Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
9/08.6TBSCD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SILVIA PIRES
Descritores: CONFLITO DE INTERESSES
SOCIEDADE
SÓCIO
IMPEDIMENTO DESSE SÓCIO DE VOTAR EM DELIBERAÇÕES QUE LHE DIGAM RESPEITO
DELIBERAÇÃO NEGATIVA TOMADA COM VOTO NULO
Data do Acordão: 02/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SANTA COMBA DÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTºS 251º DO CÓDIGO DAS SOCIAIS COMERCIAIS; E 294º DO C. CIV. .
Sumário: I – Um sócio que esteja em conflito de interesses com a sociedade está impedido de votar nas deliberações que lhe digam respeito, nos termos e para os efeitos previstos no artº 251º do C.S.C..

II – O exercício do voto por quem está legalmente impedido de o fazer tem como consequência a nulidade desse acto, nos termos do artº 294º do C. Civ..

III – Perante uma deliberação negativa em que foi decisivo o voto de quem estava impedido de participar na votação, deve ser considerada como tomada a deliberação positiva contrária, correspondente ao número de votos validamente expressos, se nessa reunião o sócio sobre o qual recaía o impedimento foi advertido de que estava impedido de votar.

Decisão Texto Integral:
Autor: A...

Ré: B...

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Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

O Autor intentou a presente acção com forma de processo sumário, pedindo que:
a) Sejam anuladas as deliberações sociais positivas de propositura de acção judicial de exclusão do Autor, de propositura de acção social de responsabili­dade civil contra o Autor, de nomeação do sócio C... como representante especial da sociedade Ré para propositura de tais acções, de designação como gerentes da Ré dos não sócios D... e E... e de destituição do Autor como gerente da sociedade Ré, constantes do instrumento de acta da reunião da assembleia geral da ré, de 5 de Dezembro de 2007;
b) Seja ordenado o cancelamento do Av.3 AP. 1/20071207, à inscrição 1, de cessação de funções de membro de órgão social, relativo à matrícula n.º 503350108 da Ré, na Conservatória do Registo Comercial de Carregal do Sal, bem como da inscrição 4 AP. 2/20071207, de designação dos gerentes D... e E...;
c) Sejam declarados anulados, por ilegais, os votos proferidos pelo sócio C..., em situação de impedimento legal, por conflito de interesses com a Ré, que conduziram às deliberações negativas ou de não aprovação dos pontos três a quatro, da ordem de trabalhos de fls. 2 a 16, do supra referido instrumento de acta de reunião da assembleia geral da Ré, de 5 de Dezem­bro de 2007, designadamente deliberar a instauração pela sociedade de uma acção judicial e procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua responsabilização e indemnização a favor da Ré, pelos danos a ela causados com a sua conduta enquanto sócio e gerente de facto e delibe­rar a instauração pela Ré de uma acção judicial com vista à exclusão judicial do mesmo sócio, face às consequências e resultados das suas condutas, a que se referem os pontos um, dois e três, para com a sociedade, de forma a serem consideradas aprovadas tais deliberações positivas, tomadas na mencionada assembleia geral com os votos do Autor e da sócia G...; ou, caso se entenda que o vício resultante da votação do sócio supra identificado é sancionado com nulidade e não com mera anulabilidade,
d) Serem tais votos, relativamente aos pontos três a quatro da Ordem de Trabalho, declarados nulos e, assim, eliminados e descontados no processo de votação formador das respectivas deliberações, considerando-se as mesmas tomadas e aprovadas apenas com os votos do Autor e da sócia G....
Para fundamentar a sua pretensão alegou, no que importa para a decisão do presente recurso, o seguinte:
- O Autor é sócio fundador da Ré, na qual é actualmente titular de uma quota, no valor nominal de € 11.469,95, representativa de 30,67% do capital social investido.
- Foi nomeado gerente pelo contrato social constitutivo da Ré, qualidade que mantém e foi objecto de inscrição na CRC de Carregal do Sal.
- Da Ré, é também sócio, C..., detentor de duas quotas no valor nominal de € 12.469,95, cada uma, representativas de 66,66% do capital social, as quais adquiriu, em 23 de Janeiro de 2002, por escritura pública lavrada a fls. 38 do Livro 56-E, do Cartório Notarial de Tondela.
- Bem como G..., titular de uma quota no valor nominal de € 1.000,00, representativa de 2,67% do capital social.
- São estes três identificados sócios os únicos detentores de quotas na Ré representativas do seu capital social (€ 37.409,85) e dos respectivos direitos de voto.
- O Autor, na qualidade de gerente da Ré, observando a antecedência mínima legal de 15 dias, procedeu à convocatória de todos os sócios, para uma Assembleia Geral, a ter lugar e a reunir em sessão extraordinária, no passado dia 5 de Dezembro de 2007, com a seguinte,
                      "ORDEM DE TRABALHOS
1 - Dar a conhecer e apreciar a revelada conduta do sócio C..., nesta qualidade e enquanto gerente de facto da sociedade, nos períodos compreendidos a partir de Fevereiro de 2002 até Outubro de 2007;
2 - Analisar quais as consequências decorrentes para a sociedade, parti­cularmente quanto aos prejuízos que lhe foram causados pela conduta do sócio C..., nesta qualidade e como seu gerente de facto, a que se refere o ponto 1;
3 - Deliberar sobre a instauração pela sociedade de uma acção judicial e eventual procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua responsabilização e indemnização a favor da sociedade pelos danos a esta causados com a sua conduta, quer enquanto sócio quer enquanto gerente de facto.
4 - Deliberar sobre a instauração pela sociedade de uma acção judicial com vista à exclusão judicial do sócio C..., face às consequências e resultados das suas condutas, a que se referem os pontos 1, 2 e 3 anteriores, para com a sociedade".
- Na respectiva reunião da Assembleia, após se terem apreciado os pontos 1 e 2 foi posto à votação o respectivo ponto 3, tendo antes o sócio C... sido chamado à atenção pela sócia G..., de que, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do art.º 251 ° do CSC, se encontrava impe­dido legalmente de votar, por estar em clara situação de conflito de interesses com a sociedade, relati­vamente à matéria da deliberação.
- Porém, apesar disso e de ter declarado aceitar a observação relativa ao impedimento de voto, afirmou " ... que, independentemente disso queria expressar o seu voto".
- Voto que, assim, exerceu e quis exercer, abusiva e ilegalmente e em sentido contrário aos dos votos então expressos do Autor e da sócia G..., de modo e para que não fossem aprovadas as deliberações em que os seus interesses conflituavam e conflituam com os da Ré.
- E o mesmo sucedeu com a deliberação respeitante ao ponto 4 da OT, apesar de novamente ter sido advertido que se encontrava também impedido de votar, agora de acordo com o estatuído na alínea d) do n.º 1 do citado art.º 251 ° do CSC.
- Verificou-se, assim, que o identificado sócio, relativamente às delibera­ções a que se referiam os pontos 3 e 4 da OT, produziu um voto nulo, uma vez que estava imperativamente impedido de o fazer, o que conduz à impossibilidade de validação e contagem de tais votos e, consequentemente, à aprovação das deliberações positivas tomadas com os votos do Autor e da sócia G..., relativamente aos pontos 3 e 4 da OT.
- Ou ao menos torna anuláveis as deliberações negativas, formadas à custa de tais votos ilegais, de modo a que, não sendo os mesmos contados, os demais votos no sentido de aprovação das respectivas propostas são bastantes para se formar a deliberação positiva de propositura da acção de indemnização, participação crimi­nal e acção de exclusão de sócio.
- Na verdade, ou se estará perante deliberação nula, por violação de dis­posição legal imperativa (citado art.º 294º do C. Civil), ou perante deliberação anulável, por violação de disposição legal, nos termos conjugados dos art.º 58°, n.º1, al. a) e 251°, n.º 1, als. b) e d), ambos do CSC.
- Aliás, a considerar-se como existente e tomada a deliberação negativa, relativa aos pontos 3 e 4 da OT, viciada com os votos do sócio C..., sempre a mesma seria anulável, na medida em que teria enquadramento na al. b) do n.º 1 do citado art.º 58° do CSC, vencida que estava a "prova de resistência, "in fine" nele contida.

A Ré não contestou.

Foi proferida decisão que julgou a acção nos seguintes termos:
Face a todo o exposto, nos termos das disposições legais supra indica­das, julga-se a acção parcialmente procedente e, em conformidade:      
1 - Declaram-se anuladas as deliberações sociais positivas de proposi­tura de acção judicial de exclusão do autor A..., de propositura de acção social de responsabilidade civil contra o autor, de nomea­ção do sócio Dr. C... como representante especial da sociedade ré para propositura de tais acções, de designação como gerentes da ré dos não sócios D... e E... e de destituição do Autor como gerente da sociedade Ré, constantes do instrumento de acta da reunião da assembleia geral da Ré, de 5 de Dezembro de 2007, registado no Livro n.º1, a fls.2, sob o n.º16, do ano 2007, do Cartório Notarial de Carregal do Sal, do Notário Dr. F..., introduzidas e votadas ilicitamente pelo sócio C...; 
2 - Ordena-se o cancelamento do Av.3 AP. 1/20071207, à inscrição 1, de cessação de funções de membro de órgão social, relativo à matrícula n.º 503350108 da Ré, na Conservatória do Registo Comercial de Carregal do Sal, bem como da inscrição 4 AP. 2/20071207, de designação dos gerentes D... e E...;
3 - Declaram-se anuladas as deliberações de não aprovação dos pontos três e quatro, da ordem de trabalhos de fls. 2 a 16, do instrumento de acta de reu­nião da assembleia geral da Ré, de 5 de Dezembro de 2007, designadamente delibe­rar a instauração pela sociedade de uma acção judicial e procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua respon­sabilização e indemnização a favor da Ré, pelos danos a ela causados com a sua conduta enquanto sócio e gerente de facto e deliberar a instauração pela Ré de uma acção judicial com vista à exclusão judicial do mesmo sócio, face às consequências e resultados das suas condutas, a que se referem os pontos um, dois e três, para com a sociedade.

                                             *

Inconformado com esta última parte da decisão dela recorreu o Autor, apresentando as seguintes conclusões:
[…]
Conclui pela procedência do recurso.

Não foram apresentadas contra-alegações.

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1. Do objecto do recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das ale­gações do recorrente, cumpre apreciar a seguinte questão:
O pedido de que sejam consideradas aprovadas as deliberações a que se referem os pontos 3 e 4 da ordem de trabalhos, tomadas na assembleia-geral de 5.12.07, com os votos do Autor e da sócia G..., deve ser julgado procedente?

                                             *

2. Os factos

Foram considerados provados os seguintes factos, por confissão tácita, com interesse para a decisão do recurso:
[…]
                                             *

3. O Direito aplicável

O Autor, além do mais, pediu que o Tribunal declarasse que a Assem­bleia Geral da Ré, reunida em 5 de Dezembro de 2007, deliberou aprovar as pro­postas cons­tantes dos pontos 3 e 4 da respectiva ordem de trabalhos, uma vez que o voto contra emitido pelo sócio C.... é nulo, por este se encontrar impe­dido de participar na votação.
A sentença recorrida considerou o voto deste sócio abusivo, tendo, com esse motivo, anulado as respectivas deliberações, não acolhendo, assim, a pretensão do Autor.
O Autor recorreu desta decisão por entender que o tribunal não deve anular as deliberações negativas aprovadas com votos ilegalmente proferidos, mas sim reconhecer o resultado positivo da votação sem esses votos.
As deliberações em causa respeitavam à proposta de instauração pela sociedade de uma acção judicial e eventual procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua responsabilização e indemnização a favor da sociedade pelos danos a esta causados com a sua conduta, quer enquanto sócio quer enquanto gerente de facto, e ainda de outra acção judicial com vista à exclusão judicial do mesmo sócio.
Votaram favoravelmente estas propostas o Autor e a sócia G..., os quais eram titulares de 33,34% do capital social, enquanto o sócioC..., que era titular de uma quota que representava 66,66 % do capital social, votou contra.
Tal como reconheceu a sentença recorrida, este sócio estava impedido de votar nessas deliberações, uma vez que se encontrava em situação de conflito de interesses com a sociedade, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 251º, do C.S.C., dado que tais matérias se incluem, respectivamente, nas alíneas b) e d) deste dispositivo.
O exercício do voto por quem está legalmente impedido de o fazer, tem como consequência a nulidade desse acto [1]. Na verdade, conceitualizando-se o voto como uma declaração de vontade, o seu exercício em situação em que a lei o proíbe, deve ser sancionado com a sua nulidade, nos termos do artigo 294º, do C.C..
Se a nulidade de um voto é habitualmente apontada como fundamento de anulabilidade das deliberações tomadas com esse voto, quando este foi decisivo para a sua aprovação [2], aplicando-se a doutrina do art.º 176º, nº 1, do C. Civil, prevista para as deliberações das associações, já quando está em causa uma deliberação negativa (não aprovação duma proposta), essa solução suscita as maiores reservas [3].
Com efeito, da anulação de uma deliberação negativa que contou de forma decisiva com um voto nulo, resulta um vazio deliberativo que só pode ser preenchido pela convocação de nova reunião da Assembleia Geral para se obter a aprovação daquela proposta que já teria sido aprovada se não tivesse sido conside­rado indevidamente um voto que era nulo. E não há a certeza que nesse novo proce­di­mento não se repita a emissão de voto pelo sócio que está impedido de votar, de forma a obstaculizar a aprovação de deliberações que lhe são desfavoráveis, podendo esta situação de impasse perpetuar-se duma forma inaceitável.
A solução parece dever encontrar-se na conversão da deliberação nega­tiva em deliberação positiva de sinal contrário, isto é aquela que teria sido consi­derada aprovada, caso não tivesse sido contabilizado o voto proibido por lei.
A esta solução tem sido apontado o inconveniente da deliberação positiva poder sofrer de outros vícios, nomeadamente substanciais, sem que o actual sistema de anulação das deliberações sociais assegurasse aos interessados, a possibilidade de impugnarem atempadamente as deliberações convertidas, atento o quase certo decurso do curto prazo de caducidade das acções anulatórias – art.º 59º, do C.S.C. [4].
Apesar de na doutrina alemã [5] terem sido adiantados mecanismos proces­suais para evitar este género de objecções, condicionando-se a procedência do pedido de conversão a uma consignação em acta duma espécie de protesto desse pedido, de forma a que este não pudesse constituir surpresa para os outros sócios, que poderiam desde logo impugnar preventivamente o resultado da deliberação positiva, face ao silêncio da nossa lei sobre esta questão não é possível defender de iure constituto a adopção de tais medidas.
Para superar aquelas objecções, na doutrina portuguesa, Raul Ventura defendeu que deveria ser considerada como tomada a deliberação que corresponder ao número de votos validamente expressos, não se contabilizando os votos emitidos por quem estava impedido de o fazer, não sendo pois, necessária qualquer acção de impugnação da deliberação negativa, nem a formulação de qualquer pedido consti­tutivo da correspondente deliberação positiva [6].
Deste modo, como refere Raul Ventura, “fica assim afastado o perigo da irrelevante anulação de sucessivas deliberações negativas, sem substituição pela deliberação positiva” e “fica também ressalvada a segurança jurídica posta em risco pela ausência de prazo de caducidade de acção declarativa” [7].
Nesta tese, para os efeitos que se revelassem necessários, tal deliberação deveria ser sempre considerada na sua versão positiva, mediante a invocação do circunstancialismo donde resulta a nulidade do voto que determinava a sua não aprovação, sem prejuízo da propositura de acção de simples apreciação destinada a reconhecer o sentido da votação realizada, tendo por finalidade o esclarecimento duma situação de incerteza.
Já Pinto Furtado [8] defende a admissibilidade e necessidade da propositura duma acção sujeita aos prazos de caducidade previstos no art.º 59º, do C.S.C., e às regras especiais sobre legitimidade passiva e caso julgado constantes dos art.º 60º, n.º 1, e 61º, n.º 1, do C.S.C., que cumulasse o pedido de anulação da deliberação, com o pedido de declaração da aprovação da deliberação positiva. Se esta “…é ela também anulável, caberá à demandada, para além de impugná-la na contestação, com os argumentos de facto e de direito que possa opor-lhe, arguir no mesmo articulado a sua anulabilidade, mediante excepção peremptória. Assim, relativa­mente ao “grave inconveniente” suscitado por Lobo Xavier à conversão pelo tribu­nal duma deliberação negativa em positiva, aponta a aplicação analógica do disposto no art.º 287º, n.º 2, do C. Civil, que permitirá a arguição de vícios da deliberação positiva na contestação apresentada pela sociedade demandada na acção de anulação da deliberação negativa e conversão desta em deliberação positiva.
Se é verdade que ambas as soluções propostas por estes dois autores, tri­lhando caminhos diversos, alcançam dois dos objectivos a que se propuseram – o afastamento do perigo da irrelevante anulação de sucessivas deliberações negativas e a tutela da segurança jurídica das deliberações sociais – verifica-se que nestas construções o direito dos sócios impugnarem a legalidade da deliberação positiva nem sempre ficará suficientemente acautelado nas situações em que a Assembleia e os sócios nela presentes não se tenham apercebido da existência do vício que deter­mina a nulidade de um voto decisivo.
Nestes casos a objecção colocada por Lobo Xavier mantém-se sem remé­dio eficaz.
Na verdade, apesar de nestas duas teses o prazo de caducidade para impugnar a deliberação positiva, se iniciar em tempos distintos [9], em qualquer uma das soluções, nas situações em que a Assembleia e os sócios nela presentes não se aperceberam da existência do vício que determina a nulidade de um voto decisivo,   tal prazo decorrerá sem que os sócios que se opunham à aprovação da deliberação positiva sintam a necessidade de proporem a respectiva acção de impugnação.
A deliberação negativa então tomada, apesar de viciada, tem uma aparên­cia de legalidade que dificilmente se poderá exigir uma reacção dos sócios que a votaram, prevenindo a hipótese da mesma vir a ser considerada com um sentido contrário (positivo), sendo certo que na acção de conversão da deliberação exigida pela tese de Furtado dos Santos, quem nela participa, como demandada, é a socie­dade e não os referidos sócios.
Contudo, neste caso concreto, provou-se que na reunião da Assembleia onde não foram aprovadas as propostas em causa, por causa do voto contrário do sócio maioritário C..., que estava impedido de o exercer, esse sócio foi alertado de que se encontrava impedido legalmente de votar, por estar em clara situação de conflito de interesses com a sociedade, relativamente à matéria das deliberações, tendo, apesar de ter declarado aceitar a sua situação de impedimento, votado.
Não há aqui qualquer aparência de legalidade na deliberação negativa tomada que justifique uma tutela da confiança.
Deste modo, não há necessidade de acautelar a posição do único sócio que manifestou a sua discordância relativamente ao conteúdo das propostas relativas às deliberações em causa, uma vez que ele não só foi advertido da ilegalidade do seu voto, como a reconheceu, pelo que a adopção, nesta situação concreta, das teses que defendem a admissão da deliberação positiva não tem quaisquer inconvenientes, reunindo todas as vantagens acima enunciadas.
Não assumindo a deliberação negativa uma aparência de legalidade, não parece necessária a sua conversão em positiva por sentença judicial, considerando-se desde logo aprovada a deliberação positiva pelos votos validamente expressos, preferindo-se a construção apresentada por Raul Ventura.
O pedido formulado deve, assim, ser encarado como um pedido de sim­ples apreciação.
A este pedido de simples apreciação, por identidade de razões, uma vez que tem por fundamento a nulidade de um voto e por objectivo indirecto a desconsi­deração duma “deliberação”, também devem ser aplicadas as regras especiais sobre legitimidade passiva e caso julgado constantes dos art.º 60º, n.º 1 e 61º, n.º 1, do C.S.C.
Assim, encarando-se o pedido do Autor como de simples apreciação duma situação de incerteza gerada pela circunstância do voto do sócio C... ter sido contabilizado de modo a considerarem-se não aprovadas duas propostas de deliberação, deve tal pedido ser julgado procedente, acolhendo-se a pretensão do Autor.
Sendo a nulidade dos votos mero fundamento da declaração judicial de aprovação daquelas propostas, não se justifica que integre a parte decisória, cons­tando já dos seus fundamentos.
Por estes motivos deve o recurso interposto ser julgado procedente, revo­gando-se parcialmente a sentença recorrida.

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4. Sumário

Nos termos do art.º 713º, n.º 7, do C.P.C., é o seguinte o sumário do pre­sente acórdão:
Perante uma deliberação negativa em que foi decisivo o voto de quem estava impedido de participar na votação, deve ser considerada como tomada a delibe­ração positiva contrária, correspon­dente ao número de votos validamente expressos, se nessa reunião o sócio sobre o qual recaía o impedi­mento foi advertido de que estava impedido de votar.

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Decisão
Pelo exposto:
- julga-se procedente o recurso interposto por A...
 e, em consequência,
- revoga-se a sentença recorrida na parte em que declarou “anuladas as deliberações de não aprovação dos pontos três e quatro, da ordem de trabalhos de fls.2 a 16, do instrumento de acta de reunião da assembleia geral da Ré, de 5 de Dezembro de 2007, designadamente deliberar a instauração pela sociedade de uma acção judicial e procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua responsabilização e indemnização a favor da Ré, pelos danos a ela causados com a sua conduta enquanto sócio e gerente de facto e deliberar a instauração pela Ré de uma acção judicial com vista à exclusão judicial do mesmo sócio, face às consequências e resultados das suas condutas, a que se referem os pontos um, dois e três, para com a sociedade”;
- e declara-se que na reunião da Assembleia Geral da Ré realizada em 5 de Dezembro de 2007 foi deliberada:
a) a instauração pela Ré de uma acção judicial e eventual procedimento criminal contra o sócio C..., com vista à sua respon­sabilização e indemnização a favor da Ré, pelos danos a esta causados com a sua conduta enquanto sócio e gerente de facto;
b) a instauração pela Ré de uma acção judicial com vista à exclusão judi­cial do sócio C..., face às consequências e resultados das suas condutas, a que se referem os pontos um, dois e três da convo­catória, para com a Ré.

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Custas do recurso pela Ré.

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                                                         Coimbra, 10 de Fevereiro de 2009.


[1] Neste sentido, Raul Ventura, em Sociedades por Quotas, vol. II, pág. 308, da ed. de 1989, da Almedina, e Brito Correia, em Direito Comercial. Deliberações dos sócios, vol. III, pág. 316-317, da ed. de 1995, da A.A.F.D.L..

[2] Neste sentido, Vasco Lobo Xavier, em Anulação de deliberação social e deliberações conexas, pág. 594-595, da ed. de 1975, da Atlântida Editora, Raul Ventura, na ob. cit., pág. 259-270, Moitinho de Almeida, em Anulação e suspensão de deliberações sociais, pág. 91-93, da ed. de 1983, da Coimbra Editora, e Brito Correia, na ob. e loc. cit..
   Carlos Olavo, em Impugnação das deliberações sociais, na C.J., Ano XIII, tomo 3, pág. 26, nas situações em que a Assembleia se apercebeu do vício existente, defende que as deliberações assim tomadas devem ser consideradas nulas.

[3] Estas reservas não impediram, contudo, o Acórdão do S.T.J. de 28-9-1995 (pub. no B.M.J. n.º 449, pág. 388), relatado por Joaquim de Matos, de considerar que as deliberações negativas tomadas com o voto de sócio impedido de o fazer seriam anuláveis, com o argumento de que nada na lei permitia efectuar qualquer distinção de regime entre deliberações negativas e positivas.

[4] Vide, suscitando estas objecções no direito anterior ao C.S.C., mas cuja pertinência se mantém face à legislação actual, Vasco Lobo Xavier, na ob. cit., pág. 330, nota 72.

[5] Consultem-se estas referências à doutrina alemã, em Vasco Lobo Xavier, na ob. e loc. cit. na nota anterior, em Raul Ventura, na ob. cit., pág. 272-273, e em Pinto Furtado, em Deliberações de sociedades comerciais, pág. 127, nota 135, da ed. de 2005, da Almedina.

[6] Ob. cit., pág. 273-274.

[7] Ob. cit., pág. 273-274.
[8] Na ob. cit., pág. 127-131.

[9] Para Raul Ventura, logo após a tomada da deliberação aparentemente negativa, e para Pinto Furtado, só após a propositura da necessária acção de conversão da deliberação negativa em positiva.