Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3207/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: HELDER ALMEIDA
Descritores: CERTIDÃO
FORÇA PROBATÓRIA
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
DIREITO DE PROPRIEDADE
AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA
REGISTO
INVENTÁRIO
Data do Acordão: 01/10/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE OURÉM
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 369º E 371º, 1311.º DO CÓDIGO CIVIL; ARTIGO 16º, AL. A)DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL; ARTIGO 498.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sumário: 1. Em processo de inventário, as certidões que lhe respeitam gozam de eficácia probatória plena apenas quanto a aspectos determinados do respectivo conteúdo e tramitação, seja, aqueles que, por serem objecto de realização ou de directa percepção pelos agentes judiciários competentes, são passíveis de nesses termos serem atestados ou confirmados.
2. Assim, tais peças fazem prova plena, v.g., de que no processo foi junta uma determinada relação de bens integrada por um certo e discriminado acervo, que se realizaram em datas concretas certas e especificadas diligências -v.g., juramento e declarações de cabeça-de-casal, conferência de interessados-, que foram proferidos determinados despachos, feitas adjudicações segundo um certo esquema, etc..

3. Não fazem prova de que determinadas afirmações vertidas ou verbalmente proferidas pelos interessados correspondem à verdade, que os bens por eles carreados –“maxime” de natureza móvel-, são efectivamente existentes, ou que tais bens têm realmente as características, propriedades e valores que lhes foram conferidos.

4. Nesta conformidade, o facto de no inventário por óbito da mãe dos autores duma acção de reivindicação ter sido relacionada e descrita – e mais tarde aformalada-, determinada verba, integrada, nos seus dizeres, por “uma barraca de madeira com seu chão”, nada implica que essa barraca tivesse tido efectivamente existência, que a tê-la pertencesse em propriedade ao acervo hereditário daquela e que tivesse a composição que ali lhe é outorgada (inclusão do respectivo chão).

5. No âmbito da acção de reivindicação a invocação apenas de um negócio translativo de propriedade, como a compra e venda, a doação ou a partilha, não bastam para integrar a respectiva causa de pedir –consubstanciada no facto jurídico de que deriva o direito real (art.º 498º, nº 2, 2ª parte, do CPC)-, porquanto tais negócios não são constitutivos desse direito- não criam o domínio-, apenas o transmitem.

6. A sucessão hereditária e partilha, titulada por certidão do referido inventário homologado por sentença transitada em julgado, não é título válido para a aquisição da propriedade do prédio pelos autores da acção de reivindicação, necessitando estes de reiterar tal aquisição também por usucapião.

7. Os documentos fiscais não têm por função garantir os elementos de identificação dos prédios descritos. A finalidade das inscrições matriciais é essencialmente de ordem fiscal, não tendo de modo algum potencialidades de atribuir o direito de propriedade sobre qualquer prédio.

8. Quando subjacente a uma inscrição registral esteve a apresentação de um documento falso –falsidade intelectual-, como uma Caderneta Predial, na qual se atestava, com base, em declarações inverídicas do réu marido, que o prédio era único e composto por duas partes, quando, na realidade, eram dois prédios distintos e autónomos, impõe-se concluir que o registo em apreço, por força do disposto no art.º 16º, al. a), último segmento, do Código do Registo Predial, enferma de nulidade e deve ser cancelado.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:


I – RELATÓRIO
1. A..., B... e mulher, C..., intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Ourém, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma sumária, contra D... e mulher, E.., alegando –no essencial-, que são donos e legítimos proprietários na proporção de metade para cada um de um barracão com o seu chão e logradouro sito em Olivais, Charneca, tendo-o herdado de sua mãe F....
Sobre tal barracão, por si e por interposta pessoa sempre praticaram actos materiais de posse, designadamente arrendando-o a terceiros e fazendo suas as rendas respectivas, colhendo os frutos de duas oliveiras que ali se encontravam plantadas.
Alegam ainda que no dia 22 de Julho de 1998 os RR. mandaram cortar as duas oliveiras bem como construíram um muro em torno do prédio por forma a incorporá-lo num outro de sua propriedade.
Deste modo, concluem pedindo que os RR. sejam condenados a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o dito prédio, restituindo-o à sua posse livre de pessoas e bens, e a pagar-lhes a quantia de 500.000$00 correspondente ao custo das oliveiras por eles cortadas.
Mais requerem seja ordenada a eliminação da área de 350 m2 do prédio dos RR., rectificando-se a respectiva área e registo.
Citados, os RR. apresentaram contestação, na qual –também em síntese-, impugnam em toda a linha aquela tese vertida pelos AA. no seu petitório petição, concluindo pela improcedência da acção.
Outrossim, deduzem pedido reconvencional, nele peticionando sejam os AA. condenados a reconhecer o direito de propriedade dos RR. sobre a parcela de terreno em disputa nos autos.
Em remate, suscitaram incidente de intervenção principal provocada da Junta de Freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias.
Os AA aduziram por seu turno resposta, concluindo, a final, como na petição inicial.
Tendo sido indeferido o incidente de intervenção suscitado pelos RR., sem reacção consequente por parte destes –não alegaram para o recurso de agravo interposto e admitido (fls. 187)-, seguiram os autos os seus normais trâmites, culminados com douta sentença na qual, julgando-se a acção improcedente, ao invés se fez em relação ao pedido reconvencional, condenando os AA. a reconhecer os RR. como legítimos proprietários do imóvel em causa.

2. Inconformados com o assim decidido, os AA. interpuseram o vertente recurso de apelação, cujas alegações encerram com as seguintes conclusões:
I- Na resposta aos quesitos, não foram analisadas criticamente as provas, nos termos dos artigos 653, 659 e 668 do C.P.C., dando origem a evidentes contradições que geram respostas erradas.
II -A sentença interpretou e aplicou erroneamente os arts. 371,372.,875 e 892. todos do C. Civil e artº 7 do C. R. Predial.
III - A aquisição de propriedade pelos AA., do prédio objecto dos autos, por sucessão hereditária e partilhas, titulada por certidão de inventário homologado por sentença e transitada em julgado é título válido, não necessitando de reiterar essa aquisição, também por usucapião.
IV- Não tendo sido invocada a falsidade deste título, não pode deixar de ser considerado título aquisitivo pelos AA . Tanto mais que, o Conservador do Registo Predial o considerou título válido para o registo deste prédio, sob o n° 02613/990422 a favor dos AA. –presunção de registo que invocaram a seu favor, nos termos do artº 7 do C. R. Predial. E não foi impugnado este registo.
V- O registo dos RR. é que foi impugnado e na verdade o registo predial é meramente declarativo e não constitutivo de direito e a presunção emanada do artº 7, é "tantum juris ", podendo ser ilidida por prova em contrário, que foi feita pelos AA..
VI - Assim, a anexação de dois prédio distintos (o prédio urbano dos RR. com 70 m2, com o prédio objecto dessa acção) 350 m2 a título de logradouro por mero requerimento de pedido de alteração de área nas Finanças, feita por alvedrio do Conservador do Registo Predial, sem apoio factual, não pode convertê-los em um único imóvel, quando como distintos foram considerados em escritura de compra e venda e inventário- neste sentido ver documento 1.
VII - Tendo provado os AA. por certidão fiscal e certidão do requerimento dirigido ao Conservador e confirmado pelos RR., de que o registo do prédio com 350 m2, efectuado pelos RR., não resultara da compra aos anteriores titulares da casa 1,507, que resultara sim por mero requerimento de alteração de área às Finanças, não tendo consequentemente título legítimo, fica afastada a presunção do seu registo.
VIII- Sendo certo que a aquisição de propriedade invocada pelos RR., foi a " compra" de 350 m2,feita à Junta de Freguesia, titulada apenas por um recibo ano de 1988, que não escritura pública, não é válida tal aquisição, por os imóveis só se transmitirem por escritura pública – (é nula por alta de forma).
IX- Sendo certo, que no caso concreto, os RR. nem sequer provaram que o prédio pertencia à Junta de Freguesia.
A escritura de justificação da Junta de Freguesia, mencionada pelos RR., justifica vários baldios, com áreas de 1, 5 e 40 hectares e não têm qualquer semelhança com o concreto baldio de apenas 350 m2, nos Olivais, rodeado de 3 estradas e a casa dos RR. no centro da povoação e perfeitamente identificado na planta topográfica-junta com a p.i.
X- Se o terreno é propriedade dos RR. pela aquisição à Junta de Freguesia, só pode dizer-se que não é título translativo do domínio o registo de transmissão de um imóvel, quando não provém do legítimo proprietário, não podendo a posse daí derivada, considerar-se titulada.

3. Os RR. apresentaram por sua vez contra-alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Colhidos que se mostram os competentes vistos legais, cumpre decidir.

II - FACTOS
Na douta sentença foi vertida, como provada, a seguinte factualidade:
1. Dou por integralmente reproduzido o teor da certidão junta a fls. 28 ( al. A dos Factos Assentes ).
2. Pela apresentação 13/9306714 encontra-se registada a favor de D... casado com E..., a aquisição, por compra a António Novo de Oliveira e mulher Ana dos Reis da Silva Oliveira ( de ¼ ) e a Manuel Ribeiro da Silva e Isabel Augusta Pereira ( de ¾ ) do prédio urbano sito em Vilar dos Prazeres, composto de casa de rés-do-chão e cave ampla destinada a arrecadação, com a frente voltada ao poente, com 70 m2 e logradouro com 350 m2, a confrontar do norte e nascente com estrada nacional, do sul com serventia e poente com baldio, inscrito na matriz respectiva sob o artigos 1507 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 01.025/930614 da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias ( al. B dos Factos Assentes ).
3. Encontra-se inscrito sob o artigo 10.045 rústico da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias um terreno onde se encontra uma barraca de madeira, situado nos Olivais, a confrontar do norte, nascente, sul e poente com baldio, com a área de 800 m2, figurando como titulares do rendimento B... e A..., na proporção de ½ cada ( al. C dos Factos Assentes ).
4. B... e C... contraíram matrimónio católico em 20.06.1982 com convenção antenupcial, outorgada no Cartório Notarial de Torres Novas, em que convencionaram o regime da comunhão geral de bens ( al. D dos Factos Assentes ).
5. A partir de data não concretamente apurada Joaquim Ferreira Júnior cedeu a diversas pessoas a utilização, mediante o pagamento mensal de uma importância monetária de uma barraca de madeira existente num terreno no sítio de Olivais, limite do lugar de Charneca ( resposta restritiva dada ao quesito 1.º ).
6. A utilização da barraca foi cedida a João de Oliveira Oleiro o qual aí levou a cabo a actividade de carpintaria ( resposta restritiva dada ao quesito 3.º ).
7. Depois foi arrendada a Custódio de Oliveira Reis, que aí exerceu a actividade de ferreiro, tendo vários trabalhadores a seu cargo entre os quais José Cruz ( resposta dada ao quesito 4.º ).
8. Posteriormente foi arrendada a Manuel Cigano, residente em Riachos ( resposta dada ao quesito 5.º ).
9. E em seguida a Luís dos Santos Carvalheiro, que aí exerceu a actividade de sapateiro ( resposta dada ao quesito 6.º ).
10. Foram pagas a Joaquim Ferreira Júnior rendas pela utilização da barraca ( resposta restritiva dada ao quesito 7.º ).
11. A... apanhou azeitona de oliveiras sitas no terreno circundante à barraca ( resposta restritiva dada ao quesito 9.º ).
12. Maria dos Anjos apanhou azeitona de azeitona de oliveiras sitas no terreno circundante à barraca ( resposta restritiva dada ao quesito 10.º ).
13. Há cerca de 26 anos, numa parcela de terreno baldio, no sítio dos Olivais, limite do lugar de Charneca, freguesia de Ourém existiu uma barraca de madeira ( resposta dada ao quesito 17.º ).
14. A qual foi construída no local na sequência de um contrato de arrendamento celebrado entre a Junta de Freguesia e Evaristo Rodrigues de Faria, que aí estabeleceu uma oficina de ferreiro ( resposta dada ao quesito 19.º ).
15. Ficando o pai dos Autores como arrendatário do terreno quando Evaristo Rodrigues de Faria se ausentou para Angola ( resposta dada ao quesito 20.º ).
16. Em 4 de Julho de 1988 a Junta de Freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias vendeu a D... uma parcela do baldio dos Olivais, com a área de 350 m2, pelo preço de 350.000$00 ( resposta dada ao quesito 22.º ).
17. Na sequência dessa aquisição os Réus construíram muros de suporte de terras e efectuaram uma construção destinada a arrecadação ( resposta dada ao quesito 23.º ).
18. À vista de todos ( resposta dada ao quesito 24.º ).
19. E sem qualquer oposição ( resposta dada ao quesito 25.º ).
20. Passando tal parcela de terreno a constituir o logradouro da sua habitação ( resposta dada ao quesito 26.º ).


III – DIREITO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód. Proc. Civil, o âmbito do recurso é fixado em função das conclusões das alegações dos Recorrentes, circunscrevendo-se, exceptuadas as de conhecimento oficioso, às questões aí equacionadas.
Assim, e tendo em mente as sintéticas proposições acima transcritas, cuidemos das questões em tal quadro equacionadas.

2. Os AA. e aqui Recorrentes, em ordem a conseguir a revogação da douta sentença recorrida, começam, antes de mais, por impugnar a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo terem sido objecto de indevido julgamento alguns dos pontos constantes da Base Instrutória.

2.2. Assim, e desde logo, sustentam terem sido incorrectamente julgados os quesitos 17º, 19º e 20º.
Esses quesitos achavam-se respectivamente redigidos nos seguintes termos:
17º - Há cerca de 26 anos, numa parcela de terreno baldio, no sítio dos Olivais, limite o lugar da Charneca, freguesia de Ourém, existiu uma barraca em madeira?
19º - A qual foi construída no local na sequência de um contrato de arrendamento celebrado entre a Junta de Freguesia e Evaristo Rodrigues de Faria, que aí estabeleceu uma oficina de ferreiro?
20º - Ficando o pai dos Autores como arrendatário do terreno quando Evaristo Rodrigues de Faria se ausentou para Angola?
A todos estes quesitos foi dada a resposta de “Provado”.
Discordam de tal os Recorrentes sustentando a resposta inversa, “Não provado”.

2.2.1. Aduzem, antes de mais, que na sua petição inicial eles, AA., juntaram um documento –recibo- (doc.l0)- no qual, em 19/6/1946, o dito Evaristo Rodrigues de Faria declara ter recebido de Joaquim Ferreira Júnior (pai dos AA.) a quantia de três mil escudos, referente ao pagamento total da compra, “a minha barraca dos Olivais que lhe vendi“. Ora –mais dizem-, sobre este documento, o RR., na contestação, não impugnaram a veracidade do respectivo conteúdo.
Sem quebra do muito respeito, não têm razão.
Com efeito, analisados os termos do referido documento, constatamos que o mesmo, salvo sempre melhor opinativo, em nada colide com o conteúdo das respostas em crise.
Na verdade, coisa alguma impede, sendo até compatível com os termos em que se acha configurada a lide, que não obstante o Evaristo Rodrigues de Faria ter feito venda da barraca ao pai dos AA. -conforme emerge do dito documento-, tal barraca tenha sido por aquele erigida em terreno não próprio, mas tomado de arrendamento, e, portanto, que tal venda haja apenas abrangido a edificação em si e não também o solo da respectiva implantação.
Ora, é precisamente tal realidade que dessas respostas deflui, pelo que, mercê disso, nenhuma alteração se justifica, por via do meio documental em apreço, nelas operar.
Nesta parte, pois, a douta objecção recursória naufraga.

2.2.2. Argumentam depois os Recorrentes que no Inventário Obrigatório nº 8/48, instaurado por óbito de F... (que ocorreu em 9/2/1948), mulher do referido Joaquim Ferreira Júnior, foi relacionada, como verba nº 11, “uma barraca de madeira, com o seu chão, em baldio, no sítio dos Olivais, limite do Lugar de Charneca, omissa na respectiva matriz e avaliada em dois mil escudos.”
Esta verba, acrescentam, foi adjudicada em partes iguais aos AA. e a certidão do respectivo inventário, constitutiva de documento autêntico, tendo sido junta aos autos, não foi impugnada pelos RR..
Como assim –concluem os Recorrentes-, responder aos referidos quesitos, como ora se contesta, que o dito Evaristo Rodrigues de Faria era mero arrendatário do terreno e que o pai dos AA. ficou também nessa qualidade quando aquele se ausentou para Angola, é fazer, indevidamente, tábua rasa desse documento.
Uma vez mais, pensamos não lhes assistir razão.
Antes de mais, não corresponde à realidade que o conteúdo da certidão em presença não tenha sido impugnado pelos RR., bastando para assim concluir atentar na letra do art.º 1º da p.i. em face da contestação na sua generalidade, e, em especial, no art.º 54º desta, onde se impugna o teor daquele art.º 1º -no qual por sua vez se refere a matéria do documento em foco e para ele expressamente se remete-, bem como nos arts. 34º -“Ficou portanto a ser arrendatário (o pai dos AA.) do terreno e proprietário da barraca”- e 35º -“Mesmo assim, o terreno arrendado pela Junta, limitava-se exclusivamente àquele ocupado pela barraca, escassos 20 m2” do mesmo articulado de defesa.
Sem embargo, é certo que os RR. não contestaram a genuinidade do documento.
Assim sendo, por provada tem de se ter a sua autenticidade, a sua força probatória formal.
No tocante à força probatória material –correspondência dos factos nele mencionados com a realidade-, em face daquela posição dos RR. já o mesmo, porém, se não poderá dizer.
Com efeito, e tal como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 17-1-78, in Bol. nº 273º-195, a força probatória dos documentos autênticos mede-se pelos limites da competência ou da actividade legal em que são exarados.
Aplicando esta doutrina aos processos de inventário, temos que os seus termos e as certidões que lhe respeitam gozam de eficácia probatória plena apenas quanto a aspectos determinados do respectivo conteúdo e tramitação, seja, aqueles que, por serem objecto de realização ou de directa percepção pelos agentes judiciários competentes, são passíveis de nesses termos serem atestados ou confirmados. No fundo, o que se passa com qualquer autoridade pública, de conformidade com o estatuído nos arts. 369º e 371º, ambos do Cód. Civil (ao qual pertencem os demais preceitos a citar sem menção de origem).
Assim, tais peças fazem prova plena, v.g., de que no processo foi junta uma determinada relação de bens integrada por um certo e discriminado acervo, que se realizaram em datas concretas certas e especificadas diligências -v.g., juramento e declarações de cabeça-de-casal, conferência de interessados-, que foram proferidos determinados despachos, feitas adjudicações segundo um certo esquema, etc..
Não fazem porém, e de igual modo, prova de que determinadas afirmações vertidas ou verbalmente proferidas pelos interessados correspondem à verdade, que os bens por eles carreados –“maxime” de natureza móvel-, são efectivamente existentes, enfim, que tais bens têm realmente as características, propriedades, valores, etc, que lhes foram conferidos.
Adaptando a lição de A. Varela, in Manual de Proc. Civil, 2ª ed., C. Editora, pág. 522, a zona dos factos do foro interno dos interessados ou de factos exteriores, não ocorridos no âmbito do tribunal (do processo) e perante os ditos agentes judiciários, não podendo ser objecto das percepções destes, não podem também e por igual ser objecto de documentação eivada dessa especial força probatória.
Deste modo, e por isso que os documentos emitidos pelas conservatórias de registo predial ou pelos serviços fiscais não gozam de presunção de verdade material no que tange aos elementos físicos dos prédios, respectiva formação ou composição, confrontações, etc. –i. a., cfr. Ac. do S.T.J. de 17-6-97, in Col./STJ, II, pág. 126 e Ac. desta Relação de 9-3-99, in Col., II, pág. 15-, também, e por identidade ou maioria de razão, as peças do processo de inventário elaboradas com fundamento em tais documentos, como são as relações de bens –e eram, antes da respectiva abolição, as descrições-, não beneficiam desse mesmo relevo probatório.
Nesta conformidade, e volvendo ao caso dos autos, pese o facto de no inventário por óbito da mãe dos AA. ter sido relacionada e descrita – e mais tarde aformalada-, aquela verba nº 11, integrada, nos seus dizeres, por “uma barraca de madeira com seu chão”, nada forçosa e inelutavelmente implica que essa barraca tivesse tido efectivamente existência, que a tê-la pertencesse em propriedade ao acervo hereditário daquela e, ainda a assim ser, que tivesse a composição que ali lhe é outorgada (inclusão do respectivo chão).
Quer dizer, no que a esses descritivos elementos concerne, a certidão em apreço surge-nos apenas com eficácia probatória relativa, que o mesmo é dizer, sujeita à livre apreciação do julgador e, portanto, ao confronto com outros meios probatórios –art.º 366º.
Ora, como resulta dos autos, em sede instrutória foram, além do mais, produzidos depoimentos testemunhais, os quais, como outrossim se infere da motivação ao julgamento fáctico, contribuíram para a formação da convicção do Exmº Julgador.
Ignorando nós qual o teor de tais depoimentos, na medida em que não foram alvo de qualquer registo, magnetofónico ou outro, inviável se nos torna saber se a credibilidade a conferir ao teor da certidão em análise foi ou não devidamente aferida.
Como assim, e presente o disposto no art.º 712º, nº 1, al. b), do CPC, inviável nos é também alterar, com fundamento no elemento documental em apreço, as respostas aos quesitos em consideração.

2.2.3. Ainda e adversar as respostas aos ora referenciados quesitos, aduzem os Recorrentes que o terreno em causa foi inscrito na matriz, tendo-lhe sido atribuído o artigo rústico nº 10.045, por causa e na data da Relação de Bens do inventário, o que era obrigatório, tendo até sido objecto de avaliação precisamente por estar omisso.
Como assim, e constando desse artigo matricial a menção de “terreno onde se encontra uma barraca”, pretendem os Recorrentes que a certidão de teor de tal artigo comprova, iniludivelmente, não só a existência do prédio com tal composição –terreno e barraca-, mas também a sua pertença, primeiramente ao pai dos AA e, depois, na sequência da sobredita adjudicação, a estes últimos.
E daí a impossibilidade das ditas respostas.
Como em parte já decorre da nossa anterior exposição, uma vez mais falece razão aos Recorrentes.
Na verdade, e tal como ali referimos, os documentos fiscais não têm por função garantir os elementos de identificação dos prédios descritos. Nem, outrossim, a titularidade de direitos sobre os mesmos. Como se sentenciou no Ac. do S.T.J. de 11-5-95, Col./STJ, II, pág. 76, “... a finalidade das inscrições matriciais é essencialmente de ordem fiscal, não tendo de modo algum potencialidades de atribuir o direito de propriedade sobre qualquer prédio.”
Nestes termos, também a certidão fiscal em apreço e respectiva inscrição matricial não impunham, forçosamente, pronunciamento diverso do consubstanciado nas sobreditas respostas.
Respostas essas que, assim, e tendo em mente tudo o antes expendido, têm de permanecer inalteradas.

2.3. Prosseguindo, os Recorrentes insurgem-se contra a resposta positiva conferida pelo Tribunal “a quo” ao quesito 22º.
Neste quesito, perguntava-se se “Em 4 de Julho de 1988 a Junta de Freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias vendeu a D... [o R.], uma parcela do baldio dos Olivais, com a área de 350 m2, pelo preço de 350.000$00”.
Sustentam os Recorrentes que a resposta a este quesito só podia ser “Não provado”, dada a inexistência de escritura pública e apenas de um mero papel-recibo da Junta de Freguesia a documentar tal alegado negócio.
Ressalvando sempre o muito respeito, pensamos não assistir, uma vez mais, razão aos Recorrentes.
Sem embargo, é certo que respeitando esse negócio celebrado entre o R. e a Junta de Freguesia a um bem imóvel, por força do disposto no art.º 875º, estava o mesmo sujeito à correspondente redução a escritura pública. E não tendo esta formalidade sido observada, o negócio enferma de nulidade –art.º 220º do mesmo Diploma.
Por outro lado, e frente ao disposto no art.º 364º, nº 1, não podia nem pode o contrato ser comprovado, que não por essa solene forma exigida, ou outra de superior valor probatório. Constitui, pois, esse reclamado instrumento notarial, “formalidade ad substantiam”.
E assim sendo, como é, na linha do que propugnam os Recorrentes, jamais o ventilado contrato, tendo por objecto essa parcela de terreno, poderia ter sido dado como provado com base nesse simples documento (Guia de Receita-Eventual) emitido pela Junta de Freguesia, e constante de fls. 56 dos autos, bem como –ao que é possível inferir da douta motivação à decisão sobre a matéria de facto-, em depoimentos testemunhais.
Só que, se bem pensamos, estas considerações apenas relevam se nos nortearmos por um enfoque do contrato a partir de um plano estritamente jurídico, como meio técnico válido e eficaz, nos termos dos arts. 874º e ss, de transferência e aquisição de direitos e correspectivas obrigações. Não já se tivermos apenas em vista a sua realidade material, o facto que efectiva -e por isso inegavelmente- aconteceu, sem que no entanto, indevidamente abstraindo das exigências legais, lhe outorguemos o carácter e os efeitos próprios de um verdadeiro e regular contrato de compra e venda. Nesta linha –e a título meramente exemplificativo-, quadra-se-nos referir o caso versado no Ac. do S.T.J. de 26.4.94, in Col./STJ, II, pág. 63, no qual se houve como verificada uma doação de imóvel meramente verbal e, portanto, não constante de documento “ad substanciam”.
Destarte, e com a ressalva aludida –repetimos, ter apenas em vista a simples e objectiva realidade de facto ocorrida-, pensamos que nada obsta à resposta em crise que, como tal, mantemos intocada.

2.4. Por fim, atacam ainda Recorrentes a resposta –também simplesmente afirmativa-, deferida ao quesito 26º.
Neste quesito, e em seguimento do quesito 23º -com o seguinte teor: “Na sequência dessa aquisição os RR. construíram muros de suporte de terras e efectuaram uma construção destinada a arrecadação?”-, indagava-se : “E sem qualquer oposição?”.
Defendem os Recorrentes que tal pronunciamento só podia ser de sentido negativo, na medida em que consta do processo certidão dos autos de Embargo de Obra Nova, instaurados pelos mesmos contra os RR./Recorridos, quando estes iniciaram a construção dos ali reportados muros de suporte e arrecadação. Ora –observam os Recorrentes-, não é possível configurar-se ao caso melhor oposição.
Ressalvando sempre o devido respeito, pensamos que nesta parte assiste, em alguma medida, razão aos Recorrentes.
Com efeito, resulta do doc. junto a fls. 291 e ss que os aqui Recorrentes, em 22-6-89, no âmbito dos autos de Embargo de Obra Nova nº 51/89, do Tribunal de Vila Nova de Ourém, requereram o embargo dos trabalhos de construção que os ora Recorridos levavam a efeito no terreno objecto do litígio em apreço. Em deferimento dessa pretensão, por Auto de 6-7-89, foram tais trabalhos efectivamente suspensos, consistindo então numa terraplanagem e na edificação de um muro de suporte (fls.295).
Nesta conformidade, justificava-se a emissão de um pronunciamento restritivo ao referido quesito, pronunciamento para o qual ora alteramos a dita resposta, qual seja: “Provado até 22-6-89, data em que os AA. requereram o embargo judicial de tais trabalhos.”
Deste modo, a douta objecção ora apreciada logra parcial vitória.

3. Frente a tudo o exposto, e uma vez que nenhuma outra censura é desferida contra o julgamento fáctico, temos que a matéria a considerar em vista da decisão da causa se traduz ,ponto por ponto, naquela vertida na douta sentença e acima transcrita, excepção feita ao Facto 19), o qual, em virtude dessa alteração introduzida na resposta ao quesito 25º, passará a ter o conteúdo de tal alteração decorrente.
A mais desta alteração, e nos termos do art.º 659º, nº 3, do CPC, terá ainda de ser aditado a esse elenco factual a matéria emergente da certidão extraída do predito Inventário Obrigatório nº 8/48, referente à mãe dos AA..
Com efeito, e tal como antes referimos sob o item 2.2.2., a certidão extraída daquele processo, e junta aos autos a fls. 7 e ss, no tocante à autenticidade do seu contudo material não foi posta em crise, mediante a dedução pelos RR. da respectiva falsidade.
De tal sorte, impõe-se a adicional elaboração de um outro facto com esse conteúdo, que designaremos por Facto 21, com o teor que segue:
- Nos autos de Inventário Obrigatório nº 8/48, do Tribunal Judicial de Ourém, instaurados por óbito de F..., foi descrito como verba nº 11, e posteriormente adjudicado aos AA., na proporção de ½ para cada um, mediante sentença devidamente transitada em julgado, um bem consistente em “Uma barraca de madeira com seu chão, em baldio, no sítio dos Olivais, limite do lugar da Charneca, dita freguesia de Ourém, que confronta de todos os lados com baldio, não descrita na Conservatória e omissa na respectiva matriz, avaliada em dois mil escudos.”
Para além deste, impõe-se ainda a adição –como Facto 22)-, da matéria constante do predito doc. de fls. 291 e ss (Embargo de Obra Nova, versado no item 2.4.).
E bem assim –como Facto 23)-, da matéria constante do doc. de fls.94 a 96, pelas razões que ao deante, sob o item 4.2., devidamente se poderão aquilatar.

4. Definido o material factológico a enquadrar juridicamente, cuidemos então das demais questões suscitadas pelos Recorrentes.

4.1. Defendem os mesmos que a sucessão heriditária e partilha, titulada por certidão do referido Inventário homologado por sentença transitada em julgado, é título válido para a aquisição da propriedade do prédio dos autos pelos AA., não necessitando estes, portanto, de reiterar tal aquisição também por usucapião.
Com efeito -acrescentam-, não tendo sido invocada a falsidade do título, não pode ele deixar de ser considerado título aquisitivo, tanto mais que o Conservador do Registo Predial assim o considerou para o registo do prédio, sob o nº 2613/990422, a favor dos AA., conferindo-lhes assim a presunção que invocaram a seu favor, nos termos do art.º 7º do Cód. Reg. Predial, sendo que esse registo também não foi impugnado.
Que dizer? Vejamos.
Não oferece qualquer dúvida que a presente acção se configura como uma acção de reivindicação. Na verdade, e tal como da legal caracterização de tal acção -efectuada no nº 1, do art.º 311º-, decorre, os AA. deduziram nela dois pedidos, um principal –reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio identificado no art.º 1º da p.i. (pronuntiatio), e outro secundário ou consequência deste –a restituição do mesmo ao seu poder (condemnatio).
De acordo com as regras do ónus da prova, cabia aos AA. provar esse seu invocado direito de propriedade e ,ainda, que os RR. se achavam na posse ou detenção do imóvel.
Todavia, é sabido que no âmbito da acção em presença, a invocação apenas de um negócio translativo de propriedade, como a compra e venda, a doação ou a partilha, não bastam para integrar a respectiva causa de pedir –consubstanciada no facto jurídico de que deriva o direito real (art.º 498º, nº 2, 2ª parte, do CPC)-, porquanto tais negócios não são constitutivos desse direito- não criam o domínio-, apenas o transmitem. E assim, por força do conhecido princípio pontificante em sede da aquisição derivada, de que ninguém pode transmitir mais direitos do que aqueles de que é titular –“nemo plus iuris ad alium tranferre potest quam ipse habet”.
De tal sorte, o reivindicante, a não ser beneficiado por uma presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior.
Neste sentido se vêm orientando os autores, desde antes do Código Civil de Seabra, passando por este e no âmbito do actual.
Sem embargo, e como referimos, satisfaz tal invocação de domínio, o reivindicante declarar-se dono e proprietário do prédio reivindicado, juntar certidão do registo predial em seu nome e dizer que o prédio lhe adveio por transmissão –cfr. Ac. do STJ de 29-10-74, in Bol. nº 240º, pág. 220. Com efeito, a inscrição tabular da aquisição a seu favor, faz presumir que o direito registado lhe pertence, nos termos do art.º 7º do Cód. Reg. Predial, e quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz –art.º 350º, nº 1.
Ora, e volvendo ao caso dos autos, perante a douta alegação recursória parece ser entendimento dos Recorrentes terem eles deduzido na acção dois fundamentos a alicerçar o seu reclamado direito sobre o prédio, a saber, aquisição sucessória em sede do inventário por óbito de sua mãe e presunção decorrente do registo predial.
Quanto a este último fundamento, porém, não corresponde à realidade que o mesmo tenha sido invocado a título de “causa petendi” da sua pretensão reivindicativa.
Basta para tanto analisar a douta petição inicial –e até mesmo o subsequente articulado de resposta-, para de imediato se concluir que os AA./Recorrentes jamais filiaram a acção em qualquer presunção emergente de inscrição registal. Notadamente, naquela efectuada a seu favor, a respeito do prédio com o nº 10.045 de matriz, sob o nº 02.613/990422, conforme certidão de fls. 116 a 117 vº. De resto, e como decorre daquele número de registo, tal inscrição ainda nem sequer havia sido requerida e portanto efectuada à data da apresentação de qualquer dos ditos articulados (20-10-98 e 12-1-99).
E assim sendo, inviável era aos AA. invocar tal inscrição a fundar a sua pretensão, sendo também certo que ulteriormente eles não lançaram mão de eventual articulado superveniente, em ordem a, de modo que fosse, fazer valer essa inscrição entretanto obtida –cfr. arts. 506º, 507º e 663º, todos do CPC –por todos, vd. Ac. STJ de 3-11-82, in Bol. nº 321º, pág. 378. E por isso, nenhuma referência foi a respeito dessa inscrição levada ao quadro dos factos provados, dada a sua irrelevância para decisão da causa, tal ela se apresenta configurada.
Neste termos, resta apenas aquele outro fundamento que, conforme os Recorrentes sustentam, é bastante para alicerçar a sua aquisição sobre o terreno reivindicado e, logo, o respectivo pedido.
Assistir-lhe-á razão?
Como deflui da nossa anterior exposição, pensamos que não.
Na verdade, e consoante então referimos, invocando o reivindicante como título do seu direito uma forma de aquisição derivada, como é a partilha em inventário, o mesmo, por força do princípio “nemo plus iuris...” não se poderá quedar por aí, antes tendo de alegar e demonstrar a cadeia de sucessivas aquisições dos seus antecessores no domínio até chegar ao adquirente originário. Como escrevem Pires de Lima e A. Varela, in Anotado, Vol. III, C. Editora, pág. 115, “é preciso provar que o direito já existia no transmitente (dominium auctoris)”.
Ora, e tal como o Mm.º Juiz bem ponderou na sua douta sentença, da matéria provada –Factos 14) e 15)-, resulta que o negócio jurídico que esteve na base da construção da barraca, posteriormente transmitida para o pai dos AA., foi um contrato de arrendamento celebrado entre a Junta de Freguesia e Evaristo Rodrigues de Faria, construtor da mesma e que nela estabeleceu uma oficina de ferreiro. Assim, este último, ao transferi-la para aquele progenitor, apenas transferiu, considerando o terreno de implantação da dita barraca, o respectivo direito ao arrendamento, conforme dimana daquele Facto 15).
Assim sendo, e uma vez mais de harmonia com o que o Mm.º Juiz escreveu na dita peça processual, da adjudicação efectuada favor dos AA., no quadro do inventario por óbito de sua mãe e esposa daquele, nada mais poderiam os mesmos adquirir que o direito à fruição da barraca. Na verdade, apenas este fazia parte do acervo em partilha, e não o direito de propriedade sobre o terreno.
E nesta linha, jamais tal aquisição e o título dela fundante poderiam, “ipso facto”, constituir os AA. na situação de titulares desse mesmo direito.
E nem mesmo –diga-se ainda-, a usucapião que os AA./Recorrentes, pese agora a posição em sentido contrário por eles manifestada na vertente alegação de recurso, também invocaram na sua douta petição inicial a alicerçar o arrogado direito sobre o terreno –vd. arts. 6º e ss desse articulado, maxime art.º 17º.
As razões para a ora afirmada falência no tocante a esse fundamento constam, porém, de forma cabal e em termos que nos merecem absoluta concordância na douta sentença ora em recurso, pelo que, em ordem a evitar inúteis repetições, e dado que os AA./Recorrentes a tal respeito nada controvertem, para elas sem mais remetemos, fazendo uso do disposto no art.º 713º, nº 5, do CPC.
Neste termos, e em suma, os pedidos deduzidos pelos AA. nas als. b) e c) do seu douto petitório são improcedentes, pelo que no que a eles tange, a douta decisão em crise terá de ser confirmada.

4.2. Todavia, a par dos referidos pedidos, os AA. peticionaram também, como vimos, a eliminação da área de 350 m2 do prédio dos RR. e o cancelamento do correspondente registo em nome destes.
Ora, foi precisamente com fundamento na existência e conteúdo de tal registo que na dita sentença se deu ainda, e diferentemente, como procedente o pedido reconvencional deduzido pelos RR. e aqui Recorridos.
Assim, importa prosseguir na análise e apreciação das questões suscitadas pelos AA./Recorrentes na vertente apelação, visando justamente infirmar tal registo e, logo, a procedência conferida, com base nele, ao dito pedido reconvencional.

A tal propósito, sustentam os Recorrentes que, tendo provado por certidão fiscal e certidão do requerimento dirigido ao Conservador do Registo Predial, factos confirmados pelos RR., que o registo do prédio com 350 m2, efectuado por estes últimos, não resultara da compra aos anteriores titulares da casa (constante do art.º matricial nº 1507), mas antes e apenas de mero requerimento de alteração de área formulada junto das Finanças, não existindo consequentemente título legítimo, afastada fica a presunção ínsita a tal registo.
Com efeito- mais alegam-, a anexação de dois prédios distintos –o prédio urbano dos RR. (a dita casa) com 70 m2, e o parcela objecto desta acção com 350 m2, a título de logradouro-, por esse mero pedido de alteração de área nas Finanças, não pode convertê-los, em um único imóvel, sendo assim que o registo foi operado pelo dito Conservador sem qualquer apoio factual e apenas alvedrio seu.
Que dizer? Vejamos uma vez mais.

Da matéria provada –Facto 2)-, resulta que “pela apresentação 13/9306714 encontra-se registada a favor de D... casado com E..., a aquisição, por compra a António Novo de Oliveira e mulher Ana dos Reis da Silva Oliveira (de ¼ ) e a Manuel Ribeiro da Silva e Isabel Augusta Pereira ( de ¾ ) do prédio urbano sito em Vilar dos Prazeres, composto de casa de rés-do-chão e cave ampla destinada a arrecadação, com a frente voltada ao poente, com 70 m2 e logradouro com 350 m2, a confrontar do norte e nascente com estrada nacional, do sul com serventia e poente com baldio, inscrito na matriz respectiva sob o artigos 1507 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Ourém sob o n.º 01.025/930614 da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias.”
Da mesma matéria dimana também –Facto 16)-, que “em 4 de Julho de 1988 a Junta de Freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias vendeu a D... uma parcela do baldio dos Olivais, com a área de 350 m2, pelo preço de 350.000$00.”
Ora, atentando no teor da dita inscrição, e a fazer fé no mesmo, forçoso seria concluir que o prédio urbano ali descrito, com a área global de 420 m2 (70+350), havia sido adquirida pelos RR., mediante contrato de compra e venda, aos dois casais comproprietários ali também identificados.
Porém, e como claramente indica o Facto 16), assim não aconteceu: a área de 350 metros evidenciada como integrante desse prédio –mais precisamente do respectivo logradouro-, fez parte do (outrora) baldio das Olivais, pertencente à Junta de Freguesia, e “ingressou” na esfera dos RR. na sequência da informal compra pelo R.- marido efectuada àquela entidade.
Ora –pergunta-se-, qual a razão para esta discrepância ou desconformidade?
A resposta facilmente surge, fazendo incidir a nossa óptica sob a certidão reportada no Facto 1).
Com efeito, do teor de tal documento constata-se que o R.-marido, com data de 29 de Abril de 1993, apresentou um requerimento dirigido ao Exmº Chefe da Repartição de Finanças do concelho de Ourém, no sentido de este “...mandar averbar à S.C. de 70 m2 e L- 350 m2, no prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias sob o artigo urbano 1507, em virtude de ser área que efectivamente possuía quando o referido prédio foi inscrito.” E, em deferimento deste requerimento foi efectivamente realizado o averbamento da área e do logradouro.
E com este alterado teor matricial a constar da Caderneta Predial Urbana, acompanhada de cópias das (duas) escrituras referentes à aquisição das quotas do prédio correspondente à referida Superfície Coberta, o R.-marido, como resulta do acima falado doc. de fls. 94 a 96 -referenciado no Facto 23)-, logrou o registo do prédio sob o apontado n.º 01.025/930614.
Frente a estes dados, temos que subjacente a esta inscrição tabular esteve a apresentação de um documento falso –falsidade intelectual-, a dita Caderneta Predial, na qual se atestava, com base, como vimos, nas declarações inverazes do R.-marido, que o prédio era único e composto por duas partes, assim tendo sido pelos RR. adquirido. De tal modo -e como os Recorrentes bem observam-, sem qualquer base material, alterou-se a realidade jurídica existente, convertendo num só prédio o que, na realidade, eram dois prédios distintos e autónomos.
Como assim, impõe-se concluir que o registo em apreço, por força do disposto no art.º 16º, al. a), último segmento, enferma de nulidade, por isso que lavrado com base nesse documento falso –neste conspecto, vd. J. A. Mouteira Guerreiro, Noções de Dir. Registral (Predial e Comercial), 2 ª ed., C. Editora, pág. 190.
Porém, e ao invés do afirmado pelos Recorrentes, nada possibilita imputar esta anomalia a menos conforme actuação dos serviços registais, em sede de qualificação operada, por isso que se ignora se a área constitutiva do imóvel correspondente à S.C. constava ou não das atinentes escrituras notariais, tudo levando a inferir no sentido negativo.
Como quer que seja, e tal como referimos, o registo em apreço carece de validade, enferma de deficiência no tocante à identidade física do prédio dele objecto, por virtude de vício ocorrido no documento constitutivo do respectivo suporte topográfico.
Em tal conformidade, surge-nos que os AA. impugnaram vitoriosamente tal registo, havendo em consequência, face ao estipulado no art.º 8º do C. Reg. Predial, e consectário acolhimento do seu pedido mencionado, providenciar pelo respectivo e justificado cancelamento. E assim sendo, como é, mais sucede que a presunção de verdade ou de exactidão que, como referimos supra, à inscrição tabular assiste, “ex vi” do prefalado art.º 7º, se acha consistentemente afastada, ilidida. Os AA./Reconvindos, satisfazendo o ónus de prova que sobre eles impendia, lograram, pois, pôr relevantemente em causa o registo em que os RR./Reconvintes faziam assentar o seu direito sobre a parcela –os ditos 350 m2-, de que se arrogavam donos.
Deste modo, o fundamento sobre que o Mm.º Juiz fez repousar o seu veredicto, no sentido do reconhecimento de tal arvorado direito, cai totalmente pela base, tornando-se esse reconhecimento função, como deflui do que antes expusemos sobre a fisionomia da acção de reivindicação, apenas e só da prova de um direito originário, seja, o “dominium auctoris” ou a usucapião.
Ora, conquanto os RR./Reconvintes também tenham alegado a prática de actos materiais porventura endereçados a comprovar a aquisição usucapiente do direito sobre a parcela, verdade é que, como cristalinamente deflui dos factos que mereceram adesão de prova, tal desiderato não poderá vingar. Desde logo, por falta do decurso de qualquer dos prazos previstos no art.º 1296º, sabido que o ingresso de tal parcela ao seu “poder” teve lugar mediante um negócio formalmente inválido –Facto 16)-, o que de todo inviabiliza o aproveitamento pelos mesmos –com fundamento na acessão: art.º 1256º-, da relação possessória, titulada pela Junta de Freguesia vendedora, que imediatamente antecedeu a deles –cfr. P. de Lima e A. Varela, ob. cit., pág. 14.
Destarte, a remanescente pretensão formulada pelos AA. evidencia-se procedente e, contrapostamente, o pedido reconvencional deduzido pelos RR. votado ao insucesso.

5. Nestes termos, e em suma, havendo que negar a qualquer dos Litigantes a reclamada titularidade do direito de propriedade sobre o terreno/parcela mutuamente reivindicado(a), na parcial procedência do pedido inicial pelos AA. deduzido, apenas cumpre ordenar a rectificação do artº matricial nº 1507, mediante a eliminação do operado averbamento - na sequência do deferimento do aludido pedido de 29-4-93, subscrito pelo R.-marido-, à área da S.C. da área do Logradouro, bem como o cancelamento do registo nº 01.025/930614, da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias.
A douta apelação apenas em parte é procedente, nessa medida se impondo revogar a douta sentença por ela impugnada.

IV – DECISÃO
Frente a tudo o expendido, e sem mais considerações, na parcial procedência do ora apreciado recurso de apelação, decide-se revogar também apenas em parte a sentença recorrida e consequentemente:
- julgar a acção apenas parcialmente procedente e, em consequência, ordenar a rectificação do artigo urbano nº 1507, da freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias –Ourém, mediante a eliminação do averbamento à área da Sup. Cob. da área do Logradouro –averbamento efectuado em deferimento de requerimento nesse sentido apresentado, em 29-4-93, pelo aqui R.-marido-, bem como ordenar o cancelamento do registo nº 01.025/930614, da dita freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias.
- julgar, outrossim, a reconvenção na íntegra improcedente e, mercê de tal, absolver os AA./Reconvindos do atinente pedido.
- no mais, manter a douta sentença imodificada.
Custas da acção, na proporção de 6/8 e 2/8 para AA. e RR., respectivamente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário àqueles conferido (fls. 153); custas da reconvenção pelos RR./Reconvintes.
Custas da apelação na proporção de 2/6 e 4/6, respectivamente, por Apelantes e Apelados, uma vez mais, quanto àqueles, com ressalva do apontado benefício.

Coimbra, 10-01-2006