Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
529/10.2TBRMR-S.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: MASSA INSOLVENTE
LEGITIMIDADE ACTIVA
ACÇÃO
SIMULAÇÃO
COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 06/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - ALCOBAÇA - INST. CENTRAL - 2ª SEC.COMÉRCIO - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 286º DO CC
Sumário: A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286º do CC, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra que havia sido celebrado entre a devedora insolvente e a Ré.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A Massa Insolvente de A... , Ldª, com sede em Rua (...) , Turquel, representada pelo Administrador da Insolvência, veio instaurar acção de resolução em benefício da massa insolvente, nos termos e ao abrigo do disposto nas disposições conjugadas dos 120ºss e 126º/2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, contra B... , Ldª, com sede na Rua (...) , Turquel, pedindo que:

a) Seja declarado resolvido em benefício da Massa Insolvente ora Autora e, em consequência, ineficaz em relação à mesma, o acto consubstanciado na escritura pública, denominada de “Compra e Venda”, outorgada, em 23 de Abril de 2010, no Cartório Notarial de Alcobaça, por meio da qual a aqui Insolvente vendeu, à aqui Ré B... , Lda, a Fracção autónoma designada pela letra “E” correspondente a moradia, e um abrigo de viatura, fracção esta pertencente ao prédio urbano, sito na Rua (...) , freguesia de Turquel, concelho de Alcobaça, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcobaça sob o nº 2852 – E e inscrito na respectiva matriz predial sob o art.º 3201 – E da mesma freguesia.

b) Seja decretado o cancelamento do registo de aquisição efectuado com base nessa escritura e com referência ao imóvel supra melhor identificado.

Caso assim não se entenda, pede, subsidiariamente, que:

a) Seja declarado nulo, por simulação, o acto consubstanciado na aludida escritura pública,

b) Seja decretado o cancelamento do registo de aquisição efectuado com base nessa escritura e com referência ao imóvel supra melhor identificado.

A Ré contestou, invocando, além do mais, a excepção de ilegitimidade da Autora e a prescrição do direito de intentar acção de resolução em benefício da massa insolvente.

Foi realizada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador onde se decidiu:

• Julgar a Autora parte ilegítima relativamente ao pedido formulado a título subsidiário, absolvendo a Ré desse pedido;

• Julgar verificada a excepção peremptória da caducidade do direito de pedir a resolução do acto, absolvendo a Ré do pedido principal.

Inconformada com essa decisão, a Autora (Massa Insolvente de A... ) veio interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

A) Face aos critérios gerais enunciados pelo art.º 30º do C.P.C., a ilegitimidade ad causam ou processual de qualquer das partes só se verificará quando, em juízo, se não encontrar(em) o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.

B) Mal andou o Tribunal a quo ao entender, no âmbito da prolação da Sentença aqui colocada em crise, declarar “(…) a Autora parte ilegítima relativamente ao pedido formulado a título subsidiário (declaração de nulidade do negócio simulado)“ e, consequentemente, absolver “(...) a Ré da instância subsidiária”, porquanto, segundo aí se afirma, “(…)Como se constata, em nenhuma destas normas é conferida legitimidade à massa insolvente para lançar mão dos elencados institutos jurídicos, precisamente porque a lei especificamente prevê um mecanismo próprio para a massa insolvente efectivar idêntico desiderato – a resolução em benefício da massa insolvente, regulada nos artigos 120.º e ss do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cujos requisitos de procedência se aproximam e até sobrepõem. Relativamente aos meios processuais de tutela dos direitos creditícios, v.g., a impugnação pauliana e o pedido de declaração de nulidade de negócios nos termos dos artigos 605.º e 610.º e ss. Do Código Civil, a legitimidade activa é outorgada, inerentemente, aos credores do insolvente, sublinhando-se a limitação decorrente do estatuído no art.º 127.º/1 do CIRE, segundo o qual é vedada a instauração de novas acções de impugnação pauliana de actos praticados pelo devedor cuja resolução haja sido declarada pelo administrador de insolvência (vd. Luís Carvalho Fernandes/João Labareda, op. cit., p. 444-445). (…)”

C) Ao decidir nos termos em que o fez, violou o Tribunal a quo, as disposições constantes do art.º 20º da C.R.P; do art.º 30º do C.P.C., aplicável ex vi art.º 17º do C.I.R.E., do art.º 82º/3 do mesmo diploma, e, bem assim, dos art.º 240º; 242º e 286º, todos do C.C..

D) De acordo com o art.º 9º do C.C., deverá privilegiar-se, como critério de hermenêutica legal, a reconstituição do pensamento legislativo tendo, designadamente, em conta a unidade do sistema jurídico, em detrimento da mera literalidade em que, salvo o devido respeito, a decisão recorrida incorre.

E) Historicamente, e no que, em concreto, respeita ao processo insolvimentar, a possibilidade de recurso, pelo liquidatário judicial e em benefício da Massa Falida, ao Instituto da Impugnação Pauliana – configurado como Impugnação Pauliana colectiva – encontrava-se expressamente prevista no art.º 157º do C.P.E.R.E.F., com sujeição ao regime civilístico próprio deste remédio geral de conservação da garantia patrimonial, muito embora com observância de algumas especificidades, designadamente quanto aos seus efeitos, dado o afastamento da disciplina própria do art.º 616º do C.C.

F) A reforma do regime insolvimentar levada a cabo em 2004 veio introduzir modificações substanciais nesta matéria, com o objectivo declarado de facultar, ao Administrador da Insolvência, os meios necessários à efectiva concretização da finalidade precípua de tal regime – a satisfação, pela forma mais eficiente possível, dos direitos dos credores da insolvência. (Cf. preâmbulo do DL 53/2004 de 18 de Março, ponto 41)

G) Com um tal propósito e reconhecendo a ineficiência generalizada do regime até então vigente – atento o conjunto restrito de actos susceptíveis de resolução em benefício da massa falida e a possibilidade de perseguição dos demais nos termos apenas da Impugnação Pauliana – entendeu o Legislador por imperioso o reforço da possibilidade de perseguição dos actos de dissipação de património em prejuízo dos credores e de obtenção da “(…) reintegração dos bens e valores em causa na massa insolvente (…)” designadamente através da redefinição dos contornos do Instituto da Resolução em benefício da Massa Insolvente e da sua maior diferenciação face ao Instituto da Impugnação Pauliana. (Cf. Preâmbulo do DL 53/2004 de 18 de Março, ponto 41) (itálico nosso)

H) Face a um tal intuito, não se configura como defensável o entendimento de acordo com o qual o Administrador da Insolvência se encontra impedido de, em representação da Massa Insolvente, logo, em defesa dos interesses de todos os credores, lançar mão do Instituto civilístico geral da Impugnação Pauliana, apesar da ausência de previsão expressa, tal como sucedia anteriormente, da designada Impugnação Pauliana colectiva.

I) De igual modo, no quadro do anterior regime legal vigente, instituído pelo C.P.E.R.E.F., nenhuma limitação se impunha ao Liquidatário judicial no que respeitava ao recurso a concretos mecanismos judiciais de defesa dos interesses dos credores para além dos expressamente aí previstos (Impugnação Pauliana colectiva e Resolução em benefício da Massa).

J) Neste conspecto e atendendo, do mesmo modo, ao objectivo expressamente declarado no supra citado preâmbulo do CIRE e apesar da ausência de previsão expressa, não se configura como defensável o entendimento de acordo com o qual o Administrador da Insolvência se encontra impedido de, em representação da Massa Insolvente, logo, em defesa dos interesses de todos os credores, lançar mão do Instituto civilístico geral da Declaração de Nulidade de determinado acto ou negócio jurídico, designadamente com fundamento em Simulação, como, in casu, sucede.

K) Da redacção do art.º 605º C.C. apenas pode retirar-se a conclusão de que o mesmo normativo representa, não a definição de uma qualquer situação de legitimidade exclusiva, à margem da regra geral do art.º 286º do mesmo diploma, mas, sim, efectivamente, o reconhecimento expresso, a favor dos credores, da qualidade de interessado e, consequentemente, de legitimidade para invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor.

L) Determinando o art.º 242º do diploma em referência que a Simulação pode ser arguida pelo próprio simulador – em directa contradição com o regime anteriormente vigente em que a legitimidade para o efeito era reservada apenas aos prejudicados pelo acto (art.º 1031º Código Civil de 1867) – resulta como evidente que se entendeu, na evolução legislativa, que a simulação de um negócio jurídico se configurava com um acto de tal modo ofensivo da ordem jurídica vigente que os meios tendentes à sua destruição deveriam ser disponibilizados de uma forma ampla.

M) Do teor do art.º 82º do CIRE não poderá extrair-se qualquer impedimento ao recurso, por parte do Administrador da Insolvência, ao Instituto da Declaração de Nulidade por Simulação em defesa dos interesses dos credores, uma vez que o referido normativo, imbuído do objectivo geral de redução dos riscos de insuficiente satisfação dos credores do Insolvente, apenas pretende limitar o recurso, por parte do Administrador da Insolvência, às acções que aproveitem à generalidade dos credores.

N) A determinação do concreto âmbito da legitimidade extraordinária conferida ao Administrador da Insolvência por via do referido art.º 82º do CIRE pressupõe, necessariamente, o recurso às demais fontes substantivas da responsabilidade que se pretende efectivar por via das acções aí mencionadas, uma vez que o mesmo apenas se refere a questões de natureza processual ou meramente adjectiva.

O) Do teor do art.º 127º do CIRE apenas decorre o condicionamento do acesso, por parte dos credores, à Impugnação Pauliana de actos relativamente aos quais o Administrador da Insolvência exerceu o direito potestativo à resolução não podendo, todavia, daí inferir-se qualquer proibição de recurso, pelo próprio, quer a um tal mecanismo quer ao Instituto da Declaração de Nulidade por Simulação, designadamente aquando da impossibilidade de exercício daquele direito potestativo por se encontrar excedido o período de suspeição legalmente estabelecido nos termos supra indicados.

P) Longe de representar uma limitação ou condicionamento, o Instituto da Resolução em benefício da Massa, tal como perspectivado pelo Legislador de 2004, representa um reforço da protecção dos interesses dos credores através da redefinição do seu âmbito, do concreto elenco de actos resolúveis e dos prazos para o efeito, alcançando autonomia face aos demais meios de preservação da garantia patrimonial de créditos mas sem os substituir ou excluir.

Termos em que, conclui, deverá:

- ser revogada a decisão do Tribunal a quo, na parte que entendeu declarar “(…) a Autora parte ilegítima relativamente ao pedido formulado a título subsidiário (declaração de nulidade do negócio simulado)“ e, consequentemente, absolver “(...) a Ré da instância subsidiária”;

- ser tal decisão substituída por outra que determine e declare a plena legitimidade da ora Recorrente para o referido pedido de declaração de nulidade por Simulação subsidiariamente formulado, com as legais consequências, designadamente com o prosseguimento dos presentes até final.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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II.

Questão a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – a questão a apreciar e decidir consiste em saber se a Autora (Massa Insolvente) tem ou não legitimidade para pedir a declaração de nulidade, por simulação, do contrato de compra e venda que está em causa nos autos e que havia sido celebrado entre a devedora insolvente e a Ré.


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III.

Como decorre das alegações de recurso, o presente recurso restringe-se à decisão que absolveu a Ré da instância relativamente ao pedido subsidiário – por via do qual se pretendia obter a declaração de nulidade, por simulação, do negócio invocado nos autos – por considerar que a Autora (Massa Insolvente) era parte ilegítima relativamente a tal pretensão.

Para fundamentar tal ilegitimidade, a decisão recorrida ancorou-se fundamentalmente no disposto no art. 605º do CC, dizendo que a legitimidade para a propositura da acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor está reservada aos credores.

Em desacordo com essa decisão, sustenta a Apelante que o administrador da insolvência, em representação da massa insolvente, não está impedido de lançar mão do instituto geral da declaração de nulidade de determinado acto ou negócio jurídico, dizendo, designadamente e em suma, que o normativo citado (art. 605º) não pretende definir uma legitimidade exclusiva dos credores para a instauração da acção de nulidade, à margem da regra geral do art. 286º do CC, tendo como única finalidade o reconhecimento expresso, a favor dos credores, da qualidade de interessado para efeitos de legitimidade na arguição de nulidade dos actos ou negócios do devedor.

E, adiantando desde já a solução, parece-nos que a razão está com a Apelante.

De facto, ao contrário do que se considerou na decisão recorrida, não é verdade que a propositura de acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor esteja reservada aos credores. O art. 605º do CC – no qual se baseou a decisão recorrida – não tem esse alcance nem consente tal interpretação.

Na verdade, a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, pode ser invocada por qualquer interessado. É isso que se dispõe no art. 286º do CC e interessado para esse efeito será – como referem Pires de Lima e Antunes Varela[1] - o “…o titular de qualquer relação cuja consistência, tanto jurídica como prática, seja afectada pelo negócio”.

O art. 605º do citado diploma, ao dispor que “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade, não sendo necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”, veio apenas tornar expresso – esclarecendo algumas dúvidas que até então se suscitavam e de que nos dão conta Pires de Lima e Antunes Varela[2] - que os credores são titulares de um interesse relevante para efeitos de invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor e que tal interesse não depende da anterioridade do crédito relativamente ao acto cuja nulidade se pretende invocar e não depende da circunstância de este acto ter produzido ou agravado a situação de insolvência do devedor.

Mas, se é verdade que os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, nos termos da citada disposição legal, já não é verdade que tal faculdade lhes esteja reservada em exclusivo, já que, de acordo com o disposto no art. 286º do citado diploma, tal faculdade pertence a qualquer pessoa que demonstre ter interesse na declaração de nulidade.

Ora, ao que nos parece, a massa insolvente e, como tal, o administrador de insolvência, no âmbito das funções que lhe estão atribuídas, tem interesse na declaração de nulidade de um contrato de compra e venda celebrado pelo devedor insolvente (como é o caso do acto em causa nos autos), providenciando, dessa forma, pela restituição à massa insolvente dos bens que nela se deveriam encontrar por ser nulo o acto em que assentou a transferência da respectiva propriedade.

Importa notar, aliás, que a nulidade desse contrato – por alegada simulação – poderia ser invocada pelos próprios simuladores entre si, como determina o art. 242º, nº 1, do CC, e, portanto, ela poderia ser invocada, contra a aqui Ré, pela devedora insolvente. Ora, assumindo o administrador da insolvência a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (art. 81º, nº 4, do CIRE) e porque a declaração de nulidade de um negócio de compra e venda celebrado pelo insolvente tem evidente interesse para a insolvência – possibilitando a recuperação de bens que pertencem à massa insolvente – parece que, também por essa via, estaria assegurada a legitimidade do administrador da insolvência na invocação da nulidade desse negócio.

  E nada encontramos no CIRE que seja susceptível de ser interpretado no sentido de estar vedado ao administrador da insolvência a propositura de acção com vista à declaração de tal nulidade e no sentido de lhe retirar a legitimidade que, por efeito da aplicação da regra geral consagrada no art. 286º do CC, lhe deverá ser reconhecida.

A decisão recorrida aludiu a algum paralelismo entre esta situação e a impugnação pauliana, para dizer – se bem percebemos – que, tal como acontece com a impugnação pauliana, também a invocação de nulidade de actos praticados pelo devedor está reservada aos credores na medida em que a lei prevê um mecanismo próprio para a massa insolvente efectivar idêntico desiderato: a resolução em benefício da massa insolvente.

Não nos parece que assim seja.

É verdade que o antigo CPEREF conferia legitimidade ao liquidatário judicial para a propositura de acções de impugnação pauliana em benefício da massa insolvente (arts. 157º e 160º) e é verdade que a lei actualmente vigente eliminou essas normas e, como tal, ter-se-á que entender que o administrador de insolvência não tem legitimidade para instaurar esse tipo de acções.

Mas, salvo o devido respeito, daí não se poderá extrapolar para a conclusão de que o administrador de insolvência também carece de legitimidade para instaurar acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor.

Importa notar que a impugnação pauliana é um instituto que, nos termos da lei geral (art. 610º do CC), apenas está na disponibilidade dos credores e, portanto, não existindo actualmente no CIRE (ao contrário do que acontecia anteriormente) qualquer norma que atribua ao administrador da insolvência legitimidade para esse efeito, impõe-se concluir que tal legitimidade não existe. Mas, ao contrário do que acontece com a impugnação pauliana – que, como se disse, está reservada aos credores – a invocação da nulidade de actos praticados pelo devedor está na disponibilidade de qualquer pessoa que demonstre ter interesse na respectiva declaração (cfr. art. 286º do CC), pelo que, ao contrário do que acontece com a impugnação pauliana, a circunstância de o CIRE não o prever expressamente não tem idoneidade para concluir que o administrador da insolvência não tem legitimidade para invocar a nulidade dos actos, porquanto esta legitimidade encontra apoio no Código Civil por se dever considerar – como consideramos – que a massa insolvente, através do administrador da insolvência, é interessada para esse efeito.

A impugnação pauliana visa atacar os actos que envolvem diminuição da garantia patrimonial dos créditos e, portanto, quando conferida em benefício da massa insolvente (como acontecia no CPEREF), ela visa atacar actos que são prejudiciais à massa. Tendo em conta que a resolução em benefício da massa insolvente, prevista no CIRE, tem a mesma finalidade, entendeu o legislador – como decorre do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE – que não se justificava a previsão de dois institutos com idênticos objectivos, optando por concentrar num único instituto (a resolução em benefício da massa insolvente), a possibilidade de atacar os aludidos actos.

Mas, salvo o devido respeito, não nos parece que a previsão de um único instituto com vista à resolução de actos prejudiciais à massa e a eliminação da possibilidade de o administrador de insolvência recorrer à acção pauliana abarque também a eliminação da possibilidade de o administrador instaurar acção com vista à declaração de nulidade de actos praticados pelo devedor.

Em primeiro lugar, porque – reafirmamos – a legitimidade do administrador para invocar tal nulidade continua a encontrar apoio no art. 286º do CC, onde se estabelece o princípio ou regra geral em matéria de legitimidade para esse efeito.

E, em segundo lugar, porque não nos parece consentâneo com o pensamento do legislador e com a ordem jurídica em geral que, estando em causa um acto nulo, se limitasse profundamente a possibilidade de destruir os seus efeitos, por iniciativa da massa insolvente e do administrador da insolvência, aos casos em que é possível a resolução em benefício da massa insolvente.

Note-se que os actos resolúveis em benefício da massa insolvente são apenas os actos prejudiciais à massa que tenham sido praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência (art. 120º do CIRE) e tal resolução tem que ser efectuada em prazo curto e nunca depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência (art. 123º do CIRE). Ora, a entender-se que os actos nulos apenas poderiam ser atacados pelo administrador da insolvência por via desse instituto, tal significaria que os actos e negócios nulos praticados antes do período temporal ali definido ou aqueles que apenas viessem ao conhecimento do administrador depois de decorridos dois anos sobre a data da declaração de insolvência ficaram a salvo e não poderiam ser atacados em benefício da massa insolvente; a declaração de nulidade desses actos ficaria, assim, dependente da actuação dos credores ou de qualquer outro interessado e fora da disponibilidade do administrador da insolvência, situação que não se adequa à regra legalmente consagrada segundo a qual a nulidade, além de poder ser declarada oficiosamente pelo tribunal, é invocável a todo o tempo e por qualquer interessado.

Refira-se que a limitação temporal inerente à resolução em benefício da massa insolvente não causará muita estranheza relativamente aos actos que poderiam ser susceptíveis de impugnação pauliana, na medida em que esta sempre estaria temporalmente limitada por via da caducidade prevista no art. 618º do CC. Não nos parece, porém, que tal limitação seja adequada quando está em causa um acto nulo, porquanto a nulidade pode e deve ser invocada e declarada a todo o tempo, como determina o art. 286º do CC.

          

Concluímos, portanto, que a massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286º do CC, para instaurar acção com vista a obter a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra que havia sido celebrado entre a devedora insolvente e a Ré.

Consequentemente, impõe-se revogar a decisão recorrida, na parte em que absolveu a Ré da instância relativamente ao pedido subsidiário, devendo os autos prosseguir para apreciação desse pedido.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

A massa insolvente, através do administrador de insolvência, tem legitimidade, ao abrigo do disposto no art. 286º do CC, para pedir em juízo a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra que havia sido celebrado entre a devedora insolvente e a Ré.


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IV.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, na parte em que absolveu a Ré da instância relativamente ao pedido subsidiário, devendo os autos prosseguir para apreciação desse pedido.
Custas a cargo da Apelada
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Código Civil Anotado, Vol. I, 3ª ed., revista e actualizada, pág. 261.
[2] Ob. Cit., págs.589 e 590.