que se entende por violação negligenciável) dos procedimentos ou de normas substantivas aplicáveis ao plano de recuperação apresentado.

Por outro lado, importa não esquecer que a possibilidade de conformação do plano de recuperação aprovado pelos credores, limita, restringe, ou pode fazê-lo, a esfera dos direitos de cada um, ou alguns, dos credores da devedora, na medida em que o plano fixa em que medida se opera a redução ou o perdão dos créditos e juros, a constituição de garantias e validade e relevância das anteriormente constituídas, nos termos do disposto nos artigos 196.º e 197.º do CIRE.

Isto porque, como se refere, entre outros, nos Acórdãos do STJ, de 10/04/2014, Processo 83/13.3TBMCD-B.P1.S1 e de 25/03/14, Processo 6148/12.1TBBRG.G1.C1, disponíveis no respectivo sítio do itij, depois da reforma operada pela Lei 16/2102, de 20/4, o CIRE tem como objectivo principal, a recuperação, a revitalização da empresa em estado de pré-insolvência, relegando para segundo plano a respectiva liquidação.

Dá-se relevância à recuperação da empresa, em detrimento do anterior objectivo primordial, que era o de, em primeira linha, obter a satisfação dos direitos dos credores, por sobreposição às possibilidades de recuperação da devedora.

Como refere Menezes Cordeiro, in “Perspectivas Evolutivas do Direito da Insolvência”, Thémis, Ano XII, n.os 22/23, 2012, pág.s 40 a 42, como linha inovadora da citada reforma surge “a primazia da satisfação dos credores; a ampliação da autonomia privada dos credores; a simplificação do processo … a recuperação surge à frente como mera eventualidade, totalmente dependente da vontade dos credores. Mas esta primazia não funciona apenas em detrimento da empresa: ela exige, também, o sacrifício de terceiros que tenham contratado com a entidade insolvente.”.         

É no âmbito dos poderes de conformação do plano por parte da maioria dos credores de uma empresa em estado de pré-insolvência que surge a possibilidade de, nos termos do disposto no artigo 196.º do CIRE, lançar mão das (ou alguma (s)) providências nele referidas, designadamente o perdão ou redução do valor dos créditos, de capital ou de juros; condicionamento de reembolso de créditos; modificação de prazos de vencimento e taxas de juros; constituição de garantias e cessão de bens aos credores e outras ali não previstas, uma vez que, cf. seu n.º 1, se refere que “O plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências …”, o que, fora de dúvidas faz transparecer a ideia de que será possível usar outras providências, para além das ali expressamente indicadas, desde que contidas e descritas no plano de recuperação.

Por idênticas razões, se permite, conforme estipulado no artigo 197.º do CIRE, desde que expressamente estatuído no plano de insolvência, a afectação dos direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios que versem sobre bens da empresa pré-insolvente.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 25/03/14, acima já citado “A expressão “na ausência de estatuição expressa em sentido diverso constante do plano de insolvência”, atribui cariz supletivo ao preceito, o que implica que pode haver regulação diversa, contendendo com os créditos previstos nas al.s a) e b) o que deve ser entendido como afloração do princípio da igualdade e reconhecimento que, dentro da legalidade exigível, o plano pode regular a forma como os credores estruturam o Plano de Insolvência. Só assim não será se não houver expressa adopção de um regime diferente.”.

No mesmo sentido se pronunciam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2.ª Edição, Quid Juris, 2013, a pág. 762 que ali defendem que “sendo o plano um meio alternativo de prossecução do interesse dos credores, que afasta o recurso à liquidação universal do património do devedor, ele deve conter, na plenitude, a regulação sucedânea dos interesses sob tutela, seja para evitar incertezas que sempre poderiam advir da concorrência de acordos ou estipulações estranhas ao instrumento geral, seja por razões de transparência, que aconselham que tudo fique devidamente explicitado para todos os credores poderem conhecer plenamente a situação e assim apreciá-la e valorá-la de modo a melhor fundamentarem a sua opção.

Adrede, está ainda a salvaguarda do princípio da igualdade.”.

Ali acrescentando a fl.s 762 e 763 que “Corolário fundamental do regime fixado no preceito é o de que os direitos decorrentes de garantias reais e de privilégios creditórios existentes podem ser atingidos, desde que a afectação conste do plano, e nos termos nele especialmente previstos (…)

Naturalmente, a exigência da dispensa do acordo de cada um dos credores que perca garantias ou privilégios, bastando a observação da maioria comum, constitui um importante instrumento de facilitação da aprovação de planos de insolvência.”.

Daqui resulta que os credores, melhor dito, da sua maioria, dispõem de uma ampla autonomia quanto à forma como podem recuperar os seus créditos, ponderando a possibilidade de liquidação da empresa ou a sua viabilidade/recuperação, de acordo com o plano aprovado, sem que, como é óbvio, possam violar o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE.

Princípio, este que, como já referido, não tem um carácter absoluto, uma vez que na parte final do n.º 1 do artigo 194.º do CIRE se estabelece a possibilidade de o mesmo poder ser derrogado por “razões objectivas”.

Derrogação, esta, que assenta em razões de proporcionalidade, princípio que, igualmente, goza de matriz constitucional, baseado em razões de adequação das medidas aos fins; necessidade ou exigibilidade das medidas e proporcionalidade em sentido estrito ou “justa medida”.

Como refere Jorge Reis Novais in “Princípios Estruturantes da República Portuguesa”, pág. 171, citado no Acórdão do STJ, em referência, “a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, desrazoável.”.

Por último, nesta sede, de considerar que, como defende Gisela Fonseca in “Direito da Insolvência – Estudos”, Coordenação de Rui Pinto, Coimbra Editora, 2011, no texto “A Natureza do Plano de Insolvência”, o plano de insolvência tem uma natureza complexa, configurável como uma transacção, um verdadeiro contrato, que não exige, para ter eficácia, a concordância de todos os intervenientes, bastando para tal a aprovação ou consentimento de uma simples maioria deles.

Como ali se refere “A concretização do plano de insolvência permite aos credores a composição dos interesses emergentes do processo, de acordo com a sua própria vontade, revestindo-se, assim, de uma natureza negocial.”.

Esta ponderação de interesses, tendo em vista a salvaguarda do princípio da igualdade entre credores, violado este, no plano aprovado, deve conduzir a que o juiz recuse oficiosamente a aprovação do plano sempre que exista uma violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, conforme se acha disposto no artigo 215.º do CIRE, em que se enquadra a injustificada, desadequada, arbitrária ou injusta, violação do direito à igualdade entre credores, nos moldes em que este se encontra consagrado no artigo 194.º, n.º 1, do CIRE.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., de pág.s 826 a 828, devem considerar-se “não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.

(…)

O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente, no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta.

(…)

Apenas cabe uma nota complementar para alertar não poder deixar de se ponderar o facto de a lei propender a pôr nas mãos dos credores a decisão sobre o destino do processo, e, nessa medida, o tribunal deve mostrar generosidade na sindicação da bondade do por ele deliberado, na ponderação de que ninguém melhor do que os credores saberá o modo de mais adequadamente defender os seus próprios interesses.”.

Ora, tendo em vista o que ora se deixou dito e analisando o que consta do plano de recuperação aprovado, relativamente ao plano de pagamentos proposto, impõe-se concluir, tal como na decisão recorrida, que o mesmo tem, na sua génese, vícios que configuram violações não negligenciáveis a nível do seu conteúdo.

Efectivamente, como acima já se referiu, nos termos do disposto no artigo 215.º do CIRE:

“O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza …”.

Volvendo à invocada violação de regras relativas ao conteúdo do plano, importa ter em linha de conta que, de acordo com o disposto no artigo 216.º, n.º 1, al. a), do CIRE, deve ser recusada a homologação do plano, se tal lhe for solicitado por algum credor que se lhe haja oposto, se a sua situação ao abrigo de tal plano for previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Entendendo-se como normas relativas ao conteúdo, tanto as respeitantes à parte dispositiva do plano, como aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve apresentar – cf. autores e ob., por último, acima já, cit. a pág. 826.

No entanto, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., a pág.s 832 e 833, para aferir de tal situação, importa proceder “a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.

Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima que receberiam sem ele.

(…)

Ora, é exactamente a concretização da comparação que muitas vezes se revelará de extrema dificuldade exatamente porque importa avaliar a priori o que a massa insolvente pode render no caso de venda universal.

(…)

Bem vistas as coisas, pois, o que substancialmente importa é a comparação entre a situação emergente da homologação do plano e a que interviria na sua ausência.”.

Ora, quanto a tal prognose, os credores comuns prejudicados alegam que não se vislumbram razões objectivas para que as entidades bancárias recebam a totalidade dos seus créditos e os demais créditos comuns sejam reduzidos a 25%, nos moldes acima transcritos, pelo que, desde logo, se terá de ter como verificada a situação prevista no citado artigo 216.º, n.º 1, al. a).

Como se refere no Acórdão do STJ, de 03/03/2015, Processo n.º 1480/13.0TYLS.L1.S1, disponível no respectivo sítio do itij, o plano de recuperação, que se impõe mesmo aos que o não aprovaram e mesmo aos que não participaram das negociações, cf. artigo 17.º-F, n.º 6, do CIRE “não vai deixar tudo na mesma, sob pena de ser inútil. Implicará alterações no que respeita aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor estava vinculado e, porventura, nos montantes pecuniários devidos, seja na sua globalidade, seja quanto ao valor e ao número de prestações parcelares.”.

Ali se acrescentando que:

“É natural que um plano de recuperação implique alterações, designadamente, quanto aos prazos de cumprimento das obrigações a que o devedor esteja vinculado, aos montantes devidos e ao número de prestações parcelares.

Assim, o simples facto de não se concordar com tais alterações não justifica o pedido de não homologação do plano em causa. E muito menos se justifica a não homologação oficiosa, a não ser que se verifique algum dos condicionalismos previstos no artigo 215.º”.

Ora, com a aprovação do plano em causa, sem qualquer razão que o justifique, por comparação com outros créditos da mesma natureza, os créditos das entidades bancárias, são pagos na totalidade, em 4 anos, à taxa Euribor a 6 meses, acrescida de um spread de 4%, mantendo-se as  garantias prestadas, incluindo os juros de mora, vencidos e vincendos, ao passo que os demais credores comuns, vêm o seu capital reduzido para 25% do valor reclamado, na proporção do seu crédito, em 48 prestações mensais, iguais e sucessivas, iniciando-se o respectivo pagamento12 meses após a sentença de homologação e com perdão total de todos os juros.

Sem a aprovação do plano, cair-se-ia, de imediato, numa situação de insolvência da devedora, com a consequente venda universal dos bens que constituiriam a massa insolvente e inexistindo, com excepção dos créditos laborais, Estado e Segurança Social, garantias de outros credores que lhe impossibilitassem, em tal caso, pelo menos, o ressarcimento, (integral ou) parcial, do seu crédito.

Isto é, sem a aprovação do plano existe a possibilidade de todos os credores comuns serem ressarcidos, integral ou parcialmente, pelo seu crédito e com a aprovação do plano, nos moldes em que o foi, fica desde logo, afastada qualquer hipótese de os restantes credores comuns virem a receber mais do que 25%, do capital reclamado, sem juros, por contraposição às entidades bancárias, que recebem a totalidade do capital e juros, reitera-se, sem que se adiante qualquer justificação para isto, que não seja o facto de as entidades bancárias terem uma maior força negocial, por comparação com os demais credores comuns e, por isso, poderem impor condições mais favoráveis do que os demais, dado terem o poder de financiarem as empresas em dificuldade e, de outra forma, não o fariam.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 24 de Novembro de 2015, Processo n.º 212/14.0TBACN.E1.S1, disponível no respectivo sítio do itij “o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou  seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns credores da mesma classe.

Ali se acrescentando que:

“as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano. Pelo contrário, é este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre credores”.

Mais se referindo que não pode aceitar-se a afirmação de que:

“a importância dos votos de certos credores para que o plano seja aprovado deve poder influenciar ou condicionar o regime de satisfação dos créditos, isto é, deve poder influenciar ou condicionar o princípio da igualdade entre os credores”.

Isto porque:

“o vetor que regula para o caso é o da igualdade entre credores e não o da importância ou essencialidade dos votos de certos credores para que o plano possa ser aprovado”.

Em suma, a reestruturação do passivo da devedora, tal como apresentada no plano, configura um tratamento mais desfavorável, discriminatório (pela negativa) e injustificado de todos os credores comuns, por comparação com os créditos, também comuns, do M (…), B (…), C(…) e G (…), assim, se mostrando violado o princípio da igualdade entre credores, tal como plasmado no artigo 194.º do CIRE e que acima já se mostra analisado, inexistindo qualquer razão objectiva para tal tratamento desfavorável.

Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. cit., 3.ª Edição, a pág. 713 “o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante na regulação do plano de insolvência. A sua afectação traduz, por isso, seja qual for a perspectiva, uma violação grave – não negligenciável – das regras aplicáveis.

O tribunal deve, por isso, se não for atempadamente recolhido o assentimento do lesado, recusar a homologação do plano”.

Do que decorre não violar a decisão recorrida os invocados preceitos.

Assim, face ao exposto, é de manter a decisão recorrida, improcedendo o presente recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Coimbra, 18 de Fevereiro de 2020.

Arlindo Oliveira ( Relator )

Emídio Santos

Catarina Gonçalves