Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1511/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS VIEIRA
Descritores: PROPRIETÁRIO
VEÍCULO
CONDUÇÃO AUTOMÓVEL
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 152º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário:
1. Só no prazo previsto no artº. 152º, nº. 2, do Código da Estrada será possível ao proprietário do veículo, sem necessidade de fazer ou apresentar qualquer prova de que não era o condutor do veículo no momento da infracção, opor-se à responsabilização por infracção contra-ordenacional que lhe seja assacada com fundamento nessa sua qualidade.

2. Mas, em sede de impugnação judicial, o proprietário, que não o fez no prazo do artº. 152º, não fica inibido de invocar que não era ele o condutor do veículo no momento da infracção.

3. Todavia, nesta sede, não lhe basta alegar não ser ele que conduzia o veículo; terá, também, que identificar correctamente e provar quem era o condutor.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra.

Nos autos em referência, e por decisão administrativa da Direcção Geral de Viação, viria a ser imputada ao arguido A..., residente em Praceta Bento Meni, lote 24-B 2°-DT°. 6300-514 GUARDA, a prática de contra-ordenação ao disposto no art. 69 nº 1 do Regulamento de sinalização do trânsito, sancionável, nos termos do art. 76 do DR 22-A/98, e ainda com a sanção acessória de inibição de conduzir de 1 a 12 meses por força dos artigos 139. e 146. alínea i), todos do Código da Estrada, sendo-lhe imposta uma coima no valor de Euros 149,64 (cento e quarenta e nove Euros e sessenta e quatro cêntimos), para além da aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias.
O arguido impugnou judicialmente esta decisão tal decisão junto do Tribunal Judicial da Comarca de Celorico da Beira.
Recebidos os autos e admitido o recurso, procedeu-se à apensação aos mesmos dos processos nº 393/05.3RTBCLB e 392/05.5TBCLB, sendo designada data para a audiência de julgamento conjunto.
Efectuada esta audiência, foi proferida sentença em 1/2/2006 que, julgando parcialmente improcedente a impugnação judicial apresentada por A..., decidiu:
- Absolver o arguido das contra-ordenações por violação do disposto no art.º 25, n.º 1, aI. d) e art.º 41, nº 1, al. d) do Código da Estrada.
- Condenar o arguido no pagamento da coima de € 80 por violação do disposto no art.º 69, n.º 1, aI. b) do RST, dispensando-se da sanção acessória de inibição de conduzir.

Inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação:
1) - Deu-se como provado no âmbito do presente processo que, nas condições de espaço e tempo em que ocorreu a contra ordenação (pela qual foi condenado o recorrente), não era o recorrente quem conduzia o veículo que com o qual se praticou a contra ordenação ora em causa;
2) - Deu-se como provado no âmbito do presente processo que, nas condições de espaço e tempo em que ocorreu a contra ordenação (pela qual foi condenado o recorrente), quem conduzia o veículo 00-35-RR era o Sr. Armando (suficientemente identificado pelas testemunhas indicadas pelo aqui recorrente);
3) - Assim, considerando-se como provado aquilo que se considerou, forçoso era que a decisão fosse outra, nomeadamente absolutória relativamente ao recorrente -por isso que, salvo o devido respeito e melhor opinião, ocorreu erro na apreciação da prova, o que se alega para todos os devidos e legais efeitos;
4) - Por outro lado, não se ignora a especial força probatória atribuída aos autos de notícia, da mesma forma que não se ignora a norma do art. 152° do Cód. Estrada;
5) - Só que, o facto de o arguido não haver identificado o condutor do veículo quando, na fase administrativa, para tal foi notificado, não preclude a possibilidade de, em sede de audiência de julgamento, provar coisa diversa do que consta do auto de notícia - o que, justamente, aconteceu no caso vertente;
6) - Além de que, e quanto à norma do art. 152°, Cód. Estrada, a sentença revidenda esquece (??) o que consta do n° 2 do dito artigo; a saber: «a responsabilidade das pessoas referidas no número anterior só é afastada se for provada a utilização abusiva do veículo ou identificado um terceiro como infractor» (sublinhado nosso); norma esta que, aliás, tem actualmente correspondência no n° 4 do art. 171°, Cód. Estrada, que, entretanto, entrou em vigor;
7.)- A sentença revidenda violou, salvo o devido respeito e melhor opinião, as normas dos: art. 152°, n° 2, Cód. Estrada (em vigor à data dos factos) -ou art. 171°, n° 4, Cód. Estrada, actualmente em vigor; arts. 32°, 41°, 43°, 72° do DL n° 433/82, de 27.10, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n° 356/ 89, de 17.10, DL n° 244/95, de 14.09 e Lei n° 109/ 2001, de 24.12; art. 410°, n° 2, alínea c), CPP (aplicável «ex vi» do art. 41°, n° 1, DL n° 433/ 82, de 27.10, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n° 356/ 89, de 17.10, DL n° 244/ 95, de 14.09 e Lei n° 109/2001, de 24.12); arts. 11° e 26°, Cód. Penal (aplicáveis «ex vi» do art. 32° do DL n° 356/ 89, de 17.10, DL n° 244/ 95, de 14.09 e Lei n° 109/ 2001, de 24.12);
Termos em que, e nos melhores de direito cujo suprimento antecipadamente se pede, deve a sentença revidenda ser substituída por outra que, efectivamente, contemple tudo quanto vem de alegar-se, assim se fazendo Justiça.

A Digna Procuradora– Adjunto sustentou o bem fundado da sentença recorrida pugnando pela improcedência do recurso.
Nesta instância o Exm° Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso interposto, sustentando que o art. o 145º do Código da Estrada ( versão anterior ao Decreto-Lei 44/2005, de 23 de Fevereiro) apenas comina, no seu nº 5, a responsabilidade subsidiária do proprietário pelo pagamento da cai ma e custas porque vier a ser condenado o infractor não a responsabilidade contra-ordenacional do proprietário por uma infracção que, no caso concreto, se comprova não ter cometido.

Foi dado cumprimento ao disposto no artº 417º, nº 2 do C.P.P.
Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir.
FUNDAMENTOS:
Os factos.
Dos autos resultam provados os seguintes factos:
No dia 4 de Dezembro de 2004, cerca das 23h50, na EN 16, Ratoeira, Celorico da Beira, o veículo ligeiro de passageiros matrícula 00-35-RR, não parou à luz vermelha, semáforo.
O 00-35-RR pertence ao arguido sendo habitualmente conduzido por B..., seu cunhado.
O arguido foi notificado para se pronunciar quanto aos autos de contra ordenação em 11.12.2004, e em dois dos processos em 9.2.2005.
No dia 4 de Dezembro de 2004, pelas 23h50, no local supra referido o veículo circulava na estrada transportando Rui Miguel Lourenço, Luís Costa, Hugo, Pedro e Sr. Armando, sendo conduzido por este último.
O arguido não tem averbado no seu registo individual de condutor qualquer infracção.
O arguido é motorista e aufere da sua actividade profissional cerca de € 700 a € 800, sendo que tal montante varia de acordo com os km que fizer.
É sócio-gerente de um armazém de tintas, não tendo qualquer remuneração por tal, para além dos lucros, se houver.
É casado, e a mulher é educadora de infância. Tem dois filhos com 19 e 14 anos, estudantes.
Paga mensalmente de empréstimo bancário relativo à aquisição de habitação própria cerca de € 300.
Não se provou que:
No dia 4 de Dezembro de 2004, cerca das 23h50, na EN 16, Ratoeira, Celorico da Beira, o veículo ligeiro de passageiros matrícula 00-35-RR, realizou uma ultrapassagem em local de passagem assinalada para peões (passadeira).
No dia 4 de Dezembro de 2004, pelas 22h05, na Rua Sacadura Cabral, Celorico da Beira, o veículo matrícula 00-35-RR circulava sem moderar especialmente a velocidade numa localidade e numa via pública onde existiam edifícios.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (Ac do STJ de 19/6/96, no BMJ 458-98).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal", III, pág. 335).

Questões a decidir:
Sem prejuízo do disposto no art. 410 n° 2 e 3 do CPP, o recurso aqui em causa restringe-se à matéria de direito, atento o que dispõe o art. 75 n° 1 do DL 433/82 de 27/10.
Assim que, a questão essencial suscitada no presente recurso consiste em saber se o arguido, notificado nos termos do artigo 152º do C. da Estrada – na redacção dada pelo DL. 256-A/2001 de 28/Setembro ( de ora em diante referido como C. da Estrada/2001) e que no prazo aí referido não deduziu qualquer tipo de oposição, não pode posteriormente em sede de impugnação judicial da decisão administrativa , suscitar a questão da identidade do condutor do veículo aquando da infracção, e se provado este pode ou não considerar-se tal facto para excluir da responsabilidade do arguido enquanto proprietário do veiculo em questão.

Dispõe o Artigo 134.º do C. Estrada, sob a epígrafe “ Pessoas responsáveis pelas infracções” que:

“1 Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a responsabilidade pelas infracções previstas neste Código e legislação complementar relativas ao exercício da condução recai no agente do facto constitutivo da infracção.
2 Quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou quem, em virtude de facto sujeito a registo, tiver a posse do veículo, é responsável pelas infracções relativas às disposições que condicionem a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas.”
... ...
... ...
Ou seja, em termos de responsabilidade contra-ordenacional, o legislador considera como responsável pela contra-ordenação o agente do facto que constitui a infracção, responsabilizando o proprietário , e apenas subsidiariamente, no que concerne ao pagamento da coima e custas por que vier a ser condenado o infractor – cfr. Nº 5 do artº 152º do mesmo diploma.

Dispõe por sua vez o artº Artigo 151.º do mesmo diploma, inserido no capítulo respeitante às disposições processuais e regras do processo, que:

“1 Quando qualquer autoridade ou agente de autoridade, no exercício das suas funções de fiscalização, presenciar contra-ordenação, levanta ou manda levantar auto de notícia, que deve mencionar os factos que constituem a infracção, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que foi cometida, o nome e a qualidade da autoridade ou agente de autoridade que a presenciou e tudo o que puder averiguar acerca da identificação dos agentes da infracção e, quando possível, de, pelo menos, uma testemunha que possa depor sobre os factos.
2...
3 O auto de notícia levantado nos termos dos números anteriores faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário.”


Ou seja, e no que ora nos interessa, o especial valor probatório conferido aos autos de notícia, neste normativo, estando como está limitado aos factos presenciados pelo autuante, não abrange necessariamente a indicação que dele conste quanto à identidade do condutor nos casos em que não tenha sido possível proceder a tal identificação no momento da autuação.


Ainda no âmbito das regras processuais, o Artigo 152.º dispõe sobre a responsabilidade (processual) pelas contra-ordenações, preceituando:
“1 Quando o agente de autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo.
2 Se, no prazo concedido para a defesa, for devidamente identificada como autora da contra-ordenação pessoa distinta das mencionadas no número anterior, o processo será suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.”
...
...
Perante o preceituado neste ultimo normativo tem-se sustentado que, se o proprietário , notificado nos termos do artº 152º do C. da Estrada, não fizer , no referido prazo previsto para a defesa – ou no prazo de 15 dias no caso do C. da Estrada de 1998 – a indicação de que outrem que não ele , era o condutor do veículo no momento da infracção, não o pode fazer mais tarde , nomeadamente em sede de impugnação judicial da decisão administrativa, entendendo que se verifica aqui uma presunção juris tantum, fixando a lei os termos em que a mesma pode ser ilidida - Cfr. Neste sentido o ac. deste tribunal da Relação de 06-03-2003 in CJ Ano XXVIII, t II, págs. 37, e, sufragando o entendimento e razões aduzida naquele acordão, o ac. da Relação de Guimarães de 10-03-2005 in www.dgsi.pt

Com o devido respeito pela posição assim expressa, cremos que não poderá ser acolhida a posição do tribunal recorrido, que segue a orientação perfilhada naqueles doutos acórdãos.

Por um lado, porquanto não se nos afigura que a letra da lei – concretamente o nº 2 do referido artº 152º do C. da Estrada/2001 – imponha uma limitação do âmbito da impugnação judicial nos termos em que é sustentado na referida orientação jurisprudencial acolhida na decisão recorrida.
Desde logo porquanto, sendo o processo penal – aplicável ex vi artº 66º do DL 433/82 de 27/10 - “direito constitucional aplicado” , tal interpretação restringe de forma que não vemos expressa na lei, o direito ao recurso , constitucionalmente consagrado – artº 18º nº 3 e artº 32º nº 1 da CRP.
O sentido do referido nº 2 do referido artº 152º do C. da Estrada/2001 haverá de ser encontrado na interpretação de que , só no referido prazo – previsto no nº 2 do artº 152º doo C. da Estrada de 2001 – será possível ao proprietário do veículo, sem necessidade de fazer ou apresentar qualquer prova de que não era ele o condutor no momento da infracção, opor-se à responsabilização por infracção contra-ordenacional , que lhe seja assacada apenas com fundamento nessa sua qualidade.

Acresce que, a inserção sistemática da norma em questão – o nº 2 do artº 152º do C. da Estrada de 2001, em capítulo respeitante à regulamentação dos procedimentos processuais, inculca a ideia de que se trata de uma responsabilização subsidiária , assente numa verdade “meramente processual”, que não pode sobrepor-se à verdade material, assente na produção de prova , pois que de outra forma estar-se-ia a subverter os princípios relativos à responsabilidade pelas contra-ordenações estradais , que o legislador fez constar em sede própria – que não em sede de normas processuais – nos termos do preceituado no já referido artº 134º do C. da Estrada/2001.

Por último ,com a interpretação que assim se sustenta não deixam de estar acautelados os interesses em causa, pois que mesmo em sede de impugnação judicial da decisão administrativa continuará a subsistir a responsabilização objectiva fixada no nº 1 do artº 152º do C. da Estrada de 2001 , se continuar persistir a impossibilidade de identificação do autor da infracção. Ou seja, não bastará ao proprietário do veículo que foi utilizado na prática de determinada contra-ordenação, alegar e mesmo provar que não era ele o condutor do veículo na ocasião. Necessário será que identifique quem era o condutor do veículo nessa mesma ocasião, e se essa indicação só for feita em sede de impugnação judicial, necessário será que faça prova de tal facto.

De salientar ainda que, em situações, como a que é referida no douto acordão deste tribunal Relação acima citado, em que o arguido paga voluntariamente a coima, os autos apenas poderão prosseguir relativamente à sanção acessória se esta for aplicável.

Isto dito, e revertendo aos autos, deles se extrai que o arguido A... não só não usou da faculdade de identificar, no prazo previsto no nº 2 do artº 152º do C. da Estrada/2001, quem conduzia o veículo em causa no momento em que foi cometida a infracção presenciada pelos agentes da autoridade e dada como provada nos autos, como também o não fez posteriormente, em sede de impugnação judicial, pois que se limitou a alegar que não conduzia o veículo em questão nas referidas condições de espaço e de tempo, sem identificar quem era efectivamente o condutor.
Por outro lado, e , quiçá, fruto desta posição “reservada” do aqui arguido em termos de impugnação judicial, em sede de audiência de julgamento, o que viria ter-se como provado, no que concerne ao condutor do veículo, foi apenas que o condutor era um tal “Sr. Armando” . Ora esta referência ,se é suficiente para ter como assente que não era o arguido o condutor do veículo na altura da infracção, é manifestamente insuficiente para se considerar como efectuada a identificação do referido condutor – veja-se a propósito o nº 3 do artº 171º do actual C. da Estrada .
Ora, como se deixou dito, o proprietário do veículo que tenha sido utilizado na prática de uma contra-ordenação , não tendo sido possível identificar o condutor, só se exime da responsabilidade que sobre ele recai por força do disposto no artº 152º nº 1 do C. da Estrada/2001 (artigo 171º nº 2 do actual C. da Estrada ) se providenciar ele mesmo por essa identificação. Porque tal não se verifica nos autos , subsiste a responsabilidade do arguido, não por força do artº 134º nº 1 do C. da estrada/2001, que o arguido diz violado pela sentença recorrida, mas por força do estatuído no artº 152º nº 2 do mesmo diploma legal.


Pelo exposto, e muito embora concordando-se em abstracto com o douto parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no caso dos autos temos de concluir que subsiste a responsabilidade do arguido pela contra-ordenação por que foi condenado, não podendo o recurso proceder.

Em conformidade com o exposto, acordam os juízes na secção criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, confirmar a decisão recorrida, ainda que por fundamentos diversos dos que dela constam.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça que se fixa em 6 Ucs.

Coimbra,