Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3490/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JAIME FERREIRA
Descritores: PROCESSO EXECUTIVO COM PENHORA REGISTADA SOBRE BEM QUE ENTRETANTO FOI VENDIDO A TERCEIRO PELO EXECUTADO
SEU PROSSEGUIMENTO APESAR DE DECLARAÇÃO DE FALÊNCIA DO EXECUTADO POSTERIORMENTE Á DATA DO REGISTO DESSA PENHORA
Data do Acordão: 12/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ART. S 154°, N° 3, 157° E 159° DO CPEREF ; 819° DO C. CIV.
Sumário:
I - A transmissão do direito de propriedade, por contrato, sobre um imóvel ocorre na data de outorga da respectiva escritura pública de compra e venda .
II - Sendo declarada a falência desse vendedor em data posterior a essa venda, não faz sentido proceder-se à apreensão desse bem antes vendido, nos termos da al. c ) do n° 1, do art. 128° e do n° 1 do art. 175°, ambos do CPEREF, na medida em que esse bem já não é propriedade do falido na data desta sua declaração, não podendo, por isso, integrar a massa falida .
III - Ao liquidatário judicial da falência, porém, está aberta a possibilidade de impugnar ( impugnação pauliana ) em beneficio da massa falida essa venda anterior e até ao limite do prazo de 5 anos a contar da data de venda, nos termos dos art. s 157° e 159° do CPEREF.
IV- A declaração de falência posterior a uma venda formal levada a cabo por um executado que veio a ser declarado falido, não obsta a que a execução anterior prossiga os seus regulares termos sobre esse bem e que anteriormente fora objecto de penhora devidamente registada, dado o disposto no art. 819° do C. C., disposição esta que apenas aproveita ao exequente-penhorante.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra :
I
No Tribunal Judicial da Comarca de Trancoso, a sociedade “ Lactovil – Lacticínios de Trancoso, S. A. “, com sede na Quinta das Pousadas, em Trancoso, instaurou contra Ema Maria Couce da Costa Silva, com domicílio na Rua das Doze Casas, 259, Porto, a presente acção executiva para pagamento de quantia certa, com base na sentença proferida no mesmo Tribunal em 21/10/1998, já transitada em julgado, na qual a Executada foi condenada a pagar à Exequente a quantia de Esc. 5.192.185$00, acrescida de juros de mora até efectivo pagamento , sendo que os vencidos até à data de instauração da acção executiva remontavam a Esc. 3.151.265$00 .
Procedeu-se à penhora do direito da Executada sobre ¼ de uma casa sita na Rua do Passeio Alegre, freguesia de S. João da Foz do Douro, no Porto, inscrita na respectiva matriz predial sob o artigo nº 1383 , e descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 30598, do livro B-97, a fls. 67, conforme fls. 11, 14 e 15 .
A fls. 216, a Executada veio informar que, por sentença de 23/01/2003, proferida nos autos de processo de falência com o nº 151/2002, do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia , e já transitada em julgado, foi declarada a sua falência .
A fls. 252 e segs. encontra-se junta certidão dessa declaração de falência, na qual, além do mais, a falida ficou inibida do exercício do comércio e de ocupar qualquer cargo em órgãos de sociedades comerciais ou civis, e foi ordenada a sustação de todas as acções executivas instauradas contra a falida, assim como foi ordenada a imediata apreensão de todos os bens da falida .
Por despacho de fls. 267 foi julgada extinta a presente instância executiva, com fundamento em impossibilidade superveniente da lide, resultando essa impossibilidade da dita declaração de falência da executada, nos termos do artº 154º, nº 3, do CPEREF .
II
Desse despacho recorreu a Exequente, recurso esse que foi admitido como agravo, com subida imediata e nos próprios autos , e com efeito suspensivo .

Nas alegações que oportunamente apresentou a Recorrente concluiu do seguinte modo:
1ª - O Tribunal , face à declaração de falência da executada, declarou extinta a instância executiva, por impossibilidade da lide, invocando o disposto no artº 154º, nº 3, do CPEREF .
2ª - Contudo, a interpretação da norma invocada não deve cingir-se à letra da lei, mas antes atender também ao elemento racional e sistemático .
3ª - E, assim, deve interpretar-se a norma no sentido de que apenas a instauração ou prosseguimento de execuções que atinjam o património do falido ficam prejudicadas com a declaração de falência .
4ª - Pelo que, incidindo a presente execução apenas sobre direitos que não se encontram na esfera jurídica da falida e que, por isso, não influenciam o valor da massa, deve ordenar-se o seu prosseguimento normal .
5ª - Tendo decidido de modo diferente, o Tribunal não interpretou nem aplicou devidamente a norma invocada, violando, por isso, o disposto no artº 9º do C. Civ., no artº 154º, nº 3, do CPEREF, e no artº 287º, al. e), à contrário, do CPC .
6ª - Desta forma deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e que seja proferido outro a ordenar o prosseguimento da execução .
III
Foi proferido despacho de sustentação, com remissão para os termos do despacho recorrido .
IV
Nesta Relação foi aceite o recurso tal como fora admitido e procedeu-se à recolha dos “ vistos “ inerentes ao seu processamento, nada obstando ao conhecimento do seu objecto, o qual se resume à questão de se saber se o facto de a executada ter sido declarada falida por sentença transitada em julgado, implica ou não o não prosseguimento da presente execução contra a falida, mormente em situações de os bens penhorados na execução terem sido objecto de uma escritura de venda a favor de terceiro, outorgada pelo executado, que teve lugar após o registo da penhora em causa e antes da data de declaração de falência do executado .

Cumpre, pois, apreciar tal questão .
E para tal efeito não pode deixar de se tomar em conta os elementos que os autos nos fornecem, designadamente as certidões de fls. 68 a 84 ; de fls. 252 a 265; e de fls. 242 a 248 .
Assim :
1 - Daquela primeira certidão resulta que em relação ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 30598, do livro B-97, a fls. 67, da freguesia de S. João da Foz do Douro, se acha inscrita a aquisição de ¼ a favor de Ema Maria Couce da Costa Silva, por partilha da herança de António Leite da Costa Silva ( fls. 71 ) ; sobre essa quota parte foi registada uma penhora datada de 10/05/2000, a favor de Lactovil, S.A., reportada à quantia exequenda desta acção executiva, cuja apresentação para registo data de 18/05/2000 ( fls. 82 ) .
2 - Da segunda das certidões referidas resulta que no Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia correm termos os autos de falência com o nº 151/2002, nos quais Ema Maria Couce Costa Silva foi declarada falida por sentença de 23/01/2003, transitada em julgado em 9/05/2003 ( conforme ofícios de fls. 251 e 266 ) .
3 - Da certidão de fls. 242 a 248 resulta que em 07/08/2000, no Primeiro Cartório Notarial de Vila do Conde, Ema Maria Couce da Costa Silva outorgou escritura pública de partilha e de compra e venda, pela qual vendeu a Joaquim José Barbosa, aí identificado, ¾ indivisos do prédio antes identificado, nos quais se incluía aquele anterior ¼, o que o comprador declarou aceitar .
4 – Em 03/06/2003, nos presentes autos, foi proferido o despacho de fls. 267, no qual foi julgada extinta a presente instância executiva, com fundamento em impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artº 154º, nº 3, do CPEREF .
5 – Em 21/08/2003, pelo ofício de fls. 290, o Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia solicitou a remessa deste processo, a fim de ser apensado ao processo de falência nº 151/2002, para efeitos do disposto no artº 154º, nº 3, do CPEREF .

Apontados os factos a considerar na discussão que se impõe, deles resulta que em 07/08/2000, a aqui executada outorgou escritura pública de compra e venda , pela qual transferiu a favor de Joaquim José Barbosa a propriedade de ¾ do prédio urbano sito na Rua do Passeio Alegre, nº 280, freguesia de S. João da Foz do Douro, Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 30.598 .
Assim tendo sido, forçoso é admitir que nessa data foi transmitida a propriedade sobre esse bem e nessa quota-parte (que é o que apenas importa aqui cuidar ), tanto mais que nessa transmissão foi observada a forma legalmente exigível para o acto, conforme resulta dos artºs 874º ; 875º ; 879º, al. a) ; e 1316º, todos do C. Civ. – o direito de propriedade adquire-se por contrato, entre outros modos possíveis, designadamente por compra e venda celebrada por escritura pública .
Quer isto dizer que desde 7/08/2000 o verdadeiro e legítimo dono da fracção de ¾ desse imóvel que pertencia à aqui executada passou a ser o adquirente supra referido .
Assim sendo, quando em 23/01/2003 foi decretada a falência da aqui executada, já há mais de dois anos que a dita não era proprietária dessa fracção ou de qualquer outra quota-parte no referido imóvel .
Logo, não faria qualquer sentido que à data dessa declaração falimentar se procedesse, nesse processo, à apreensão desse bem, nos termos da al. c) do nº 1, do artº 128º e do nº 1 do artº 175º do CPEREF ( Código este aplicável na redacção do Dec. Lei nº 315/98, de 20/10 ) , na medida em que tal bem já não era propriedade da falida e, por isso, não podia integrar a massa falida .
Nessa medida, a presente acção executiva, na qual apenas foi penhorado um bem à executada que a esta já não pertencia à data da sua declaração de falência ( pelo que não integra a massa falida ) , não deve ser apensada ao processo de falência, nos termos dos artºs 154º, nº 1, e 175º, nºs 1 e 3, ambos do CPEREF, pelo que deve ser desatendido o pedido de remessa do presente processo para ser apensado ao processo de falência, conforme solicitado pelo tribunal falimentar - ponto 5 supra .
Claro está que ao liquidatário judicial da falência está aberta a possibilidade de impugnar ( impugnação pauliana ) em benefício da massa falida a referida venda outorgada em 7/08/2000, dado ainda não terem decorrido 5 anos desde então, nos termos dos artºs 157º e 159º do citado CPEREF, e artºs 610º a 618º do C.Civ., diligência essa que se afigura nem sequer ter sido intentada, pois nada dos autos resulta que o possa ter sido .
Caso assim venha a suceder e porque esse tipo de acção é dependência do processo de falência – artº 160º, nº 1, do CPEREF - , afigura-se que deverá manter-se o não prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido, nos termos do artº 154º, nº 3, do CPEREF, enquanto estiver pendente esse tipo de acção, na medida em que a eventual procedência dessa acção tem como efeito que os bens objecto da mesma revertam para a massa falida – artº 159º, nº 1, do CPEREF e artº 870º do CPC .
Porém, não é esta a situação que se nos depara, mas antes que na data de declaração de falência da aqui executada o bem penhorado nestes autos já havia, entretanto sido transmitido para um terceiro, por escritura pública de 7/08/2000, razão pela qual tal bem já não pertencia à executada na data da declaração da sua falência, razão pela qual não pode ser considerado como fazendo parte da massa falida .
Sendo assim, essa declaração de falência não pode obstar ao prosseguimento da presente acção executiva contra a falida, já que têm de ser interpretados os artºs 29º, nº 1 e 154º nº 3, do CPEREF em conjugação com o nº 1 deste último ( nos termos do qual apenas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa falida, intentadas contra o falido ..., mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, é que são apensadas ao processo de falência ) e em conjugação com o artº 175º do dito código ( nos termos do qual proferida a sentença de falência procede-se à apreensão de todos os bens susceptíveis de penhora ... , devendo o juiz desse processo requisitar todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens do falido - do falido, note-se bem, portanto existentes à data dessa qualificação – para efeitos de apensação aos autos de falência ) .
Além de que , como já se salientou, em 7/08/2000 transferiu-se efectivamente a propriedade sobre o bem em causa nesta execução, pelo que deixou de ser propriedade da aqui executada para todos e quaisquer efeitos , com ressalva dos direitos adquiridos pela aqui exequente sobre esse mesmo bem, face à penhora que logrou conseguir e que registou anteriormente a essa compra e venda – a penhora é de 10/05/2000 e o seu registo é de 18/05/2000 .
Estes direitos resultam do disposto no artº 819º do C.Civ. , nos termos da qual “ são ineficazes em relação ao exequente os actos de disposição ou oneração dos bens penhorados, sem prejuízo das regras do registo “ , o mesmo é dizer-se que desde a data do registo dessa penhora a dita produz efeitos em relação a terceiros – conforme artº 838º, nº 4, do CPC - , podendo o devedor-executado alienar ou onerar livremente os bens penhorados, mas com a certeza e a segurança de que a execução respectiva prossegue independentemente desses factos, como se os mesmos não existissem e como se os bens continuassem a ser pertença do executado e sem os ónus por ele criados posteriormente à penhora – vejam-se, neste sentido, os Prof. Pires de Lima e A. Varela, in C. Civ. anotado, vol. II, notas ao artº 819º .
A alienação voluntária dos bens penhorados só se considera inadmissível para efeitos de ofender os interesses do exequente que logrou obter uma penhora sobre esses bens, uma vez que com ela tais bens ficam afectados e destinados aos fins da execução ( atente-se até que no caso de pender mais de uma execução sobre os mesmos bens, se sustam as execuções em que as penhoras sejam posteriores, podendo os respectivos exequentes reclamar os respectivos créditos no processo da primeira penhora, determinando-se esta pela data do registo, nos casos de obrigatoriedade desse registo – artº 871º , nº 1, do CPC ) , razão pela qual se considera apenas como ineficaz em relação ao exequente-penhorante a eventual alienação ou oneração dos bens a seu favor penhorados.
Quer isto dizer que apesar de se ter como juridicamente válida a alienação levada a cabo pela aqui executada , o que releva para efeitos da sua declaração de falência, nos termos supra expostos ( o bem alienado deixou, por isso, de poder ser considerado como fazendo parte da massa falida, sem prejuízo da eventual instauração de acção de impugnação pauliana por parte do liquidatário judicial sobre essa transmissão ), a mesma nenhum efeito tem quanto ao prosseguimento da presente execução, uma vez que essa alienação apenas não é oponível ao aqui exequente, em relação a quem se considera ineficaz, devendo a execução prosseguir como se o bem não tivesse sido alienado e continuasse a pertencer à executada .
Sendo assim, esse prosseguimento nenhum reflexo ou efeito tem na falência decretada, a não ser caso venha a ser instaurada a acção de impugnação pauliana referida, o que no caso não se verifica até ao momento, razão pela qual deve ser ordenado o prosseguimento da execução, com comunicação ao processo falimentar, assim se devendo revogar a decisão recorrida, que julgou extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide , devendo ser ordenado o prosseguimento regular da presente execução .
No sentido antes exposto pode ver-se , entre outros, o Ac. Rel. de Coimbra de 11/03/2003, in Col. Jur. ano XXVIII, tomo II, pg. 11, no qual também se defende que “ no caso de falência do alienante, não tendo o liquidatário impugnado a venda, não há lugar à suspensão da execução, por virtude do artº 154º, nº 3, do CPEREF, que impede o prosseguimento do processo executivo “ .
V
Face ao exposto e nos termos das disposições legais citadas, acorda-se em julgar procedente o recurso de agravo interposto pela Exequente, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, que julgou extinta a presente instância por impossibilidade superveniente da lide , devendo ser ordenado o prosseguimento regular da presente execução.
Custas do presente recurso a saírem precípuas do produto da venda a que se irá proceder ( artº 455º do CPC ) .