Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2046/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARTUR DIAS
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/18/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VISEU - 3º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 473º A 482º DO C. CIV. .
Sumário: I – São requisitos do enriquecimento sem causa o enriquecimento da pessoa obrigada à restituição; que este haja sido obtido à custa de outrem (geralmente empobrecido na proporção do enriquecimento ); e a inexistência de causa justificativa para o acréscimo de património do enriquecido .
II – Para ocorrer a obrigação de restituir com base no enriquecimento sem causa é ainda necessário que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga com o direito à restituição, ou seja, sem que haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro acto jurídico .
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


1. RELATÓRIO
A Massa Falida de “A...”, que teve a sua sede na Av. Almirante Afonso Cerqueira, Bloco Tevisil, r/c, em Viseu, representada pelo seu Liquidatário Judicial, Dr. E..., intentou acção declarativa, com processo comum e forma ordinária, contra “B...”, abreviadamente designada por “C...”, com sede no Edifício nº 9 do Forte da Barra, freguesia de Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, pedindo a condenação da R. a restituir à A. o valor correspondente à obra com que infundadamente se enriqueceu à custa daquela, de 877.230,03 euros, acrescido de juros moratórios vencidos, à taxa legal, a partir da citação.
Para tanto, a A. alegou, em síntese, que tomou de empreitada à firma “D...” os trabalhos de construção civil de uma unidade industrial para a congelação e transformação de pescado, a executar em terrenos sitos na freguesia de Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, pelo preço global de 155.000.000$00, acrescido de IVA; que executou os trabalhos acordados assim como outros trabalhos adicionais imprevistos encomendados pela dona da obra, ascendendo o seu valor global a Esc. 175.868.882$00, que não lhe foi pago; que instaurou contra “D...” acção onde pediu a condenação da dona da obra no pagamento dos trabalhos realizados e o reconhecimento da garantia do direito de retenção do respectivo crédito, tendo sido condenada a dona da obra no pagamento de 175.868.882$00, acrescido de juros vencidos e vincendos às taxas sucessivamente aplicáveis desde a citação, por sentença proferida em 13-05-1999, que não reconheceu à autora o benefício do direito de retenção, o qual apenas veio a ser reconhecido em sede de recurso interposto daquela sentença, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que decidiu que as obras sobre que incide tal direito devem ingressar na massa falida de “D...”; que veio a saber, por força de decisão judicial proferida em 9-01-2003, transitada em 23-01-2003, em acção proposta pela ora ré com vista à separação e restituição do prédio onde foi implantada a obra, que “D...” não era proprietária desse prédio, o qual tinha sido arrolado e apreendido no processo falimentar da dona da obra, tendo sido, naquela acção, reconhecido à ora ré o direito à separação e restituição do aludido prédio que tinha sido concessionado à falida e no qual se integra a obra por si executada, a qual valorizou o prédio restituído à ré, pelas forças do património da autora, sendo que o enriquecimento patrimonial obtido pela ré não é justificado por não ter sido suportado pelas forças do património da falida e por aplicação do clausulado na licença de utilização emitida, que não foi objecto de registo apesar de ter sido constituída hipoteca sobre as instalações fixas a construir nos terrenos cedidos à falida; que o enriquecimento foi directamente obtido pela ré, já que, tendo sido a falida detentora precária do referido prédio, a obra executada não se incorporou no seu património, sendo injustificado o enriquecimento que engrandeceu o património da ré, relativamente à qual vem peticionado o pagamento do valor dos trabalhos realizados pela autora por ser considerada impossível a restituição em espécie; e que é impossível obter da dona da obra o pagamento do referido crédito, por já se ter esgotado o prazo para reclamação do mesmo no processo de falência à data em que foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que reconheceu o direito de retenção à ora autora, sendo que a restituição do prédio à ré descaracterizou o crédito da autora como crédito privilegiado pelo direito de retenção, reduzindo-o a um crédito comum incobrável.
A R. contestou, pugnando pela improcedência da pretensão formulada em juízo, por não estarem reunidos os pressupostos do enriquecimento sem causa, já que o eventual enriquecimento da ré tem causa justificativa, fundando-se na sentença proferida na acção sumária nº 87-E/99 que correu termos por apenso ao processo de falência da dona da obra e na qual viu reconhecido o direito à separação e restituição do prédio identificado na petição inicial, por ter expirado em 28-02-1999 o prazo das licenças que titulavam a atribuição à falida do direito ao uso privativo dos terrenos do domínio público em que se integrava o aludido prédio sem que aquela tenha pago as taxas devidas ou requerido a prorrogação do prazo de utilização, operando-se naquela data a caducidade dessas licenças e a reversão a favor do Estado de todas as obras ali executadas e dos terrenos até então ocupados.
Mais alegou que não lhe pode ser imputado o incumprimento da dona da obra, em cujo património se incorporaram as obras executadas; que a autora poderia ter reclamado tempestivamente o seu crédito no processo de falência da dona da obra; e que o eventual enriquecimento da ré não corresponde ao valor peticionado, atenta a depreciação dos trabalhos realizados, que deve ser descontada ao valor da obra, assim como as benfeitorias entretanto realizadas por terceiros.
No despacho saneador, entendeu-se que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, conhecer imediatamente do mérito da causa, o que se fez, julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se a R. do pedido.
Irresignada, a A. recorreu e, na alegação apresentada, formulou as conclusões seguintes:
1) Não se verifica identidade entre os pedidos, causas de pedir, e sujeitos entre a presente acção e a acção de restituição que, ao abrigo do art. 205º do D.L. nº 132/93, de 23/04, a Recorrida deduziu por apenso à falência da “D...”;
2) Quer pela natureza incidental da acção de restituição, quer pela natureza edital da citação ali processada, o caso julgado da respectiva decisão é de carácter formal, não produzindo efeitos fora do respectivo processo;
3) Acresce que o caso julgado formado sob aquela decisão não abrangeu qualquer direito de indemnização por virtude das obras executadas pela Recorrente, pois tal matéria não foi um pressuposto necessário à decisão;
4) A Apelante, não tendo sido credora admitida na falência da “D....”, não pode ser considerada como parte na acção de restituição ali deduzida pela recorrida;
5) Desta forma, o caso julgado formado sobre a sentença proferida naquela acção de restituição não obsta à apreciação da pretensão apresentada na presente acção.
6) Por outro lado, a sentença proferida naquela acção não constituiu a causa directa e necessária do enriquecimento; em consequência,
7) Porque ofendeu, nomeadamente, os arts. 473º e segs., do C. Civ., e o art. 673º, do Cód. Proc. Civil., deverá, no provimento do presente recurso, ser revogado o douto despacho saneador-sentença impugnado, ordenando-se o prosseguimento dos autos nos termos legais.
A apelada respondeu, defendendo a manutenção da decisão sob recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. QUESTÕES A SOLUCIONAR
Tendo em consideração que, de acordo com os artºs 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, constata-se que à ponderação e decisão deste Tribunal foram colocadas essencialmente duas questões: (1) uma, referente à vinculação ou não da recorrente ao caso julgado formado pela sentença proferida em 09/01/2003 na acção sumária que correu termos por apenso aos autos de falência da “D...” ao abrigo do artigo 205º do CPEREF e que reconheceu à ali A. e aqui recorrida C..., o direito à separação e restituição do prédio no qual foram realizadas as obras invocadas nestes autos e ordenado o cancelamento dos registos na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo relativos àquele prédio; (2) outra, relacionada com a verificação ou não dos pressupostos ou requisitos da figura do enriquecimento sem causa, designadamente, da falta de causa justificativa.
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3. FUNDAMENTAÇÃO
3.1. De facto
Na 1ª instância foi considerada provada a factualidade seguinte: 3.1.1. A massa falida da “A...” constituiu uma empresa que se dedicou, durante longos anos, à actividade industrial de construção civil e obras públicas.
3.1.2. A Ré constitui hoje uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, que tem por objecto a administração do porto de Aveiro, visando a sua exploração e desenvolvimento, - a qual resultou da transformação operada através do Decreto - Lei nº 339/98, de 3 de Novembro.
3.1.3. Antecedentemente àquela operação de transformação, a Ré constituía um organismo público integrado na Administração Central do Estado, então designada por Junta Autónoma do Porto de Aveiro, regulada pelo Decreto Lei nº 40.712, de 26.05.1955.
3.1.4. A ré sucedeu na titularidade dos bens, direitos e obrigações que integravam a esfera jurídica da Junta Autónoma do Porto de Aveiro.
3.1.5. Todos os imóveis edificados pela antiga Junta, ou na sua posse, constituem hoje património da própria ré.
3.1.6. A Ré adoptou a forma de sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, sendo regida pelas normas aplicáveis às sociedades anónimas e, quando no exercício dos poderes de autoridade conferidos pelo diploma de transformação, por normas de direito público, estando também sujeita ao regime estabelecido para as empresas públicas instituído pelo DL nº 558/1999 de 17/12.
3.1.7. No exercício daquela sua actividade referida em 3.1.1. e por contrato subscrito em 30 de Janeiro de 1991, a autora tomou de empreitada à firma “D...", pessoa colectiva nº 500.066.477, com sede no lugar do Botelho, concelho de Tondela, os trabalhos de construção civil de uma unidade industrial para a congelação e transformação de pescado.
3.1.8. Os trabalhos referidos em 3.1.7. seriam executados em terrenos sitos na freguesia da Gafanha da Nazaré, concelho de Ilhavo, então na posse útil da dona da obra e dos quais esta se intitulava proprietária, conforme cláusula 1ª do contrato de empreitada junto de fls. 12 a 17.
3.1.9. A empreitada obedecia aos elementos escritos e desenhados disponibilizados pela dona da obra e demais elementos descritivos referidos no contrato (proposta e lista de preços unitários, memória descritiva, programa de trabalhos e cronograma financeiro).
3.1.10. O preço global acordado para a execução dos trabalhos previstos ascendeu a Esc. 155.000.000$00, acrescido de IVA.
3.1.11. A falida executou os trabalhos previstos contratualmente, e bem assim trabalhos adicionais imprevistos para a mesma obra encomendados pela dona da obra, ascendendo o seu valor global a Esc. 175.868.882$00.
3.1.12. A dona da obra não pagou o valor dos trabalhos realizados.
3.1.13. A Autora instaurou contra aquela em 28.09.1992 uma acção, cujos termos correram pelo Primeiro Juízo Cível deste Tribunal Tribunal Judicial da comarca de Viseu., ali pedindo a condenação da dona da obra no pagamento do preço dos trabalhos realizados e o reconhecimento da garantia do direito de retenção do respectivo crédito.
3.1.14. Por sentença proferida em primeira Instância em 13 de Maio de 1999, foi a dona da obra condenada - além do mais - a pagar à Autora o valor dos trabalhos realizados, de Esc. 175.868.882$00, acrescido dos juros vencidos e vincendos às taxas sucessivamente aplicáveis desde a data da citação até integral pagamento.
3.1.15. Não foi à Autora então reconhecido o beneficio do direito de retenção.
3.1.16. Mercê de recurso de apelação interposto, o Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão de 21 de Janeiro de 2002, transitado em julgado, reconheceu o direito de retenção da Autora, “... devendo, porém, as obras sobre que incide tal direito ingressar na massa falida.”.
3.1.17. A dona da obra foi declarada falida no processo falimentar nº 87/99, cujos termos correram pelo 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Tondela, por sentença proferida em 14-07-1999 e transitada em julgado em 29-07-1999.
3.1.18. A Autora, financeiramente desequilibrada pela falta do pagamento também do seu crédito sobre a dona da obra, foi declarada falida nos autos de falência nº 183/94, pendentes no 3º Juízo Cível desta comarca De Viseu., por sentença proferida em 23-03-1995 e transitada em julgado em 28-04-1995.
3.1.19. Aquela obra foi executada em terrenos que integravam o prédio, sito na freguesia da Gafanha da Nazaré, arrolado e apreendido sob a verba nº 56 do auto de apreensão elaborado no processo falimentar da “Coimbra, S.A”, atrás referido, o qual se achava descrito desde 23.3.98 na Conservatória do Registo Predial de Ilhavo sob o nº 06454 daquela freguesia.
3.1.20. Trata-se de um prédio urbano sito à Av. Dos Bacalhoeiros, freguesia e concelho ditos, integrando um complexo industrial de r/c e 1° andar, composto por dois blocos e logradouro com mesas para secagem de bacalhau, com a área coberta de 3.000 mts2, e descoberta de 14.146 mts2, a confrontar do Sul com a rua e dos demais lados com a Ré, inscrita na matriz sob o art. 6.057º.
3.1.21. Em acção sumária instaurada em 11-02-2000 por apenso aos autos de falência da “D...” ao abrigo do art.205º do C.P.E.R.E.F., a aqui Ré veio exercer o direito à separação e restituição daquele prédio, invocando o facto de todo o prédio se encontrar fora do comércio jurídico, por pertencer ao domínio público do Estado e....
3.1.22. ...por à falida apenas haver sido autorizado, a título precário e a prazo, a utilização dos terrenos para alteração e ampliação das suas instalações, respectivamente ao abrigo das licenças tituladas pelos alvarás nº. 50 e 51/89, emitidos em 7 de Novembro de 1989, pela antecessora da Ré, a então Junta Autónoma do Porto de Aveiro.
3.1.23. Aquelas licenças, conferindo à falida apenas um direito ao uso privativo, precário e temporário, haviam caducado no termo do prazo de dez anos por que haviam sido concedidas, isto é, em 28 de Fevereiro de 1999.
3.1.24. Por força da decisão judicial ali proferida em 09 de Janeiro de 2003 e transitada em julgado em 23 de Janeiro de 2003, foi reconhecido à aqui ré o direito à separação e restituição do prédio acima identificado, nele se integrando a obra executada pela autora.
3.1.25. Nessa decisão, considerou-se, por remissão para os fundamentos alegados pela autora naquela acção e ora ré e dados por reproduzidos, que, tendo expirado em 28/2/99 o prazo das licenças em causa e porque a falida não pagou seja o que for das taxas em dívida e ninguém requereu a prorrogação do respectivo prazo de utilização, operou-se naquela data e ipso jure a reversão a favor do Estado e sem direito a qualquer indemnização de todas as obras executadas pela falida sendo o mesmo Estado, através da Autora naquela acção que, desde então, e dessas obras, passou a poder dispor como entender, bem assim como das outras obras e dos terrenos até então ocupados.
3.1.26. Nessa mesma decisão, considerou-se, por remissão para os fundamentos alegados pela autora naquela acção e ora ré e dados por reproduzidos, que não podia invocar a falida nem podem invocar os demais credores daquela qualquer direito ou indemnização pela caducidade das licenças ou pela reversão a favor do Estado das obras executadas por aquela.
3.1.27. A acção referida em 3.2.21. foi proposta contra os Credores da Falida D....
3.1.28. Na acção referida em 3.1.21., a massa falida de “D..." deduziu incidente de intervenção principal espontânea e contestação, que não foram admitidos por ter ficado decidido que aquela não tinha legitimidade para intervir naquela causa.
3.1.29. Na acção referida em 3.1.21., os credores da massa falida de “D..." não deduziram contestação, pelo que foi proferida sentença que, considerando confessados os factos alegados pela então autora e aderindo aos fundamentos alegados por aquela na petição inicial, condenou os réus no pedido formulado pela autora naqueles autos, nos termos constantes da decisão referida em 3.1.24..
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3.2. De direito
3.2.1. Caso julgado
Foi, na sentença sob recurso, considerado provado, além do mais, que:
- Em acção sumária instaurada em 11-02-2000 por apenso aos autos de falência da “D...” ao abrigo do art.205º do C.P.E.R.E.F., a aqui Ré veio exercer o direito à separação e restituição daquele prédio, invocando o facto de todo o prédio se encontrar fora do comércio jurídico, por pertencer ao domínio público do Estado e.... (3.1.21, supra);
- ...por à falida apenas haver sido autorizado, a título precário e a prazo, a utilização dos terrenos para alteração e ampliação das suas instalações, respectivamente ao abrigo das licenças tituladas pelos alvarás nº. 50 e 51/89, emitidos em 7 de Novembro de 1989, pela antecessora da Ré, a então Junta Autónoma do Porto de Aveiro (3.1.22, supra);
- Aquelas licenças, conferindo à falida apenas um direito ao uso privativo, precário e temporário, haviam caducado no termo do prazo de dez anos por que haviam sido concedidas, isto é, em 28 de Fevereiro de 1999 (3.1.23, supra);
- Por força da decisão judicial ali proferida em 09 de Janeiro de 2003 e transitada em julgado em 23 de Janeiro de 2003, foi reconhecido à aqui ré o direito à separação e restituição do prédio acima identificado, nele se integrando a obra executada pela autora (3.1.24, supra);
- Nessa decisão, considerou-se, por remissão para os fundamentos alegados pela autora naquela acção e ora ré e dados por reproduzidos, que, tendo expirado em 28/2/99 o prazo das licenças em causa e porque a falida não pagou seja o que for das taxas em dívida e ninguém requereu a prorrogação do respectivo prazo de utilização, operou-se naquela data e ipso jure a reversão a favor do Estado e sem direito a qualquer indemnização de todas as obras executadas pela falida sendo o mesmo Estado, através da Autora naquela acção que, desde então, e dessas obras, passou a poder dispor como entender, bem assim como das outras obras e dos terrenos até então ocupados (3.1.25, supra);
- Nessa mesma decisão, considerou-se, por remissão para os fundamentos alegados pela autora naquela acção e ora ré e dados por reproduzidos, que não podia invocar a falida nem podem invocar os demais credores daquela qualquer direito ou indemnização pela caducidade das licenças ou pela reversão a favor do Estado das obras executadas por aquela (3.1.26, supra);
- A acção referida em 3.2.21. foi proposta contra os Credores da Falida D... (3.1.27, supra);
- Na acção referida em 3.1.21., a massa falida de “D..." deduziu incidente de intervenção principal espontânea e contestação, que não foram admitidos por ter ficado decidido que aquela não tinha legitimidade para intervir naquela causa (3.1.28, supra);
- Na acção referida em 3.1.os credores da massa falida de "D..." não deduziram contestação, pelo que foi proferida sentença que, considerando confessados os factos alegados pela então autora e aderindo aos fundamentos alegados por aquela na petição inicial, condenou os réus no pedido formulado pela autora naqueles autos, nos termos constantes da decisão referida em 3.1.24. (3.1.29, supra);

Há, porém, uma precisão a fazer. É que, de acordo com a certidão constante de fls. 83 a 86, extraída da acção sumária nº 87-E/99, em que são A. “B...” e RR. os Credores da falida “D...”, o Tribunal Judicial de Tondela, após saneamento dos autos, designadamente indeferindo o pedido de intervenção principal espontânea da falida “D...”, julgou a acção nos termos seguintes:
“Regularmente citados os réus não contestaram a acção, pelo que, nos temos conjugados dos artigos 463º e 484º nº 1, ambos do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 207º do Código de Processos Especiais de Recuperação de Empresa e Falência, se consideram confessados os factos articulados (v. ainda documentos juntos aos autos).
Quando os factos reconhecidos por falta de contestação determinem a procedência da acção, pode o juiz limitar-se a condenar o réu no pedido, mediante simples adesão aos fundamentos alegados pelo autor na petição inicial.
Assim, aderindo aos fundamentos alegados pela autora na petição inicial condeno os réus no pedido, isto é,
- declaro reconhecido o direito à separação e restituição do prédio identificado no artigo 2º da petição Prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob a ficha n° 06454 da Freguesia da Gafanha da Nazaré, melhor descrito no ponto 3.1.20., supra.;
- ordeno o cancelamento dos registos na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo relativos àquele prédio, objecto das inscrições identificadas nos artigos 33º e 34º da petição inicial.
Custas pela massa.
Registe e notifique.”
Devendo a remissão considerar-se feita apenas para os factos tidos como confessados por força da revelia (artº484º do Cód. Proc. Civil) e não constando da decisão (até porque não integrara o pedido) referência à impossibilidade de a falida ou os credores desta invocarem qualquer direito ou indemnização pela caducidade das licenças ou pela reversão a favor do Estado das obras executadas por aquela, a matéria do ponto 3.1.26., supra, não representa mais do que a menção de que a “C...” fez tal alegação.
E o direito à separação e restituição reconhecido abrange o solo (terraplenos) onde as construções foram erigidas, desde início propriedade da A., e estas, que para ela reverteram nos termos previstos no clausulado dos alvarás que as autorizaram.

Na sentença sob recurso entendeu-se, por um lado, que aquela decisão vinculava a A., já que a acção fora proposta contra os credores da “D...” e a A. era-o, como fora judicialmente reconhecido na acção mencionada nos pontos 3.1.13. a 3.1.16., supra. E, por outro, que tal vinculação abrangia os fundamentos da decisão, nomeadamente na parte em que se remetera para a petição inicial, onde se alegara a impossibilidade de a falida ou os credores invocarem qualquer direito ou indemnização pela caducidade das licenças ou pela reversão a favor do Estado das obras executadas por aquela.

A recorrente discorda.
E, se bem vemos, com razão Ainda que não procedam todos os argumentos que utilizou, como é o caso dos integrantes da conclusão 2ª. Com efeito, a acção prevista no nº 1 do artº 205º do CPEREF, não obstante correr por apenso aos autos de falência, não pode ser vista como um mero incidente desta, antes revestindo natureza autónoma, como opinam Carvalho Fernandes e João Labareda, em CPEREF Anotado, 3ª edição, pág. 493.
E a circunstância de, por força da estatuição do mencionado nº 1 do artº 205º do CPEREF, em tal acção a citação ser feita por éditos não impede que a decisão nela proferida constitua caso julgado relativamente aos credores demandados que, como adiante se exporá, são apenas os que na falência reclamaram os seus créditos, facilmente identificáveis através de simples consulta dos autos respectivos..
Nos termos do artº 671º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, “transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e seguintes, sem prejuízo do que vai disposto sobre os recursos de revisão e de oposição de terceiro. Têm o mesmo valor que esta decisão os despachos que recaiam sobre o mérito da causa”.
E, de acordo com o artº 673º do mesmo diploma legal, “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique”.
A questão da extensão, alcance e limites do caso julgado é complexa.
É, contudo, “communis opinio” que a figura jurídica do caso julgado, para além de eventuais razões de defesa do prestígio dos tribunais, evitando a sua colocação perante a contingência de definir num sentido uma situação concreta já validamente definida em sentido diferente Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1982, vol. III, pág. 384, não reconhece a esta razão qualquer valor., tem por objectivo assegurar a certeza e segurança jurídica, indispensáveis à fluidez do comércio jurídico e até à estabilidade e paz social.
A excepção do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa decidida por sentença que já não admite recurso ordinário (artº 497º, nº 1 do Cód. Proc. Civil), sendo que a causa se repete quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artº 498º, nº 1 do Cód. Proc. Civil).
Na hipótese dos autos – ou seja, entre a presente acção, em que são partes a Massa Falida de “A...” e “APA-Administração do Porto de Aveiro, S.A.”, consistindo o pedido na condenação da R. a restituir à A. do valor de 877.230,03 euros, acrescido de juros moratórios e tendo como causa de pedir o enriquecimento sem causa daquela à custa desta, e a acção que correu por apenso aos autos de falência de “D...”, em que era A. “B...” e RR. os credores da falida, consistindo o pedido no reconhecimento do direito à separação e restituição de um prédio apreendido para a massa falida e no cancelamento dos registos efectuados, e tendo com causa de pedir a caducidade das licenças de utilização e a reversão do mesmo e das obras nele feitas para o Estado – não há, claramente repetição de causa.
Quanto às causas de pedir e aos pedidos, é tão gritante a inexistência de identidade que não se perderá tempo a demonstrá-la. Quanto aos sujeitos, é certo que a “C...” figura, ainda que em posição inversa, nas duas acções. Mas, se bem vemos, outro tanto não sucede no que tange à massa falida da “A...”. Com efeito, a acção para a verificação ulterior de créditos e/ou para a separação ou restituição de bens, prevista no artº 205º do CPEREF, deve ser proposta contra os credores do falido E ainda, a nosso ver, e salvo o devido respeito por opinião contrária, contra o falido. Neste sentido, cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CPEREF Anotado, 3ª edição, pág. 493, Ac. STJ de 4/6/98, in BMJ, 478, 274; Ac. STJ de 05/03/2002, Sumários de Acórdãos do Supremo, nº 59 (Março), pág. 17; Ac. STJ de 09/07/2002 (Relator: Cons. Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt/jstj; e Ac. Rel. Porto de 11/01/1999, in BMJ, nº 483, pág. 275;
- contra: Ac. Rel. Lisboa de 04/06/1996, in BMJ, nº 458, pág. 387 e Ac. Rel. Porto de 13/03/2000, in CJ, XXV, II, 195.
, como tais se considerando aqueles que, por qualquer das formas legalmente previstas, reclamaram na falência os respectivos créditos. Daí que geralmente se não exija que a petição os identifique individualmente, porquanto a respectiva identificação resulta da mera consulta dos autos de falência e seus apensos Como, na vigência do regime jurídico da falência previsto no Cód. Proc. Civil, escrevia Pedro Macedo, Manual do Direito das Falências, II vol., págs. 358/359, “é uso fazer-se referência apenas a credores da massa falida sem proceder à sua individualização. Normalmente, essa prática não oferece inconvenientes de maior uma vez que a verificação do passivo também corre por apenso e, pela sua consulta, fácil é determinar quem são os credores”.
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Ora, no caso que nos ocupa, apesar de o crédito da massa falida da “A...” sobre a “D...” ter sido reconhecido na acção referida em 3.1.13. a 3.1.16., o certo é que, como dos autos resulta, não foi o mesmo reclamado na falência da devedora (cfr. artº 46º da p. i. e 26º da contestação), não podendo, pois, dizer-se com propriedade que a massa falida da “A...” foi demandada na acção de restituição intentada pela “C...”.

Para além da clara inexistência de repetição da acção, há que ponderar que na decisão proferida na acção de separação e restituição intentada pela “C...” não houve (nem tinha de haver) pronúncia quanto à (im)possibilidade de a falida ou os credores invocarem qualquer direito de indemnização pela caducidade das licenças ou pela reversão a favor do Estado das obras executadas no prédio.
É certo, por um lado, que a “C...” refere na petição inicial (artº 29º) essa impossibilidade, a qual decorreria da cláusula 12ª dos alvarás (nºs 50/89 e 51/89) através dos quais foi à “D....” concedida licença para realizar as obras nos terrenos e, por outro, que a sentença remete para os fundamentos alegados pela A. na petição inicial. Contudo, face ao objecto da acção, definido pela causa de pedir e pelo pedido, aquela alegada impossibilidade não constituía sequer fundamento, não havendo razões para lhe conferir força de caso julgado, por muito generoso que se seja no que concerne à extensão e limites da figura.

Reconhece-se, pois, que a recorrente tem razão quanto à questão apreciada.
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3.2.2. Enriquecimento sem causa
As regras do enriquecimento sem causa constam dos artºs 473º a 482º do Cód. Civil, encontrando-se na primeira das disposições legais referidas o princípio geral do instituto. Estabelece esse preceito (artº 473º):
1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.
São requisitos deste instituto o enriquecimento da pessoa obrigada à restituição; que este haja sido obtido à custa de outrem (geralmente empobrecido na proporção do enriquecimento); e a inexistência de causa justificativa para o acréscimo de património do enriquecido.
Trata-se, como decorre do artº 474º, de uma fonte das obrigações com natureza subsidiária, já que só tem aplicação se a lei não facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído e não lhe negar o direito à restituição nem atribuir outros efeitos ao enriquecimento.
No caso dos autos não há dúvida de que a “C...” viu o seu património aumentado na exacta medida do valor da construção erigida pela “A...” para a “D...”, no prédio que a última foi pela primeira autorizada a ocupar. E que esse enriquecimento tem como contraponto o empobrecimento da “A...”, já que a “D...” não lhe fez o pagamento do preço da construção.
Onde a dúvida se levanta é em saber se existiu ou não causa justificativa para o acréscimo do património da recorrida, sustentando esta a tese afirmativa, acolhida na sentença sob recurso, e defendendo a recorrente a tese contrária.
De acordo com a sentença recorrida, o enriquecimento teve por causa directa e necessária a restituição ordenada na acção sumária proposta, ao abrigo do disposto no artº 205º do CPEREF, contra os credores da falida “D...”, por apenso ao processo de falência respectivo.
Não há dúvida de que a aludida sentença, ao reconhecer o direito da “C...” à separação e restituição do prédio (incluindo a construção nele erigida), reconheceu implicitamente o direito de reversão das obras efectuadas previsto na cláusula 12ª dos alvarás nºs 50/89 e 51/89.
No entanto, a sentença não constitui, como vimos, caso julgado para a A. e os ditos alvarás e o clausulado deles constante igualmente a não vinculam pois que nada com a “C...” (ou com a respectiva antecessora) ela contratou.
Ou seja, podendo a reversão e a judicialmente ordenada separação e restituição ser apontadas como causa justificativa da deslocação económica para o património da recorrida, elas explicam mal, ou não explicam, o empobrecimento da recorrente, não estabelecendo um suficiente nexo entre uma e outro.
É altura de aludir a um outro requisito da obrigação de restituir com base em enriquecimento sem causa. O de que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição, ou seja, sem que haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido, um outro acto jurídico P. Lima – A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, pág. 430..
A este respeito o Prof. Antunes Varela Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª edição, pág. 387. dá, entre outros, o exemplo do empreiteiro que realiza obras no prédio arrendado, por contrato com o arrendatário que, entretanto, cai em insolvência, perguntando se poderá aquele usar da acção de restituição, fundada em enriquecimento sem causa, contra o dono do prédio valorizado com as obras e concluindo que a resposta deve, em princípio, ser negativa. E explica que, em tal caso, “não se poderá afirmar com rigor que (...) o dono do prédio se enriqueceu (imediatamente) à custa (...) do empreiteiro, porque o acto gerador do empobrecimento de um não coincide com o acto criador do enriquecimento do outro. Falha então o requisito que a doutrina alemã designa por carácter imediato da deslocação patrimonial”.
O Prof. Almeida Costa Direito das Obrigações, 3ª edição, págs. 331 a 334. aborda a questão em termos de correlação entre o enriquecimento e o suporte deste, afirmando que ambos têm de estar relacionados, havendo contudo divergências sobre a determinação exacta do nexo que deve interceder entre os dois aspectos. E, chamando a atenção para a circunstância de aquela relação poder ser directa ou indirecta, pergunta se será necessário que se obtenha a vantagem económica imediatamente à custa do titular do direito à restituição.
Respondendo, ensina: “Não se alcança que a nossa lei imponha forçosamente uma solução quanto a este problema, muito delicado pela complexidade e número de hipóteses possíveis. E, assim, embora a doutrina que exige o carácter imediato do enriquecimento pareça ser, em princípio, de aceitar, a jurisprudência terá os movimentos livres para atender a uma ou outra situação em que essa exigência da deslocação patrimonial directa se mostre porventura excessiva conduzindo a soluções que choquem o comum sentimento de justiça”.
E alude, em nota de rodapé, ao artº 720º, nº 1 do Anteprojecto do Cód. Civil Vaz Serra, Anteprojecto, BMJ, nº 101, pág. 101. que estabelecia: “Para que a deslocação patrimonial entre empobrecido e enriquecido dê lugar a um direito resultante de enriquecimento (direito de enriquecimento) daquele contra este, é necessário que ela não tenha sido conseguida mediante passagem pelo património de um terceiro, devendo o enriquecimento e o empobrecimento resultar da mesma circunstância.”
Os Acs. do Sup. Trib. de Justiça de 10/11/1981 e de 14/05/1996 BMJ, nº 311, pág. 353 e CJ(STJ), IV, II, 71, respectivamente. referem que “em princípio, o enriquecimento tem de ser obtido imediatamente à custa do património do empobrecido”, impondo-se que “não haja um outro acto jurídico entre o acto gerador do prejuízo e a vantagem obtida pelo enriquecido”.
No caso “sub judice” há que ponderar que, de acordo com o nº 2 do artº 1212º do Cód. Civil, a construção realizada pela “A...” ficou imediatamente a ser propriedade da “D...”, decorrendo o prejuízo daquela, imediatamente, da falta de pagamento por parte desta e, mediatamente, da sua (da “D...”) declaração de falência, conjugada com a saída do prédio do acervo da massa falida, por força da sentença que reconheceu o direito da “C...” à separação e restituição do mesmo.
Ou seja, falta o indispensável nexo entre o enriquecimento e o suporte deste, não tendo a vantagem económica da “C...” sido obtida directamente à custa do prejuízo da “A...”, pois passou pelo património da “D...”, tendo-se interposto entre o acto gerador do prejuízo e a vantagem obtida pela enriquecida um outro acto jurídico.
Quanto a esta questão, ainda que com fundamentos não inteiramente coincidentes com os constantes da decisão da 1ª instância, entende-se ser a mesma de manter.
O que conduz à conclusão de que a apelação improcede.
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4. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em manter a decisão recorrida.
As custas são a cargo da recorrente.
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Coimbra,