Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
147/23.5T8FND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: PROCESSO DE REVITALIZAÇÃO
NÃO APROVAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO
IMPEDIMENTO DE INSTAURAÇÃO DE NOVO PROCESSO
DIREITO DE ACESSO AOS TRIBUNAIS
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 17.º-G, N.º 8, 17.º-F, N.º 9, E 17.º-I DO CIRE E 20.º DA CONSTITUIÇÃO
Sumário: I – O termo de um processo de revitalização sem a aprovação – ou sem a homologação – de plano de recuperação determina, nos termos do n.º 8 do art.º 17.º-G e do n.º 9 do art.º 17.º-F do CIRE, que a empresa fique impedida, durante o prazo de dois anos, de recorrer a qualquer outro processo de revitalização, seja ele um processo instaurado e tramitado na sua modalidade comum (com vista ao estabelecimento de negociações com os credores, aprovação de plano de recuperação e posterior homologação judicial) seja ele um processo instaurado e tramitado na sua modalidade mais abreviada, nos termos do art.º 17.º-I (onde apenas se tem em vista a homologação de acordo que já foi obtido extrajudicialmente).

II – O impedimento em questão não viola o direito de acesso aos tribunais consagrado no art.º 20.º da CRP.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Apelação nº 147/23.5T8FND.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Castelo Branco - ... - Juízo Comércio

Des. Relatora: Maria Catarina Gonçalves

Des. Adjuntos: Maria João Areias

                               Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... S.A., com sede na Rua ..., ... ..., veio instaurar processo especial de revitalização, através da apresentação de acordo extrajudicial de recuperação, nos termos do disposto nos artigos 17º - I do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Juntou à petição inicial, entre outros documentos, a lista de credores (incluindo créditos no valor global de 7.581.997,53€) e um Acordo Extrajudicial de Recuperação, acompanhado da declaração de aceitação dos credores B..., Banco 1..., C.R.L., C... SA, D..., SA e E... S.A.R.L, cujos créditos (no valor global de 4.489.635,55) representam 59,21% do valor global dos créditos constantes da lista.

Por se ter constatado a existência de um PER anterior que ainda se encontraria pendente – e ao qual a Requerente não havia feito qualquer alusão – solicitou-se (por despacho de 27/02/2023) informação sobre o estado desse processo.

Na sequência desse facto, veio aos autos a seguinte informação:

- No âmbito desse PER – a que corresponde o processo n.º 4962/21.... – foi proferida decisão em 29/04/2022 que declarou encerrado o processo negocial nos termos do art.º 17.º-G. n.º 1, do CIRE por falta de apresentação do plano no prazo legal;

- Tendo sido interposto recurso dessa decisão pela Requerente/Devedora, o processo foi remetido, em 29/06/2022, para o Tribunal da Relação de Évora, onde ainda se encontra pendente;

- Mediante requerimento ali apresentado em 24/02/2023, a Requerente declarou desistir do PER apresentado, não existindo qualquer decisão a propósito desse requerimento.

Na sequência dessa informação, foi proferida despacho onde se decidiu nos seguintes termos:

Em face do exposto, e do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 17.º-G, n.º 8 e 27º do CIRE, aqui aplicado com as devidas adaptações, decide-se não nomear administrador judicial provisório, indeferindo o procedimento e encerrando o processo…”.

Inconformada com essa decisão, a Requerente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

1. A Recorrente veio instaurar os presentes autos de Processo Especial de Revitalização, através da apresentação de acordo extrajudicial de recuperação, nos termos do disposto nos artigos 17º - I e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

2. Foi proferida a sentença ora recorrida, de indeferimento liminar, que decidiu não nomear administrador judicial provisório, indeferiu o procedimento e ordenou o encerramento do processo, tendo-o feito ignorando por completo o facto da aqui Recorrente ter instaurado o processo especial de revitalização, nos termos previstos no artigo 17º-I do CIRE, ou seja, através da apresentação do acordo extrajudicial de recuperação, assinado por si e pelos credores que representam as maiorias de votos previstas nas alíneas b) e c) do n.º 5 do artigo 17.º-F.

3. A decisão recorrida assenta na conclusão de que a Autora estava impedida de apresentar novo PER, que, face à fundamentação da decisão e até à jurisprudência citada, o Tribunal recorrido entendeu tratar-se de processo instaurado nos termos previstos no artigo 17º-A e 17º-C do CIRE.

4. Embora a lei denomine ambos os processos – 17º-C e 17º-I – como «processo especial de revitalização», os regimes jurídicos de cada um deles são manifestamente diferentes.

5. A sentença ao não atender a este facto concreto e a considerar a mera instauração de um novo PER está ferida de nulidade, prevista no artigo 615º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil, porquanto não se pronunciou sobre questões que devesse apreciar. Ou seja, a decisão foi tomada sem que o Tribunal recorrido tivesse apreciado e tido em conta que foi instaurado o processo especial de revitalização nos termos do disposto no artigo 17º-I, com apresentação do acordo extrajudicial pela Autora e pelos credores que representam as maiorias previstas na lei.

6. É que se o Tribunal tivesse tido esse cuidado, saberia que não era aplicável a este processo instaurado de acordo com o regime jurídico previsto no artigo 17º-I o impedimento a que se refere o artigo 17º-G, nº 8, ambos do CIRE.

7. O processo especial de revitalização é um processo com uma natureza híbrida, misto de negociação extrajudicial e aprovação judicialmente homologada, sendo que, na modalidade prevista no artigo 17º- I do CIRE, é um processo abreviado, ao qual o devedor recorre depois de ter negociado com os seus credores e de ter obtido um acordo extrajudicial e apresentando já a adesão de dois terços dos seus credores.

8. O processado, em moldes abreviados, destina-se apenas a verificar a correção do quórum deliberativo e à homologação do acordo previamente obtido, se esse quórum se mostrar correto, resumindo-se a intervenção do Tribunal à nomeação inicial do administrador judicial provisório, à decisão sobre as impugnações da lista provisória de créditos e à homologação (ou recusa) do acordo extrajudicial.

9. E não se aplica aos processos especiais de revitalização, instaurados nos termos do artigo 17º- I do CIRE, o disposto no artigo 17º - G, nº 8 do CIRE, desde logo porque tal regime diz unicamente respeito aos processos especiais de revitalização instaurados nos termos do disposto nos artigos 17º-A e 17º-C do CIRE.

10. Aliás, caso tal disposição legal fosse de aplicar aos processos de revitalização instaurados nos termos do artigo 17º - I, a sua inclusão no texto da lei seria obrigatoriamente incluída após o artigo 17º-I e nunca antes.

11. Por outro lado, consta expressamente do próprio artigo «o termo do processo (…) efetuado de harmonia com os números anteriores», ou seja, resultante da empresa ou alguma das maiorias dos credores previstas nas alíneas a) a c) do n.º 5 do artigo anterior concluírem antecipadamente não ser possível alcançar acordo, ou caso seja ultrapassado o prazo previsto no n.º 7 do artigo 17.º-D, o que não sucede num processo instaurado nos termos do artigo 17º-I

12. Acresce que a lei refere a proibição da empresa recorrer ao «mesmo» (processo) pelo prazo de dois anos. Ou seja, não poderia constar da lei a expressão «mesmo» quando pretendesse referir-se a outro tipo de processos, designadamente o instaurado nos termos do 17º - I, e do próprio artigo já remeter para as causas do seu termo as próprias do processo previsto nos artigos 17º-A e 17º C.

13. Para além de tudo isto, a razão de ser para a existência de tal normativo é a de evitar «ao devedor instaurar sucessivos processos de revitalização sem ter que observar o referido período legal de carência, mesmo no caso de desistência da instância, sob pena de estar encontrada a forma ideal daquele fazer paralisar indefinidamente todas as ações judiciais para a cobrança de dívidas, pendentes ou a instaurar, assim como os processos de insolvência anteriormente instaurados» (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães: Processo: 1315/14.6TBGMR.G1, Relator: HEITOR GONÇALVES, Data do Acórdão: 25-06-2015, in www.dgsi.pt.).

14. Ora, é manifesto que no caso dos presentes autos, instaurados nos termos do disposto no artigo 17º - I, não há sequer tal risco, pois o mesmo não se inicia com a simples declaração assinada com um credor, mas com o acordo extrajudicial celebrado com a maioria dos credores, em que está previsto o plano de revitalização da empresa.

15. A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 17º-G, nº 8, e 17º-I, do CIRE.

16. Sem prescindir, para o caso, aliás não esperado, de se entender aplicável aos processos especiais de revitalização instaurados nos termos do 17º-I o estatuído no artigo 17º-G, nº 8, tal interpretação seria sempre considerada inconstitucional.

17. O plano aprovado resulta de um acordo efetuado extrajudicialmente, para a obtenção do qual relevou, total e essencialmente, a livre vontade - desde logo porque judicialmente incondicionada como acontece ou pode acontecer nos casos do processado iniciado nos termos do artigo 17º-C.

18. A interpretação do disposto no artigo 17º - G, nº 8, através da qual se determina a sua aplicação aos processos instaurados nos termos do artigo 17º-I, determina uma limitação aos direitos quer da própria devedora, quer de todos esses credores, violando a garantia de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos.

19. A interpretação colhida pelo Tribunal na decisão recorrida priva o direito da Autora, bem como dos seus credores, de acordarem extrajudicialmente um plano de revitalização da empresa e de pedirem a sua homologação aos Tribunais,

20. Sendo certo que os credores votaram livremente e no sentido da aprovação desse plano, porque o consideraram benéfico de acordo com os seus legítimos interesses, sendo alheios ao facto da Devedora ter desistido do PER anteriormente instaurado, nos termos do artigo 17º-C, há menos de dois anos.

21. Aliás, o indeferimento liminar da pretensão da Autora e dos Credores que assinaram o acordo extrajudicial, através da aplicação do disposto no artigo 17º-G, nº 8, na interpretação perfilhada, viola, em especial, o princípio constitucional do contraditório, tanto mais que nem sequer foram ouvidos os credores que assinaram e votaram o acordo, o que se reconduz à violação da garantia de acesso aos tribunais e do próprio princípio do Estado de Direito Democrático, inconstitucionalidade que expressamente se argui.

Termos em que deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente, com as legais consequências, como é de JUSTIÇA.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se o n.º 8 do art.º 17.º-G do CIRE é (ou não) aplicável ao processo previsto no art.º 17.º-I do CIRE (processo para homologação de acordo extrajudicial de recuperação de empresa), ou seja, saber se é (ou não) viável a instauração de processo nos termos previstos no citado art.º 17.º-I antes de decorrido o prazo previsto no n.º 8 do art.º 17.º-G;

· Caso se conclua não ser possível a instauração do processo antes do decurso daquele prazo, saber se essa interpretação padece de inconstitucionalidade por violação do direito de acesso aos tribunais previsto no art.º 20.º da CRP;

· Saber se foi violado o princípio do contraditório pelo facto de a pretensão ter sido indeferida sem ouvir os credores que haviam assinado o acordo extrajudicial cuja homologação judicial se pretendia aqui obter.


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III.

A decisão recorrida indeferiu (liminarmente) a pretensão da Apelante com fundamento no disposto no art.º 17.º-G, n.º 8, do CIRE, ou seja, pelo facto de ter recorrido a PER em momento anterior – no âmbito do qual foi proferida decisão que declarou encerrado o processo negocial por falta de apresentação no plano e onde, de qualquer forma e na pendência de recurso interposto dessa decisão, a Requerente declarou desistir do processo – sem que tivessem, entretanto, decorrido dois anos.

Discordando da decisão, sustenta a Apelante:

- Que a disposição legal que fundamentou a decisão – o n.º 8 do citado art.º 17.º-G – não é aplicável nos presentes autos, uma vez que está aqui em causa um processo previsto no art.º 17.º-I do CIRE (processo para homologação de acordo extrajudicial de recuperação de empresa) e este processo está submetido a regime diferente daquele a está submetido o processo de revitalização instaurado nos termos previstos nos artigos 17.º-A e 17.º-C, não lhe sendo aplicável o impedimento constante do citado n.º 8 do art.º 17.º-G;

- Que, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido não teve em conta que o processo instaurado era um processo especial de revitalização nos termos do disposto no artigo 17º-I, razão pela qual não se pronunciou sobre essa matéria e incorreu na nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC;

- Que, de todo o modo, a interpretação da lei no sentido de aquele impedimento ser aplicável ao processo aqui em causa sempre seria inconstitucional na medida em que determina uma limitação aos direitos quer da própria devedora, quer dos credores – privando-os de acordarem extrajudicialmente um plano de revitalização da empresa e de pedirem a sua homologação aos Tribunais – violando a garantia de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos;

- Que o indeferimento da pretensão viola o princípio constitucional do contraditório, sendo certo que nem sequer foram ouvidos os credores que assinaram e votaram o acordo.

Não encontramos, no entanto, razões válidas para adoptar a tese propugnada pela Apelante, segundo a qual o n.º 8 do art.º 17.º-G não obstaria
a que a empresa pudesse recorrer, antes de decorrido o prazo de dois anos aí referido, ao processo que agora veio instaurar, ou seja, um processo para homologação de acordo extrajudicial de recuperação de empresa previsto no art.º 17.º-I do CIRE.

Dispõe-se no n.º 8 do citado art.º 17.º-G que o termo do processo especial de revitalização efectuado de harmonia com os números anteriores – ou seja, sem a conclusão e aprovação de qualquer plano (porque se concluiu antecipadamente não ser possível alcançar acordo, porque a empresa pôs termo às negociações ou porque foi ultrapassado o prazo para conclusão das negociações) impede a empresa de recorrer ao mesmo pelo prazo de dois anos (refira-se que, conforme disposto no n.º 9 do art.º 17.º-F, o referido impedimento é também aplicável quando não seja homologado o plano que tenha sido concluído e aprovado e, conforme disposto no n.º 14 do mesmo artigo, será ainda aplicável quando o plano seja homologado e não se verifique nenhuma das situações aí ressalvadas).

Ora, ao contrário do que parece sustentar a Apelante, o processo instaurado, ao abrigo do art.º 17.º-I do CIRE, para homologação de acordo extrajudicial de recuperação de empresa não deixa de ser um processo especial de revitalização que, como tal, está abrangido pelo impedimento estabelecido mo n.º 8 do citado art.º 17.º-G.

É certo que o processo em questão está submetido a um regime que não coincide inteiramente com aquele a que estão submetidos os demais processos de revitalização, mas tal apenas acontece porque, ao contrário do que acontece por regra, a negociação com os credores e a conclusão de um acordo de revitalização não ocorre no âmbito do processo e é feita extrajudicialmente (antes, portanto, de instaurado o processo que, nessas circunstâncias, apenas tem como objectivo a homologação desse acordo extrajudicial). Assim, como dizem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[1], “regula-se especificamente o que é singular e emerge de se arrancar processualmente a partir de um acordo preexistente entre devedor e credores; acolhe-se toda a disciplina que não seja incompatível; afasta-se a aplicação dos normativos que não se harmonizam com a espécie em consideração”.

Todavia, não obstante as especificidades desse regime – que são impostas, como se disse, pelo facto de o processo se iniciar com um acordo já existente (negociado e concluído extrajudicialmente) –, continua a estar em causa um processo de revitalização. É um processo de revitalização com uma tramitação mais célere e abreviada, mas é um processo de revitalização. Veja-se que o processo em questão se encontra inserido no capítulo que regula o processo de revitalização e, além do mais, a circunstância de estar em causa um processo de revitalização também resulta claramente do n.º 1 do art.º 17.º-I quando ali se diz que “O processo previsto no presente capítulo pode igualmente iniciar-se pela apresentação pela empresa de acordo extrajudicial de recuperação…” (sublinhado e negrito nosso).

Ora, estando em causa – como está – um processo especial de revitalização, impõe-se concluir que ele está abrangido pelo impedimento estabelecido mo n.º 8 do citado art.º 17.º-G. Com efeito, estabelecendo-se aí que, nas circunstâncias aí descritas, a empresa está impedida de recorrer ao processo de revitalização pelo prazo de dois anos, sem fazer qualquer ressalva, será seguro afirmar que esse impedimento abrange qualquer processo desse tipo, independentemente de estar em causa o processo com a tramitação comum ou o processo com tramitação mais abreviada que se inicia com a apresentação de um acordo extrajudicial.

Refira-se, além do mais, que nem faria sentido que fosse de outro modo.

Veja-se que, por força do disposto no n.º 5 do art.º 17.º-I, a não homologação do acordo extrajudicial apresentado no âmbito de processo de revitalização na modalidade mais abreviada impede a empresa de recorrer a outro processo de revitalização no prazo de dois anos e, portanto, nenhuma razão existiria para considerar que a conclusão de um processo de revitalização na sua modalidade mais abrangente sem aprovação de qualquer plano ou sem a respectiva homologação não obstasse a que a empresa recorresse ao processo de revitalização na modalidade prevista no art.º 17.º-I.

É essa também a conclusão que se impõe se tivermos em conta os objectivos visados pelo legislador com aquele impedimento.

Na verdade, o que o legislador pretendeu foi evitar que o processo de revitalização fosse utilizado de forma abusiva (isso mesmo foi referido na exposição de motivos da proposta de lei n.º 39/XII que veio a dar origem à Lei n.º 16/12 de 20/04) e em prejuízo dos credores. O que se pretendeu – como referem Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis[2] – foi “impedir que o PER e os efeitos a ele associados (nomeadamente ao nível da limitação e da compressão dos direitos dos credores sobre o devedor) sejam instrumentalizados e abusados (…) se o recurso ao PER não fosse limitado, o devedor poderia, em conluio com um credor, apresentar sucessivos processos especiais de revitalização e dessa forma impedindo que os credores exercessem os seus direitos contra si”.

Sendo esse o objectivo do referido impedimento, poder-se-ia sustentar que ele não abrangia o processo de revitalização na modalidade prevista no art.º 17.º-I caso as particularidades deste regime afastassem a compressão e limitações dos direitos dos credores que são inerentes ao processo de revitalização. Sucede que não é isso que acontece, uma vez que, ainda que se inicie com a apresentação de um acordo extrajudicial já concluído, nos termos previstos no citado art.º 17.º-I, ele também implica as restrições/limitações dos direitos dos credores previstas no art.º 17.º-E, conforme determina expressamente o n.º 5 do art.º 17.º-I.

Nessas circunstâncias, ao contrário do que pretende a Apelante, nenhuma razão existe para considerar que o impedimento previsto no n.º 8 do art.º 17.º-G não se aplique e não abranja os processos de revitalização que sejam instaurados nos termos previstos no art.º 17.º-I.

Conclui-se, portanto, em face do exposto, que o termo de um processo de revitalização sem a aprovação – ou sem a homologação – de plano de recuperação determina, nos termos acima mencionados, que a empresa fique impedida, durante o prazo de dois anos, de recorrer a qualquer outro processo de revitalização, seja ele um processo instaurado e tramitado na sua modalidade comum (com vista ao estabelecimento de negociações com os credores, obtenção de acordo de revitalização e posterior homologação judicial) seja ele um processo instaurado e tramitado na sua modalidade mais abreviada, nos termos do art.º 17.º-I (onde apenas se tem em vista a homologação de acordo que já foi obtido extrajudicialmente).

Em face do que foi dito, também não faz sentido a invocação da nulidade da sentença por omissão de pronúncia nos termos do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), porque não faz sentido dizer que a sentença não considerou e não apreciou o facto de estar em causa um processo instaurado nos termos do art.º 17.º-I. Na verdade, conforme dissemos, o processo instaurado ao abrigo da citada disposição legal continua a ser – tal como os demais – um processo especial de revitalização – ainda que com tramitação mais abreviada por se iniciar a partir de um acordo já existente e não visar, por essa razão, o estabelecimento de negociações com os credores – e para os efeitos que estavam em causa (o impedimento previsto n.º 8 do art.º 17.º-G) esse facto era irrelevante, conforme dissemos. Não existia, portanto, qualquer questão que tivesse relevância para a decisão e que não tivesse sido considerada e apreciada pela decisão recorrida.

Sustenta ainda a Apelante – para o caso de se entender (como, de facto, entendemos) que aquele impedimento é aplicável aos processos instaurados ao abrigo do art.º 17.º-I – que essa interpretação é inconstitucional, na medida em que determina uma limitação aos direitos quer da própria devedora, quer dos credores – privando-os de acordarem extrajudicialmente um plano de revitalização da empresa e de pedirem a sua homologação aos Tribunais – violando a garantia de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos. Acrescenta que o indeferimento da pretensão também viola o princípio constitucional do contraditório, sendo certo que nem sequer foram ouvidos os credores que assinaram e votaram o acordo.

Também neste ponto, a Apelante não tem razão.

No que toca ao princípio do contraditório, não vislumbramos em que termos ele teria sido violado pelo facto de a decisão de indeferimento ter ocorrido sem ouvir os credores que assinaram o acordo. Com efeito, os referidos credores nada pediram ao tribunal e não são partes no processo; não foram eles que instauraram a acção e não foram eles que vieram pedir a homologação do acordo que celebraram com a devedora. Nessas circunstâncias, nenhuma razão existiria para que fossem chamados a pronunciar-se sobre a questão que se colocava ao tribunal e que veio a determinar o indeferimento da pretensão formulada, tanto mais que essa questão nem sequer se relacionava com a regularidade do acordo celebrado, mas sim com uma circunstância que apenas respeitava à empresa e que se prendia com o facto de estar legalmente impedida de recorrer ao PER.

Quanto ao mais, também não vislumbramos como a interpretação da lei aqui adoptada poderá violar o princípio do acesso aos tribunais consagrado no art.º 20.º da CRP. 

Na perspectiva da Apelante, a interpretação da lei em questão viola o aludido princípio constitucional porque limita os direitos da devedora e dos credores que aceitaram o plano, impedindo-os de acordarem extrajudicialmente um plano de revitalização da empresa e de pedirem a sua homologação aos Tribunais.

Refira-se, em primeiro lugar, que, se assim fosse, ou seja, se essas limitações e impedimentos traduzissem uma violação daquele princípio constitucional, o que seria inconstitucional seria a própria norma que está aqui em causa (o n.º 8 do art.º 17.º-G) e não apenas a sua aplicação aos processos instaurados nos termos do art.º 17.º-I do CIRE, porque, em qualquer caso, ela sempre limita os direitos da devedora e dos credores, na medida em que, nas circunstâncias nela descritas, impede, durante determinado período, o recurso ao PER para o efeito de obter a homologação de um acordo de revitalização (seja ele um acordo obtido no âmbito do próprio processo de revitalização, seja ele um acordo extrajudicial previamente obtido).

Entendemos, no entanto, que o referido impedimento/limitação não traduz qualquer violação do direito constitucional em questão.

O direito de acesso aos tribunais tem sido caracterizado como “…um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitandose, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras»[3].

Conforme se diz no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 960/96 de 10/07/1996[4], “Para além do direito de acção, que se materializa através do processo, compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do orgão jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da sentença proferida pelo tribunal[5].

Esse direito de acesso aos tribunais – constitucionalmente garantido – não significa, no entanto, que esse acesso possa ser efectuado em qualquer circunstância e sem submissão a quaisquer regras ou limitações e, portanto, não significa que o legislador ordinário não possa regular os pressupostos de que depende esse acesso, os prazos a observar e as regras/restrições a que está submetido, desde que essa regulação/disciplina e as restrições impostas não sejam arbitrárias, onerosas e excessivas ao ponto de dificultarem, de forma arbitrária e desproporcionada, o exercício dos direitos, criando, na prática, uma situação de impossibilidade de acesso aos tribunais para exercício e defesa dos direitos[6].

Ora, apesar de a norma em questão restringir a possibilidade de recurso ao PER, essa restrição não pode ser vista como violadora do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido; trata-se de uma restrição de carácter meramente temporário que actua como pressuposto de exercício do direito de recurso a esse processo e que, visando a protecção de outros interesses dignos de protecção, não pode ser vista como arbitrária e desproporcionada, evidenciando-se, pelo contrário, como perfeitamente adequada e proporcionada face aos interesses em jogo. Com efeito, sendo certo, conforme já se referiu, que o processo de revitalização implica uma série de restrições e limitações aos direitos dos credores, aquilo que se pretendeu com o impedimento em questão foi evitar que a empresa – auxiliada por um ou alguns dos seus credores – possa usar e instrumentalizar o processo para o efeito de paralisar, por tempo ilimitado e por via da instauração sucessiva de vários processos, o exercício dos direitos dos seus credores. Não se compreenderia, portanto, que, sob o pretexto de assegurar o direito de acesso da empresa aos tribunais, se permitisse a instauração de processos sucessivos de revitalização, paralisando, por essa via, o normal exercício dos direitos de credores.

Entendemos, portanto, em face do exposto, que não ocorre qualquer violação do direito de acesso aos tribunais. A Apelante já teve acesso – como lhe era assegurado por lei – ao processo de revitalização onde teve a oportunidade de negociar com os seus credores no sentido de obter a aprovação de um plano de revitalização e, não o tendo conseguido, terá novamente a possibilidade de recorrer ao mesmo processo logo que decorram os dois anos referidos na lei. Não pode, por isso, afirmar-se que lhe esteja a ser negado o direito de acesso aos tribunais; o que lhe é negado por lei é a possibilidade de recorrer a esse processo durante um determinado período temporal após o encerramento de outro processo da mesma natureza e, tendo em conta os interesses em jogo, esse impedimento, de carácter temporário, não é arbitrário e não é desproporcionado, conformando-se, por isso, com aquele direito constitucional.

Improcede, portanto, o recurso e confirma-se a decisão recorrida.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


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IV.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

                              Coimbra, 2023/05/02

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                  (Maria João Areias)

                                                      (Paulo Correia)                    




[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 182.
[2] PER – O Processo Especial de Revitalização, pág. 168.
[3] Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 86/88 e 934/96 de 13/04/1988 e 10/07/1996, respectivamente, disponíveis em https://www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Disponível em https://www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Também nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, pág. 163.
[6] Sobre esta matéria, podem ver-se o Acórdão do STJ de 13/05/2014 (processo n.º 16842/04.5TJPRT.P1.S1)  e o Acórdão da Relação do Porto de 22/04/2013 (processo n.º 16842/04.5TJPRT.P1), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.