Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
162/06.3TBVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: RECURSOS DE CASSAÇÃO E DE SUBSTITUIÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO DA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE DIREITO
SEU CONHECIMENTO OFICIOSO
Data do Acordão: 12/02/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE VILA NOVA DE FOZ CÔA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 510º, Nº 1, AL. B), E 712º, Nº 4, CPC
Sumário: I – A insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo é uma questão de conhecimento oficioso para o Tribunal da Relação.

II – Determina tal desvalor, quando se não mostre possível o exercício pela 2ª instância de poderes de cognição substitutivos dos da 1ª instância, a formulação, em sede de recurso, de um juízo de rescisão ou cassatório, ou seja, de um juízo reportado à própria decisão recorrida (recurso de cassação), e não de um juízo reportado à causa julgada pela decisão recorrida (recurso de substituição) – artº 712º, nº 4, do CPC.

III – A questão da suficiência ou insuficiência da matéria de facto adquire uma particular importância quando está em causa uma decisão que prescindiu da ulterior fase (normal) de julgamento, por se considerar já habilitada, sem necessidade de mais provas, a conhecer imediatamente do mérito da causa – artº 510º, nº 1, al. b), do CPC.

IV – Uma decisão deste tipo, quando existam outros factos alegados mas ainda não provados, pressupõe necessariamente um juízo (segundo um critério objectivo) de irrelevância absoluta desses outros factos, pois só nessa base se pode prescindir do respectivo apuramento.

V – Parece ser inquestionável que, estando em causa como contrato prometido um contrato de trespasse, para o qual era exigido, ao tempo da sua celebração (Agosto de 1999), escritura pública – artº 115º, nº 3, do RAU, aprovado pelo D. L. nº 321-B/90, de 15/10, na redacção anterior ao D. L. nº 64-A/2000, de 22/04 – que, requerendo o contrato definitivo escritura pública, essa seja também a forma requerida pelo contrato-promessa para o efeito de aquisição do estatuto correspondente à eficácia real, nos termos do artº 413º, nº 2, do C. Civ..

VI – A aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos, além de que as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio do dispositivo.

VII - Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo Tribunal, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso.

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

1. A... e mulher, B... (AA., Reconvindos e neste recurso Apelados), demandaram C... (R., Reconvinte e aqui Apelante), invocando a propriedade de um prédio urbano sito em Vila Nova de Foz Côa, cujos 2º e 3º andares seriam ocupados – sem título, acrescentam os AA.[1] – pelo R., formulando, em função desta situação, os seguintes pedidos [expressamente referidos ao artigo 1311º do Código Civil (CC)]:



“[…]
[Ser] o R. condenado a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio urbano melhor identificado em 1º desta petição inicial, em toda a sua extensão e composição, incluindo os 2º e 3º andares que dele fazem parte integrante; [e], consequentemente.
[ser] o R. condenado a restituir os 2º e 3º andares do citado prédio, inteiramente devolutos de pessoas e bens;
[…]”
            [transcrição de fls. 5]

            1.1. O R. contestou e deduziu reconvenção a fls. 28/32, aceitando que a propriedade do imóvel pertence aos AA., invocando, todavia, enquanto título que reputa legitimador da (sua) ocupação dos indicados 2º e 3º andares desse prédio, o contrato (que junta e que se encontra a fls. 33/35) denominado “Contrato Promessa de Trespasse de Estabelecimento Comercial e Arrendamento de Espaço[2].

Neste contrato, D... e mulher, E... (então donos do prédio aqui reivindicado e antecessores nessa qualidade dos AA.), enquanto primeiros outorgantes, prometeram trespassar-lhe (a ele R., como segundo outorgante) o estabelecimento comercial denominado “F...”, existente nesses 2º e 3º andares do prédio reivindicado [identificados no contrato (cláusula primeira respectiva, v. fls. 33) como ocupando “[…] toda a fracção C de um seu prédio urbano, em propriedade horizontal, sito na Rua de Santo António, nº 9, V. N. de Foz Côa, inscrito nas finanças sob o artigo 2323º”][3].

            Neste mesmo contrato (o contrato junto a fls. 33/35) deram os referidos primeiros outorgantes (donos do prédio) de arrendamento ao R., aí segundo outorgante, o “[…] espaço ocupado pelo estabelecimento «F...» […]”[4].

            Ainda em sede de contestação incluiu o R. o seguinte trecho argumentativo:


“[…]
26. E desta factualidade têm os AA. conhecimento, pois, pelo menos desde Setembro de 1999, que têm conhecimento que o R. adquiriu o estabelecimento comercial «F...» e tomou o espaço correspondente ao 2º e 3º andares de arrendamento a D... e mulher, E...:
27. Uma vez possuírem, pelo menos, desde essa altura, um estabelecimento comercial do Rés-do-Chão do imóvel, inscrito na matriz sob o artigo nº 2323º da freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa.
28. Pelo que litigam de má fé.
[…]”
            [transcrição de fls. 31]

            1.1.1. Dentro da mesma peça processual inseriu o R. – desta feita na veste de Reconvinte – um pedido reconvencional (fls. 31/32) reportado à condenação dos AA. (neste contexto Reconvindos), formulado nos seguintes termos:

“[…]
a) Ser reconhecido o R. como dono, possuidor proprietário do estabelecimento comercial «F...», o qual ocupa de arrendamento o 2º e 3º andar[s] do artigo nº 2323º da freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa.
b) Ser reconhecido o R. como arrendatário do 2º e 3º andare[s] do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo nº 2323º da freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa.
[…]”
            [transcrição de fls. 32]

            1.2. Responderam os AA./Reconvindos (fls. 38/42) invocando não ser o contrato-promessa de trespasse – na falta de eficácia real – eficaz relativamente a eles, acrescentando ser esse mesmo contrato, na vertente referida ao arrendamento, nulo por falta de forma, já que não foi celebrado por escritura pública, e por “impossibilidade do objecto”, já que não existe uma fracção C, dado o prédio não se encontrar em propriedade horizontal.

            1.3. Com esta resposta findou a fase dos articulados, proferindo a Exma. Juíza a quo, por considerar preenchida a previsão do artigo 510º, nº1, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC), o despacho Saneador-Sentença de fls. 89/99 (constitui este a decisão objecto do presente recurso), julgando, desde logo, a acção procedente e o pedido reconvencional improcedente, através do seguinte pronunciamento decisório:


“[…]
a) Condeno o R. C... a reconhecer o direito de propriedade dos AA., A... e B..., sobre o prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares, com 275 m2, logradouro com 650 m2 e anexo com 27 m2, sito na R. de Santo António, freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa, confrontando a Norte com Luís Jorge Conde e António Júlio Branco, a Sul com Rua Pública, a Nascente com Fernando Augusto Alípio e a Poente com Carlos Alberto Pires, inscrito na matriz predial sob o artigo 2323º e descrito na conservatória do Registo predial de Vila Nova de Foz Côa, sob o nº 2578/19991025;
b) Condeno o R. C... a restituir aos AA. os referidos 2º e 3º andares, inteiramente devolutos de pessoas e bens;
c) Absolvo os AA. do pedido de reconhecimento do direito de propriedade do R. sobre o estabelecimento comercial denominado «F...», que, desde 1 de Setembro de 1999, vinha ocupando os 2º e 3º andares do prédio urbano. Sito na R. de Santo António, freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2323º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Foz Côa, sob o nº 2578/19991025;
d) Absolvo os AA. do pedido de reconhecimento do direito do R. ao arrendamento dos 2º e 3º andares do prédio urbano, sito na R. de Santo António, freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa, inscrito na matriz predial sob o artigo 2323º e descrito na conservatória do Registo predial de Vila Nova de Foz Côa, sob o nº 2578/19991025.
[…]”
            [transcrição de fls. 98/99]

            Para alcançar este resultado considerou a decisão apelada, no seu iter argumentativo, ineficaz relativamente aos AA. a promessa consubstanciada no contrato de fls. 33/35 e “substancialmente” nulo o contrato de arrendamento (qualificou-o como tal, e não como promessa de arrendamento), por impossibilidade física e legal do respectivo objecto.

            1.3.1. Fundamentando a primeira asserção – a respeitante à promessa de trespasse – escreveu-se no Saneador-Sentença:


“[…]
[O] regime jurídico aplicável ao caso em apreço é o vigente à data da celebração do contrato-promessa (28/08/1999), ou seja, o DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro, alterado pelo DL nº 257/95, de 30 de Setembro, que [exigia], repita-se, a celebração de escritura pública de trespasse de estabelecimento comercial.
Voltando ao caso sub judice, cumpre referir que, se o contrato prometido exigia a outorga de escritura pública, também o contrato-promessa, para ter eficácia real devia ter respeitado tal validade formal.
Resulta, no entanto, dos autos (cfr. doc. de fls. 33 a 35) que o R. e os demais outorgantes apenas procederam ao reconhecimento notarial das assinaturas apostas no contrato-promessa.
Nessa medida, a promessa outorgada tem eficácia meramente obrigacional, não vinculando terceiros (in casu os AA.), posteriores adquirentes de direitos sobre a mesma coisa.
Improcede, nesta parte, consequentemente, a argumentação do R. C..., segundo a qual a celebração do contrato-promessa de trespasse de estabelecimento comercial o legitimaria a ocupar o 2º e 3º andares do prédio […] propriedade dos AA..
[…]”
            [transcrição de fls. 96]

            1.3.2. Quanto à segunda questão – nulidade do contrato de arrendamento – fundou-se o Saneador-Sentença na consideração deste contrato como “formalmente” válido (e repete-se que não o considerou como promessa)[5], ancorando a nulidade que entendeu subsistir – a qual qualificou de “substancial” –, nas seguintes considerações:


“[…]
[R]esulta das cláusulas nºs 1 e 5 do referido contrato que o arrendamento comercial teria como objecto a fracção C do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, […].
No entanto, confrontando o teor das certidões de registo e matriz junta aos autos a fls. 8 a 15, pode verificar-se que o imóvel em causa não está constituído em regime de propriedade horizontal, nem se encontra dividido em quaisquer fracções autónomas, nomeadamente a citada fracção C.
Assim, assiste razão aos AA. quando referem ser física e legalmente impossível determinar o objecto do negócio jurídico celebrado entre o R. e os demais outorgantes do contrato de arrendamento.
O que gera nulidade desse negócio jurídico, nos termos do artigo 280º, nº 1 do Código Civil.
[…]”
            [transcrição de fls. 97/98]


   

1.4. Como se indicou, é a este Saneador-Sentença que se refere o presente recurso de apelação, interposto pelo R./Reconvinte a fls. 103, admitido a fls. 105 e motivado a fls. 128/141, formulando o recorrente as conclusões que aqui se transcrevem nos pontos essenciais para a economia do presente recurso:


“[…]
A. O Tribunal a quo laborou em erro de julgamento na apreciação da matéria de direito. Na verdade,
B. A decisão recorrida – despacho Saneador-Sentença – viola o disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC, uma vez este preceito legal, proibir as decisões surpresa, pelo que, impõe-se sempre a formulação de um convite às partes para tomarem posição sobre qualquer questão de conhecimento oficioso do tribunal antes de apreciar e decidir com base nesse conhecimento, sob pena de ser cometida uma nulidade processual […].
C. Resulta dos autos de forma clara e inequívoca ter o Tribunal conhecido oficiosamente de questões de direito […] sem antes ter convidado as partes a pronunciar-se sobre as mesmas, tendo havido pois a postergação do princípio do contraditório […].
[…]
F. Errou ainda o Tribunal a quo ao considerar o documento junto com a Contestação/Reconvenção, com o título de contrato-promessa de trespasse e arrendamento de espaço como ferido de nulidade por vício de forma.
G. É que tal documento […] não se encontra ferido de qualquer nulidade, contrariamente ao referido no despacho Saneador-Sentença, já que se encontra conforme com os requisitos dos artigos 410º, nºs 1 e 2 e 219º do Código Civil.
H. Mais, […] com a celebração do referido contrato-promessa […], houve tradição da coisa – estabelecimento comercial «G...» – coisa essa que desde o dia 1 de Setembro de 1999, tendo havido a entrega das chaves do estabelecimento, passando a ser explorado pelo Apelante, no seu próprio interesse, como dono do estabelecimento, ali recebendo pessoas para dormir, procedendo à sua limpeza, etc..
I. A tradição para a Apelante do estabelecimento comercial «G...», foi pois acompanhada do espaço ocupado por aquele, tal como se alcança, do contrato-promessa de trespasse e de arrendamento de espaço e dos recibos de renda emitidos pelos promitentes-trespassantes-locadores […], para além de que, em caso de trespasse com tradição da coisa, o direito ao arrendamento é, em regra, um dos elementos da universalidade transmitida.
[…]
L. Ora, com o contrato-promessa de trespasse e consequente posse do estabelecimento comercial «G...» para o Apelante transferiu-se o direito de arrendamento, direito de arrendamento que é confirmado pelo alegado nos autos e melhor se alcança dos recibos de renda emitidos pelos promitentes vendedores ao Apelante […].
[…]
N. Assim, tendo havido tradição do bem prometido vender […], tendo o Apelante pago a importância de 5.000.000$00 a título de sinal e pagamento do preço, estando demonstrado nos autos que houve incumprimento por parte dos promitentes-vendedores-locadores, goza o Apelante da garantia de retenção da coisa (estabelecimento comercial) com todos os seus elementos transmitidos, nos quais se destaca a ocupação do local, isto é, do 2º e 3º andar do prédio urbano.
O. Só assim, através do exercício do direito de retenção (artigos 758º e 759º do Código Civil), o qual tem natureza real de garantia, pode o Apelante ver garantido de forma efectiva o seu direito de crédito, gerando pelo incumprimento dos promitentes vendedores (artigo 759º, nº 2 do Código Civil), pois, estes últimos receberam de sinal do Apelante a importância de 5.000.000$00.
[…]
Q. Aquele contrato não é um contrato de trespasse e arrendamento, mas sim um contrato-promessa de trespasse e de arrendamento, pelo que, salvo melhor e douta opinião, está conforme com os requisitos do artigo 410º, nº 1 e 2 e 219º do Código Civil, pelo que, errou o Tribunal a quo quando declarou a nulidade do mesmo.
R. Mais, o Tribunal a quo para conhecer da nulidade do referido contrato […] tinham de estar nos autos todos os seus contraentes, pelo que não estando nos autos os promitentes vendedores […] não podia declarar a nulidade do mesmo […].
[…]”
            [transcrição de fls. 137/141]

            Os RR./Apelados responderam a fls. 154/159, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.


II – Fundamentação


            2. Importa consignar, desde já, que as conclusões formuladas pelo Apelante a culminar as suas alegações – conclusões transcritas nos seus elementos essenciais no item anterior – operaram a delimitação temática do objecto do presente recurso de apelação (artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, ambos do CPC[6]). Por referência às questões plasmadas nas conclusões, o recurso apenas poderá prescindir de as apreciar quando a sua decisão esteja logicamente prejudicada pela solução dada a outras questões, e apenas poderá ir além delas na medida em que a lei lhe permita, ou imponha, o conhecimento oficioso de qualquer outra questão, mesmo que não suscitada nessas conclusões. É este, em resumo, o regime resultante do artigo 660º, nº 2 do CPC.

Ora, tendo presente esta última alusão a questões passíveis de apreciação oficiosa na instância de recurso, cumpre sublinhar a natureza de questão de conhecimento oficioso da respeitante à insuficiência da matéria de facto fixada pelo tribunal a quo. Determina tal desvalor, quando se não mostre possível o exercício pela 2ª instância de poderes de cognição substitutivos dos da 1ª instância, a formulação, em sede de recurso, de um juízo de rescisão ou cassatório, ou seja, de um juízo reportado à própria decisão recorrida, e não de um juízo reportado à causa julgada pela decisão recorrida[7]. É este o regime decorrente do nº 4 do artigo 712º do CPC[8], compreendido à luz da articulação entre os poderes substitutórios – que são os predominantes no nosso sistema de recursos – e os poderes cassatórios dos tribunais de recurso[9].

Prosseguindo na senda da apreciação preambular de questões que a ulterior exposição pressuporá – as quais assumem, por isso, especial relevância argumentativa na economia deste Acórdão –, ocorre sublinhar que a questão da suficiência ou insuficiência da matéria de facto adquire uma particular importância quando está em causa – e é o que aqui sucede – uma decisão que prescindiu da ulterior fase (normal) de julgamento, por se considerar já habilitada, sem necessidade de mais provas, a “[c]onhecer imediatamente do mérito da causa […]” (artigo 510º, nº 1, alínea b) do CPC). É que este tipo de Decisão – a que optou por um conhecimento antecipado do mérito da causa – forma, nos termos do artigo 510º, nº 3 do CPC, caso julgado material[10] e, como tal, tem necessariamente de pressupor o exercício dos poderes de controlo da decisão de facto emergentes do artigo 712º do CPC, incluindo nestes, obviamente, os decorrentes do nº 4 desta disposição[11].

Questão complementar desta última – e continuamos a tecer considerações instrumentais de ordem geral –, prende-se com o controlo da própria decisão que subjaz à apreciação do mérito da causa em sede de despacho saneador, na asserção de considerar tal causa apta para um julgamento de mérito. Uma decisão deste tipo, quando existam outros factos alegados mas ainda não provados, pressupõe necessariamente um juízo de irrelevância absoluta desses outros factos, pois só nessa base se pode prescindir do respectivo apuramento. Ora, tal juízo, que a nossa doutrina desde sempre considerou dever ser exercido parcimoniosamente[12], deverá assentar, como sublinha Abrantes Geraldes, num critério “objectivo e não subjectivo”, pois, acrescenta o mesmo Autor:


“[…]
Apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas.
Que a lei não aponta para critérios de ordem meramente subjectiva do juiz do processo é uma constatação que emerge logo do disposto no artigo 712º, nº 4 [do CPC]. Com efeito, segundo tal preceito, a Relação «mesmo oficiosamente» pode anular a decisão da 1ª instância (e ordenar a realização de julgamento para apuramento da matéria de facto controvertida) «quando considere indispensável a ampliação da matéria de facto».
Ora, se assim é, não parece que haja vantagens em avançar imediatamente para a decisão de mérito sem primeiro averiguar, em concreto, de entre os factos controvertidos, quais os que, interessando potencialmente a qualquer das saídas permitidas pelo sistema legal, se devem considerar provados.
[…]
Daí que, em conclusão, nos pareça que a antecipação do conhecimento de mérito para a fase do saneador deve supor o apuramento de todos os factos que permitam uma solução final segura.
[…]”[13]

            Todas estas considerações de natureza geral serão pressupostas na ulterior exposição, radicando-se nelas, em grande medida, o pronunciamento decisório que este Tribunal emitirá no final.

2.1. Cumpre, antes de mais, consignar quais os factos pressupostos pela decisão apelada[14], sendo que eles, além de admitidos por ambas as partes, se encerram (e se esgotam) no teor das certidões de registo constantes de fls. 8/11 e 12/15[15], bem como no teor do documento de fls. 24/26[16], para os quais, aliás, a decisão apelada remete amiúde, podendo tais factos ser aqui enunciados – como o deveriam ter sido na decisão recorrida – nos seguintes termos:


A. Existe, na Rua de Santo António, em Vila Nova de Foz Côa (Freguesia e Concelho), um prédio urbano composto de Rés-do-chão, 1º, 2º e 3º andares, com 275 m2, logradouro com 650 m2 e anexo com 27 m2, confrontando a Norte com Luís Jorge Conde e António Júlio Branco, a Sul com Rua Pública, a Nascente com Fernando Augusto Alípio e a Poente com Carlos Alberto Pires, inscrito na matriz predial sob o artigo 2323º e descrito na conservatória do Registo predial de Vila Nova de Foz Côa, sob o nº 2578/19991025;
B. Tal inscrição tinha como titulares activos, até 12/07/2000, D... e E...;
C. Em 12/07/2000, tendo como causa “Partilha Subsequente a Divórcio”, passou tal inscrição a ter como titular activo (por aquisição) E...;
D. Em 07/06/2006, tendo como causa “Compra”, passou tal inscrição a ter como titular activo (por aquisição) A... casado segundo o regime de comunhão de adquiridos com B...[17];
E. Datado de 26/08/1999, D... e mulher E..., assumindo a qualificação de “Primeiro Outorgante”, e C..., assumindo a qualificação de “Segundo Outorgante”, assinaram e rubricaram o documento de fls. 33/35, intitulado “Contrato Promessa de Trespasse de Estabelecimento Comercial e Arrendamento de Espaço”, cujo texto e demais elementos (designadamente o reconhecimento presencial das assinaturas de todos os Outorgantes) aqui se dão por integralmente reproduzidos[18].

            2.1.1. Foram estes, conforme ressalta dos autos, os factos pressupostos pela decisão apelada, os quais, com base num juízo valorativo de suficiência e desnecessidade de outros, determinaram a opção, implícita no Saneador-Sentença, de considerar inútil a elaboração de uma especificação mais ampla e, principalmente, de uma base instrutória, através da selecção de mais “[…] matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito […]”, como se refere no nº 1 do artigo 511º do CPC (o sublinhado é, obviamente, acrescentado).

            A questão que se coloca é, assim, a de determinar se a solução seguida pela primeira instância, consistente no mencionado antecipar da decisão final para a fase de saneamento, não se traduziu no descartar precipitado de outras soluções plausíveis dessa mesma questão, através de um prematuro fechar da porta à averiguação de outros factos alegados – mas ainda não provados – que alicerçariam essas (plausíveis) decisões-outras não encaradas pelo julgador, mas que as partes têm o direito de ver apreciadas, já que apresentam potencialidade modeladora da decisão.

            É o que importa averiguar neste recurso, partindo da caracterização da acção proposta pelos AA. e tendo presente a dialéctica argumentativa por ela desencadeada entre estes e o R..

            2.2. Estamos perante uma típica acção de reivindicação (artigo 1311º do CC) – e esta constatação traduz o ponto de partida de toda a subsequente argumentação –, dirigida à restituição de parte de um prédio (os seus segundo e terceiro andares) cuja ocupação pelo R. é qualificada como desprovida de título. O R. seria, na alegação conformadora da lide feita pelos AA., um detentor sem direito algum, pretendendo estes, enquanto proprietários, adjectivar face a ele a plenitude do respectivo direito, entendida como a possibilidade de excluir outros do uso da coisa objecto desse direito. É neste sentido que a acção de reivindicação funciona como modelo adjectivo paradigmático das chamadas “razões absolutas” que caracterizam os direitos reais[19].

            A esta pretensão reivindicatória contrapõe o R., reconhecido por ele e demonstrado que está, o direito de propriedade dos AA., o contrato constante de fls. 33/35, enquanto elemento bloqueador ou de evitação – chamemos-lhe assim – da restituição da coisa[20]. Tudo se reconduz, assim, expressando a essência da presente acção, à apreciação das virtualidades bloqueadoras dessa restituição apresentadas pelo tal “Contrato Promessa de Trespasse de Estabelecimento Comercial e Arrendamento de Espaço”, invocado pelo R./Apelante.

            Ora, a este respeito, ocorre sublinhar o carácter algo peculiar desse contrato apresentado pelo R., traduzido na circunstância de combinar ele, no mesmo documento (no mesmo contrato), duas espécies contratuais nominadas: uma promessa, referida a um trespasse de estabelecimento, e um contrato de arrendamento referido ao espaço ocupado pelo estabelecimento prometido trespassar (adiante apreciaremos se esta asserção – o contrato é de arrendamento e não de promessa de arrendamento – poderia ser assumida sem mais no contexto do despacho aqui recorrido).

Claro que esta natureza dúplice do contrato em causa, que mais não representa que o exercício da liberdade contratual plasmada no artigo 405º, nºs 1 e 2 do CC[21], introduz uma perspectiva específica na questão do posicionamento desse contrato face à pretensão de reivindicação dos AA.. Com efeito, e a argumentação do R./Apelante vai nesse sentido (e foi esse o percurso argumentativo do Saneador-Sentença), importa determinar da virtualidade bloqueadora da pretensão dos AA./Apelados apresentada por cada uma dessas (duas) naturezas do contrato: a natureza de contrato-promessa de trespasse e a de contrato de arrendamento (ou de promessa de arrendamento), sendo que, em qualquer um dos casos (para sermos rigorosos, em qualquer dos três casos), a apreciação dessa projecção do contrato na pretensão dos AA. deverá ter em conta a circunstância de serem estes últimos “terceiros” relativamente a esse contrato[22].

            2.2.1. Começando pela dimensão contratual respeitante à promessa de trespasse, consideramos a argumentação expendida na decisão, não obstante algo confusa, essencialmente correcta, no que tange à asserção da falta de eficácia real desse contrato – ou, melhor dito, do contrato nessa dimensão.

Parece-nos inquestionável, com efeito, que estando em causa como contrato prometido um contrato de trespasse, para o qual era exigida, ao tempo da celebração (Agosto de 1999), escritura pública [artigo 115º, nº 3 do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº 64-A/2000, de 22 de Abril[23]], parece-nos inquestionável, dizíamos, que, requerendo o contrato definitivo escritura pública, essa seja também a forma requerida pelo contrato-promessa para o efeito de aquisição do estatuto correspondente à eficácia real, nos termos do artigo 413º, nº 2 do CC[24]. Aliás, para a atribuição desse efeito, sempre faltaria – e remetemos aqui para o texto do próprio contrato junto aos autos – uma declaração expressa nesse sentido e a inscrição no registo (v. artigo 413º, nº 1 do CC). Note-se, porém, e esta observação é feita secundando o que se diz na decisão recorrida a fls. 96, que enquanto promessa (de trespasse) vinculativa para os respectivos contraentes (o ora Apelante e os aí indicados como “Primeiros Outorgantes”), o contrato adoptou a forma prescrita pelo artigo 410º, nº 2 do CC (documento escrito assinado por ambas as partes; v. fls. 35).

Ainda na vertente respeitante à promessa de trespasse, importa ter presente que o contrato indicia a existência de tradição da coisa, embora a coisa – e sublinhar este aspecto é particularmente relevante – seja aqui, tão-só, a universalidade correspondente ao estabelecimento comercial, não integrando o espaço físico deste, objecto que foi tal espaço da outra vertente (a vertente locatícia) do contrato. Da mesma forma, indicia o texto contratual um propósito expresso de pagamento, neste caso reportado aos elementos do estabelecimento com excepção do locado, de um sinal (v. cláusulas primeira, alínea b) e cláusula segunda, alínea a) do contrato a fls. 33, cfr. artigo 441º do CC). Note-se, a propósito do uso da expressão indiciar referida à concretização das cláusulas do contrato, que o que se pretende sublinhar é que a verificação dessas circunstâncias concretas (entrega da coisa e pagamento do sinal), na sua projecção relativamente aos aqui Apelados (que não foram parte nesse contrato), foi no essencial impugnada (veja-se o articulado de resposta de fls. 38/42 e concretamente os artigos 1º e 2º a fls. 38), devendo ser considerada matéria controvertida, no quadro da presente acção, o que exigiria – exigirá, como veremos adiante – a sua quesitação, com a elaboração da competente base instrutória e o consequente prosseguimento do processo.

Embora continuemos a referir-nos ao estabelecimento, e não ainda ao espaço do locado, interessa esta questão à possível configuração de um direito de retenção, emergente do artigo 755º, nº 1, alínea f) do CC, aspecto que apreciaremos na subsequente exposição a propósito da vertente contratual referida ao locado, para a qual é transferível – poderá sê-lo em determinado sentido – a argumentação ora expendida a propósito do direito de retenção. Seja como for, importa sublinhar desde já a natureza desse direito, enquanto direito real de garantia, natureza que lhe confere eficácia erga omnes, tornando-o oponível a qualquer terceiro adquirente da coisa[25].

Em todo caso, e é o que aqui nos interessa ter presente, configura em termos gerais a questão do direito de retenção (da averiguação dos pressupostos de integração deste) um elemento inquestionavelmente respeitante a uma solução plausível da questão de direito configurada pelo R. na sua defesa (artigo 511º, nº 1 do CPC), que como tal deveria ter sido considerado na fase de condensação, através da elaboração da pertinente base instrutória.

2.2.2. Importa ponderar agora a questão do arrendamento do espaço correspondente aos dois andares reivindicados, sendo relativamente a este elemento (e não tanto ao trespasse do estabelecimento como universalidade exorbitante desse espaço[26]) que a contra-pretensão do Apelante adquire um especial significado, em termos que potenciam, na base do apuramento ulterior de outros elementos ainda incertos, um possível efeito bloqueador da pretensão reivindicatória dos AA..

2.2.2.1. Configura-se como primeira questão relevante a este respeito a da qualificação da vertente do contrato de fls. 33/35 como correspondendo a uma promessa de arrendamento[27] ou a um contrato de arrendamento tout court.

A decisão recorrida seguiu este último entendimento, percebendo-se de todo o seu percurso argumentativo que à separação que fez entre a questão do trespasse e a do locado presidiu a consideração daquele como integrador de um contrato-promessa e deste como respeitante a um arrendamento (“definitivo”, no sentido de não prometido). Tal asserção, todavia, podendo ser correcta, parece-nos, por ora, discutível e, em todo o caso, precipitada, sem uma indagação fáctica dirigida à determinação do verdadeiro sentido atribuído pelos outorgantes à vertente do contrato referida ao uso, enquanto local de instalação do estabelecimento, dos 2º e 3º andares referidos no contrato como arrendados.

Saber se está em causa um arrendamento ou uma promessa de arrendamento não é, neste momento, mesmo face ao elemento verbal (o próprio texto do contrato), uma questão absolutamente líquida e incontroversa, apta a ser dada por encerrada só com base nos articulados. Efectivamente, embora existam no texto do contrato elementos sugerindo, de alguma forma, uma ideia de separação entre o trespasse do estabelecimento como promessa (v. o teor das cláusulas “primeira”, alínea b) e “terceira” do contrato, transcritas na nota 3) e o arrendamento como realidade concretizada desde logo e não dependente de ulterior formalização através de um (posterior) contrato definitivo (vejam-se a este propósito a cláusula “quarta” e as subsequentes especificamente reportadas ao arrendamento), embora exista e seja relevante este elemento literal, não exclui ele absolutamente uma outra leitura lógica, contextualizada por elementos extrínsecos, apta a sugerir uma associação dos dois elementos visados no contrato – o estabelecimento e a locação – ao modelo contratual da promessa.

Independentemente da questão do texto do contrato – e a linguagem nos contratos constitui frequentemente um elemento ambíguo[28] –, vale aqui, muito especialmente, o elemento interpretativo lógico, referido às particularidades do negócio entre o R. e os então proprietários do imóvel, encarado este no contexto global do negócio desenhado pelos contraentes[29].

Os então proprietários do imóvel, com efeito, como donos do local onde funcionava o estabelecimento transmitido, necessitavam, para efeito de operarem a transmissão integral desse mesmo estabelecimento (incluindo o espaço físico ocupado pelo mesmo) de um instrumento jurídico específico que abrangesse o espaço (os dois andares) que eles (donos do prédio) utilizavam com base num direito (o direito de propriedade referido à totalidade do prédio) que os contraentes, ao não celebrarem uma compra e venda, notoriamente não pretenderam transmitir[30]. Ou seja, precisavam as partes, já que a transmissão do estabelecimento não transmitia nenhum título legitimador da ocupação do espaço físico deste, presumindo-se o intuito de continuar a actividade deste no mesmo local, de um outro mecanismo contratual apto a essa legitimação. Precisavam as partes, enfim, paralelamente à promessa referida ao estabelecimento, de uma outra realidade contratual respeitante ao espaço de funcionamento deste, sendo o arrendamento a forma encontrada pelas partes para enquadrar contratualmente a plenitude dos elementos agregados materializadores do conteúdo – de todo o conteúdo – daquele estabelecimento.

Daí que a opção por uma promessa de arrendamento, em vez de um contrato “definitivo”, possa valer, por absoluta identidade de razão, enquanto argumento válido, para a configuração dessa vertente do contrato (do arrendamento), igualmente, como promessa, dada a incindível conexão genética ao trespasse de todo o estabelecimento: projectada para o futuro, como constitui essência do contrato-promessa, a realização do contrato definitivo (do contrato de trespasse), só a projecção para o futuro do arrendamento acaba por ter sentido, dentro da lógica de funcionamento do negócio global estabelecido entre o Apelante e os dois outros Outorgantes.

Significa isto – e este elemento pode apresentar um óbvio reflexo na decisão apelada –, que importará determinar se o contrato de fls. 33/35 não terá, na vontade real dos contraentes respectivos, partilhado a natureza de promessa claramente assumida pelo trespasse. Esta constitui, e a decisão recorrida nada disse a tal respeito, a interpretação do contrato fornecida pelo Apelante, enquanto participante na conclusão desse acordo, e esta circunstância não pode ser – como o foi no Saneador-Sentença – pura e simplesmente ignorada.

Poderá, assim, tratar-se de uma promessa – pelo menos não é, desde já, líquido que não possa tratar-se –, sendo caso de averiguar, enquanto outra dimensão plausível da questão colocada à apreciação do Tribunal, se a vontade das partes foi a de assumir o arrendamento também como contrato-promessa.

2.2.2.2. Ficaria sem sentido, nesta última hipótese, a asserção respeitante à nulidade do arrendamento, que o Saneador-Sentença assumiu como sua ratio decidendi. Com efeito, a nulidade por impossibilidade do objecto contratual que a decisão recorrida considerou existir, e em função da qual julgou a acção procedente desde logo, perderia todo o sentido – se acaso tem algum sentido[31] – quando referida a um contrato-promessa, sendo evidente que a opção por esta figura – e aí poderia assentar a explicação para o uso da promessa neste caso – procura assegurar, e assegura frequentemente, “[…] a realização do contrato prometido, num momento em que existe algum obstáculo material ou jurídico à sua imediata conclusão […]” como sucede, paradigmaticamente, quando “[…] não podem, entretanto, observar-se as formalidades legalmente exigidas”[32]. Tenha-se presente que a falta de constituição de uma propriedade horizontal em curso de realização, constituiria um elemento sugestivo da procura da promessa como forma adequada ao negócio.

2.2.2.3. Este possível entendimento da situação referida à vertente locatícia do contrato (a possibilidade de se tratar de uma promessa de arrendamento), além de destruir a (mais que duvidosa) ratio decidendi do Saneador-Sentença apelado, convocaria, enquanto subsistente solução plausível da questão de direito colocada pela acção (como diz o artigo 511º, nº 1 do CPC) a problemática, já antes aludida a propósito do trespasse do estabelecimento, da existência, reportada desta feita à vertente da promessa de arrendamento, de um direito de retenção do promitente (neste caso do Apelante) que obteve a tradição da coisa, com o consequente alcandorar da detenção pelo Apelante da parte do imóvel aqui discutida, ao estatuto de direito real de garantia, oponível erga omnes[33], no sentido de “[poder] ser actuado onde quer que a coisa se encontre, incluindo nas mãos de terceiros, nos termos gerais dos direitos reais, dada a inerência”[34].

Sem esquecermos aqui a controvérsia sobre a qualificação do arrendamento (o contrato aqui hipoteticamente prometido) como direito real ou obrigacional (o artigo 755º, nº 1, alínea f) do CC, fala em transmissão ou constituição de direito real), controvérsia recorrente na doutrina portuguesa[35], entendemos poder valer aqui a natureza “estruturalmente real” reconhecida por Menezes Cordeiro à posição do locatário, nos elementos referenciáveis à defesa possessória, vista por este Autor como integrando uma posse autónoma e em nome próprio e não uma mera extensão artificial, nas situações em que o elemento gerador dessa situação de locatário (o contrato de arrendamento) investiu este, efectivamente, na situação de possuidor[36]. E isto vale – é nosso entendimento que vale –, na base da teleologia da atribuição de um direito de retenção ao promitente que obteve a tradição da coisa, para aquele que obteve tal tradição ao abrigo de uma promessa de arrendamento.  

Ocorre sublinhar aqui, a tal respeito, a articulação que a existência e a subsistência de um direito de retenção apresenta face a uma pretensão reivindicatória de um proprietário “terceiro”, no sentido em que aqui são “terceiros” os AA./Apelados relativamente ao contrato apresentado pelo R.. Esta articulação constitui, como vimos, manifestação do carácter de direito real que corresponde a qualquer direito de retenção, e a este em concreto. Com efeito, e seguimos aqui a caracterização feita na doutrina alemã dessa compaginação, no quadro da oposição do possuidor à entrega da coisa pretendida através de uma acção de reivindicação, caracterização esta perfeitamente transponível para o nosso Direito[37]:


“[…]
Um direito oposto do possuidor deve estar especialmente fundado. Pode tratar-se de um direito à posse, no sentido do §986[38], situação da qual se pode conhecer oficiosamente, como objecção de fundo. Mas também pode ser, simplesmente, um direito de retenção, no sentido dos §§ 273 e 1000, actuando neste caso como excepção material. Estas duas posições de defesa distinguem-se entre si estruturalmente: o direito à posse exclui a pretensão reivindicatória (temporal ou indefinidamente); o direito de retenção, por sua vez, faz depender o seu exercício [o exercício da pretensão reivindicatória], simplesmente, do cumprimento de uma pretensão própria do sujeito passivo da acção de reivindicação.” (sublinhado acrescentado)[39]

            2.3. Significa isto, em termos práticos referidos ao sentido decisório da presente apelação, ter sido inadequado o conhecimento do mérito da acção logo no saneador, existindo – como efectivamente existe – matéria controvertida a explorar ulteriormente, enquanto solução plausível da questão de direito colocada pela defesa do R., assentando, aliás, a solução seguida na primeira instância, num pressuposto condicionante muito prematuro: a qualificação da vertente do contrato referida à denominada fracção C do prédio como arrendamento, quando poderá tratar-se – a prova o dirá – de uma promessa de arrendamento. Além da insustentabilidade lógica (e remetemos aqui para o que dissemos na nota 32) da pretensa “impossibilidade do objecto” do arrendamento assente numa questão de linguagem totalmente descontextualizada. Acaso não se percebe que o arrendamento, identificado como referente à fracção C, se referia efectivamente aos 2º e 3º andares do prédio? Acaso corresponde esta situação a uma impossibilidade física e legal de determinar o objecto do contrato? Não vemos como!

            É neste sentido – e estamos a caracterizar a linha de rumo que determinaremos no final ao Tribunal a quo – que deverá ser elaborada base instrutória, quesitando-se o sentido da declaração negocial referida à cedência do locado (no sentido implícito, por exemplo, no artigo 21 da contestação[40]) e o essencial dos factos invocados pelo R./Apelante (impugnados a fls. 38 pelos AA./Apelados, nos artigos 1º e 2º da resposta à reconvenção) nas asserções contidas na contestação que sejam referenciáveis aos elementos do contrato-promessa dos quais depende a configuração do indicado direito de retenção: a efectiva tradição do local a arrendar; o pagamento de “rendas” enquanto manifestação da existência de sinal; os elementos atinentes à subsistência do incumprimento dessa promessa por parte dos outros outorgantes[41].

            2.4. Mas existem mais elementos não considerados no Saneador-Sentença, também eles configurando soluções plausíveis da questão de direito, carentes de serem seleccionados no prosseguimento da acção que aqui se determinará, mesmo tomando por base a – caso se apure ter sido essa a vontade das partes – a existência, paralelamente à promessa de trespasse, de um arrendamento e não de uma promessa de arrendamento.

            Referimo-nos às potencialidades referenciáveis a um possível abuso de direito pelos AA./Apelados na obtenção do efeito referido à declaração de nulidade do arrendamento, caso essa nulidade exista, nos termos em que esse elemento é indicado nos artigos 26º e 27º da contestação a fls. 31, sublinhando-se a impugnação pelos AA. do que se pode extrair, em termos de factos, do artigo 26º (conhecimento pelos AA. de determinados factos) e a não impugnação do que subjaz ao artigo 27º[42] (deve este último, por isso, ser especificado).

            Interessa – poderá interessar (e, por isso, não se deve “fechar tal porta”) –, a uma correcta ponderação das questões de direito plausíveis na dinâmica desta acção, a caracterização do comportamento dos AA. e, a esse respeito, o possível conhecimento por parte deles (AA.) da situação aqui em causa, num quadro valorativo do respectivo comportamento.

            Trata-se aqui, repete-se, tão-só, de não inviabilizar à partida uma possível “solução plausível” extraível do argumentário do R., e não de adiantar algum entendimento quanto a um concreto rumo decisório – o que seria precipitado neste momento, face a elementos que ainda são pouco claros. A este respeito (a respeito da qualificação das potencialidades jurídicas da alegação consubstanciada nos artigos 26º e 27º da contestação) mantém o Tribunal de primeira instância completa liberdade de apreciação. Deve, todavia, apreciar a questão e não “fugir” dela.

            A este respeito, não deixaremos de recordar as vastas possibilidades integradoras dos valores fundamentais do sistema que poderá apresentar um possível conhecimento dos AA. da situação em causa numa hipotética invalidade formal do contrato. Referimo-nos à figura das chamadas “inalegabilidades formais”[43], dependente aqui, num sentido excludente dos AA. da imputação das consequências desse desvalor comportamental, de serem eles (os AA. ora Apelados) não só terceiros, mas “terceiros de boa fé”[44]. Existe, pois, espaço para pesquisar e qualificar o comportamento destes.


Embora o Apelante na sua contestação tenha confundido o abuso de direito com a litigância de má fé (v. o artigo 28º a fls. 31), há que ter presente, como sublinha António Menezes Cordeiro que “[a] aplicação do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos […]. Além disso, as consequências que se retirem do abuso devem estar compreendidas no pedido feito ao Tribunal, em virtude do princípio do dispositivo. Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é constatado pelo Tribunal, mesmo quando o interessado não o tenha expressamente mencionado: é, nesse sentido, de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica. Além disso, não fica vinculado às alegações jurídicas das partes. […]”[45].

Aliás, dentro deste espaço que ainda existe para o Tribunal a quo equacionar outras soluções plausíveis, não deixa de ter lugar o reequacionar da base argumentativa que já utilizou no Saneador-Sentença, respeitante à suposta “impossibilidade física e legal” do objecto do contrato de arrendamento.  

 

2.5. Decorre das considerações tecidas, importando afirmá-lo expressamente aqui, ser entendimento desta Relação, ter sido incorrecto o julgamento do mérito da causa logo no âmbito do Despacho Saneador. Desde logo, por precipitação na fixação de um pressuposto jurídico argumentativo, respeitante à qualificação como arrendamento da vertente contratual referida à denominada fracção C do imóvel, considerando-se aqui, ao invés da primeira instância, não estar absolutamente afastado que possa tratar-se de uma promessa de arrendamento. Por outro lado, por existirem, carentes de valoração ou de apuramento – e, logicamente, carentes de serem levados à especificação e à base instrutória que haveria (haverá) que elaborar –, matéria não considerada e controvertida com aptidão de integrar (outras) soluções, desconsideradas mas plausíveis, da questão de direito colocada ao Tribunal. A essas soluções nos referimos em antecedentes considerações.

            Cumpre, assim, anular o Saneador-Sentença apelado (excepção feita ao elemento tabeliónico constante de fls. 90), o que este Tribunal pode, aliás, determinar oficiosamente ao abrigo do nº 4 do artigo 712º do CPC, devendo-se proceder a uma fixação dos factos provados[46] e à elaboração da base instrutória com os elementos indicados para esse efeito nos itens 2.3. e 2.4. deste Acórdão.

            É o que decisoriamente nos resta determinar à primeira instância, sublinhando-se que este rumo decisório prejudica a apreciação de outros fundamentos do recurso, como seria o caso da eventual decisão-surpresa respeitante à nulidade do contrato de arrendamento. Tal desvalor, todavia, sempre estaria afastado dada a circunstância dos AA./Reconvindos, com ou sem razão, a terem invocado (como excepção) na resposta à reconvenção (v. fls. 41/42), articulado este ao qual o R./Reconvinte poderia ter respondido (v. artigo 503º do CPC).


III – Decisão


            3. Assim, pelos fundamentos expostos, decide-se anular o Saneador-Sentença apelado, determinando-se o prosseguimento do processo com a selecção dos factos provados (especificação) e a elaboração da base instrutória, tudo nos termos consignados no antecedente item 2.5. no trecho a sublinhado.

            Custas a cargo da parte vencida a final.

            Coimbra,


(J. A. Teles Pereira)

(Jacinto Meca)

(Falcão de Magalhães)



[1] Interessam-nos, a este respeito, as seguintes passagens do articulado inicial:
“[…]
O R. ocupa, e vem ocupando, os 2º e 3º andares do imóvel supra descrito em 1º, designadamente aí pernoitando e habitando, guardando diversos bens da sua pertença e cedendo hospedagem a terceiros; Isto,
Sem qualquer tipo de consentimento ou autorização dos AA., ou com base em qualquer título que, válida e eficazmente, legitime tal ocupação. […]”
[transcrição de fls. 3]
[2] Por razões de auto-suficiência compreensiva deste Acórdão, transcreve-se aqui o texto do contrato:
“[…]
Primeira Outorgante: D... e mulher, E... […].
Segunda Outorgante: C... […].
E pelos Primeiros Outorgantes foi dito:
Primeiro
a) Que são donos, possuidores e legítimos proprietários de um estabelecimento comercial denominado «F...», que ocupa toda a fracção C de um seu prédio urbano, em propriedade horizontal, sito na Rua de santo António, nº 9, V. N. de Foz Côa, inscrito nas finanças sob o artigo 2323º.
b) Que pelo presente contrato, promete ceder o referido estabelecimento, pelo preço de 5.000.000$00 com o equipamento descrito na lista anexa, que faz parte integrante deste contrato.
Segundo
O preço assim determinado deverá ser pago da forma seguinte:
a) Nesta data receberão do Segundo Outorgante a importância de 5.000.000$00, a título de sinal e pagamento integral.
Terceiro
A escritura de trespasse só deverá ocorrer logo que o Segundo Outorgante interpele os Primeiros Outorgantes.
Quarto
Os Primeiros Outorgantes autorizam o Segundo Outorgante a ocupar e explorar o espaço locado e estabelecimento comercial «G...» acima referido, desde o dia 1 de Setembro de 1999.
Quinto
a) O Segundo Outorgante, na qualidade de arrendatário do espaço ocupado pelo estabelecimento «F...», ficará a pagar uma renda mensal de 100.000$00, aos Primeiros Outorgantes proprietários e donos da fracção C, só podendo contudo esta renda ser aumentada, a partir do ano 2007, segundo o então fixado na lei.
b) A renda será paga em casa do senhorio ou depositada em conta a indicar pelos primeiros outorgantes, até ao dia 8 de cada mês a que diz respeito.
c) O Segundo Outorgante pode dar outro fim à fracção C, sem necessidade do consentimento dos Primeiros outorgantes.
Sexto
O Segundo Outorgante pode fazer todas as obras que entender na fracção C, desde que das mesmas não resulte um prejuízo para a estrutura daquela.
Sétimo
a) O Segundo Outorgante deverá requerer e ter contador da água e luz em seu nome, podendo utilizar-se das instalações e meios técnicos já existentes, enquanto não obtiver aqueles.
b) A electricidade das escadas comuns às fracções será suportada pelos primeiros outorgantes.
Oitavo
O Segundo Outorgante fica com direito de se servir do sinal de TV, existente no prédio urbano onde se encontra a fracção C, podendo ainda instalar neste, antenas de TV e antenas parabólicas se assim o entender.
Nono
Os primeiros outorgantes obrigam-se a colaborar, se necessário, com o segundo outorgante na obtenção de licenças para o funcionamento do referido estabelecimento comercial de Pensão.
Décimo
Os Primeiros Outorgantes atribuem ainda um direito de preferência ao Segundo Outorgante, numa eventual venda da fracção B que se encontra no mesmo prédio da fracção C.
E pela Segunda Outorgante foi dito:
Onze
O contrato definitivo – escritura de trespasse – será feito livre de passivo, não se transmitindo com aquele os trabalhadores, pelo que, toda e qualquer responsabilidade pelo eventual incumprimento dos contratos de trabalho, de quaisquer dividas para com a segurança social, ou terceiros, são da responsabilidade exclusiva dos Primeiros Outorgantes
[…]
Vila Nova de Foz Côa, 26/08/1999
[…]”
                [transcrição de fls. 33/35]


[3] Interessa a este elemento do contrato (o trespasse do estabelecimento) a seguinte passagem da contestação:
“[…]
5. Assim, através daquele contrato-promessa o R. prometia comprar e D... e mulher, E..., prometiam vender àquele o estabelecimento comercial denominado «F...»,
6. Pelo preço de 5.000.000$00 […],
7. Importância esta que o R. pagou a D... e mulher, E..., na data em que aquele contrato-promessa foi celebrado, a título de sinal e pagamento integral.
8. Estabelecimento este que ocupava e ocupa a fracção C do prédio urbano inscrito na matriz sob o nº 2323º da freguesia e concelho de Vila Nova de Foz Côa.
9. O R. passou a explorar o referido estabelecimento comercial, a partir do dia 1 de Setembro de 1999,
10. Tendo os promitentes vendedores entregue as chaves ao promitente comprador, o aqui R..
[…]
12. E desde essa data, que o R., por si e seus antepossuidores […] vem usando, fruindo e gozando o referido estabelecimento comercial, praticando todos os actos de conservação e uso, designadamente explorando-o, cuidando-o, alugando quartos, depositando os seus utensílios e mercadorias.
13. Tudo isto à vista de toda a gente, em particular dos AA., ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, convencido de que exerce um direito próprio e absoluto, e que não lesava direitos de outrem.
[…]”
                [transcrição de fls. 29]
[4] Esta asserção (dar de arrendamento) prescinde, por ora, da qualificação da situação atinente ao arrendamento como promessa ou como contrato “definitivo”, questão que será apreciada, dada a sua relevância, no processo argumentativo deste Acórdão. A esse “arrendamento”, seja ele um contrato-promessa ou não, interessa a cláusula “quinta” do contrato acima transcrito.
Na contestação interessa a este elemento do contrato (ao arrendamento) a seguinte passagem do articulado:
“[…]
14. Tomou ainda o R. de arrendamento a D... e mulher, E..., pelo preço de 100.000$00 por mês o espaço ocupado pelo estabelecimento comercial, correspondente à letra C.
[…]”
                [transcrição de fls. 29]
[5] “[P]ode considerar-se que o contrato de arrendamento celebrado entre o R. C... e D... e E..., porque reduzido à forma escrita, é válido sob o ponto de vista estritamente formal.
[…]”
                [transcrição de fls. 97]
[6] Este último, por estar em causa um processo iniciado anteriormente a 1 de Janeiro de 2008, na redacção que apresentava anteriormente à introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. artigos 9º, alínea a), 11º, nº 1 e 12º, nº 1 deste Diploma). Note-se que, pela mesma razão, qualquer disposição do CPC citada neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterada pelo DL 303/2007, o é na versão anterior a este.

[7] Este constitui o elemento distintivo, na sua estrutura intrínseca, entre recursos de cassação e de substituição. Naquele julga-se a decisão – cassando-a (do Latim quassare, significando tornar nulo), se for caso disso –, neste julga-se a causa, podendo substituir-se a decisão recorrida por aquela que o tribunal ad quem entenda que o tribunal a quo deveria, nas circunstâncias, ter proferido (v. João de Castro Mendes, Recursos, Lisboa, 1980, p. 64).
[8] “ No nº 4 [do artigo 712º] prevê-se que a falta de elementos probatórios que permitam a reapreciação da matéria de facto justifique a anulação, mesmo a título oficioso, da decisão proferida em 1ª instância. Este poder de anulação pode ser exercido quando a Relação considere «deficiente, obscura ou contraditória» a decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto. Idêntica faculdade cabe quando se considere indispensável a ampliação da matéria de facto. Nestes casos, o tribunal da relação limita-se a cassar a decisão recorrida […]” (José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil anotado, vol. 3º, tomo I, 2ª ed., Coimbra, 2008, p. 125).
[9] V. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2ª ed., Coimbra, 2004, p. 610.
[10] V. José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, Coimbra, 2000, p. 164.
[11] Afirmando expressamente a aplicação do artigo 712º, nº 4 ao Saneador que conheça total ou parcialmente do pedido ou dos pedidos formulados, v. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3ª ed., Coimbra, 2000, p. 138.
[12] Este é o sentido das considerações tecidas a propósito por Anselmo de Castro (Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, 1982, pp. 253/255) e, face ao regime actual, por Paula Costa e Silva (“Saneamento e Condensação no Novo Processo Civil: A Fase da Audiência Preliminar”, in Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, 1997, pp. 262/263).
[13] Temas da Reforma…, cit. pp. 138/139.
[14] E dizemos pressupostos pois, tal decisão, seguindo uma técnica expositiva particularmente discutível, omitiu um enunciado formal desses factos provados tidos por suficientes. Isto embora, tais factos pressupostos sejam alcançáveis – rectius, passíveis de serem isolados – com base numa leitura lógica do Saneador-Sentença, leitura que esta Relação, suprindo a omissão do Tribunal a quo, não deixará de realizar aqui.
[15] Destas decorre a dominialidade e as características do prédio em causa na reivindicação parcial que esta acção traduz.
[16] Sendo este o contrato em cuja existência pretende o R. fundar a não concretização do direito do A., e a cuja apreciação valorativa procedeu o Saneador-Sentença. Temos, através deste documento, a base s de caracterização da essência do contrato discutido pela primeira instância.
[17] Tratou-se de apresentação provisória por natureza, convertendo-se ela em definitiva em 21/09/2006 (cfr. fls. 10).
[18] Transcreveu-se o texto do contrato na nota 3, supra.
[19] No sentido em que José de Oliveira Ascensão define o actuar desse elemento conatural da reivindicação: “[…] como ele [o reivindicante] é proprietário as suas razões são absolutas: a coisa terá de lhe ser entregue – salvo, claro, se a outra parte tiver contra razões (relativas) justificativas da manutenção da situação de facto” (“Acção de Reivindicação”, in Estudos em Memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, s. d., p. 20).
[20] “[T]orna-se fácil sintetizar os fundamentos a que o demandado pode recorrer para repelir a reivindicação. Por um lado, poderá impugnar a titularidade do direito que o reivindicante se arroga, alegando que a coisa pertence a outrem ou não pertence a ninguém […]. Por outro, poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade ao autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa (a título de usufrutuário, locatário, credor pignoratício, etc.)” (Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, vol III, 2ª ed., Coimbra, 1984, p. 116, sendo o sublinhado acrescentado; cfr. A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, reprint 1979, Lisboa, 1993, p. 593).
[21] V., em especial, o nº 2: “[a]s partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei”.
[22] O uso das aspas na expressão “terceiros” pretende sublinhar que se prescinde aqui, neste trecho argumentativo, da qualificação da posição dos AA. relativamente a uma possível transmissão a eles da posição de locadores, questão que teria sentido na perspectiva da qualificação desse segmento do contrato como de arrendamento. E prescinde-se igualmente, por ora, da questão de saber se os AA. tinham conhecimento da situação subjacente ao contrato, e se esse eventual conhecimento constitui (ou pode constituir) um dado relevante nesta acção.
[23] Vale aqui – e também neste particular aderimos ao que se diz na decisão apelada –, o princípio, que subjaz ao trecho inicial do artigo 12º, nº 2 do CC, de que a lei vigente ao tempo da constituição da situação jurídica é a que regula a forma do acto constitutivo dessa situação, bem como a invalidade e os efeitos dessa situação (v., em termos gerais, J. Baptista Machado, Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil, Coimbra, 1968, pp. 69 e segs., particularmente p. 73; cfr., em sentido inteiramente concordante, especificamente sobre a questão da aplicação no tempo da dispensa da escritura pública no trespasse, introduzida pelo DL nº 64-A/2000, Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7ª ed., revista e actualizada, Coimbra, 2003, p. 179).
[24] Interessa-nos aqui a redacção deste nº 2 introduzida pelo Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, que o mesmo é dizer a redacção anterior ao recente Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho.
[25] V. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 4ª ed., Coimbra, 2005, p. 231; cfr: Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 4ª ed., 3ª reimpressão, Lisboa, 2006, pp. 155/157; Acórdão do STJ de 13/01/2000 (Miranda Gusmão), BMJ 493,362.
[26] Não estando em causa nesta reivindicação elementos envolvidos nesse trespasse, para além do direito de utilização dos 2º e 3º andares do prédio cobertos pela outra vertente do contrato.
[27] V., sobre a admissibilidade desta figura contratual (promessa de arrendamento), Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, cit., pp. 78/79.
[28] É neste sentido que se fala no carácter “único” da questão da interpretação da linguagem nos contratos, em função de uma prevalência exacerbante do elemento subjectivo que presidiu ao uso de determinada expressão verbal (v., sobre aquilo que qualifica de “uniqueness” da questão da interpretação de um contrato, Aharon Barak, Purposive Interpretation in Law, Princeton, Oxford, 2005, pp. 318 e ss..
[29] Aquilo a que Aharon Barak chama “tratar o contrato como um todo” (treating the contract as a whole): “[n]a procura do sentido de um contrato, devem os juízes tratar o contrato como um todo. Só se capta o sentido subjectivo de um contrato da totalidade das suas cláusulas. Nenhuma cláusula isolada constitui, por si, a fonte do sentido subjectivo de um contrato” (Purposive Interpretation…, cit., p. 329).
[30] Até porque extravasava do espaço físico correspondente ao estabelecimento.
[31] E dizemos isto porque nos parece, salvo melhor opinião, um verdadeiro solecismo falar em “impossibilidade física e legal de determinar o objecto”, só pelo facto de os outorgantes terem chamado “fracção” ao que não o era.
[32] Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa. Uma Síntese do Regime Vigente, 8ª ed., revista e aumentada, Coimbra, 2004, p. 13; cfr., sobre a inexistência de impossibilidade inicial de um contrato-promessa de venda de imóvel a que falta, ao tempo da celebração, licença de utilização, o Acórdão desta Relação de 28/10/2008, proferido pelo ora relator no proc. nº. 364/04.7TBFND.C1, disponível no sítio www.dgsi.pt/jtrc.nsf.
[33] V. nota 26, supra. Sobre o direito de retenção específico do contrato-promessa (introduzido pelo Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho), v. António Menezes Cordeiro, “O Novo Regime do Contrato-Promessa”, in Estudos de Direito Civil, vol I, Coimbra, 1994, pp. 23/24 e João Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, pp. 181/182.
[34] Direito Reais, cit., p. 771.
[35] Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, cit., pp. 163/174 e José de Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 5ª ed. (reimpressão), Coimbra, 2000, pp. 536/538.
[36] A Posse: Perspectivas Dogmáticas e Actuais, 3ª ed. actualizada, 2ª reimpressão, Coimbra, 2005, pp. 74/75.
[37] O BGB (Código Civil alemão; texto actualizado disponível em http://www.sadaba.de/GSBT_BGB) prevê a acção de reivindicação no §985 (herausgabeanspruch; pretensão de entrega), dizendo que “[o] proprietário pode exigir ao possuidor a entrega da coisa”, e prevê o direito de retenção (zurückbehaltungsrecht) no respectivo §273. Interessa-nos aqui – daí a legitimidade do argumento de direito comparado – a natureza do direito de retenção e não a facti species concreta deste direito de retenção no Direito português, no caso de uma promessa.
[38] Refere-se este, sob a epígrafe de “oposição por parte do possuidor” (einwendungen des besitzers) às situações em que um “possuidor mediato” (mittelbare besitzer) se pode negar à entrega frente ao proprietário.
[39] Harry Westermann, Harm Peter Westermann, Karl-Heinz Gursky, Dieter Eickmann, Derechos Reales, tradução da 7ª ed. alemã, Heidelberg, 1998, Madrid, 2007, vol. I, p. 348.
[40] Que diz: “[p]or várias vezes o R. pessoalmente interpelou os promitentes vendedores […] para virem celebrar a escritura de trespasse do estabelecimento «F...» bem como contrato de arrendamento, o que aqueles nunca fizeram”. Interessa aqui pesquisar através da produção de prova a asserção de que existiu uma interpelação para celebrar um contrato de arrendamento, por se entender ser esta ulterior celebração necessária para que existisse arrendamento.
[41] Todos estes elementos se mostram alegados em diversas passagens da contestação do Apelante, designadamente nalguns trechos dos artigos 5º a 25º desse articulado a fls. 29 e 30.
[42] Terem os AA. ora Apelados, no mesmo prédio, desde 1999, um outro estabelecimento.
[43] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, tomo IV, Coimbra, 2005, pp. 300/312.
[44] Ob. cit. na nota anterior, p. 311.
[45] Tratado…, cit., p. 373.
[46] Podem-se aproveitar os indicados no item 2.1, deste Acórdão, acrescentando-lhes o artigo 27º da contestação (v. item 2.4.).