Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1293/09.3TBTMR-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JAIME CARLOS FERREIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO
PASSIVO
CONCEITO JURÍDICO
PREJUÍZO
Data do Acordão: 11/23/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TOMAR – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 235º, 238º, Nº 1, AL. D), DO CIRE
Sumário: I – Nos termos do Título XII do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação da Empresas) – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, e alterado pelos DL nºs 200/2004, de 18/08; 76-A/2006, de 29/03; 282/2007, de 7/08; 116/2008, de 4/07; e 185/2009, de 12/08 -, título esse dedicado a “disposições específicas da insolvência de pessoas singulares”, é facultado ao devedor/insolvente, sendo pessoa singular, requerer e ser-lhe concedida a exoneração (uma espécie de perdão ou de extinção dos seus débitos…) dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – artº 235º.

II - Efectuado esse pedido pelo requerente da insolvência, é o dito sujeito a uma decisão (despacho) dita “liminar”, isto é, cumpre verificar judicialmente se, relativamente a esse pedido, estão ou não verificados determinados pressupostos para o prosseguimento do incidente, conforme determina o artº 238º do CIRE.

III - Caso se verifique o preenchimento de alguma das condições ou fundamentos referidos nas als. a) a g) do nº 1 deste último preceito o pedido de exoneração é liminarmente indeferido.

IV - Não integra o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto pela al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros.

Decisão Texto Integral:                 Acordam, em conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:


I

            No Tribunal Judicial da Comarca de Tomar, corre os seus regulares termos o Proc.º de Insolvência de pessoa singular com o nº 1293/09.3TBTMR, no qual são Requerentes P… e mulher S…, residentes na …, processo esse iniciado em 30/10/2009.

            No requerimento inicial foi pelos Requerentes peticionada a concessão da exoneração do passivo restante, nos termos e para os efeitos dos artºs 23º e 236º e segs. do CIRE. 

            Proferida sentença sobre o pedido de declaração de insolvência, nela foi decidido declarar os Requerentes como insolventes, sentença devidamente transitada em julgado.

            Elaborado o relatório previsto no artº 155º do CIRE, pelo Administrador da Insolvência foi imediatamente proposto o encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, devendo o processo de insolvência prosseguir com carácter limitado, nos termos e com os efeitos dos artºs 233º do CIRE, uma vez que os bens inventariados revestem um valor insuficiente para pagamento das custas e das despesas de administração, não permitindo atingir sequer o valor mínimo de liquidação de                € 5.000,00.

            Em Assembleia de Credores de 05/01/2010, convocada para o efeito, foi proferida sentença a declarar encerrado o processo, ao abrigo do disposto nos artºs 230º, nº 1, al. d), e 232º, nº 2, do CIRE, tendo o Administrador da Insolvência sido dispensado  de elaborar e de apresentar a listagem de créditos do artº 129º do CIRE, além de ter sido alterado o incidente de qualificação pleno para limitado.


***

            Posteriormente foram os credores conhecidos notificados para se pronunciarem acerca do requerimento de exoneração do passivo restante apresentado pelos Insolventes, nada tendo sido pelos credores requerido.

            Pelo Administrador da Insolvência foi emitido parecer no sentido de que entende que os Requerentes/Insolventes não estão em condições de beneficiar do instituto em questão.

            Foi então (com data de 22/08/2010) proferida decisão judicial a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, conforme certidão da dita junta aos presentes autos (de recurso em separado).


II

            Desta decisão interpuseram recurso os Requerentes, recurso que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.

            Nas alegações que apresentaram os Apelantes formularam as seguintes conclusões:

(…)


III

            Nesta Relação foi aceite o recurso interposto, tal como foi admitido em 1ª instância, nada obstando que se conheça do seu objecto, o qual se resume à reapreciação do referido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de exoneração do passivo restante oportunamente formulado pelos Requerentes/insolventes.

            Nesse dito despacho entendeu-se que é de indeferir liminarmente tal pretensão (pedido de exoneração do passivo restante), com base no disposto no artº 238º, nº 1, al. d), do CIRE, por “se verificarem todos os requisitos previstos na referida alínea”.

            É, pois, esta a decisão posta em causa no presente recurso e contra a qual se insurgem os Recorrentes.

            Apreciando, cumpre referir que nos termos do Título XII do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação da Empresas) – aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, e alterado pelos DL nºs 200/2004, de 18/08; 76-A/2006, de 29/03; 282/2007, de 7/08; 116/2008, de 4/07; e 185/2009, de 12/08 (salvo eventuais outras alterações próprias da vigente tendência legislativa e que tenham escapado ao nosso escrutínio) -, título esse dedicado a “disposições específicas da insolvência de pessoas singulares”, é facultado ao devedor/insolvente, sendo pessoa singular, requerer e ser-lhe concedida a exoneração (uma espécie de perdão ou de extinção dos seus débitos…) dos créditos sobre a insolvência (mais propriamente aos débitos correspondentes a esses créditos, conforme referem o Prof. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, vol. II, pg. 184) que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste – artº 235º.

            Esta exoneração equivale ou traduz-se, pois, “na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente” – conforme loc. cit..

            Efectuado esse pedido pelo requerente da insolvência, é o dito sujeito a uma decisão (despacho) dita “liminar”, isto é, cumpre verificar judicialmente se, relativamente a esse pedido, estão ou não verificados determinados pressupostos para o prosseguimento do incidente, conforme determina o artº 238º do CIRE.

            Caso se verifique o preenchimento de alguma das condições ou fundamentos referidos nas als. a) a g) do nº 1 deste último preceito o pedido de exoneração é liminarmente indeferido.

             No caso em apreciação entendeu-se como estando verificada a condição da al. d), isto é, que “os devedores incumpriram o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigados a apresentarem-se à dita, se abstiveram dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

            Será que os factos alegados pelos Requerentes nos permitem tirar tal conclusão?

            A decisão recorrida assim o entendeu, o que importa reapreciar – é o objecto do recurso.

           

Conforme se estipula no nº 3 do artº 236º do CIRE, “do requerimento de pedido de exoneração do passivo restante consta expressamente a declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”, verificando-se que na petição de insolvência/requerimento de exoneração do passivo restante os Requerentes alegaram, além do mais, que preenchem todos os requisitos necessários para, conjuntamente com a apresentação à insolvência, lhes ser concedida a dita exoneração, declarando que se dispõem a observar, integralmente, todas as condições legalmente exigidas para a concessão efectiva da dita exoneração, designadamente mediante a cessão do rendimento disponível dos devedores durante os cinco anos subsequentes ao encerramento dos autos de insolvência – pontos 40º e 41º desse articulado.    

            Assim sendo, no caso em apreço – uma vez que os Requerentes não estavam obrigados a apresentar-se à insolvência (nos termos do artº 18º, nº 2, do CIRE) -, para que esse pedido de exoneração do passivo restante possa (deva) ser liminarmente indeferido, é necessário, desde logo, que os ditos se tenham abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência e com prejuízo, daí resultante, para os credores.

            Os Requerentes alegam, para o efeito, que “assim que perceberam o agravamento da situação económica difícil em que se encontravam sem culpa, designadamente pelo esgotamento das poupanças do casal, em Abril de 2009, e pela situação de desemprego em que caiu a Requerente mulher, em Julho de 2009, concluíram que, não lhes restando quaisquer meios para cumprir as suas obrigações, se deveriam apresentar à insolvência, diligenciando nesse sentido” – ponto 38 da petição inicial -, pelo que, a ser assim, estavam dentro dos referidos seis meses quando em 30/10/2009 interpuseram a acção de declaração de insolvência, como defendem.

            Porém, também alegaram que “em Agosto de 2005 o requerente marido, na qualidade de promitente-comprador, outorgou um contrato promessa de cessão de uma quota de 50% da sociedade comercial L…,L.dª, … pelo que logo assumiu, conjuntamente com o outro sócio efectivo, as funções de gerente dessa firma, …, na sequência do que ambos e respectivas esposas se socorreram de mútuos bancários para reporem os capitais próprios da sociedade e avalizaram empréstimos bancários feitos à firma...”

            Mais alegam que “…em 30/09/2008 o Requerente renunciou à gerência da referida sociedade, percebendo que, conjuntamente com a sua esposa, eram devedores solidários de milhares de euros, a que se haviam obrigado, tendo então procurado obter a concordância do sócio gerente da dita sociedade para dividirem entre si os pagamentos dos encargos assumidos e vencidos até essa data, …na sequência do que esse gerente fugiu para parte incerta, não contribuindo para o pagamento das inúmeras obrigações assumidas e que se iam vencendo, pelo que, sem outra fonte de rendimentos, para além do vencimento da Requerente mulher, se viram incapazes de pagar a totalidade das prestações dos créditos, suspendendo o cumprimento das suas obrigações, na sequências do que diferentes credores foram denunciando e resolvendo os respectivos contratos, designadamente o Banco…, em 5/02/2009…

            Que “em 14/04/2009 também o Banco… denunciou os contratos celebrados, cujas prestações os devedores só conseguiram pagar até Maio de 2009…”.

            Ora, deste conjunto de factos alegados resulta que a situação de insolvência dos Requerentes se verifica desde, pelo menos, fins de 2008/inícios de 2009, quando muito desde Maio de 2009, data em que deixaram efectivamente de conseguir pagar os débitos bancários por eles assumidos.

            Tenha-se em atenção que o Requerente marido não chegou, sequer, a tornar-se sócio da dita sociedade, cuja actividade o levou a “endividar-se”, e existia um sócio efectivo da mesma, também ele obrigado pelo referido “endividamento”, o qual além de ser também responsável para com os credores, terá abandonado “o barco” e fugido para parte incerta, relativamente ao qual se desconhece se foi ou não demandado pelos credores e se pagou ou não algum ou alguns dos créditos bancários assumidos por ambos.

            Além de que se desconhece a situação da referida sociedade, também ela devedora…

            Perante tal situação, afigura-se-nos que não é claro que os Requerentes não estivessem dentro dos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência quando se apresentaram em juízo para tal, o que ocorreu em 30/10/2009.

            E será que tal espera ou período de não apresentação à insolvência trouxe prejuízo para os credores, sabendo os Requerentes ou não ignorando não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica?

            Não nos parece que assim se possa concluir, tanto mais que os credores dos Requerentes até se mostraram desinteressados da sorte do processo de insolvência dos Requerentes, não tendo sequer comparecido ou feito-se representar na assembleia de credores e nem sequer se tendo manifestado relativamente ao presente pedido de exoneração do passivo restante feito pelos Requerentes.

            O único prejuízo que os credores podem ter tido com essa demora, relativamente aos Requerentes (já que nada sabemos relativamente aos demais devedores solidários), foi o agravamento do passivo destes, designadamente pelo acrescer de juros de mora entretanto vencidos, nada mais, já que a situação económica dos Requerentes em nada se alterou no entretanto, nem houve sequer qualquer delapidação de património próprio.

            Sendo assim, afigura-se que, no presente caso, não está verificado o fundamento da alínea d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, no qual se baseou o despacho recorrido para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.

            Não podemos concordar, pois, com a tese defendida no despacho recorrido, segundo o qual “da factualidade alegada resulta claro que ambos os devedores/requerentes não se apresentaram à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência…e estando em causa dívidas vencidas que acarretam ipso facto o imediato vencimento de juros de mora, o atraso do devedor em apresentar-se à insolvência causa, necessariamente, prejuízos aos credores, em virtude do avolumar do passivo daí decorrente, independentemente do valor desses juros ser mais ou menos elevado…”.

            Ao invés, não temos como líquido ou certo que a apresentação à insolvência por parte dos Requerentes tenha excedido o prazo de seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, e não podemos considerar que por efeito decurso do período de espera dos Requerentes para se apresentarem à insolvência tenham resultado prejuízos reais e efectivos para os credores.

            Concordamos com a tese ou posição da Relação do Porto citada pelos Recorrentes (Ac.s de 14/01/2010 e de 19/05/2010), segundo a qual “não integra o conceito normativo de “prejuízo” pressuposto pela al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, o simples aumento global dos débitos do devedor causado pelo simples acumular dos juros”.

            No mesmo sentido se pronunciou esta Relação de Coimbra, por acórdão de 23/02/2010, Proc. nº 1793/09.5TBFIG-E.C1 (disponível em www.dgsi.pt), no qual, sendo abordada uma situação bastante idêntica à do presente recurso, se conclui e decidiu pela continuidade do incidente do pedido de exoneração do passivo restante, com o que temos de nos identificar e de dar igual seguimento, revogando a sentença recorrida.

            Veja-se, ainda, no apontado sentido, o voto de vencido constante do Ac. Rel. Porto de 20/04/2010, Procº nº 1617/09.3TBPVZ-C.P1.

            É certo que já subscrevemos, como adjuntos, um outro acórdão (proc. nº 72/10.0TBSEI-D.C1, de 07/09/2010, disponível em www.dgsi.pt) em que se defendeu que “no incidente de exoneração do passivo restante, apurado que o requerente incumpriu o dever de apresentação à insolvência ou, não tendo tal dever, não se apresentou no prazo de seis meses previsto na al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, é lícito presumir judicialmente o prejuízo para os credores, por, na generalidade dos casos, verificada a situação de insolvência, quanto maior for a demora do devedor a apresentar-se maior será o prejuízo dos credores, seja pelo atraso na cobrança, seja pelo aumento, nomeadamente, com o acumular de juros do passivo…”, embora nesse referido processo existisse um prejuízo efectivo para os credores, não de meros juros de mora, posição que temos de considerar como revista.

            Também se indica, neste segundo sentido, o Ac. desta Relação de 02/11/2010, Procº nº 570/10.5TBMGR-B.C1, igualmente disponível em www.dgsi.pt, entre muitos outros conhecidos e disponíveis em www,dgsi.pt.

            Concluindo, no presente caso não podemos dar como verificado o pressuposto da al. d) do nº 1 do artº 238º do CIRE, face ao que importa revogar o despacho recorrido, devendo prosseguir os seus regulares termos o incidente de exoneração do passivo restante, assim se dando aos Requerentes uma oportunidade de reerguerem a sua vida (mormente económica/financeira) e com os devidos ensinamentos a retirarem do sucedido, fim a que se destina este tipo de incidente do processo de insolvência.


IV

            Decisão:

            Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e ordenando-se o prosseguimento do incidente do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pelos Requerentes.

            Custas pela massa insolvente.


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Jaime Carlos Ferreira (Relator)
Jorge Arcanjo
Isaías Pádua