Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4622/20.5T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FALCÃO DE MAGALHÃES
Descritores: ACÇÃO DE DIVÓRCIO
CONFISSÃO
Data do Acordão: 04/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 354.º, ALÍNEA B), E 361.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: Em acção de divórcio, as declarações de uma das partes que sejam contrárias ao seu interesse não podem ser atendidas como confissão, por respeitarem a factos relativos a direitos indisponíveis; podem, no entanto, ser valoradas livremente pelo tribunal.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:1
 
I - A) - 1) - 2«[…] AA propôs a presente acção com processo especial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, contra BB, pedindo que, na sua procedência, seja decretado o divórcio entre as partes.
Alega, para tanto, em síntese e no essencial, que desde 19.05.2020, altura em que a ré comunicou ao autor, através de Advogado, a intenção de divórcio, nunca mais se relacionaram como marido e mulher, tendo cessado qualquer convivência entre ambos e não existindo por banda do autor qualquer propósito de manter a vida em comum.
Invoca como fundamento do pedido o preceituado nos art. 1672º e 1781º, al d) do CC.
Procedeu-se à tentativa de conciliação, não tendo sido viável a reconciliação do casal ou a conversão dos autos em divórcio com o consentimento de ambos. A ré contestou, alegando que em 18.05.2020, o autor foi encontrado, pelo filho, com uma senhora dentro do carro e que, confrontado com tal atitude, deixou de falar com a família, incluindo a mulher. Pugnou assim pela improcedência da acção.
Foi proferido despacho saneador, sem audiência prévia, nos termos constantes de fls. 36, ficando fixados o objecto do litígio e os temas da prova, sem que tenham sido objecto de reclamação. […]». *

2) - Prosseguindo os autos os seus ulteriores termos, veio a ter lugar a audiência final, após o que foi proferida sentença (em 16.12.2021) que, julgando procedente a acção, decretou o divórcio entre o autor e a ré, com a consequente dissolução do casamento celebrado entre ambos no dia 11.02.1979 (assento de casamento nº …5 do ano de 2012 da Conservatória do Registo Civil ...).

3) - Desta sentença recorreu a Ré, tendo o recurso sido admitido como Apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo. *
B) – a) - É esse recurso de Apelação que ora cumpre decidir e em cujas alegações a Recorrente oferece as seguintes conclusões:
«1 - O Tribunal a quo decretou o divórcio entre a recorrente e o recorrido com base, essencialmente, nos seguintes factos que deu como provados:

a) no ponto 2) dos factos provados, que em "Maio de 2020, a ré, através de Mandatário, transmitiu ao Autor a intenção de se divorciar do mesmo - doc. de fls. 6 verso";

b) no ponto 3), que "Desde o referido em 2), embora continuem a residir dentro da mesma casa, Autor e Ré passaram a fazer vida autónoma um do outro, pois deixaram de dormir na mesma cama, de comer juntos, de falar um com o outro, de se relacionar sexualmente, de prestar apoio, assistência ou auxílio mútuo, nunca mais tendo convivido como casal";

c) no ponto 4, que "Nenhuma das partes pretende restabelecer a vida em comum".

2 - E o Tribunal a quo chegou àqueles factos com base, de acordo com a fundamentação, nas declarações de parte prestadas pela ré (recorrente) por iniciativa oficiosa do Tribunal (como consta da própria ata) conjugadas com o depoimento prestado pelas testemunhas inquiridas.

3 - Na verdade, a M.ª Juíza a quo baseou a sua convicção, essencialmente, no depoimento da ré, uma vez que as testemunhas, relativamente aqueles factos, apenas tinham um conhecimento indireto, pois apenas sabiam o que o autor lhes transmitiu ou quis transmitir.

4 - Sucede que estamos num processo de divórcio sem o consentimento de um dos cônjuge, em que estão em discussão direitos indisponíveis, e onde, por isso mesmo, não é admissível a possibilidade de um dos cônjuges, no caso em concreto da ré, ser ouvida em depoimento de parte, muito menos o seu depoimento ser valorado.

5 - É verdade que, de acordo com o disposto no art. 452º do C.P.C., a parte pode ser ouvida em declarações de parte, podendo o seu depoimento ser determinado oficiosamente pelo Juiz.

6 - Resulta, contudo, do disposto do n.º 1 do art. 352.º e n.º 2 do art. 356.º, ambos do C.C., que o depoimento de parte visa a confissão, mas, o art. 354.º, al.
b) do C.C. prescreve que a confissão não faz prova contra o confitente se recair sobre factos relativos a direitos indisponíveis.

7 - Por outro lado, o art. 466.º do C.P.P., referente à prova por declarações de parte, não permite que as declarações de parte sejam determinadas oficiosamente pelo Tribunal, só podendo ser requerida pela própria parte.

8 - Ora, todos os factos sobre os quais a ré foi inquirida (basta ouvir a sua inquirição gravada no sistema integrado Habilus Media Studio, das 10:01:47 horas às 10:11:05 horas do dia 22.11.2021) dizem respeito a factos que constituem impugnação dos factos alegados pelo autor como fundamento do pedido de divórcio, ou seja, o seu depoimento incidiu unicamente sobre a parte confessória.

9 - Não sendo, por isso, admissível a prestação do seu depoimento, uma vez que a sua admissibilidade pressupõe a possibilidade de confissão decorrente da natureza dos factos sobre que incide.

10 - Ao ter sido determinado o depoimento de parte da ré, o Tribunal a quo violou de forma clara e flagrante o disposto no art. 354.º, al. b) do C.C., tendo feito má aplicação do disposto nesse artigo e no art. 452.º do C.P.C., por ter-se baseado em prova inadmissível, neste sentido vide, entre outros, Ac. da RL de 10/04/2014 e Ac. RL de 10/01/2019, ambos in "www.dgsi.pt".

11 - Sendo, assim, os factos dos pontos 2), 3) e 4) dos factos provados foram erradamente dados como provados. [...]».
 Terminou, defendendo que se alterasse a decisão recorrida nos termos pugnados nas alegações, e, dando-se provimento ao recurso, se julgasse a ação improcedente, com absolvição da ré do pedido.

*
b) – Na resposta à alegação de recurso, o Apelado veio pugnar pela improcedência deste, mais peticionando a condenação da Recorrente “...como litigante de má-fé, por enquadramento da sua conduta no disposto no artigo 542º n.º 1 e 2 alíneas a) e d) do CPC, em multa e indemnização ao recorrido em valor justo.”.
*
C) - Em face do disposto nos art.ºs 635º, nºs 3 e 4, 639º, nº 1, ambos do novo Código de Processo Civil3 (doravante, NCPC, para o distinguir do Código que o precedeu, que se passará a identificar como CPC), o objecto dos recursos delimita-se, em princípio, pelas conclusões dos recorrentes, sem prejuízo do conhecimento das questões que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608º, n.º 2, “ex vi” do art.º 663º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, “questões”, para efeito do disposto no n.º 2 do artº 608º do NCPC, são apenas as que se reconduzem aos pedidos deduzidos, às causas de pedir, às excepções invocadas e às excepções de que oficiosamente cumpra conhecer, não podendo merecer tal classificação o que meramente são invocações, “considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes”4 e que o Tribunal, embora possa abordar para um maior esclarecimento das partes, não está obrigado a apreciar.
Assim, as questões a solucionar no presente recurso, consistem em saber:

- Se é de proceder à alteração da decisão proferida quanto à matéria de facto; - Se está correcta, em face da factualidade que se tenha como provada, a decisão de decretar o divórcio de A e R., tomada pelo Tribunal “a quo”.

- Se é caso de condenação da Recorrente como litigante de má fé, e, sendo-o, qual a condenação a proferir.

*
II – a) - Na sentença “sub judice”, foi a seguinte, a decisão proferida quanto à matéria de facto:
«[…] Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1) Autor e Ré celebraram entre si casamento católico, com convenção antenupcial onde estipularam o regime da comunhão geral de bens, no dia 11.02.1979– doc. de fls. 5 verso e 11 e ss.
2) Em Maio de 2020, a Ré, através de Mandatário, transmitiu ao Autor a intenção de se divorciar do mesmo - doc. de fls. 6 verso.
3) Desde o referido em 2), embora continuem a residir dentro da mesma casa, Autor e Ré passaram a fazer vida autónoma um do outro, pois deixaram de dormir na mesma cama, de comer juntos, de falar um com o outro, de se relacionar sexualmente, de prestar apoio, assistência ou auxílio mútuo, nunca mais tendo convivido como casal.
4) Nenhuma das partes pretende restabelecer a vida em comum.
5) Por carta datada de 30.06.2020, o Autor, através de Mandatário, interpelou a
Ré para esta informar se mantinha a intenção de divórcio – doc. de fls. 7.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com relevo e/ou em contradição com os anteriores e, nomeadamente:

- até há cerca de um ano antes da propositura da acção, a relação do casal fosse normal para um casal e casamento de mais de 40 anos, nos termos mencionados no art. 3º da petição inicial,

- o filho tenha encontrado o autor numa segunda-feira, dia 18.05.2020, em ..., no carro com uma senhora totalmente desconhecida da família. […]».

*
b) - A decisão proferida quanto à matéria de facto e a discordância da Ré no que a ela respeita:
A primeira observação que urge fazer, atento os termos das “conclusões” da alegação de recurso (cfr. “conclusão 9ª), é que a questão que ora se nos coloca não pode ser a da admissibilidade, ou a da inadmissibilidade, do depoimento da Autora, porque nesse plano, ou seja, na perspectiva da Autora, o da inadmissibilidade do seu depoimento de parte, o despacho que determinou a prestação deste último, proferido na audiência de 22 /11 2021, onde estava também presente o ilustre Mandatário da Autora, transitou em julgado, já que, não foi impugnado em recurso autónomo, no prazo de 15 dias (ou seja, até 7/12/2021, ou, nos termos do artº 139, nº 5, do NCPC, até 10/12/2021), como o poderia ser à luz dos artºs 644º, nº 2, d), “in fine”, 645º, nº2 e 647º, nº 1, todos do NCPC.
Assim, o que está agora em causa é a questão da eficácia probatória das declarações confessórias prestadas pela Autora no âmbito desse depoimento determinado oficiosamente.
Efectivamente, defende a Apelante que os factos dos pontos 2), 3) e 4) dos factos provados foram erradamente assim julgados, sustentando, em síntese, que tais factos, sendo-lhe desfavoráveis, foram dados como assentes, essencialmente – já que, alega, o revelado pelas testemunhas do Autor configura depoimento indirecto, resultante daquilo que lhes foi contado por este -, em função daquilo que ela própria afirmou nesse referido depoimento. Ora, prossegue a Apelante, o depoimento que prestou nos termos apontados não podia ter sido atendido pela julgadora, pois que o mesmo incidiu sobre factos contrários aos seus interesses, razão pela qual a admissão da veracidade de tais factos, v.g., os vertidos nos pontos nºs 2, 3 e 4, dos factos provados, não poderia fazer prova contra ela na presente acção de divórcio, conforme o art. 354.º, alínea b) do C.C., já que estão em causa direitos indisponíveis.
Vejamos.
Embora o que foi determinado pela Exma. Juíza, face ao depoimento prestado pela testemunha CC, haja sido a prestação, pela Ré, de esclarecimentos, o que importa é que, estando assinado na acta o “art. 452º nº 1 do CPC”, o que a Ré afirmou, em seu desfavor, ao Tribunal, a coberto desse despacho, foi utilizado na sentença  para escorar a prova do fundamento da acção, e como as declarações em causa não se ficaram por um esclarecimento pontual, mais propriamente se podem entender como consubstanciando um depoimento de parte, que, aliás, é a epigrafe do artigo 452º que se consignou em acta.
E isto assim é independentemente de, na fundamentação da sentença, se ter referido, reportando-se ao afirmado em audiência pela Ré, como “declarações de parte prestadas pela ré, por iniciativa do tribunal”.
Seja como for, de harmonia com o disposto no artº 289º, nº 1, do CPC “não é permitida confissão, desistência ou transação que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis.”.
E se bem que, no caso da acção de divórcio, seja livre a desistência do pedido
(artigo 289.º, n.º 2, do NCPC), já a confissão, v.g., dos factos que integram o respectivo fundamento, não faz prova contra o respectivo confitente (“ex vi” al.
b) do artigo 354.º do Código Civil), uma vez que a acção versa sobre o estado das pessoas e, consequentemente, sobre direitos indisponíveis.
Contudo, estabelece o artº 361º do CC, que “O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente.”.
Ora, entendendo o artº 361º do CC como aplicável à confissão de factos relativos a direitos indisponíveis5, portanto, à confissão que não pode funcionar como tal, e, assim, constituir prova plena de tais factos, há-que coerentemente, extrair o regime que resulta da harmonização de tal preceito com a norma da al. b) do artigo 354.º do Código Civil.
E da conjugação dos apontados normativos pode resultar, segundo cremos, o entendimento de que as declarações do depoente, ainda que em processo de divórcio, contrárias ao seu interesse e que não possam ser atendidas como confissão, por respeitarem a factos relativos a direitos indisponíveis, podem ser valoradas livremente pelo Tribunal.
Assim, seguindo tal entendimento, tais declarações, embora não podendo gozar da força probatória da confissão, poderiam ser objecto da livre apreciação por parte do Tribunal e, consequentemente, em lugar de determinar, inexoravelmente, a prova dos factos respectivos, como sucederia se atendidas como declarações confessórias, apenas seriam susceptíveis de concorrerem para habilitar a que o Tribunal, apreciando-as livremente e sopesando-as a par dos restantes elementos probatórios, formasse a sua convicção quanto a ter, ou não, como provada, tal factualidade.
E é esse o entendimento que perfilhamos, e que quanto a nós, se conforta no seguinte trecho do Manual de Processo Civil, de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Coimbra Editora, 1984, págs. 533 e 534): «[…]
Entre os direitos indisponíveis especialmente visados pela limitação da confissão destacam-se os relativos ao estado das pessoas.
Quer isto significar que a confissão não é eficaz, por exemplo, nas acções de vindicação da legitimidade do filho ou de impugnação da paternidade, nas acções de investigação de paternidade (…) ou de maternidade, nas acções de anulação do casamento, de divórcio e de separação e noutras de análoga natureza, em relação aos factos que   interessam à relação controvertida (…).
Neste caso, o que repugna à lei não é o reconhecimento do facto, mas a subordinação da livre averiguação da verdade à declaração unilateral ou isolada de uma pessoa.
O que a lei não reconhece é a força vinculativa do reconhecimento feito pela parte, nada impedindo a audição da parte sobre o facto, que o juiz apreciará livremente. […]». (o sublinhado é nosso).
Também Rodrigues Bastos sustenta6: “Segundo o Código Civil a confissão só é eficaz quando feita por pessoa com capacidade e poder para dispor do direito a que o facto confessado se refira (art. 353).  Esta regra diz respeito aos efeitos probatórios da confissão, os quais dependem, assim, da capacidade jurídica do confitente. O nº 1 do artigo em anotação formula regra idêntica para a capacidade judiciária do deponente, fazendo aplicação do disposto no artigo 9º; a 2ª parte do nº 2 contém disposição que, em rigor, é de direito material, mas que não está em oposição com o que se dispõe no Código Civil.”. A este propósito convirá marcar a distinção que existe entre o depoimento de parte e a confissão; aquele é só o meio de provocar esta, e assim, tal como pode haver depoimento sem haver confissão, também pode haver reconhecimento da realidade de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária, a que não possa atribuir-se eficácia confessória específica, designadamente se o depoente não tiver a necessária capacidade jurídica para dispor do correspondente direito; esse reconhecimento só valerá, então, como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente, como dispõe o art.361.º do Código Civil.”.
Na jurisprudência, realça-se o Acórdão desta Relação de Coimbra, de 23/06/2015 (proferido na apelação nº 1534/09.7TBFIG.C1 e relatado por Henrique Antunes)7, onde se escreveu:
«[…] A circunstância de a essas declarações não poder ser atribuído o valor de confissão, não impede a sua livre valoração, dado que se não for possível atribuir ao meio de prova qualquer dos valores que a lei lhe atribui em abstracto, é sempre possível atribuir-lhe um desses valores, o que é confirmado pela regra de que o reconhecimento de factos desfavoráveis que não possa valer como confissão, sempre vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente (artº 361 do Código Civil). E a correcção deste entendimento do problema é confirmada pela consagração, no Código de Processo Civil dito novo, de um novo meio de esclarecimento e convicção: a prova por declarações de parte (artº 466 do nCPC).
Deve, portanto, julgar-se perfeitamente admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal, como sempre sucederá, de resto, no caso de acção relativa a direitos indisponíveis em que a confissão se tem por inadmissível (artº 354 b) do Código Civil). […]».
Do exposto resulta que, as declarações da Autora quanto aos pontos de facto nºs 2), 3) e 4), embora se não possam ter como confessórias e, portanto, possuir a força probatória a isso correspondente, podem ser objecto da livre apreciação do Tribunal e, assim, se confortadas por outros elementos de prova, v.g., os depoimentos das testemunhas CC e DD, justificar a prova da factualidade vertida nesses pontos.
A Autora também se mostra discordante quanto à valoração dos depoimentos de tais testemunhas, relativamente à prova dos factos vertidos nos pontos nºs 2), 3) e 4), defendendo que aqueles “…pouco mais são do que depoimentos indiretos, ou seja, o que sabem é apenas aquilo que o autor lhes referiu…”. Diga-se, para já, que segundo se julga, para defender cabalmente o que quer que fosse relativamente a tais depoimentos, v,g, a natureza de depoimentos indirectos que lhes imputa, deveria a Apelante ter dado cumprimento, quanto aos mesmos, ao ónus que lhe era imposto pela alínea a) do nº 2 do artº 640º do NCPC.
Seja como for, sempre se dirá que nada obsta, efectivamente, a que contribuam para a formação da convicção do tribunal os factos relatados pela testemunha, ainda que esta deles não haja tomado conhecimento directo. “A prova testemunhal não tem como limite legal o conhecimento directo dos factos. “Qualquer facto enunciado por uma testemunha pode legalmente influenciar a convicção do julgador.” - Acórdão do STJ de 18-12-2003 (Revista n.º 2987/03 - 2.ª Secção). «Apesar de o julgador ter de usar das máximas cautelas na valoração das provas indirectas, designadamente depoimentos indirectos, esses meios probatórios não estão proibidos, havendo até situações em que são as únicas provas possíveis de recolher e de aceitar, como as que respeitem a factos passados na intimidade do lar.» (Acórdão do STJ, de 22/11/2007, Revista n.º 3082/07 - 1.ª Secção)8.
Ora, os depoimentos das testemunhas CC e DD, revelam o conhecimento, da sua parte, dos factos vertidos nos pontos nºs 2), 3) e 4), respeitantes à relação conjugal entre os ora litigantes, revelando que tal factualidade lhes veio sendo  transmitida, de forma casual, ao longo do tempo, pelo Autor, com quem se relacionavam há muito, sendo, pois, depoimentos com valia suficiente a, conjugados com uma livre apreciação do depoimento da Autora, dar como assente a factualidade constante de tais pontos.
E para melhor se evidenciar o exposto, transcreve-se, exemplificativamente, um
extracto do afirmado pela Autora em julgamento, quanto perguntada pela Mma. Julgadora:
Mma. Juiz: Diz aqui que em Maio do ano passado a Senhora pediu o divórcio. É verdade?
Autora: Em Maio do ano passado, no dia 18, porque o meu filho apanhou o meu marido com uma mulher na ....
Mma. Juiz: Mas pediu o divórcio?
Autora: Pedi, sim senhor.
Mma. Juiz: Em Maio de 2020? 
Autora: Pois foi…. já fez um ano e meio.
Mma. Juiz: Portanto, diz o seu filho que o viu com outra mulher?
Autora: Viu, viu, viu.
Mma. Juiz: E a Senhora não quer mais nada com o senhor?
Autora: Desde esse Maio até Janeiro ele dormiu comigo, Senhora Doutora; Mma. Juiz: Dormiu consigo?
Autora: Até Janeiro neste ano que …ainda não veio outro de Janeiro;

Mma. Juiz: Bom. Mas a Senhora pediu o divórcio em Janeiro de 2020? 
Autora: Pedi, pedi.
Mma. Juiz: Mas porque é que pediu…?  Porque não queria mais nada com ele?
Autora: Porque o meu filho apanhou-o com outra mulher.
Mma. Juiz: Volto a perguntar: Pediu o divórcio porque não queria mais nada com ele?
Autora: Não. Pedi o divórcio porque ele andava com outras mulheres.
Mma. Juiz: E a Senhora…estou-lhe a perguntar, não queria mais nada com ele?
Autora: Sim, sim, senhora doutora, sim; Mma. Juiz: E ainda é essa a sua vontade?
Autora: E a minha vontade é essa.
Mma. Juiz: E até Janeiro ainda dormiram na mesma cama?
Autora: Dormimos, dormimos.
Mma. Juiz: E depois nunca mais falavam com outro?
Autora: Não, não, não.
(…)
Mma. Juiz: Olhe… e a intimidade do casal de homem e mulher, já não têm desde há quanto tempo?
Autora: Ah, então senhor doutora, desde, desde Maio do ano passado.
Mma. Juiz: Desde Maio de 2020 que não há qualquer intimidade?
Autora: Não, não, senhora doutora.
Mma. Juiz: Dormem na mesma cama, mas já não há nada?
Autora: Não, agora já não dormimos.
Mma. Juiz: Mas quando dormiam, também já não havia nada?
Autora: Não soutora, não.
Mma. Juiz: Portanto a sua ideia é divorciar-se deste senhor?
Autora: É, é, é, é.
Mma. Juiz: Pronto.
Ora, perante os elementos de prova acima apontados e o que já ficara exposto, não vemos que tenha havido ilegalidade ou erro de valoração, ao dar-se como provada a factualidade que ficou vertida nos pontos nºs 2), 3 e 4) do elenco dos factos provados.
Deste modo, a matéria de facto que este Tribunal tem como provada e como não provada é aquela que assim foi julgada na sentença recorrida e que mais acima ficou discriminada.
*
III – Mantendo-se inalterada a matéria de facto que alicerçou o decretamento do divórcio, importa dizer apenas que a sentença recorrida – para a qual se remete -, aplicando correctamente o direito aos factos apurados, concluiu, com acerto, ter, o Autor, sobre quem incidia o ónus da prova nos termos do art. 342º, nº1, do CC, provado o fundamento de divórcio previsto no art. 1781º, al.
d) do CC, pelo que, como esse fundamento, decretado o divórcio entre o Autor e a Ré, com a consequente dissolução do casamento celebrado entre ambos no dia 11.02.1979.
Merecendo esta decisão a nossa plena concordância, importa, finalmente, abordar o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé.
O Autor, para fundar esse pedido, alegou, em síntese:
“(…)
Que a Ré “…face do presente recurso, parece pretender atingir um objetivo manifestamente incompreensível e, mais do que isso, ilegal, e, mais do que entorpecer ou protelar uma decisão, a recorrente, com o presente recurso, pede que o tribunal profira uma decisão contra aquilo que é a sua inequívoca vontade, declarada de forma pessoal, expressa e inequívoca, em audiência de julgamento, e uma decisão que na prática redundaria na manutenção de um casamento que por única iniciativa da recorrente não existe desde maio de 2020, obstando a um divórcio que ela própria pediu desde então, mantendo um vínculo que exige o cumprimento de obrigações que a recorrente em absoluto deixou de cumprir desde essa data,
(…)
Salvo o muito e devido respeito, a descrita postura da recorrente integra o conceito de litigância de má-fé prevista no artigo 542º n.º 1 e 2 alíneas a) e d) do CPC. (…)”.
Ora, se é certo que a Ré, como se viu, em audiência de julgamento, declarou pretender divorciar-se do Autor, nada nos diz que a sua posição anterior, posterior a um passado desejo de se divorciar, não era, precisamente, a que plasmou na contestação, nem nada a impedia de, ponderando melhor, após o julgamento, ter tomado resolução diferente e, consequentemente, como era seu direito, ter interposto recurso com argumentação jurídica que, embora não seja a que perfilhamos, é defensável.
De acordo com o nº 2 do artº 542º, do NCPC (n.º 2, do art.º 456° do CPC), litiga de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A condenação por litigância de má fé tem de se ancorar em factos comprovadamente praticados no processo, ou nele apurados, relevantes para a sorte da lide, de onde resulte, pois, que a conduta do litigante - que se exige praticada com dolo ou negligência grave -, integra um dos comportamentos tipificados nas várias alíneas acima reproduzidas do citado artº 542º, nº 2.
Ora, no caso presente, embora a Apelante tenha assumido, estranhamente, ao longo do processo (e mesmo antes dele) posições antagónicas relativamente ao divórcio, entendemos, porém, salvo o devido respeito, que a respectiva conduta processual não patenteia, de forma inequívoca, que esta tenha - com dolo ou negligência grave -, adoptado qualquer dos comportamentos tipificados nas várias alíneas acima reproduzidas do citado artº 542º, nº 2, pelo que não se condenará a Ré como litigante de má fé.
* IV - Decisão: 
Em face de tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
- Não condenar a Ré como litigante de má fé;
- Julgando a Apelação improcedente, confirmar a sentença recorrida.

Custas pela Apelante (artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6, 663º, nº 2, todos do NCPC). 
 
26/4/20229
 
  (Luiz José Falcão de Magalhães)
  (António Domingos Pires Robalo)                                                  (Sílvia Maria Pereira Pires)
 
 
                                                 
1 Segue-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2 Transcrição de extracto do relatório da decisão recorrida.
3 Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, e que entrou em vigor em 01/09/2013.
4 Acórdão do STJ, de 06 de Julho de 2004, Revista nº 04A2070, embora versando a norma correspondente da legislação processual civil pretérita, à semelhança do que se pode constatar, entre outros, no Ac. do STJ de
13/09/2007, proc. n.º 07B2113 e no Ac. do STJ de 08/11/2007, proc. n.º 07B3586, todos consultáveis em “http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase”.
5 Como é o entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição, pág.
318.
6 -Notas ao Código de Processo Civil, III vol., 1972, pág. 117, em anotação ao artº 553º.
7 Consultável em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf?OpenDatabase.
8 Acórdãos sumariados em “https://www.stj.pt/?page_id=4471”.
9 Processado e revisto pelo Relator.