Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
899/22.0T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR DE EMBARGO DE OBRA NOVA
REALIZAÇÃO DE OBRAS POR MUNICÍPIO
OCUPAÇÃO PARCIAL DE PRÉDIO VIZINHO
DIREITO DE PROPRIEDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 397.º, N.º 1, E 64.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 211.º, N.º 1, E 212.º, N.º 3, DA CONSTITUIÇÃO, 40.º, N.º 1, DA LOSJ, E 1.º, N.º 1, DO ETAF
Sumário: I – É da competência material dos tribunais da jurisdição cível, e não da jurisdição administrativa, um procedimento cautelar de embargo de obra nova, intentado por um particular contra um município, com fundamento em este último, na execução de obra respeitante à requalificação de um cine-teatro, ter ocupado parte do logradouro do prédio do demandante, afetando o seu direito de vistas e causando danos na cobertura do seu imóvel.

II – Sendo pedidas a suspensão das obras de construção e a restituição da área assim ocupada, repondo-se a situação existente, com os trabalhos que forem necessários, a expensas do município, bem como a paragem imediata da construção de pilares e sua demolição, está em causa uma relação estrita de direito privado, a violação do direito de propriedade do requerente, e não a apreciação de qualquer ato/relação de índole administrativa, designadamente a validade da licença que permite a realização de tais obras ou a violação de regras urbanísticas.

Decisão Texto Integral:


Relator: Arlindo Oliveira
1.º Adjunto: Emídio Francisco Santos
2.º Adjunta: Catarina Gonçalves

            Processo n.º 899/22.0T8FND.C1 – Apelação

            Comarca de Castelo Branco, Fundão, Juízo Local Cível

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

           

A Herança aberta por óbito de AA, representada pelo cabeça de casal BB, instaurou o presente procedimento cautelar de embargo de obra nova contra o Município ..., já ambos identificados nos autos, tendo como objecto a obra respeitante à requalificação do Cine-Teatro ..., alegando, em síntese, que o Município ... ocupou cerca de 20 metros do logradouro do seu prédio, que afeta o seu direito de vistas e que causou danos na cobertura do seu imóvel, os quais descreveu.

Peticionou, mormente, que “(…) seja ordenada a suspensão das obras de construção identificadas no artigo 7.º supra, e restituída à Requerente a área indevida e ilegitimamente ocupada pela requerida, repondo-se a situação existente, com os trabalhos que forem necessários, a expensas suas, bem como a paragem imediata da construção de pilares e sua demolição por impedirem e colidirem com o direito de vistas da Requerente, bem como e em vista de impedirem mais danos no prédio da Requerente, evitando-se assim por em risco a segurança e salubridade do prédio da Requerente (…)”.

Na contestação veio o réu, no que a este recurso interessa, deduzir defesa por excepção, invocando a incompetência do presente Tribunal, em razão da matéria.

Alegou, para o efeito, e em suma, que o imóvel ajuizado, atenta a sua relevância para a cidade ..., foi classificado como de interesse municipal, acrescentando que na execução da obra que a autora pretende embargar, estamos perante um contrato de empreitada de obras públicas, o qual consubstancia um contrato administrativo, defendendo, por isso, que a competência para o conhecimento e decisão da presente providência cautelar, pertence aos tribunais administrativos.

A autora pronunciou-se, pugnando pela competência dos tribunais judiciais, com o fundamento em que a presente providência não tem em vista a anulação do acto administrativo que licenciou a obra que se pretende embargar, mas apenas e tão só, acautelar o seu direito de propriedade, violado pela execução da obra em apreço, pelo que a relação jurídica em causa se move no âmbito do direito privado.

Conclusos os autos à M.ma Juiz a quo, foi proferida a decisão de fl.s 206 a 208, na qual se decidiu o seguinte:

“Nos termos e fundamentos expostos, ao abrigo das disposições legais citadas, decido conhecer a ocorrência, de forma evidente, de excepção dilatória, insuprível, de incompetência absoluta em razão da matéria e, em consequência, declaro o presente Juízo Local Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco incompetente, em razão da matéria, para preparar e julgar o presente procedimento cautelar e, em consequência, absolvo a ré Município ... da instância.

Sem custas.”.

Inconformada com a mesma, interpôs recurso a requerente Herança Ilíquida e Indivisa, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (cf. despacho de fl.s 219), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

1-A questão da competência em razão da matéria afere-se e resolve-se pelos termos em que a acção é proposta e pelo pedido do Autor.

2 - O Recorrente alegou os factos relativos a demonstrar que era titular do direito de propriedade sobre o prédio id. no art.º 1º da petição, à ofensa do seu direito de propriedade, à obra em curso e à identificação do seu titular bem como o prejuízo.

3 - Em parte alguma do petitório se alude à existência de qualquer acto administrativo

4 - A Recorrente também não questiona nem põe em causa o direito de a autarquia reconstruir/requalificar o Teatro Cine da ..., o que pretende com a providência é que a mesma reconheça e respeite o seu direito de propriedade e se abstenha de o violar.

5 - Ora este pedido tem natureza eminentemente privada e não de direito público.

6 - É pois em função da natureza deste pedido tal como é apresentado pelo requerente que se determina a competência material do Tribunal.

7 - Desde logo, o artigo 211º n.º 1 da Constituição da República estipula: " Os tribunais judicias são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais", de igual modo assim o estabelece o Código Processo Civil no seu artigo 64º.

8 - No douto despacho recorrido entendeu-se que a competência para conhecer a presente acção pertencia aos Tribunais Administrativos, por a conduta imputada ao Recorrido se poder qualificar como acto de gestão pública.

9 - Actos de gestão pública são os praticados pela Administração no exercício de uma actividade regulada por uma lei que confira poderes de autoridade para o prosseguimento do interesse público, discipline o seu exercício e organize os meios necessário para o efeito.

10 - Não integra essa gestão pública, até porque configura um acto ilegal, a actuação da Câmara Municipal ao invadir e ocupar um prédio pertencente a particular, sem conhecimento nem autorização deste e sem que tenha havido o necessário processo expropriativo ou tomada de posse administrativa.

11 - A conduta imputada à Câmara Municipal e que serve de causa de pedir à presente acção não pode ser considerada como actividade integrada no exercício de um poder público, até porque constituiu a prática de um acto ilícito e culposo.

12 - O que está em causa na presente providência não é a execução pela Câmara Municipal das obras de Reconstrução/requalificação do Teatro cine da ..., mas sim saber-se se esta, deliberadamente, violou o direito de propriedade do Recorrente. e, tendo-o feito, impedir que o continue a violá-lo.

13 - Estando em causa apenas uma ofensa ao direito de propriedade ou à posse do requerente é óbvio que serão os Tribunais comuns e não os Administrativos os competentes para apreciar e decidir este pleito onde está apenas em causa a apreciação dum ilícito de natureza cível (sendo que a natureza do ilícito não se altera pela qualidade do agente – seja pessoa de direito público ou privado).

14 - A providência de de embargo de obra nova intentada pelo dono prédio contra a Câmara Municipal, com vista à paragem das obras, é um dos meios de reagir contra a conduta ilegal do Município, sendo o seu conhecimento da competência do tribunal comum e não do foro administrativo.

15 - Assim sendo, é evidente que é aos Tribunais comuns que compete conhecer da providência cautelar de embargo de obra nova requerida, sendo consequentemente competente para o efeito o Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.

16 – A sentença ora em crise viola o disposto nos artigos 64º do CPC e 211º da CRP.

Termos, em que, dando-se provimento ao presente recurso, deve revogar-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, e consequentemente, seja proferido acórdão a revogar o despacho recorrido, determinando-se a sua substituição por outro que julgue competente para apreciar e decidir a providência, o Juízo Local Cível ... do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco.

Assim se fazendo

Justiça

Contra-alegando, o requerido pugna pela manutenção da decisão recorrida, aderindo aos fundamentos na mesma expendidos.

Dispensados os vistos legais, há que decidir.

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de determinar se a competência em razão da matéria, para a apreciação e decisão da presente providência cautelar, está atribuída aos tribunais comuns ou aos administrativos.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório que antecede.

Se a competência em razão da matéria, para a apreciação e decisão da presente providência cautelar, está atribuída aos tribunais comuns ou aos administrativos.

Como resulta do exposto, incumbe averiguar qual a jurisdição materialmente competente para a tramitação e decisão da presente providência cautelar.

A decisão em análise, como já referido, absolveu da instância o réu, por considerar que a competência material para a decisão dos presentes autos, está atribuída aos tribunais administrativos, com a seguinte fundamentação:

“No caso concreto em apreciação, não há dúvidas que está em causa a apreciação de uma relação jurídica existente entre a ré, na qualidade de autarquia local (cfr. artigos 235.º, e 236.º, n.º 1, da CRP) e a autora, na qualidade de pessoa singular, sendo o primeiro um ente público administrativo e a segunda pessoa singular de direito privado.

Por sua vez, a causa de pedir que a autora invoca para obter a sua pretensão diz respeito a uma relação contratual de natureza administrativa, como se verá.

Com efeito, no caso concreto, a autora visa embargar a obra de requalificação do Cine-Teatro ..., tendo para o efeito alegado que a mesma ocupou cerca de 20 metros do logradouro do seu prédio, que afeta o seu direito de vistas e que causou danos na cobertura do seu imóvel.

Resulta ainda dos autos que a dita obra é respeitante à requalificação sobre um imóvel sito na Avenida ..., inscrito na matriz predial sob o artigo ...86.º, da União de freguesias ..., ..., ..., ... e ... (outrora 1.200 da extinta freguesia ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...44/..., cuja propriedade pertencia aos herdeiros de AA e CC, sobre o qual recaiu uma Declaração de Utilidade Pública (DUP), encontrando-se, actualmente, na posse administrativa do Município ... – cfr., documento designado como documento n.º7, anexo à oposição de 26.01.2023 e documento anexo ao requerimento de 11.01.2023.

Ademais, a execução da obra que a autora pretende embargar é respeitante a um contrato de empreitada de obras públicas, o qual consubstancia um contrato administrativo – cfr., artigo 280.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).

Como vimos, a autora peticionou, mormente, que “(…) seja ordenada a suspensão das obras de construção identificadas no artigo 7.º supra, e restituída à Requerente a área indevida e ilegitimamente ocupada pela requerida, repondo-se a situação existente, com os trabalhos que forem necessários, a expensas suas, bem como a paragem imediata da construção de pilares e sua demolição por impedirem e colidirem com o direito de vistas da Requerente, bem como e em vista de impedirem mais danos no prédio da Requerente, evitando-se assim por em risco a segurança e salubridade do prédio da Requerente (…)” (negrito e sublinhado nossos).

Assim, verificamos que a autora pretende que o Município ..., uma pessoa coletiva de direito público, mormente repare os danos que alegadamente causou na sua esfera jurídica em virtude da realização da obra ajuizada, bem como a suspensão dos trabalhos no âmbito de um contrato administrativo.

Desta forma, encontramo-nos, designadamente, no plano da responsabilidade subjetiva, extracontratual ou aquiliana, sendo convocado o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas – cfr., Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Desta forma, considerando que o Município ... age no uso dos seus poderes públicos na execução de um contrato administrativo e da realização de uma obra pública e a circunstância de a autora pretender accionar a sua responsabilidade civil extracontratual determinam que a competência para julgar a sua pretensão pertence à jurisdição administrativa.

Como muito bem refere o Município ..., em sede de oposição, “Todo o quadro normativo supra elencado foi devidamente ponderado pelo legislador que, ciente desta realidade, previu expressamente na alínea g) do n.º 2 do artigo 112.º do CPTA a providência cautelar de embargo de obra nova, a ser julgada, naturalmente, pelos Tribunais Administrativos e Fiscais.”

Por seu turno, o artigo 399.º do Código de Processo Civil estabelece que “Não podem ser embargadas, nos termos desta secção, as obras do Estado, das demais pessoas coletivas públicas e das entidades concessionárias de obras ou serviços públicos quando, por o litígio se reportar a uma relação jurídico-administrativa, a defesa dos direitos ou interesses lesados se deva efetivar através dos meios previstos na lei de processo administrativo contencioso”.

Ora, analisadas as regras a que a ré decidiu aplicar é possível surpreender o ius auctoritas e o poder discricionário que caracterizam a gestão pública em causa.

Além disso, basta analisar os documentos juntos pela ré ao processo para se compreender que dizem respeito a uma relação administrativa, onde se prevê uma típica actuação administrativa e não uma mera submissão a regras de direito civil.

Nesta sequência, tendo em conta a causa de pedir correspondente aos pedidos formulados pela autora, é incontornável a análise da mesma de acordo com as regras e deliberações emanadas pelo Município ..., tratando-se, de acordo com qualquer dos critérios acima apontados, de actos de gestão pública.

Deste modo, não são os tribunais judiciais, mas antes, os tribunais administrativos e fiscais os competentes para apreciar e decidir o litígio subjacente.

Em síntese, no caso concreto em apreciação, a ré (Município) não se encontra numa posição de paridade com o particular, ora autora, nem tão pouco nas mesmas condições e no mesmo regime em que poderia proceder um particular, com submissão às normas de direito privado, mas antes, contrariamente, compreendem-se no exercício de um poder público, na realização de uma função pública, o que implica a análise da relação administrativa daí resultante e as diversas deliberações e/ou alvarás emitidos pela ré.”.

Desde já, adiantando a solução, somos de opinião que a razão está do lado da autora, pelo que não pode prevalecer a decisão recorrida, porque estamos no âmbito de uma relação estrita de direito privado e, por isso, a competência material é de atribuir aos tribunais comuns e, por consequência ao Tribunal recorrido – Juízo Local Cível ....

Efectivamente, cf. disposto nos artigos 211.º, 1, da CRP; 40.º, 1, da LOSJ e 64.º do CPC, os tribunais comuns têm uma competência residual, no sentido de que serão materialmente competentes, sempre que a causa não estiver atribuída a outra jurisdição.

Conforme artigos 212.º, 3 da CRP e 1.º, 1 do ETAF, à jurisdição administrativa, está atribuída a competência para o julgamento das acções e recursos emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.

Assim, aos tribunais administrativos está atribuída a competência material, quando o litígio a dirimir for de natureza administrativa.

E a natureza da relação jurídica, determinante da atribuição da competência material tem, necessariamente, de ser aferida em consonância com o que autor/requerente alega, atendendo aos objectivos/pretensões tidas em vista, em conjugação com os respectivos fundamentos – neste sentido, v.g. o Acórdão do STJ, de 04 de Fevereiro de 2020, Processo n.º 6593/18.5T8VNF.G1.S1, disponível no respectivo sítio do Itij.

Ora, o pedido formulado pela requerente consiste em pretender ver desocupada a área do seu prédio, alegadamente, ocupada pelo requerido em consequência das obras por este levadas a cabo; que a obra não perturbe o seu direito de vistas de que vinha usufruindo e que cessem os danos que alega terem sido causados no seu prédio, tudo em consequência das obras efectuadas pelo requerido, no prédio contíguo ao da requerente, nos moldes melhor explicitados no requerimento inicial e requerimento de fl.s 18/19 v.º.

Consequentemente, não está em causa a apreciação de qualquer acto/relação de índole administrativa, designadamente a validade da licença que permite a realização de tais obras, por parte do requerido, nem é alegada a violação de quaisquer regras urbanísticas, essas, sim, do âmbito da jurisdição administrativa.

Está apenas e tão só em causa, a alegada violação do direito de propriedade da requerente, que alega que parte da área do seu prédio foi ocupada com a realização das obras; a violação do direito de vistas e danos causados no seu prédio, pelo que nos movemos no âmbito de uma relação de natureza privada, actuando o Município ..., ao requalificar o prédio contíguo ao da requerente, na veste de um privado, desprovido de autoridade pública.

Todas as normas invocadas pela requerente são de direito privado e o litígio é, igualmente, de natureza privada.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 17/12/2020, Processo n.º 3072/20.8SNT.L1.S1, disponível no respectivo sítio do Itij “A circunstância de se tratar de uma obra pública surge, na causa de pedir, como uma questão conexa, meramente secundária ou lateral relativamente ao pedido de ratificação judicial do embargo de obra nova …”.

Estamos, pois, em face de uma providência cautelar que não versa sobre a ilegalidade da obra, do ponto de vista jurídico-administrativo, mas sobre a alegada violação do direito de propriedade da requerente, pelo que a competência para a sua apreciação, nos termos expostos, cabe aos tribunais comuns.

Como se refere no Acórdão do STJ, ora citado “Sem dúvida que uma parte é uma entidade pública, mas, (…) esta é a única ligação ao direito público que aqui se encontra”.

Citando-se, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 12/06/2007, Processo 8/07, em caso em que, igualmente, se tratava de embargo de obra nova, contra concessionária, para defesa do seu direito de propriedade.

Igualmente, no Acórdão deste Tribunal da Relação, de 20/04/2016, Processo n.º 1/16.7T8CNF.C1, disponível no respectivo sítio do Itij, se decidiu que é da competência dos tribunais comuns o procedimento cautelar em que o requerente, visando o reconhecimento e a defesa do seu direito de propriedade, pretende que uma Autarquia Local suspenda a construção de uma obra, que ofende aquele direito.

Também no Código GPS, Vol. I, 2.ª Edição, Reimpressão, Almedina, 2020, a pág.s 493/4, se defende este entendimento, quando ali se refere que “Já nada obstará, porém,  que se aceda ao embargo comum quando a atuação da entidade pública seja equiparada à de qualquer entidade de direito privado, designadamente quando a ofensa ao direito de propriedade (…) não seja precedida dos necessários procedimentos administrativos ou quando a entidade pública atue fora do âmbito da sua competência específica”.

Idêntico é o entendimento expresso por Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. IV, Almedina, 2001, pág.s 237 e mantido e mais desenvolvido, na sua 4.ª Edição, pág.s 268/9.

Também o que se refere quanto aos danos em nada belisca esta solução.

Efectivamente, como resulta do disposto no artigo 1.º, n.os 1 e 2, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, o disposto na mesma apenas se aplica a acções e omissões adoptadas no exercício de prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.

Ora, como já se disse, no caso em apreço, o Município ..., actua na veste de um particular, em pé de igualdade com a requerente, despido de ius imperii tratando-se não de aferir da legalidade da obra, mas sim da alegada violação do direito de propriedade da requerente em consequência da obra que se pretende embargar.

Assim, importa concluir que a competência para a tramitação da presente providência está atribuída aos tribunais comuns.

Reiterando e concluindo:

- no Tribunal Administrativo aprecia-se a legalidade/ilegalidade da concessão da licença de obras, com fundamento na alegada violação de regras/normas de índole pública, designadamente na violação das normas urbanísticas vigentes para determinado local ou em que a entidade pública aparece revestida de ius imperii, ao passo que;

- no embargo de obra nova, intentado nos Tribunais comuns, está em causa a violação dos direitos previstos no artigo 397.º, n.º 1, do CPC, de natureza privada.

Consequentemente, aquele que vê violado um seu direito, em consequência de obra nova, tem dois caminhos para reagir contra tal violação, consoante os respectivos fundamentos para tal, sejam de índole pública ou privada.

Concretamente, se existir a violação das normas administrativas que regulam o licenciamento de obras particulares ou públicas, ou em que a entidade pública aparece revestida de ius imperii, o lesado pode lançar mão da providência de suspensão da eficácia do acto de licenciamento de tais obras, tal como previsto no CPTA ou requerer o embargo de obra nova, no Tribunal Administrativo. Mas pode, igualmente, no caso de o licenciamento violar, também ou tão só, um dos direitos referidos no citado artigo 397.º, n.º 1, lançar mão do procedimento cautelar de embargo de obra nova nos Tribunais comuns.

Efectivamente, nos Tribunais administrativos, o lesado não pode pretender o reconhecimento dos seus direitos de índole privada e nos comuns não pode atacar a legalidade do acto de licenciamento da obra ou no caso de se tratar de uma relação jurídica de índole administrativa. Pelo que, não lhe está vedado que, em cada uma de tais jurisdições, faça valer o seu direito, por reporte aos pertinentes fundamentos para tal.

Isto é, tais possibilidades de reacção contra a violação do seu direito não são alternativas, mas sim cumulativas. O lesado, consoante o fundamento invocado, pode recorrer a qualquer de tais meios ou a ambos, simultaneamente.

Face ao que, se impõe concluir que, como no caso em apreço se trata de uma relação de índole estritamente privada, com apelo a regras de direito privado e com fundamentos, igualmente, de direito privado, nos termos expostos, encontra-se a competência em razão da matéria, para a tramitação dos presentes autos de providência cautelar de embargo de obra nova, atribuída aos tribunais comuns, não podendo, por isso, subsistir a decisão recorrida, devendo, em consequência, os mesmos prosseguir para serem apreciadas as demais questões suscitadas, no Tribunal recorrido.

Assim, o presente recurso tem de proceder.

Nestes termos se decide:      

Julgar procedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara que a competência material para a tramitação dos presentes autos está atribuída aos tribunais comuns, devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos, no Tribunal recorrido.

Custas, a fixar a final.

Coimbra, 02 de Maio de 2023.