Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
292/11.0TBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESTAÇÕES POR MORTE
EXCEPÇÃO DILATÓRIA
INTERESSE EM AGIR
Data do Acordão: 09/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE FIGUEIRÓ-DOS-VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: LEI 23/10, DE 11/05; LEI 7/01, DE 11/05; DL 322/90, DE 18.10
Sumário: I – É inequívoco que a Lei 7/01, na nova redacção dada pela Lei 23/10 e republicada, veio regular em novos moldes o regime jurídico de acesso aos benefícios previstos nas referidas als. e), f) e g) do art. 3º, abstraindo dos factos que lhe dão origem.
II – Em face dos princípios contidos no art. 12º do C.C., não há dúvidas de que essa nova redacção é de aplicação imediata, devendo entender-se que esses normativos abrangem as relações jurídicas constituídas no domínio da anterior redacção e que subsistam à data da entrada em vigor da nova redacção.
III - Podendo agora a A. ver realizada a pretensão formulada através dos meios administrativos com a simples alegação da situação de união de facto, se a tutela do interesse que manifesta está agora protegido pelas normas da lei nova que não exigem a intervenção dos tribunais, não pode querer obter a satisfação do efeito pretendido por via judicial porque assim lhe convém, sendo, pois, evidente a falta de interesse na acção.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            I- RELATÓRIO

            I.1- I… intentou, em 26.8.11, acção ordinária contra «Instituto de Segurança Social /Centro Nacional de Pensões», formulando este pedido: “… declarar-se que a A. é titular das prestações por morte, no âmbito dos regimes de segurança social previstos no DL 322/90, de 18.10, no Dec. Reg. 1/94, de 18.1 e na Lei 7/01, de 11.5, decorrentes da morte de M…, sendo o R. condenado a reconhecê-lo.

            Alegou, em síntese: que desde 1989 viveu em união de facto com M… até à sua morte ocorrida em 8.8.09, com ele partilhando leito, mesa e habitação, auxiliavam-se mutuamente no dia-a-dia, viviam como se mulher e marido fossem, nascendo dessa união uma filha, que se encontra a cargo da A., actualmente desempregada com trabalhos sazonais em França, seu único rendimento. Alegou ainda não ter familiares a quem possa pedir alimentos, e que o falecido, beneficiário do R., não deixou bens.

            Contestou o R. por impugnação alegando não saber se correspondem à verdade os factos articulados pela A., e que esta deveria ter alegado factos dos quais se possa inferir que o seu filho, o seu irmão, o seu pai e a herança do falecido não estão em condições de lhe poder prestar alimentos nos termos do art.2009º/C.C..

            Fixado o valor à causa, proferiu-se saneador-sentença, datado de 13.3.12, no qual se declarou verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir da autora, absolvendo-se o réu da instância.

            I.2- Inconformada, a A. apelou.

            Alegando, conclui:

I.3- Não foram apresentadas contra-alegações.

Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do mesmo.

II – FUNDAMENTOS

Em face das alterações substantivas e adjectivas introduzidas pela Lei 23/10, de 11.5, e da jurisprudência que entretanto se foi cimentando, designadamente quanto à imediata aplicação dessa Lei independentemente da morte do beneficiário ter ocorrido antes ou depois da sua entrada em vigor, entendeu a instância recorrida que deixou de ser necessária a acção judicial com vista à declaração da união de facto. Daí ter-se julgado verificada a excepção dilatória da falta de interesse em agir.

A final, discorreu-se assim: “Pelo que fica dito, conclui-se que a lei nova é aplicável à situação dos autos.

Ora, como se referiu, por força dessa lei, tornou-se desnecessária a instauração de uma acção judicial no sentido do reconhecimento de que a autora vivia com o falecido em união de facto. Perante isto, cumpre perguntar se a alteração legislativa em apreço determina a falta de interesse em agir da demandante.

O interesse em agir é tido como um pressuposto processual inominado (porque não previsto expressamente), cuja falta gera a absolvição da instância (art.288º/1, al.e), do C.P.C.).

Pelo lado do autor, o interesse em agir consiste na “necessidade de tutela judiciária”, ou seja, “na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”. O fundamento para erigir o interesse em agir em pressuposto processual contende com o objectivo de evitar acções inúteis, pois se a lei proíbe a prática de actos inúteis (art.137º/C.P.C.) por maioria de razão proibirá acções inúteis – cfr. o Ac.T.R.C. de 15.02.2011, proc. 646/10.9T2AVR.C1, em www.dgsi.pt.

Por força da actual desnecessidade de instauração de uma acção judicial no sentido do reconhecimento de que a autora vivia com o falecido em união de facto, considera-se que a mesma não tem interesse em agir, porquanto, de acordo com  a lei, não carece de usar o processo para obter o efeito pretendido.

Quanto à eventual recusa do pagamento das prestações por parte da entidade responsável, tratando-se de um acto administrativo, sempre assistirá à autora o direito de impugná-lo em sede própria.

Nestes termos, julga-se verificada a excepção inominada de falta de interesse em agir da autora, o que obsta à apreciação do mérito da causa.”.

            É, portanto, objecto de controvérsia, a questão de saber se ocorre a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir, perante a entrada em vigor da citada Lei 23/10 que altera a Lei 7/01, bem como outros diplomas com ela conexos, tais como o DL 322/90, de 18.10 que define e regulamenta a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral da segurança social, e DL nº142/73, de 31.3, que aprova o Estatuto das Pensões de Sobrevivência).

            Importa, desde logo, abordar a questão da aplicabilidade ou não das novas disposições da referida Lei 23/10.

            Vejamos, então.

            Perante a opção de muitos casais pela união de facto em alternativa ao casamento, o legislador sentiu necessidade de regulação desta realidade social, juridicializando-a.

            Pela interpretação dada ao art.36º/1 da C.R.P., segundo o qual “todos têm direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”, considerou-se que o mesmo permite abarcar as uniões de facto[1], e daí que a união de facto tenha passado a ser constitucionalmente reconhecida como uma relação jurídico familiar. Na sequência desse entendimento foram-lhe sendo atribuídos efeitos jurídicos pelo legislador ordinário, nomeadamente no âmbito da segurança social e da atribuição de alimentos.

            Assim, através da reforma operada pelo DL nº496/77, de 25.11, introduziu-se no C.C. o art.2020º, em que se reconhece o benefício do direito a alimentos à união de facto, mas cuja concessão ficou sujeita a apertados requisitos, pois, como se refere no preâmbulo do dito diploma, “Foi-se intencionalmente pouco arrojado. Havia que não estimular as uniões de facto”.

            Exigia então o nº1 desse preceito (entretanto alterado pelo art.3º da Lei 23/10), que se verificassem certos pressupostos para que o sobrevivente da união de facto tivesse direito a alimentos da herança do falecido: que careça de alimentos; que vivesse em união de facto com o beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens há mais de 2 anos relativamente à data do óbito; que o requerente não tenha cônjuge, descendentes, ascendentes ou irmãos em condições de lhe prestar alimentos; que não seja reconhecido ao requerente direito a alimentos da herança do beneficiário falecido por inexistência ou insuficiência de bens.[2]O requerente encontrava-se adstrito ao ónus de provar que necessita de alimentos, dada a nítida feição constitutiva desse direito.[3]

            Seguiu-se o DL nº 322/90, de 18.10 que dispôs sobre a protecção na eventualidade de morte, consagrando a extensão do regime jurídico das prestações nele estabelecidas às pessoas que se encontrem na situação prevista no art.2020º, isto é, que tenham vivido em condições análogas ás dos cônjuges, o Dec.-Reg. nº 1/94, de 18.1 que definiu o regime de acesso ás prestações por morte no âmbito dos regimes de segurança social por parte das pessoas que se encontram na situação de união de facto, a Lei nº 135/99, de 28.8 que veio absorver os efeitos atribuídos positivamente à união de facto e exigir alguns outros requisitos para que tal união se possa verificar, e por fim a Lei nº 7/01, de 11.5, que, revogando o DL 135/99, adoptou medidas de protecção das uniões de facto, atribuindo os mesmos efeitos da união heterossexual - à excepção da adopção - ás uniões homossexuais.

            A figura da união de facto, não definida na lei, extraída do art. 2020º e do art.1º da dita Lei 7/01 pode ser apontada como a existência e constituição de comunhão plena de vida entre duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em condições análogas ás dos cônjuges, por mais de dois anos.[4] 

            Feita esta resenha legislativa, e antes de analisarmos a questão decidenda, importa ainda referir que, em face do disposto no art. 6º da citada Lei, e tendo presente o caso em análise, tem direito ás prestações por morte o sobrevivente da união de facto que se encontre na situação do art.2020º/C.C..

            Ora, nesse preceito, tal como antes dito, previa-se o direito de, em caso de morte, o convivente sobrevivo ser alimentado pelos rendimentos dos bens da herança, se não puder obter alimentos dos filhos, pais ou irmãos, a tal obrigados consoante art.2009º/1, C.C., e para cuja obtenção deveria ser instaurada uma acção de alimentos contra a herança do ex-companheiro(a) por inexistência ou insuficiência de bens do património hereditário.

            A verificação dos pressupostos estabelecidos nesse art.2020º/1 (antes, portanto, da redacção dada pela Lei 23/10), conjugados com os preceitos do DL 322/90 e Dec.Reg. 1/94, deram azo a alguma confusão, julgando-se em alguns tribunais que o reconhecimento do direito a alimentos do sobrevivente pressuponha a necessidade de propositura de duas acções, se na primeira não fosse reconhecido o direito a alimentos da herança por falta ou insuficiência de bens. [5]

            Todavia, perante o que dispunha o art. 3º-f) da Lei 135/99, segundo o qual, quem vive em união de facto tem direito a protecção na eventualidade de morte do beneficiário da segurança social, por aplicação do regime geral desta e da lei, e art. 6º/5 da mesma lei, que previa expressamente que “o requerente pode propor apenas acção contra a instituição competente para a atribuição das prestações”, aquele inútil formalismo que obrigava o interessado, foi ultrapassado.

            E assim, passou a Lei 7/01 a prever no seu art. 6º/1 idêntico regime de acesso ás prestações por morte estipuladas no seu art.3º, als.e), f) e g)[6], ou seja, a verificação dos pressupostos estabelecidos no art. 2020º/1.

Entretanto, revertendo ao caso concreto, a acção foi proposta na vigência desse diploma. Daí que o A., tendo em vista o reconhecimento do direito à prestação por morte do beneficiário da segurança social previsto na al.e) do art.3º do referido diploma, então vigente como se disse, tenha, em cumprimento do mesmo, instaurado a presente acção contra o «C.N.P.» - instituição competente - e alegado, para provar, os requisitos inerentes à convivência em união de facto, e bem assim os requisitos constantes no art. 2020º/1.

Como o processo não prosseguiu para julgamento, evidentemente que tal prova não chegou a produzir-se.

            Foi publicada em 30.8.10 a Lei 23/10, que, conforme atrás dito, procedeu à alteração de alguns diplomas, entre eles a Lei 7/01, diploma que não foi revogado, mas sim alterado e republicado. Esse novo diploma não dispõe sobre a sua entrada em vigor, estabelecendo apenas o art.6º, quanto à produção de efeitos, que os preceitos com repercussão orçamental produzem efeitos com a Lei do Orçamento do Estado posterior à sua entrada em vigor, tal como estabelecia aquela Lei 7/10 no seu art.11º.

Ora, o preceito que está nessas condições não pode deixar de ser o do art.3º- d), atinente à aplicação do regime do IRS.

            Também não dispõe o diploma em análise de uma norma transitória, e quanto ao momento da sua vigência, haverá que considerar a data da publicação no «DR» e tomá-la para contagem da vacatio – arts. 1ºe 2º/2, da Lei nº 74/98, de 11.12, e art. 5º do C.C..

Sendo assim, essa Lei 23/10 entrou em vigor a 4. Setembro.2010.

Temos, portanto, uma situação jurídica constituída sob o domínio da lei antiga (7/10) e que subsiste à data da entrada em vigor da última lei (23/10). Suscita-se então um conflito de leis no tempo.

Como antes referimos, a 1ª instância aplicou ao caso em apreço o regime introduzido pela lei nova, decisão contra a qual se manifesta a recorrente, por entender que a referida lei só se aplica aos óbitos ocorridos após a sua entrada em vigor, ou seja, após o dia 4.9.2010.

            Assim, no nº1 desse art.12º consagrou-se o princípio tradicional da não retroactividade das leis: “A lei só dispõe para o futuro”. Logo, na falta de disposição em contrário, a lei só se aplica aos factos futuros, entendendo-se como tais os factos que se produzem após a entrada em vigor da norma.

            O nº 2 do mesmo artigo distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos (1ª parte), e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas situações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2ª parte). As primeiras apenas se aplicam a factos novos, enquanto as segundas se aplicam a situações jurídicas constituídas antes da nova lei, mas subsistentes ou em curso à data da sua entrada em vigor.[7]

            Deste modo, consoante se faz notar no primeiro aresto infra citado, “quando a nova lei se refira a determinada relação jurídica, importa distinguir se a nova regulamentação se prende directamente com qualquer facto que haja produzido determinados efeitos ou se essa nova regulamentação se refere imediatamente ao direito, sem qualquer conexão directa com o facto que lhe deu origem. No primeiro caso, a lei só visa os factos novos, ao passo que, no segundo caso, a lei nova abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor. Nesta última hipótese, prevista na 2ª parte do nº 2 do mencionado art.12º, consagra-se o princípio da aplicação imediata da lei nova ao conteúdo ou aos efeitos futuros das situações jurídicas constituídas sob o império da lei antiga e que subsistem à data da entrada em vigor daquela primeira lei”.

            Esboçados, ainda que sumariamente, os traços fundamentais da teoria da aplicação das leis no tempo, importa encontrar as soluções que dela decorrem para aplicação ao caso em discussão.

            Como atrás dissemos, a Lei 23/10 não revogou a anterior Lei 7/10 - versando ambas a adopção de medidas de protecção das uniões de facto -, antes lhe introduzindo algumas alterações. Entre elas e pela sua importância, destaca-se a que foi feita ao art.6º.

            Assim, onde antes dispunha o nº 1 que “Beneficia dos direitos estipulados nas als.e), f) e g) do art.3º, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes no art.2020º do C.C., decorrendo a acção perante os tribunais”, veio agora dispor-se o seguinte: “O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas als.e), f) e g) do art.3º, independentemente da necessidade de alimentos”.

            Por sua vez, o nº 2 que tinha esta redacção, “Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito ás prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição”, ficou assim redigida: “A entidade responsável pelo pagamento das prestações previstas nas als.e), f) e g) do art.3º, quando entenda que existem fundadas dúvidas sobre a existência da união de facto, deve promover a competente acção judicial com vista à sua comprovação”.

            Na sequência, a lei nova introduziu o art.2º-A onde se dispõe sobre a prova da união de facto, e pelo art. 3º alterou o nº 1 do art.2020º do C.C., dando esta redacção: “O membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.

            Descortina-se, quanto a nós, a ratio legis que está na base destas novas soluções: a necessidade de pôr termo a um processo formal e exigente que a lei impunha seguir para se obter os benefícios previstos no art.3º, als. e), f), g) não alterados na lei nova, e a divergência de interpretação feitas na jurisprudência.

O interessado nas prestações aí previstas deixa, assim, de propor acção contra a entidade responsável pelo pagamento e de provar a verificação dos pressupostos estabelecidos no art.2020º/1. Mesmo que não tenha necessidade de alimentos, tem direito a esses benefícios, bastando-lhe provar, para a atribuição dos mesmos e perante a instituição competente, a existência da união de facto nos termos estabelecidos no referido art. 2º-A, conforme resulta do art. 8º do DL 322/90 e art.41º do DL 142/73, na nova redacção introduzida pelos arts.4º e 5º, respectivamente, da Lei 23/10.

É inequívoco que a Lei 7/01, na nova redacção dada pela Lei 23/10 e republicada, veio regular em novos moldes o regime jurídico de acesso aos benefícios previstos nas referidas als. e), f) e g) do art.3º, abstraindo dos factos que lhe dão origem.

Ora, em face dos princípios contidos no art.12º do C.C. atrás aludidos, cremos não haver dúvidas de que essa nova redacção é de aplicação imediata ao caso sub judice. No caso dos arts.2º-A, 6º e art.2020º/1, C.C., verifica-se que os mesmos dispõem directamente sobre o conteúdo de determinadas situações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem. Logo, nos termos do art.12º/2-2ª parte, deve entender-se que esses normativos abrangem as relações jurídicas constituídas no domínio da anterior redacção, e que subsistam à data da entrada em vigor da nova redacção.

Se bem que alguma jurisprudência defenda posição contrária, outra há, nomeadamente no STJ e que vem sendo largamente maioritária, que considera que as alterações introduzidas na lei nº 7/2001, por via da lei 23/10, são aplicáveis em situações como as dos autos, segundo o princípio sufragado no nº 2, 2ª parte do art.12º do C.C., por se estar perante uma lei inovadora. Aliás, perante esta controvérsia jurisprudencial, veio a ser proferido, no âmbito do proc.772/10.4TVPRT.P1.S1, acórdão uniformizador datado de 15.03.2012, a fixar esta jurisprudência: “A alteração que a Lei nº23/2010, de 30.8, introduziu na Lei nº 7/2001, de 11.5, sobre o regime de prestações sociais em caso de óbito de um dos elementos da união de facto beneficiário de sistema de Segurança Social, é aplicável também ás situações em que o óbito do beneficiário ocorreu antes da entrada em vigor do novo regime”.[8]

Quer isto dizer que o direito abstracto da A. ao benefício previsto na al.e) do art.3º surge com a morte do companheiro, beneficiário da segurança social. Ocorrida ela em Agosto de 2009, a partir desse momento constituiu-se, ex lege, uma relação jurídica duradoura, cujo conteúdo é regulado pela lei, e que se mantinha aquando da entrada em vigor em Setembro de 2010 da lei nova, para cuja órbita entrará.

Atento o afirmado, conclui-se que a pretensão aduzida encontra satisfação fora da acção judicial.

Entramos, assim, na análise da questão decidenda.

No domínio do regime jurídico anterior ás alterações introduzidas pela Lei 23/10, aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas ás dos cônjuges, tendo em vista o reconhecimento do direito à prestação por morte do beneficiário da segurança social previsto na al. e) do art.3º da Lei 7/01, tinha, em cumprimento do mesmo, de instaurar acção contra o «C.N.P.» - instituição competente - e alegar, para provar, os requisitos inerentes à convivência em união de facto, e bem assim os requisitos constantes no art.2020º/1.

Sucede que a presente acção foi instaurada em 26.8.11. Portanto, em plena vigência da Lei 23/10, iniciada em 4.9.10. Lei nova que, conforme atrás dito, veio acabar com os dois obstáculos legais que se colocavam à pretensão da pessoa que vivia em união de facto de receber as prestações por morte do outro membro da união entretanto falecido: alegação e prova da necessidade de alimentos e impossibilidade de os obter dos familiares referidos nas als. a) a d) do art.2009º (obstáculos de ordem substantiva); necessidade de instaurar uma acção judicial para ver reconhecido que se encontrava em condições de beneficiar dessas prestações (obstáculo de ordem procedimental).[9]

Afastados esses obstáculos, pela nova lei os unidos de facto passaram a ter direito ás prestações por morte, designadamente a pensão de sobrevivência e o subsídio por morte, independentemente da necessidade de alimentos. Basta-lhes, para a atribuição dessas prestações, e por meio de procedimento administrativo, provar a união de facto há mais de dois anos à data da morte do beneficiário.

Deste modo, tendo a acção sido intentada estando já em vigor a nova lei (23/10), é evidente que as normas substantivas e adjectivas nela contidas terão de ser aplicadas ao caso. Como tal, deixando o direito ás prestações sociais de estar condicionado à prova da necessidade de alimentos, e deixando a lei nas mãos da administração a concessão da pensão requerida sem intervenção dos tribunais, resulta claro a desnecessidade da A. ver declarada, como pretende, a titularidade das prestações por morte previstas na al.e) do art.3º e no nº1 do da Lei 7/01, na redacção introduzida pela Lei 23/10.

E a ser assim, parece-nos, tal como na instância recorrida, que à A. falta interesse em agir. O objecto do processo é um litígio, que tem como elemento estrutural um conflito de interesses, e um elemento formal constituído por uma pretensão. O interesse é a posição de alguém perante uma realidade, uma qualidade ou um fenómeno, apto à satisfação de uma necessidade sua através de uma forma jurídica. A noção de interesse é objectiva, e não subjectiva – não é uma apetência ou um desejo.[10]

O autor tem interesse processual, quando a situação de carência em que se encontra necessite da intervenção dos tribunais.[11]

Podendo agora a A. ver realizada a pretensão formulada através dos meios administrativos com a simples alegação da situação de união de facto, se a tutela do interesse que manifesta está agora protegido pelas normas da lei nova que não exigem a intervenção dos tribunais, não pode querer obter a satisfação do efeito pretendido por via judicial porque assim lhe convém, sendo, pois, evidente a falta de interesse na acção.

Em suma, a A.não tem necessidade de tutela judiciária, o que quer dizer que não tem interesse em agir.

A decisão recorrida não suscita, pois, qualquer censura.

III - DECISÃO

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação e em confirmar a sentença apelada.

Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

COIMBRA, 18/09/2012


[1]   “Constitucionalmente o casal nascido da união de facto também é família (…)”- G. Canotilho e V. Moreira, «C.R.P. anotada, Vol.I, 2ª ed.», pág.220
[2]   cfr. Acs. STJ de 24.4.07 e 13.9.07, in www.dgsi.pt
[3]   Cfr. J. P. Remédio Marques, «Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores)», 2ª ed., pág.275
[4]   Cfr. Telma Carvalho, «A união de facto: a sua eficácia jurídica», in «Comemorações dos 25 anos da Reforma de 1977», pág.221-255.
[5]   Entre outros, Ac.R.P, de 9.1.97 (CJ I/97-195)
[6]   Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei –e); prestação por morte resultante de acidente de trabalho ou doença profissional, nos termos da lei – f); pensão de sangue e por serviços excepcionais e relevantes prestados ao País, nos termos da lei – g).
[7]  cfr. Acs. STJ de 8.6.94 (BMJ 438-440), de 4.11.99 (BMJ 491-207), de 30.9.08 (proc.08A1825) e de 27.1.10 (proc.587/08.5TBCBR), e ainda A. Varela, RLJ, Ano 120, pág.150
[8]   entre muitos, cfr. acs. STJ de 17.2.11 (proc.141/06.0TCSNT-2ªs.), 7.6.11 (proc.1877/08.7 TBSTR.E1,S1-6ª s.), 6.9.11 (proc. 322/09.5 TBMNC.G1.S1), 13.9.11 (proc.1029/10.6TBAVR), 27.10.11 (proc. 4401/08.8 TBCSC.L1.S1), 23.11.11 (proc.382/10.6BSTS.S1-2ª s.), 10.1.12 (proc.1938/08.2TBCTB.C1.S1), 26.1.12 (proc. 6014/09.8TVLSB.L1.S1) e de 17.4.12 (proc. 347/08.8 TBMGL.C1.S1), para além de outros indicados neste último aresto, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
    Ainda os acs. desta R.C. de 11.10.11 (proc.164/10.5 T2OBR), 25.10.11 (proc. 127/10.0 TBLSA.C1) e de 28.2.12 (proc. 711/09.5 TBMGR).
[9]   Cfr. cit. Ac.STJ de 17.4.12
[10]   Cfr. J. Castro Mendes, «Direito Processual Civil», Associação Académica, Vol. I, pág.38
[11]   Cfr. A. Varela, e outros, «Manual de Processo Civil», pág.180