Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2704/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: ENTREGA JUDICIAL DE MENOR
LEGITIMIDADE PARA O EFEITO
Data do Acordão: 11/09/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DA COMARCA DA NAZARÉ
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 191º DA OTM E 1887º, NºS 1 E 2, DO C. CIV. .
Sumário: I – Cotejando o preceito do artº 191º, nº 1, da OTM com o do artº 1887º do C. Civ., resulta que o recurso à providência relativa a menor contida naquele, feito por quem se apresente como progenitor, supõe que antecidamente ele detenha o poder paternal .
II – Visando o legislador, através desse mecanismo processual, reinvestir o titular no exercício efectivo do poder paternal relativo à pessoa dos filhos, ele pressupõe a anterior definição desse poder paternal .

III – O reconhecimento judicial de paternidade e a regulação do poder paternal constituem verdadeiras e próprias acções constitutivas, necessariamente anteriores ao recurso à sobredita providência .

Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - RELATÓRIO
I.1- A..., cidadão britânico a residir em Bolton, Reino Unido, agravou do despacho proferido a fls.14-16 que indeferiu liminarmente o pedido que formulou de entrega judicial do menor B....
Conclui assim, e em síntese nossa, as suas alegações recursivas:
1ª- A paternidade pode ser admitida pelo próprio progenitor não registado de forma livre e espontânea, podendo o progenitor perfilhar inclusivamente por termo em processo judicial;
2ª- Essa “liberdade” para perfilhar ou seja, reconhecer a filiação impede pela sua natureza o tipo de processo que o Tribunal a quo considera o próprio para o caso – a acção de investigação da paternidade;
3ª- A admitir-se a tese do Tribunal a quo de que a entrega judicial de menor não é admissível, o requerente não teria qualquer meio de reclamar a custódia do seu filho apenas pelo simples facto de se não encontrar registado como pai do menor, isto porque não tem “título” que lhe legitime o pedido;
4ª- A confissão de paternidade do autor na petição deve relevar como confissão judicial à face do disposto nos arts.352º e 355º do C.C.;
5ª- Atenta a mesma deveria o Tribunal, nos termos do disposto nos arts.1409º/C.P.C. e 192º/OTM, ter ordenado a realização de exame de ADN para certificação da confissão de perfilhação, fazendo depender desse exame a continuação dos autos;
6ª- Em alternativa, o Tribunal, se assim o entendesse, poderia dar prazo ao requerente para vir aos autos fazer termo de perfilhação referido no art.1853º/C.C. sob pena de, então sim, ser ordenado o arquivamento com base na falta de prova da paternidade;
7ª- Deverá o despacho objecto do presente recurso ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento dos autos com a realização de diligências tendente à confirmação da alegação de progenitura do requerente, prosseguindo então os autos com a entrega judicial.
I.2- Contra-alegou o MºPº, pugnando pelo improvimento do recurso, sustentando, em síntese, que a entrega judicial de menor é um instituto que está pensado para quem detém o poder paternal, ou a pessoa ou estabelecimento a quem está legalmente confiado, e que esta não é a forma processual para efectuar qualquer perfilhação.
I.3- Foi mantido o despacho recorrido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
Lançando mão da providência estabelecida no art.191º/OTM que instaurou contra C..., requerendo que seja ordenada a este a entrega do menor B... de modo a fique confiado à guarda e cuidados do recorrente, alega o mesmo, em resumo, que: viveu no Reino Unido em união de facto com D..., tendo nascido dessa relação, em 17.6.99, o referido menor; a mãe do menor abandonou o lar em Setembro de 2000 levando consigo o filho e indo viver com o requerido, com quem mais tarde (2004) decidiu viajar para Portugal na companhia do menor, fixando residência na Nazaré até à data em que D... veio a sofrer um acidente mortal; o requerido tem-se recusado a entregar a guarda do B... ao recorrente, sendo que o carácter agressivo e violento do requerido desaconselha que ele tenha contacto com o menor cuja família se encontra toda a viver no Reino Unido.
Para ditar o indeferimento liminar do requerimento e consequente arquivamento dos autos, considerou a 1ª instância que nos termos do art.191º/OTM apenas os progenitores legalmente reconhecidos como tal e as pessoas ou estabelecimento a quem o menor esteja confiado podem vir a requerer a entrega judicial do menor, o que não seria o caso na medida em que o requerente alega ser o pai biológico do menor mas a paternidade deste ser omissa em termos registrais. Acrescentou-se não ser este o meio processualmente idóneo para o requerente ver reconhecida a sua paternidade sobre o menor nem sequer de obter a guarda do mesmo para si.
O entendimento ínsito no despacho posto em crise tem, pois, subjacente o argumento de que não estando estabelecida a paternidade do menor e não sendo o procedimento previsto no art.191º o meio idóneo para o requerente ver reconhecida a paternidade que invoca, a providência solicitada não pode prosseguir.
Vejamos se assim é.
Dispõe o nº1 do citado art.191º que “Se o menor abandonar a casa paterna ou aquela que os pais lhe destinaram ou dela for retirado, ou se encontrar fora do poder da pessoa ou do estabelecimento a quem esteja legalmente confiado, deve a sua entrega ser requerida ao tribunal com jurisdição na área em que ele se encontre”.
Este normativo tem a sua fonte no art.1887º/C.C. onde se dispõe no seu nº1 que “Os menores não podem abandonar a casa paterna ou aquela que os pais lhes destinaram, nem dela ser retirados”, e estabelecendo o nº2 que “Se abandonarem ou dela forem retirados, qualquer dos pais e, em caso de urgência, as pessoas a quem eles tenham confiado o filho podem reclamá-lo, recorrendo, se for necessário, ao tribunal ou à autoridade competente”.
Cotejando o preceito da OTM com o do C.C., resulta à evidência que o recurso à providência relativa a menor contida naquele art.191º feito por quem se apresente como progenitor, supõe antecipadamente que ele detenha o poder paternal. Visando o legislador através desse mecanismo processual reinvestir o titular no exercício efectivo do poder paternal relativo à pessoa dos filhos, ele pressupõe a anterior definição desse poder paternal. neste sentido, cfr. AC.R.L. de 23.4.96, CJ tomo III, pág.74
Ora, o poder paternal, comportando determinados poderes e deveres de carácter pessoal que devem ser exercidos pelos pais no interesse do filho, tem na sua génese, como é óbvio, um vínculo de filiação (arts.1877º e 1878º/C.C.). Vínculo esse que na situação presente, embora alegado, não está comprovado.
Na verdade, não basta, como faz o recorrente, alegar a paternidade do menor cuja entrega judicial vem pedida, quando a filiação deste está estabelecida apenas em relação à mãe (certidão de nascimento a fls.11 e 12). E não é, outrossim, suficiente para o deferimento da providência solicitada, a declaração de convencimento de paternidade, ao manifestar disponibilidade para se submeter a exame de DNA ou para efectuar termo de perfilhação.
De harmonia com a alegação do recorrente, o menor B... é filho de pais não unidos pelo matrimónio. Estando a filiação estabelecida quanto à mãe, à luz do direito português (art.1910º/C.C.) a ela pertencia o poder paternal. Mas se na realidade ela faleceu e o menor continua a viver na companhia do requerido, para poder exercer o reclamado poder paternal o recorrente teria que previamente demonstrar a filiação biológica do menor relativamente a si.
Ora, como acertadamente se afirmou na decisão em recurso, este não é o meio processualmente adequado ao reconhecimento da paternidade, justamente porque, conforme antes se referiu, a providência requerida que se contém no art.191º pressupõe que o poder paternal esteja definido. E se no caso concreto isso não sucede porque nem a filiação pelo lado paterno está provada, não se diga que a circunstância de este processo ser de jurisdição voluntária permitiria que nele se tivesse por previamente reconhecida a paternidade em relação ao menor B.... A entrega judicial de menor constitui, como o próprio nome indica, um processo para se tomar uma providência relativa a menor. O reconhecimento judicial de paternidade e a regulação do poder paternal constituem verdadeiras e próprias acções constitutivas.
Ora, pese embora a natureza de jurisdição voluntária em que as soluções de conveniência e de oportunidade se sobrepõem ás soluções de estrita legalidade, no que toca ás formas de processo adequadas, as mesmas estão sujeitas ao princípio da legalidade. E assim, em contrário do que entende o recorrente, não se mostra conveniente ou oportuno neste processo especial provar-se o vínculo biológico entre si e o menor, seja por meios laboratoriais, seja através de perfilhação. Como decorre do disposto no art.1869º/C.C., a paternidade pode ser reconhecida em acção especialmente intentada para o efeito. A entrega judicial e o reconhecimento de paternidade são providências distintas com diferentes formas de processo, e tal como refere o recorrente, não seria igual a sua legitimidade processual para intervir quer numa quer noutra.
Acresce que, também contrariamente ao que afirma, a confissão de paternidade que faz no requerimento inicial não equivale ao seu reconhecimento oficioso, na medida em que não tem como consequência a prova plena desse mesmo facto, por força do estatuído nos arts.354º/b),C.C. e 299º/1,C.P.C..
Tão pouco se diga que os autos podiam prosseguir após realização do termo de perfilhação. A perfilhação é na verdade uma confissão, um meio de acesso à paternidade real, e por isso a lei admite que nos casos de filiação fora do casamento o reconhecimento da paternidade se efectue por perfilhação (arts.1796º/2, 1847º e 1849º/C.C.) a qual deverá revestir alguma das formas prescritas no art.1853º/C.C..Todavia, a perfilhação, como acto livremente praticado pelo suposto progenitor, tem utilidade - sobretudo quando é feita por termo lavrado em juízo - quando está em curso o estabelecimento da paternidade.
Ainda assim importa atender à regra resultante dos arts.1797º/C.C. e 1º/1,b) e 3º do C.R.C., segundo a qual a filiação reconhecida só é atendível depois de registada, embora tenha, depois da menção no registo, eficácia retroactiva. Cfr. Guilherme de Oliveira, «Estabelecimento da filiação», pág.9
Em suma, no âmbito do processo de entrega judicial apenas se decide desta. Não estando demonstrado que o poder paternal pertence ao requerente, o processo não tinha de prosseguir.
Não é, pois, passível de censura o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial.
Todavia, e tal como refere o MºPº nas suas contra-alegações, a situação do menor está a ser acompanhada, tendo sido tomados os procedimentos considerados necessários à sua protecção, havendo informação de que o mesmo se encontra bem inserido no seu agregado familiar actual.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em negar provimento ao agravo, confirmando-se o despacho agravado.
Custas pelo agravante.
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COIMBRA,