Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
818/15.0T8CBR-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA
LEILÃO ELETRÓNICO
DESPACHO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/27/2018
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO EXECUÇÃO - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.811 Nº1 G), 824, 835, 837 CPC, PORTARIA Nº 282/2013 DE 29/8, PORTARIA Nº 349/2015 DE 13/10, DESPACHO DA MINISTRA DA JUSTIÇA Nº 12.624/2015 , DR II SÉRIE DE 9/11/2015
Sumário: 1.O Despacho da M. Justiça 12.624/2015, em DR, II Série, de 9.11.2015, que regula vários aspectos da venda de bens em leilão electrónico, não viola o princípio da hierarquia das normas e actos legislativos, porquanto o NCPC, aprovado pela Lei 41/13, de 26.6, prevê tal modalidade de venda, remetendo os termos a definir para portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, que é a Portaria 282/2013, de 29.8, que por sua vez prevê que o dito leilão electrónico se processa em plataforma electrónica acessível na Internet, nos termos definidos na referida portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça. O Despacho 12.624/2015, veio precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão electrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade.

2. Estabelecida, assim, uma cadeia legislativa formalmente hierarquizada, em que a Lei remete para um diploma hierarquicamente inferior, uma Portaria, e esta, por seu turno, para um Despacho ministerial, também hierarquicamente inferior, inexiste a apontada inconstitucionalidade.

3. O art. 7º, nº 1, ao apontado Despacho, regula apenas sobre a apresentação de propostas, enquanto o art. 22º da indicada Portaria regula sobre a duração do leilão, pelo que aquele normativo não atenta contra este último preceito (ou contra o art. 837º, nº 1, do NCPC), não sendo, por isso, aquele comando ilegal, por desrespeito de norma de grau superior, as da referida Portaria ou NCPC.

4. O art. 817º, nº 1, a) do NCPC, que regula a publicidade da venda na venda por propostas em carta fechada, não é aplicável à venda em leilão electrónico, porquanto o art. 837º, nº 2, não remete para tal dispositivo, antes se aplicando neste campo o art. 6º do Despacho.

5. O art. 824º, nº 1, do NCPC, que dispõe sobre a caução a prestar pelos proponentes é privativo da venda mediante propostas em carta fechada, ao invés quedando aplicável o art. 7º, nº 15, do Despacho e Anexo I, que obriga o licitante com o encerramento do leilão ao depósito do preço no caso de a sua proposta ser a mais elevada e superior ao mínimo de venda.

6. Nos termos do aludido art. 7º, nº 1, do Despacho, as propostas podem ser apresentadas até à hora limite fixada, podendo, no entanto, essa hora limite ser diferida para além daquela hora, nos casos previstos no mesmo número, alíneas a) e b).

7. Se a hora de fecho do leilão era às 10h e o leilão só foi encerrado às 11.24h, e não se demonstra terem ocorrido as situações de excepção previstas nas ditas a) e b), foi praticada uma irregularidade que viciou o resultado final do leilão, o que importa a anulação do mesmo (art. 835º, nº 2, do NCPC, ex vi do art. 837º, nº 3).

Decisão Texto Integral:







I – Relatório

1. Em execução, para pagamento de quantia certa, movida por C (…), SA, com sede em Lisboa, contra M (…), residente em Coimbra, e Outros, foi penhorado um imóvel pertença da executada.

Posteriormente o Sr. Agente de Execução decidiu que a venda se processasse por leilão electrónico, fixando o valor base, o valor mínimo e o valor da licitação condicional, decisão notificada às partes que dela não reclamaram.

O referido leilão foi anunciado, tendo o AE informado que o seu início ocorria em 8.6.2017 e termo em 12.7.2017 às 10h. O mesmo foi encerrado no dia 12.7 às 11.24h. As melhores dez propostas existentes foram apresentadas entre as 10.46h e às 11.19h.    

A executada veio, então, reclamar contra as irregularidades de tal venda e suscitar inconstitucionalidades.

*

Foi, depois, proferido despacho (em 12.9.2017) em que o tribunal se limitou a dizer (em 3 linhas) que entendia não haver qualquer inconstitucionalidade e consequentemente indeferiu o requerido.

*

2. A executada interpôs recurso, tendo concluído que:

1. Deve ser revogado o douto despacho recorrido, com a ref.ª citius nº75300932, 8.09.2017, aqui dado por integralmente reproduzido, e substituído por outro que leve em consideração as matérias invocadas no requerimento da aqui recorrente com a ref.ª citius nº3503179, de 24.07.2017.

2. O douto despacho recorrido id. em I. enferma de falta de fundamentação e viola o disposto no art.607º do CPC, não analisando de forma crítica o teor da reclamação apresentada pela aqui recorrente, e não sustentando na lei e na CRP o sentido da decisão tomada.

3. Em primeiro lugar, de acordo com o disposto no art.817º, nºs.1, al.a) e 3 do CPC, aplicável ex vi art.837º, nº2, idem, não foi elaborado o anúncio pelo Agente de Execução titular deste processo, imposto por lei, o que se deixa arguido para os devidos efeitos.

4. Nem foram cabalmente respondidas as comunicações dirigidas ao Agente de Execução, na sequência das sucessivas notificações que fez à recorrente, desde o dia 12.07.2017, na pessoa do seu mandatário, a respeito da venda do imóvel sub judicio.

5. Não tendo sido disponibilizada pelo Agente de Execução titular do processo a totalidade das propostas existentes para licitação do imóvel aqui em causa, e desconhecendo-se por que motivo qual o valor da última proposta feita antes das 10.00h., foi requerido que fosse junto aos autos por aquele tal documento, com todas as propostas apresentadas, e não apenas as dez de valor mais elevado, com os fundamentos constantes do requerimento id. em II., não tendo existido pronúncia a este respeito pela M.mo Juiz a quo.

6. Acresce que, à luz do que preveem o art.817º e ss. do CPC, deverá ser julgada como válida e proposta vencedora, a última apresentada até às “10.00h.” do dia “12.07.2017”, logo que seja disponibilizada nos autos.

7. Nem se diga que as normas para venda em leilão permitiam que, in casu, a venda ocorresse a proposta apresentada posteriormente às 10.00h. do dia “12.07.2017”.

8. Desde logo, porque o Despacho n.º 12624/2015 da Ministra da Justiça de então data de 9 de Novembro de 2015, e a presente ação executiva foi interposta em 27 de janeiro de 2015.

9. Ora, não sendo nada dito em concreto em tal Despacho quanto à data da sua entrada em vigor, o mesmo quando muito poderia considerar-se que entrou em vigor no dia seguinte à sua publicação, não sendo por isso o seu teor aplicável ao caso “sub judice”.

Sem conceder,

10. Depois, porque o art.837º, nº1 do NCPC, introduzido pela Lei nº41/2013, de 26 de Junho, fala «nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável», e não de despacho.

11. Pelo que tal despacho n.º 12624/2015 padece de inconstitucionalidade por violar o princípio da hierarquia das normas e atos legislativos, e disposição expressa vertida em ato legislativo.

Sem prescindir ainda,

12. Tal Despacho da Ministra da Justiça remete como lei de enquadramento para o disposto nos arts. 20º e 21º da Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, a qual foi alterada pela redação que lhe foi conferia pela Portaria n.º 349/2015, de 13 de Outubro, ou seja, posteriormente à instauração da presente execução, em 27 de Janeiro de 2015.

13. Para além disso, para o disposto naqueles artigos em concreto, nada dizendo sobre o teor do art.22º de tal Portaria, que rege, esse sim, a matéria da “duração do leilão”.

14. Pelo que, também devem ser julgadas feridas de inconstitucionalidade todas as normas desse Despacho que dispõem sobre tal matéria e, em concreto, as que introduzem a possibilidade de alterar a hora de encerramento do leilão, constantes do art.7º, nº1 de tal Anexo, que atentam contra o disposto no art.837º, nº1 do CPC e, consequentemente contra o art.22º da Portaria n.º 282/2013.

Ainda sem prescindir,

15. Sempre se acrescentará, por fim, por elementar cautela de patrocínio, que nunca poderia ser julgada válida a proposta julgada vencedora pelo Digníssimo Agente de Execução, dado que o proponente não deu cumprimento ao disposto no art.824º, nº1 do CPC.

E ASSIM DECIDINDO VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO A JÁ COSTUMADA E SÃ JUSTIÇA.

3. A exequente contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

A. Nos presentes autos, em 03.06.2016 o AE Sr. AE decidiu promover a venda do imóvel penhorado mediante leilão eletrónico; decisão que foi devidamente notificada às partes, através dos seus mandatários, e que não foi objecto de qualquer reclamação.

B. Não obstante, realizado o leilão, vem, já tardiamente, a executada recorrente colocar em causa esta modalidade de venda, mormente a aceitação da proposta mais elevada.

C. Pretensão que não obteve, e bem no entender da recorrida, acolhimento na primeira instância.

Senão vejamos,

D. Conforme previsto no nº1 do artigo 837º do CPC, a venda de bens imóveis penhorados em processo e execução é feita preferencialmente em leilão eletrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

E. Assim, à venda por leilão electrónico são aplicáveis as regras plasmadas na Portaria n.º 282/2013, de 29 de Agosto, que tem como objecto regulamentar – entre outros aspetos das ações executivas cíveis – os “Termos da venda em leilão eletrónico de bens penhorados” (cfr. al. J) do artigo 1º da Portaria).

F. Prevendo o seu artigo 20º que o leilão eletrónico “se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, …, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça.

G. Ora, o Despacho n.º 12624/2015, vem precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade.

H. Acresce que, o nº 2 do artigo 837º do CPC, que prevê como modalidade de venda preferencial o leilão eletrónico, estabelece que a publicidade da venda é feita, com as devidas adaptações, nos termos dos nº 2 a 4 do artigo 817.º do CPC - previsão que foi escrupulosamente cumprida pelo AE -, sem que imponha como aplicável o disposto no nº 1 deste normativo.

I. Mormente porque, o disposto no nº 1 do artigo 817º do CPC, tal como expressamente nele previsto, aplica-se à venda na modalidade de proposta em carta fechada.

J. Sendo que, é no artigo 6º do Despacho n.º 12624/2015 que se prescrevem as regras aplicadas à publicidade da venda mediante leilão, determinando que os leilões são publicados na plataforma www.e-leiloes.pt, podendo proceder-se à publicitação noutros sítios da Internet, na imprensa escrita e através de correio eletrónico ou através de outros meios que entenda o AE entenda relevantes.

K. Regras essas que foram plenamente cumpridas pelo Sr. AE, pois que ao promover a venda mediante leilão a publicitou, como é obrigatório, na plataforma www.e-leiloes.pt, sendo qualquer outra forma de publicidade facultativa e não obrigatória.

L. Acresce que, mais se prevê no Despacho n.º 12624/2015 – artigo 7º - que as propostas podem ser apresentadas por qualquer utente inscrito na plataforma, até à data e hora limite; hora limite essa que, nos termos deste normativo, pode ser diferida para além da hora inicialmente fixada,

M. Porquanto prevê que “a) Havendo proposta apresentada dentro dos últimos cinco minutos que antecedem a hora limite inicialmente fixada, a hora limite passa a ser a do registo na plataforma da última licitação, acrescida de cinco minutos; b) O ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite, só termina depois de decorridos cinco minutos sobre a apresentação da última licitação.

N. Ora, analisada a certidão do leilão junta aos autos pelo AE, constata-se que foi o que efectivamente se verificou no caso sub iudice, motivo pelo qual o fecho do leilão apenas ocorreu pelas 11h24, em estrito cumprimento das regras aplicáveis e previstas na lei.

O. E, ainda no cumprimento do legalmente previsto, da referida certidão, consta a lista das dez últimas propostas apresentadas, - ou sejas as mais elevadas, na medida em que o sistema não permite licitação por valor inferior ao da última proposta registada - com discriminação do número da proposta, data e hora em que foi submetida.

P. Não se vislumbrando que, a junção aos autos da totalidade das propostas apresentadas possa, no caso concreto, alterar o resultado do leilão, obstando à aceitação da proposta mais elevada no montante de 33.013,0 €, porquanto esta – em virtude do ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite do leilão – é válida, porque foi apresentada dentro do prazo legal para o efeito, respeita o mínimo de venda e é a mais elevada.

Q. Não colhendo o mínimo acolhimento a alegação da recorrente de que tal proposta nunca poderia ser julgada válida, em virtude de não ter sido cumprido pelo proponente o disposto no artigo 824.º do CPC.

R. Na verdade, esta norma é aplicável à venda na modalidade propostas em carta fechada, e não à venda com recurso a leilão eletrónico, na medida em que no nº 15 do artigo 7º do Despacho 12624/2015 se dispõe que “Na primeira licitação que o utente apresente na plataforma, surge o aviso constante do anexo I, só podendo formular a proposta depois de escolher a opção «compreendi e quero licitar», valendo esta declaração como aceitação das condições para o leilão em causa e para todos os leilões posteriores em que licite.“

S. E, no mencionado Anexo I é o proponente alertado/informado que apenas com o encerramento do leilão fica obrigado ao depósito do preço, e no caso de a sua proposta ser a mais elevada e superior ao mínimo de venda.

T. Não se lhe exigindo que deposite qualquer valor aquando da licitação, não podendo o proponente ser “penalizado” com a não aceitação da sua proposta, por não ter prestado caução, pois que tal condição não se aplica à venda em leilão eletrónico.

U. Assim, dúvidas não restam que as regras de funcionamento do leilão eletrónico - amplamente publicitadas e dadas a conhecer na própria plataforma electrónica onde se processa o leilão – foram plenamente cumpridas, sendo que a proposta julgada válida pelo AE efectivamente o é, e não podia (pode) deixar de ser aceite.

V. Por fim, é ainda de referir que quer a Portaria 282/2013 quer a lei 41/2013 são muito anteriores à instauração da presente execução, e que a Portaria 349/2015, embora posterior à instauração da execução, é anterior à realização da venda, e apenas altera os artigos 2º e 3º da portaria 282/2013, em nada interferindo com as regras aplicáveis ao leilão eletrónico.

W. Não se vislumbrando pois o invocado vicio de inconstitucionalidade por violação do principio da hierarquia das normas e atos legislativos.

X. Nem se compreendem as dúvidas da executada, nem tão pouco as irregularidades que tenta – infundadamente - imputar ao leilão, sobretudo quando nos presentes autos se encontra em cobrança uma divida exequenda fixada, à data de 22.01.2015, no montante de 61.660,81€, sendo beneficiadas todas as partes com a aceitação de proposta de maior valor.

Pelo que deverá o presente recurso ser julgado improcedente e o douto Tribunal ad quem confirmar a decisão recorrida.

Assim se fazendo JUSTIÇA!

*

4. Seguidamente a Sra. Juíza a quo proferiu despacho (em 6.11.2017), em que declarou inexistirem as irregularidades arguidas pela executada.

 

II – Factos Provados

Os factos a considerar são os que decorrem do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Nulidade do despacho.

- Ilegalidade de aplicação do Despacho 12.624/2015.

- Inconstitucionalidade de tal Despacho e da norma constante do art. 7º, nº 1, do Anexo que regula a duração do leilão.

- Irregularidades da venda em leilão electrónico.

2. A recorrente veio arguir a falta de fundamentação do despacho recorrido.

Resulta do disposto no art. 615º, nº 1, b), aplicável aos despachos ex vi do art. 613, nº 3, do NCPC, que o despacho é nulo se não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

O despacho recorrido é manifestamente nulo, pois limitou-se a dizer, de modo conclusivo, que entendia não haver qualquer inconstitucionalidade e consequentemente indeferia o requerido. Ou seja, não existe uma única linha em que o tribunal alinhe qualquer fundamento, de facto ou de direito, para a decisão tomada.

Só, depois, através do despacho proferido em 6.11.2017, o tribunal recorrido veio explicitar as razões legais porque considerava inexistirem as apontadas irregularidades da venda e assim decidir. Ao fazê-lo, o tribunal supriu tal nulidade, a coberto do art. 617º, nº 1 e 2, do mesmo código. Assim, a nulidade, por falta de fundamentação quanto à questão das irregularidades da venda mostra-se ultrapassada, mas a questão da total falta de fundamentação das invocadas inconstitucionalidades permanece.

Desta sorte, o tribunal de recurso terá de conhecer da questão das aludidas irregularidades, pois o recurso interposto passa a ter como objecto a decisão entretanto complementada e integrada, nos termos do citado art. 617º, nº 2, parte final, e a questão das inconstitucionalidades, agora por virtude do disposto no art. 665º, nº 1, do indicado diploma processual.     

3. Defende a recorrente que o Despacho da M. Justiça 12.624/2015, em DR, II Série, de 9.11.2015, é inaplicável no caso dos autos, por ser posterior à apresentação da execução, que ocorreu em Janeiro de 2015.

Sendo correctas tais datas e certo que tal Despacho regula vários aspectos da venda de bens em leilão electrónico, o que também é verdade é que o Sr. AE, no exercício legal das suas funções fixou essa modalidade de venda e notificou as partes, que contudo dela não reclamaram para o tribunal (a recorrente parece ter-se esquecido deste facto). Pelo que ficou perfeitamente legitimada essa modalidade de venda, não sendo, portanto, ilegal que no caso dos autos a venda tivesse revestido tal modalidade em leilão electrónico (prevista no art. 811º, nº 1, g), do NCPC), segundo as normas regulamentares aplicáveis, emergentes de tal Despacho ministerial. Assim, não procedendo esta parte do recurso. 

4.1. A recorrente também defende que tal Despacho é inconstitucional, por violar o princípio da hierarquia das normas e actos legislativos. Não vemos como.

O NCPC, aprovado pela Lei 41/13, de 26.6, prevê no mencionado art. 811º, nº 1, g), a venda em leilão electrónico. Por sua vez, conforme previsto no nº 1 do art. 837º, do NCPC, a venda de bens imóveis penhorados em processo e execução é feita preferencialmente em leilão electrónico, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça. Essa Portaria é a 282/2013, de 29.8, que tem como objecto regulamentar, entre outros aspectos das acções executivas cíveis, os termos da venda em leilão electrónico de bens penhorados - j), do nº 1, do art. 1º -, o que ocorre nos arts. 20º a 23º, prevendo o dito art. 20º que o leilão electrónico se processa em plataforma electrónica acessível na Internet, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça. Esta Portaria foi alterada pela Portaria 349/2015, de 13.10, como refere correctamente a executada, datada posteriormente à instauração da execução, mas nenhum relevo tendo esta circunstância, pois a mesma não alterou a redacção de qualquer um dos preceitos legais que estatuem sobre a venda em leilão electrónico.

Ora, o Despacho 12.624/2015, veio precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão electrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade.

Estabeleceu-se, assim, uma cadeia legislativa de modo formalmente hierarquizada, em que a Lei remete para um diploma hierarquicamente inferior, uma Portaria, e esta, por seu turno, para um Despacho ministerial, também hierarquicamente inferior.    

Como assim, inexiste a apontada inconstitucionalidade.

4.2. Relativamente à inconstitucionalidade de tal Despacho e da norma constante do art. 7º, nº 1, que regula a duração do leilão, diz a recorrente que atenta contra o disposto no já citado art. 837º, nº 1, do NCPC, e art. 22º da indicada Portaria 282/13.

Começa já por constatar-se que a recorrente não aponta qual é a suposta inconstitucionalidade que se verificará. Nada concretiza neste aspecto. Sendo certo que o tribunal não pode pôr-se a adivinhar, nem sequer a logra descortinar.

De qualquer maneira, não se verifica nenhum desrespeito da norma de grau inferior, constante do Despacho, em relação às de grau superior, as do NCPC e referida Portaria.

Efectivamente o aludido art. 7º, nº 1, do apontado Despacho, regula apenas sobre a apresentação de propostas, enquanto o mencionado art. 22º regula sobre a duração do leilão, estatuindo que o dia e a hora de abertura e de termo de cada leilão electrónico são estabelecidos pela entidade gestora da plataforma electrónica, sendo tais prazos divulgados na mesma plataforma.

Não se vislumbra, por isso, como é que o aludido art. 7º, nº 1, atente contra o citado art. 22º da Portaria e muito menos contra o referido art. 837º, nº 1, do NCPC.

Não existe, pois, qualquer ilegalidade em tal comando constante do apontado Despacho.    

5. Quanto às irregularidades da venda em leilão electrónico, a recorrente aponta três:

a) que não foi elaborado anúncio, nos termos do art. 817º, nº 1, a) e 3, do NCPC, aplicáveis ex vi do art. 837º, nº 2.

Neste campo dir-se-á que não tem razão. Efectivamente, o nº 2 do art. 837º do NCPC, estabelece que a publicidade da venda é feita, com as devidas adaptações, nos termos dos nºs 2 a 4 do art. 817º, não remetendo para o disposto no nº 1 deste normativo (que se aplica à venda de proposta em carta fechada). É no art. 6º do Despacho que se prescrevem as regras aplicadas à publicidade da venda mediante leilão, determinando que os leilões são publicados na plataforma www.e-leiloes.pt, podendo proceder-se à publicitação noutros sítios da Internet, na imprensa escrita e através de correio electrónico ou através de outros meios que entenda o AE entenda relevantes. Ora, resulta dos elementos disponíveis autos que tal regra primacial e obrigatória foi cumprida pelo AE, pois que ao promover a venda mediante leilão a publicitou na aludida plataforma (sendo qualquer outra forma de publicidade facultativa e não obrigatória).

b) que não foi dado cumprimento ao art. 824º, nº 1, do NCPC.

Neste aspecto a recorrente não tem, também, razão. Realmente, este comando legal que dispõe sobre a caução a prestar pelos proponentes é privativo da venda mediante propostas em carta fechada, inexistindo qualquer norma legal a, por remissão, ordenar a sua aplicação, à venda com recurso a leilão electrónico. Apenas decorrendo do nº 15 do art. 7º do Despacho e Anexo I, aí mencionado, que o licitante com o encerramento do leilão fica obrigado ao depósito do preço no caso de a sua proposta ser a mais elevada e superior ao mínimo de venda, não se exigindo, por isso, qualquer caução.

c) que o leilão encerrava às 10 h mas apenas foi encerrado às 11.24h.

Já quanto a esta matéria a recorrente tem motivo legal para ter reclamado pela irregularidade da venda, como o fez ao abrigo do art. 835º, nº 2, do NCPC.

Como se disse o mencionado art. 22º da Portaria 282/13 regula sobre a duração do leilão, estatuindo que o dia e a hora de abertura e de termo de cada leilão electrónico são estabelecidos pela entidade gestora da plataforma electrónica. Por sua vez o aludido art. 7º, nº 1, do Despacho, que regula sobre a apresentação de propostas, estatui que as propostas podem ser apresentadas até à data e hora limite. No entanto, essa hora limite pode ser diferida para além da hora inicialmente fixada, nos casos previstos no mesmo número, alíneas a) - Havendo proposta apresentada dentro dos últimos cinco minutos que antecedem a hora limite inicialmente fixada, a hora limite passa a ser a do registo na plataforma da última licitação, acrescida de cinco minutos; e b) - O ciclo de apresentação de licitações e subsequente diferimento da hora limite, só termina depois de decorridos cinco minutos sobre a apresentação da última licitação.

Ora, analisando os elementos fácticos constantes dos autos somos confrontados com a circunstância (cfr. a certidão do leilão) do fecho do leilão ter ocorrido apenas pelas 11.24h, quando a hora prevista do fecho era a das 10h (cfr. mesma certidão), de acordo, aliás, com a notificação efectuada pelo AE às partes envolvidas no processo (cfr. as respectivas notificações). De modo que o encerramento do leilão a essa hora só podia dar-se à sombra das excepções previstas nas ditas a) e b). Verifica-se, nesta parte, da lista das dez melhores propostas (cfr. a apontada certidão), que as mesmas foram apresentadas entre as 10.46h e as 11.19h – com intervalos nunca excedentes a 5 m -, ou seja para além das 10h. O que quer dizer retrospectivamente que necessariamente teria de ter havido outras propostas anteriores, com respeito pelo referido período temporal de 5 m entre cada licitação até se chegar a uma eventual proposta apresentada às 9.55h, para respeitar a hora limite de termo do leilão inicialmente fixada.

Todavia esse controle judicial não é possível fazer, visto que não está junto aos autos a lista da totalidade das propostas apresentadas e já não é possível juntá-la, porque o AE informou que o sistema não fornece essa totalidade das propostas (vide a resposta do mesmo à executada de 21.7.2017, a fls. 487 destes autos de recurso)). Ficando até sem se saber se houve alguma licitação até às 10h e havendo qual o valor.

Sendo assim, e não estando demonstrado que ocorreu uma situação de excepção, conforme previsto nas ditas alíneas, constatamos objectivamente que o leilão terminou para além da hora limite estipulada. E como tal foi praticada uma irregularidade que viciou o resultado final do leilão, o que importa a anulação do mesmo, como decorre do indicado art. 835º, nº 2, do NCPC, ex vi do art. 837º, nº 3.   

Nestes termos, importa dar procedência à apelação da executada.  

6. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O Despacho da M. Justiça 12.624/2015, em DR, II Série, de 9.11.2015, que regula vários aspectos da venda de bens em leilão electrónico, não viola o princípio da hierarquia das normas e actos legislativos, porquanto o NCPC, aprovado pela Lei 41/13, de 26.6, prevê tal modalidade de venda, remetendo os termos a definir para portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça, que é a Portaria 282/2013, de 29.8, que por sua vez prevê que o dito leilão electrónico se processa em plataforma electrónica acessível na Internet, nos termos definidos na referida portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça; o Despacho 12.624/2015, veio precisamente definir como entidade gestora da plataforma de leilão electrónico a Câmara dos Solicitadores e homologar as regras do sistema aprovadas por essa entidade;

ii) Estabelecida, assim, uma cadeia legislativa formalmente hierarquizada, em que a Lei remete para um diploma hierarquicamente inferior, uma Portaria, e esta, por seu turno, para um Despacho ministerial, também hierarquicamente inferior, inexiste a apontada inconstitucionalidade;    

iii) O art. 7º, nº 1, ao apontado Despacho, regula apenas sobre a apresentação de propostas, enquanto o art. 22º da indicada Portaria regula sobre a duração do leilão, pelo que aquele normativo não atenta contra este último preceito (ou contra o art. 837º, nº 1, do NCPC); não sendo, por isso, aquele comando ilegal, por desrespeito de norma de grau superior, as da referida Portaria ou NCPC;   

iv) O art. 817º, nº 1, a) do NCPC, que regula a publicidade da venda na venda por propostas em carta fechada, não é aplicável à venda em leilão electrónico, porquanto o art. 837º, nº 2, não remete para tal dispositivo, antes se aplicando neste campo o art. 6º do Despacho;

v) O art. 824º, nº 1, do NCPC, que dispõe sobre a caução a prestar pelos proponentes é privativo da venda mediante propostas em carta fechada, ao invés quedando aplicável o art. 7º, nº 15, do Despacho e Anexo I, que obriga o licitante com o encerramento do leilão ao depósito do preço no caso de a sua proposta ser a mais elevada e superior ao mínimo de venda;

vi) Nos termos do aludido art. 7º, nº 1, do Despacho, as propostas podem ser apresentadas até à hora limite fixada, podendo, no entanto, essa hora limite ser diferida para além daquela hora, nos casos previstos no mesmo número, alíneas a) e b);

vii) Se a hora de fecho do leilão era às 10h e o leilão só foi encerrado às 11.24h, e não se demonstra terem ocorrido as situações de excepção previstas nas ditas a) e b), foi praticada uma irregularidade que viciou o resultado final do leilão, o que importa a anulação do mesmo (art. 835º, nº 2, do NCPC, ex vi do art. 837º, nº 3).  

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando o despacho recorrido, e, em consequência, anula-se a venda do imóvel, identificado nos autos, através de leilão electrónico ocorrido em 12.7.2017.

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Custas pela recorrida/exequente.

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    Coimbra, 27.2.2018

 

Moreira do Carmo ( Relator )